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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.76 Curitiba ene./mar 2023  Epub 05-Abr-2023

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.076.ds14 

Dossiê

Pesquisas etnográficas com crianças e adultas/os na educação infantil: desafios éticos, conceituais e metodológicos

Ethnographic research with children and adults in early childhood education: ethical, conceptual and methodological challenges

Investigación etnográfica con niños y adultos en educación infantil: desafíos éticos, conceptuales y metodológicos

Márcia Buss-Simãoa 
http://orcid.org/0000-0001-6076-0640

Juliana Schumacker Lessab 
http://orcid.org/0000-0003-3884-8309

aUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: marcia.simao@gmail.com

bUniversidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis, SC, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: julianallessa@gmail.com


Resumo

Este artigo problematiza desafios decorrentes de percursos investigativos em pesquisas etnográficas realizadas com crianças no contexto coletivo da educação infantil. A problematização se dá c;olocando em diálogo caminhos metodológicos trilhados em duas pesquisas com crianças e três categorias temáticas que compõem as pesquisas etnográficas com crianças apontadas por Christensen (2004): a) os processos dialógicos de acesso às “culturas de comunicação das crianças”; b) as relações de reconhecimento e estatutárias inerentes ao/à adulto/a pesquisador/a, e; c) as relações de poder. O artigo, em um primeiro momento, discute a categoria temática que envolve as relações com as crianças e o acesso aos seus contextos e culturas de comunicação. Em um segundo momento, trata das relações de reconhecimento e estatutárias inerentes à/ao adulta/o pesquisador/a e os desafios dessas relações. Por fim, traz reflexões quanto às relações de poder, tendo como principal ponto de partida projetar uma relação mais simétrica possível, com base na definição de simetria ética, seja nas relações com as crianças como também com as/os adultas/os.

Palavras-chave: Pesquisa etnográfica com crianças; Educação infantil; Ética na pesquisa; Relações crianças-adultos

Abstract

This article problematizes challenges from investigative paths in ethnographic research carried out with children in the collective context of early childhood education. The problematization takes place by placing in dialogue methodological paths followed in two researches with children and three thematic categories that make up the ethnographic researches with children pointed out by Christensen (2004): a) the dialogical processes of access to “children's communication cultures”; b) the recognition and statutory relationships inherent to the adult researcher, and; c) power relations. The article, at first, discusses the thematic category that involves relationships with children and access to their contexts and cultures of communication. In a second moment, it deals with the recognition and statutory relationships inherent to the adult researcher and the challenges of these relationships. Finally, it brings reflections on power relations, having as its main starting point to project a relationship as symmetrical as possible, based on the definition of ethical symmetry, whether in relationships with children or adults.

Keywords: Ethnographic research with children; Early childhood education; Research ethics; Child-adult relations

Resumen

Este artículo aborda los desafíos que surgen de los caminos investigativos en la investigación etnográfica realizada con niños en el contexto colectivo de la educación infantil. La problematización se realiza poniendo en diálogo los caminos metodológicos seguidos en dos investigaciones con niños y tres categorías temáticas que componen las investigaciones etnográficas con niños señaladas por Christensen (2004): a) los procesos dialógicos de acceso a las “culturas comunicativas infantiles”; b) el reconocimiento y las relaciones estatutarias inherentes al investigador adulto, y; c) relaciones de poder. El artículo, en un primer momento, aborda la categoría temática que involucra las relaciones con los niños y el acceso a sus contextos y culturas de comunicación. En un segundo momento, trata sobre el reconocimiento y las relaciones estatutarias inherentes al investigador adulto y los desafíos de estas relaciones. Finalmente, trae reflexiones sobre las relaciones de poder, teniendo como principal punto de partida proyectar una relación lo más simétrica posible, a partir de la definición de simetría ética, ya sea en las relaciones con niños-adultos.

Palabras clave: Investigación etnográfica con niños; Educación Infantil; Ética de la investigación; Relaciones niño-adulto

Primeiras palavras: situando desafios éticos, conceituais e metodológicos

Este artigo tem como objetivo problematizar desafios decorrentes de percursos investigativos de duas pesquisas etnográficas com crianças, realizadas no contexto público da educação infantil, que tomaram as dimensões do corpo, das relações de gênero e das práticas do comer como foco de suas análises. Uma delas (LESSA, 2019), buscou compreender as relações sociais das crianças no contexto das práticas do comer no refeitório, e a outra pesquisa (BUSS-SIMÃO, 2012), investigou os significados e usos dados pelas crianças, em suas relações, à dimensão corporal. Para problematizar os desafios éticos, conceituais e metodológicos das pesquisas, dialogamos com três categorias temáticas, discutidas por Christensen (2004). A primeira, abrange as compreensões acerca das maneiras pelas quais as crianças se envolvem e respondem à pesquisa, para as quais, Christensen (2004) sugere um processo investigativo dialógico, a partir do acesso às suas “culturas de comunicação”. A segunda, aborda as relações de reconhecimento e estatutárias inerentes ao/à adulto/a pesquisador/a e a terceira, trata das relações de poder entre pesquisador/a e participantes da pesquisa.

As pesquisas com crianças são aquelas que tomam como pressuposto o reconhecimento e afirmação desses sujeitos como principais informantes do conhecimento que elas têm acerca de si, no contexto de uma infância situada. Estudos como o de Rosemberg e Mariano (2010) situam a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959)1 e a obra de Philippe Ariès (1960)2 - apesar das críticas que lhes foram feitas -, como discursos e concepções marcantes para a mudança de paradigma proposta pelos Estudos Sociais da Infância, nas décadas de 1980 e 1990 (PROUT; JAMES, 1990; JAMES, JENKS; PROUT, 1998). Mudança esta que alçou a infância à condição de objeto legítimo das Ciências Humanas e Sociais e trouxe à tona a perspectiva da criança como ator social (ROSEMBERG; MARIANO, 2010).

No âmbito da educação infantil, as pesquisas que vêm concebendo, na relação teoria e prática, as crianças como principais participantes permitem, como pontuou Cerisara (2004, p. 39): “[...] ampliar o nosso conhecimento sobre elas e sobre a forma como vivem as suas infâncias em contextos de educação coletiva, sendo essencial para pensarmos a finalidade das instituições de educação infantil”. Por se constituir um espaço feito para as crianças, nele, suas vozes ressoam, de maneira que atentar para como as ouvimos e compreendemos são questões importantes para as pesquisas com crianças. Também, essa ampliação de conhecimentos sobre a infância e sua educação é necessária como parte da tarefa de uma compreensão mais abrangente da sociedade em geral (MAYALL, 2008; STRANDELL, 2010; ALANEN, 2017).

Na realização de pesquisas com crianças, um princípio ético que envolve os processos de pesquisa de campo implica uma forma radical de considerar a diferença do Outro-criança, levando em conta “[...] que não se pode dizer que a criança é melhor ou pior que o adulto, ou que é menos experiente que este, pois ela pensa e experencia a vida de maneira diferente do adulto” (OLIVEIRA, 2004, p. 186). Nesse reconhecimento, trata-se de oportunizar contato e troca, sem diluição das fronteiras, do que propriamente buscar compreendê-las a partir dos próprios referenciais, da adultez. Isso impõe às pesquisas com crianças uma constante vigilância para a superação de relações que subordinam a infância à adultez, o que vem conferindo à ciência Ocidental, como chamou Rosemberg (1997), uma postura adultocêntrica. Jenks (2002) conceitua essa perspectiva como gerontocentrismo, que preserva a estrutura normativa do mundo adulto como variável independente e como padrão de medida em relação às crianças. Soma-se a isso um olhar crítico para perspectivas etnocêntricas, que tomam como padrão de referência a cultura e o ponto de vista do colonizador3.

No diálogo com a perspectiva de Rosemberg e Mariano (2010, p. 695), compreendemos que “[...] as relações de idade constituem categoria analítica útil para se compreender a produção e sustentação de desigualdades sociais”. Nesse sentido, a visibilidade social da infância e das crianças passa pelas construções em torno das “idades” da infância (SARMENTO; PINTO, 1997), sendo essas fronteiras produtos históricos, sociais e culturais. Rosemberg e Mariano (2010) ressaltam que a construção social das etapas da vida hierarquiza as idades e posiciona a adultez como o topo desta hierarquia:

Nesse sentido, ao lado das hierarquias de classe, gênero, raça-etnia e nação, as categorias etárias também configuram relações de dominação. Porém, as relações de dominação não atuam de forma sincrônica, seja na trajetória social, seja na história individual. Isso significa, por exemplo, que a busca de compreensão e superação de relações de dominação de classe (ou de gênero, raça-etnia, nação) pode gerar ou sustentar relações de dominação de idade (ROSEMBERG; MARIANO, 2010, p. 695).

Conforme Rosemberg (1997), mesmo as pesquisas que se debruçaram sobre as relações de gênero e romperam com uma compreensão essencialista dessas relações não conseguiram superar uma perspectiva adultocêntrica, pois acabavam por tomar como parâmetro os padrões adultos, ou a concepção de maturidade (adulta), anulando ou restringindo a historicidade da criança. História e linguagem, no diálogo com Kramer (2000, p. 4), constituem dimensões fundamentais do processo de humanização: “[...] afinal, se existe uma história humana é porque o homem tem uma infância”. Ampliar nossos conhecimentos sobre as crianças permite, como nos indica Kramer (2000, p. 13), “[...] compreender melhor nossa época, nossa cultura, a barbárie e as possibilidades de transformação”.

No âmbito dos Estudos Sociais da Infância e das perspectivas apontadas por Qvortrup et al. (1994), Qvortrup (2010) e Alanen e Mayall (2001), concebemos a infância como uma categoria geracional, o que significa tomá-la como uma estrutura permanente das sociedades, em suas dimensões histórica, política e cultural. Conforme Qvortrup (2010, p. 1132): “[...] a infância como uma categoria não se dissolve porque existe uma pluralidade de infância, ao contrário, confirma-se por meio destas”. Como um grupo social que são, as crianças conformam uma categoria permanente da sociedade e sobre ela atuam.

Nesse sentido, as concepções e entendimentos sobre as crianças e a infância são moldadas e produzidas na relação com outras estruturas (econômica, política, sociais, culturais, tecnológicas, discursivas etc.). De acordo com Qvortrup (2010a), é a interação entre essas estruturas que produz as configurações e grupos sociais e as relações entre eles, ao mesmo tempo em que demarca o caráter permanente da categoria infância nas sociedades:

A infância, enquanto espaço social no qual as crianças vivem, transforma-se constantemente, da mesma forma que a idade adulta e a velhice também se modificam. Essas transformações não podem esconder, no entanto, a contínua existência e realidade da infância enquanto categoria estrutural. Em termos estruturais, portanto, ela não é transitória e não é um período; tem permanência. O desenvolvimento histórico da infância não acaba com a sua categoria; e a variabilidade cultural da infância contemporânea testemunha a favor da sua presença universal (QVORTRUP, 2010a, p. 637, grifos no original).

A construção social da infância e sua presença universal não são, portanto, compreensões antagônicas, mas relacionais. Ou seja, a heterogeneidade que lhe é constituinte não a anula como uma categoria estrutural, o que permite, como pontua Sarmento (2004, p. 19) “[...] que a infância possa ser tomada como objeto de políticas e discursos”. Um aspecto que demarca a identidade geracional da infância (SARMENTO, 2004) consiste nos modos próprios pelos quais as crianças percebem, agem e significam o mundo, sendo constituída nas e pelas relações sociais e culturais. Esses sentidos coletivos produzidos têm se constituído como chave para o entendimento da infância e central nas pesquisas com crianças.

No diálogo com Kramer (2000, p. 5), compartilhamos da concepção de criança defendida pela autora, a qual consideramos que pode ser tomada como princípio orientador das pesquisas com crianças:

Defendo uma concepção de criança que reconhece o que é específico da infância - seu poder de imaginação, fantasia, criação - e entende as crianças como cidadãs, pessoas que produzem cultura e são nela produzidas, que possuem um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das coisas, subvertendo essa ordem. Esse modo de ver as crianças pode ensinar não só a entendê-las, mas também a ver o mundo a partir do ponto de vista da infância. Pode nos ajudar a aprender com elas.

As pesquisas com crianças vêm, cada vez mais, evidenciando os diferentes contextos sociais, culturais e históricos das crianças e seus pertencimentos a diferentes raças-etnias, religiões, gêneros e classes. Esse acúmulo confere afirmação à vinculação social e histórica das crianças e configura as bases de uma Pedagogia da Infância (ROCHA, 1997). Sustentada em perspectivas contrárias e críticas a concepções de infância e de educação pautadas em padrões de homogeneidade, e na ideia de insuficiência da criança, ora reduzindo-a em etapas bio-psicológicas pré-definidas, ora enquadrando-a no mundo adulto (ROCHA, 1997).

Na sequência, trazemos para discussão os dados de duas pesquisas etnográficas com crianças (BUSS-SIMÃO, 2012; LESSA, 2019), realizadas em contextos públicos de educação infantil, no diálogo com três categorias temáticas apontadas por Christensen (2004), as quais, entram em cena nos percursos investigativos.

Processos dialógicos de acesso às culturas de comunicação das crianças

No artigo: “Participação das crianças na pesquisa etnográfica: questões de poder e representação”, Pia Christensen (2004) chama atenção para três categorias temáticas a serem consideradas no percurso investigativo, são elas: a) processos dialógicos de acesso às “culturas de comunicação das crianças’”; b) relações de reconhecimento e estatutárias inerentes ao/à adulto/a pesquisador/a, e; c) relações de poder.

A primeira categoria, que envolve os processos dialógicos de acesso às “culturas de comunicação das crianças”, compreende duas questões-chaves, são elas: 1) se os encaminhamentos metodológicos empregados na pesquisa estão alinhados e refletem as experiências das crianças, seus interesses, valores e rotinas diárias, e; 2) “quais são as formas pelas quais as crianças rotineiramente expressam e representam isso em sua vida cotidiana” (CHRISTENSEN, 2004, p. 166).

Nas pesquisas etnográficas com crianças, os registros de campo compõem as análises como forma de evidenciar e, ao mesmo tempo, sugerir maneiras de fazer pelas quais processos dialógicos de pesquisa podem ser realizados. Entre essas maneiras, aquelas envolvendo o acesso às “culturas de comunicação das crianças”, cujo sentido se refere às formas pelas quais elas se envolvem e respondem à pesquisa. Isso exige um engajamento do/a pesquisador/a com os seus contextos culturais de comunicação.

Entre as estratégias, é preciso considerar, como parte fundamental do processo de pesquisa, a entrada e aproximação às crianças, no âmbito de seus “[...] segredos, jogos particulares e práticas ‘duvidosas’”, como ressalta Christensen (2004, p. 172):

[...] diz respeito à "entrada" em segredos, jogos particulares ou práticas "duvidosas" de crianças das quais outros adultos geralmente são excluídos. Esses incidentes são de valor crucial para o desenvolvimento da compreensão e geram novas percepções sobre o que é significativo para a pesquisa, especialmente em contraste com os momentos em que a pesquisa com crianças parece ter se tornado um trabalho de rotina ou confrontado com eventos que parecem confirmar o pensamento convencional.

Em uma das pesquisas, essa prova e evidência de confiança ocorreu quando as crianças permitiram a presença da pesquisadora em conversas ‘secretas’ envolvendo o corpo e a sexualidade. Seguindo o princípio da confidenciabilidade e garantia de sigilo e anonimato das crianças, a pesquisadora detalha o episódio:

Um dos meninos está brincando com animais de brinquedo que estão sobre a mesa. Aproximo-me dele e sento-me para ali ficar observando. Uma das meninas se aproxima de mim e vem no meu colo, ela está chorosa pela disputa por um objeto que acabou de ter com outra menina. Em seguida sai de meu colo e senta-se numa cadeira ao lado desse menino. Assim que ela se senta ele a olha e convida:

Menino: - “vamos brincar de pegar aqui?” Juntamente com a frase leva uma de suas mãos até os genitais e segura-os - fico na dúvida se ouvi corretamente e continuo a observar os dois. Logo minha dúvida é esclarecida quando ele olha na minha direção e, em seguida, na direção da porta de entrada da sala onde está a professora e continua: - “a prof não vai ver!” e volta a olhar fixamente para a menina aguardando uma resposta.

Menina: olha para ele e balança a cabeça negativamente.

Menino: vamos menina! [reforça o convite falando seu nome].

A menina permanece sentada e só balança a cabeça negativamente. Com a negativa da menina ao convite, a atenção do menino é desviada para a pista de carrinhos que está sendo construída pela auxiliar e algumas crianças em outra mesa [Notas de campo de 01.09.2009] (BUSS-SIMÃO, 2012, p. 80-81).

A presença da pesquisadora em situações como essa revela os dissabores envolvidos na construção de relações de confiança com as crianças e no acesso às suas culturas de comunicação. O registro evidencia que as crianças não viam a pesquisadora como alguém com autoridade e poder aparente como as/os demais adultas/os-professoras/es do contexto investigado. Ao mesmo tempo em que a situação revela os modos pelos quais elas vão expressando a confiança, esses modos nos interpelam em questões éticas que necessitam ser revisadas e questionadas no percurso de toda a pesquisa.

Kramer (2002) já alertava quanto aos desafios colocados nas decisões de nomear ou não; identificar ou não, manter a autoria ou preservar o anonimato. Como bem destaca, nestas tomadas de decisões temos algumas certezas, como a recusa em alternativas tais como usar números, mencionar as crianças pelas iniciais ou as primeiras letras do seu nome. Pois, nas palavras da autora: “[...] isso negava a sua condição de sujeitos, desconsiderava a sua identidade, simplesmente apagava quem eram e as relegava a um anonimato incoerente com o referencial teórico que orientava a pesquisa” (KRAMER, 2002, p. 47).

No entanto, nesse processo, questões éticas precisam ser mais bem discutidas no âmbito das pesquisas que pretendem tornar visíveis processos de autoria, participação e construção social da confiança e dos processos dialógicos de relações. Nesse sentido, a preocupação que nos acompanha envolve situações que necessitam ser analisadas com cuidado e exigem “[...] uma ética que só pode ser pensada no contexto específico daquela pesquisa, porque responde a questões que são próprias daquela pesquisa” (PEREIRA; GOMES; SILVA, 2018, p. 764, grifos no original).

Ou seja, a decisão quanto a revelar a identidade das crianças precisa ser analisada considerando o contexto específico da pesquisa, pois em alguns casos, colocam em risco a integridade das crianças. Isso pode ocorrer, como indica Kramer (2002), seja porque seus depoimentos podem trazer muitas críticas à escola e às professoras/es, seja porque revelam situações graves vividas por elas mesmas e suas famílias. Nesses casos, como outros, o uso de nomes fictícios ou genéricos, como criança, menino ou menina garante um caminho entre a participação e a proteção, direitos a que estão resguardadas as crianças e a infância.

Nas pesquisas com crianças é preciso ter em conta que as escolhas e tomadas de decisão envolvem tensões entre participação, tutela, proteção e autoria, que ora são afirmadas e evidenciadas, ora negadas ou invisibilizadas. Como colocam Pereira, Gomes e Silva (2018, p. 777):

O pesquisador ao ter as crianças como participantes de sua pesquisa e atores sociais estabelece uma série de desafios teóricos, empíricos, éticos e morais, entre eles assumir a responsabilidade pelas crianças. Por isso mesmo, aspectos como proteção, participação, tutela e autoria não são apenas temas ou categorias de análise, são realidades teoricamente afirmadas ou negadas, evidenciadas ou invisibilizadas.

Trata-se de assumir “[...] que o terreno onde o pesquisador trabalha é o fio de uma navalha onde não há como se equilibrar sem assumir os riscos e as tomadas de decisão” (PEREIRA; GOMES; SILVA, 2018, p. 778) que envolvem, na condução da própria pesquisa, como afirmado pelas autoras, não somente participação, tutela, proteção e autoria como temáticas a serem teorizadas, mas, como realidades concretas, que requerem nossa atenção e responsabilidade na forma como conduzimos a pesquisa.

A responsabilidade pelas crianças que precisamos assumir, como adulto/a pesquisador/a, também exige-nos levar em conta as relações de poder entre adultas/os e crianças, uma vez que estas relações, “[...] podem limitar, escamotear ou restringir a participação delas, dos seus dizeres, das suas ações e como a infância quer ser percebida na e pela sociedade” (PEREIRA; GOMES; SILVA 2018, p. 769). Assim, como pesquisadoras/es comprometidas, é preciso trilhar o terreno da pesquisa nos equilibrando sob o fio da navalha com diversos desafios teóricos, empíricos, éticos e morais, questionando-nos constantemente, se nossa postura no campo é adultocêntrica (ROSEMBERG, 1997) ou gerontocêntrica (JENKS, 2002).

Desta forma, cabe o alerta e a indagação, qual a lógica de responsabilidade pelas crianças que assumimos? Uma lógica resultante da reflexividade sobre as tensões e, portanto, relações entre proteção e participação? Ou, de uma proteção sustentada basicamente na ideia de menoridade, incapacidade e irracionalidade das crianças em relação aos adultos? A não identificação, baseada nessas prerrogativas, traz também consigo o risco da tutela e subordinação daqueles/as que devem ser protegidos/as e, consequentemente, o silenciamento de suas falas, mostrando a linha tênue que pode ser traçada em torno da noção de proteção.

Nas pesquisas etnográficas com crianças, os processos dialógicos de acesso aos seus contextos culturais de comunicação passam por um constante questionamento quanto aos procedimentos metodológicos empregados na pesquisa, se estes refletem a experiência das crianças, seus interesses, valores e rotinas cotidianas. Como revela a pesquisa de Buss-Simão (2012), também no processo de escrita, é preciso levar em conta se apenas o anonimato das crianças é um procedimento suficiente, caso contrário, poderá incorrer na própria negação da relação de confiança desejada.

Outro aspecto que envolve os processos dialógicos de acesso às culturas de comunicação das crianças diz respeito à necessidade de evidenciar quais são as maneiras pelas quais elas, rotineiramente, expressam e representam seus interesses e pontos de vista, em sua vida cotidiana. Nas pesquisas realizadas (BUSS-SIMÃO, 2012; LESSA, 2019), observamos que as formas pelas quais as crianças se envolvem e respondem à pesquisa se dão em pequenos gestos que vão deflagrando progressos de aceitação do/a pesquisador/a no campo. Esses gestos têm em comum a aproximação delas pelo convite para brincar, para estar junto e por meio de interações em que expressam seus gostos pessoais, como por exemplo, exibir e compartilhar seus pertences. Essas interações, iniciadas por elas, envolve também uma curiosidade em torno de questões sobre a vida da/o pesquisador/a (se tem filhos/as, onde mora, como chega até a sua casa etc.). Nessas situações, embora sejam interessantes os movimentos de procura de algumas crianças, que vão estabelecendo relações cada vez mais próximas com o/a pesquisador/a, é preciso questionar até que ponto não limitam a possibilidade de acessar suas culturas de comunicação por elas próprias e sem tanta interferência de adultos/as.

No acesso e entrada em campo, essas situações e relações são de grande relevância para a pesquisa, pois contribuem com o necessário movimento de proximidade e distância que demarca a constituição do lugar da/o pesquisador/a.

Relações de reconhecimento e estatutárias inerentes ao/à adulto/a pesquisador/a

Nesse item discutimos os resultados das duas pesquisas etnográficas com crianças (BUSS-SIMÃO, 2012; LESSA, 2019), agora, no diálogo com a segunda categoria temática discutida por Christensen (2004), que consiste no papel distinto do/a pesquisador/a e as relações que são desenvolvidas durante a pesquisa de campo. Isso implica no que a autora chamou de uma atenção crítica sobre “o que é um adulto?” (CHRISTENSEN, 2004, p. 166), no caso, quem é a pessoa adulta pesquisador/a, para as crianças no contexto investigado. Por diversas vezes, elas confrontam o/a pesquisador/a com a pergunta “quem é você?” ou, “o que você está fazendo?”, ou ainda, “o que você está escrevendo?”. Ao fazerem esse tipo de pergunta:

[...] as crianças encapsulam um dos principais processos de pesquisa: a elaboração das noções mais amplas de quem somos uns para os outros. Este é um precedente importante para a forma como nos relacionamos uns com os outros, um processo em que ambos, pesquisadores e crianças, se envolvem (CHRISTENSEN, 2004, p. 166).

Na dinâmica em campo surge a necessidade de explicitar às crianças quem é a “adulta”, que não é professora (“profe”)4 e o que faz, no sentido de diferenciar da relação crianças e adultas-professoras. O trecho que se segue da pesquisa de Lessa (2019) narra como pode ocorrer um desses importantes momentos de “contratualização”:

Entre as crianças, uma das portas de entrada que permitiu sair da definição de profe foi quando Nathan (5-6 anos) perguntou qual era meu nome, ao passo que era o mesmo de sua mãe. Assim, a pergunta de Nathan, “qual é teu nome”, ao invés do “quem é você” consistiu em um bom momento para conseguir sair da definição de “profe”. Esta forma de colocar a pergunta foi porta de entrada para uma relação mais próxima com Nathan, mas também com o seu grupo de pares. Era comum ver Nathan explicando às outras crianças com quem compartilhava a mesa que a pesquisadora era alguém que tinha o mesmo nome da mãe dele e que, portanto, ele sabia meu nome. Outras crianças passaram a me cumprimentar chamando-me pelo meu nome, ou com um beijo no rosto, ou um abraço, depois que Nathan expressava isso diariamente. Por outro lado, não apenas a relação com as crianças se alargou para o grupo de pares de Nathan, como também, outras crianças foram se manifestando, interagindo ou cumprimentando (Lessa, 2009, p. 80).

Na pesquisa de Buss-Simão (2012), as representações sobre a presença da pesquisadora e seus papéis no grupo nem sempre estavam bem definidas para todas as crianças e as nomeações “tia” e “professora” foram suplantadas pela nomeação de seu nome, como no excerto que se segue:

Nicole se aproxima me chamando de ‘tia’, Isadora imediatamente a corrige:

Isa: Não é tia!

Nicole: é tia sim.

Isa: Não. É pofessora [professora] - mas Isa parece não ter certeza de que sou professora e complementa: Não, não é pofessora [professora], é Márcia.

Manu: É, é a [nome omitido].

Isa: Não é [nome omitido]! É [nome omitido] - mudando alguma coisa na pronúncia para estar mais correta.

Em seguida as atenções se voltam ao meu bloco de anotações, todos querem desenhar meu nome no caderno: Léo, Nicole, Manu, Isadora e Amanda [Notas de campo de 01.05.2009] (BUSS-SIMÃO, 2012, p. 78).

Essas formas de acesso, agenciadas pelas crianças, são fundamentais para o estabelecimento de uma relação mais próxima, permitindo ocupar outros lugares que não aquele de uma adulta-professora e nem de tia5. Por outro lado, a pesquisa nos diferentes contextos coletivos da educação infantil, pode implicar também em outros reconhecimentos para o/a adulto/a-pesquisador/a, como a “moça do refeitório, que cuida do restaurante”, ou a “menina grande”:

[...] fui reconhecida pelas crianças como a “moça do refeitório, que cuida do restaurante” (Manu, 4-5 anos), ao tentar definir para uma amiga quem eu era. Depois de explicá-la quem eu era o que fazia no refeitório, Manu passa a me chamar de menina grande: “ô, menina grande” (Manu, 4-5 anos). Também fui chamada de “professora nova”, quando um menino perguntava ao outro se me conhecia e quem eu era, e o outro respondeu que conhecia, e que eu era uma “professora nova” (LESSA, 2019, p. 80-81).

Compreender as maneiras pelas quais as crianças se envolvem e respondem à pesquisa também passa pelo reconhecimento delas em relação ao/à adulto/a pesquisador/a. Muitas vezes, isso tem nos exigido questionar a representação que nos é atribuída, de início, por elas. Essa ponderação pode ser feita por uma pergunta-chave: “quem sou eu na relação com as crianças?”, como traz Buss-Simão (2014, p. 45), e que deve acompanhar todo o processo de pesquisa. As respostas a esta indagação podem ser encontradas em caminhos metodológicos reflexivos e dialógicos, que atentem para o fato de que algumas tomadas de decisão e ações, podem levar as crianças a reconhecer o/a pesquisador/a como alguém com poder de decisão e autoridade sobre suas ações, limitando a manifestação de sua autonomia, suas expressões e pontos de vista.

No âmbito da educação infantil, é preciso atentar para não ser confundida/o com um/a professor/a ou um/a familiar, sendo estas as representações adultas habituais. Nestes contextos, é comum que as crianças reconheçam as relações com adulto/as, sobretudo as adultas mulheres6, como uma “profe” ou uma “profe nova”. Como se trata de uma relação adulta/o-criança distinta, na pesquisa, torna-se necessário demarcar um posicionamento, no qual “[...] o pesquisador surge em primeiro lugar como uma pessoa social e, por outro, como um profissional com um propósito distinto e original” (CHRISTENSEN, 2004, p. 174).

Com base nessa indicação é relevante se posicionar como um/a adulto/a pesquisador/a sem autoridade aparente no contexto investigativo, procurando demarcar sua posição de um/a profissional que tem propósitos diferentes dos/as demais adultos/as que estão no dia a dia com as crianças. Nesse sentido, além de nos indagarmos constantemente quem sou eu na relação com as crianças, uma outra indagação é se a presença do/a pesquisador/a se torna mais um limite ou barreira às suas ações autônomas?

Para um engajamento do/a pesquisador/a com os contextos culturais de comunicação das crianças é preciso considerar estratégias que lhes permitam um certo grau de autonomia na articulação de seus interesses. Pois, se esse interesse estiver relacionado a uma ação de subverter algo estabelecido, a presença e olhar adulto/a do/a pesquisador/a pode tanto limitar como expandir sua ação autônoma. Este desafio acompanha as pesquisas e é, por isso, um processo importante, sobretudo na etapa de entrada em campo e aproximação às crianças, uma vez que envolve como elas vão reconhecendo e significando suas relações com o/a adulto/a pesquisador/a.

Em uma das pesquisas realizadas (LESSA, 2019), no espaço-tempo do refeitório, um dos desafios para conseguir acessar as culturas de comunicação das crianças consistiu em fazer com que elas vissem a pesquisadora, nesse contexto, como uma adulta diferente de uma professora. O trecho que se segue elucida o desafio colocado quanto às limitações da ação autônoma das crianças pela sua presença:

Antes que eu pudesse me apresentar, fui considerada por elas, fundamentalmente, como uma “profe” (professora), definição atribuída pelas crianças a grande parte das adultas que trabalham na creche. Quando meu olhar, de adulta, era direto, era comum que as crianças se sentissem observadas e escutadas e, muitas vezes, desviavam o assunto que acontecia à mesa ou hesitavam em realizar alguma ação que, de certa forma, infringiria as regras do refeitório, quando percebiam que a pesquisadora as observava. Nesses momentos, o encontro do olhar, inesperado, era seguido de um sorriso meu, o que de certa forma, dava abertura para a autonomia da ação das crianças. Ou elas prosseguiam com a ação, geralmente, de dispensar a comida que restava no prato, ou então, buscavam a pesquisadora para fazer alguma queixa, como dizer que não queriam mais comer ou que não havia gostado de alguma comida (LESSA, 2019, p. 79).

Por outro lado, as crianças também vão manifestando que reconhecem o/a pesquisador/a como um adulto diferente do/a professor/a. Isso pode ser percebido em situações nas quais elas se utilizam do estatuto de adulto/a para expandir sua ação autônoma. Essas situações foram identificadas nas pesquisas (BUSS-SIMÃO, 2012; LESSA, 2019) quando elas solicitavam das pesquisadoras para alcançar brinquedos guardados pelas/os professoras/es, ou para levar ao parque, ou permanecer na sala enquanto o restante do grupo e as professoras estão em outro espaço, ou ainda, pedidos para não comer e para poder dispensar a comida.

Afirmar-se como um/a adulto/a que não é professor/a, nem um/a referente familiar, que possui seus objetivos a atingir, porém distintos, passa pelas relações que vão sendo construídas com as crianças. Nesse sentido, é preciso levar em consideração o fato de que elas reconhecem e atribuem sentidos diversos ao estatuto de adulto/a-pesquisador/a, sobretudo, durante a entrada e aproximação, como também no decorrer da pesquisa de campo. De um modo geral, podemos dizer que as crianças buscam construir relações de cumplicidade e parceria, manifestas nos modos próprios como elas foram indicando às pesquisadoras a aceitação de sua presença nas relações investigadas. São nestes processos de contratualização que elas vão construindo sentidos para as relações com o/a adulto/a-pesquisador/a e, ao mesmo tempo, indicando as formas pelas quais elas se envolvem e respondem à pesquisa.

As relações de poder entre pesquisador/a e participantes da pesquisa

A terceira e última categoria temática trata das relações de poder. Conforme Christensen (2004), a pesquisa com crianças “[...] é uma prática que faz parte da vida social e não uma contemplação externa dela. Isso requer que o pesquisador preste atenção às questões mais amplas da vida social e cultural que são, ou podem ser, sensíveis à questão do poder” (CHRISTENSEN, 2004, p. 166). Nessa perspectiva, o poder é concebido como presente nas relações e movendo-se “[...] entre diferentes atores e diferentes posições sociais”, sendo “[...] produzido e negociado nas interações sociais de criança para adulto, de criança para criança e de adulto para adulto nos ambientes locais da pesquisa” (CHRISTENSEN, 2004, p. 175). Disto, decorre pensar que as pesquisas com crianças não são muito diferentes das pesquisas com adultos. O que acontece, conforme colocam Thomas e O ́kane (1998, p. 337) é que,

[...] existem maneiras importantes pelas quais essas questões se apresentam mais intensamente quando os sujeitos são crianças. Em parte, a diferença deve-se ao fato de a compreensão e a experiência das crianças no mundo serem diferentes das dos adultos e, em parte, das diferentes maneiras pelas quais elas se comunicam. Acima de tudo, é devido a diferentes relações de poder.

Na pesquisa com crianças, é preciso projetar uma relação com elas que seja o mais simétrica possível, tomando como base a definição de simetria ética, elaborada por Christensen e Prout (2002). Conforme indicam, o conceito de simetria ética significa não considerar, à partida, as crianças diferentemente de adultos/as. Nesse sentido, o/a pesquisador/a deve trabalhar de modo reflexivo e cuidadoso, tomando como premissa que os princípios e direitos éticos para as crianças são iguais aqueles para as pessoas adultas. Projetar a simetria nas relações adulto-criança não significa desconsiderar as relações de poder, mas implica compreender a criança em termos de posição social e cultural.

Christensen e Prout (2002, p. 488) destacam que, no âmbito da pesquisa com crianças, as questões éticas constituem uma parte importante do processo e não se limitam às negociações de entrada, acesso e aceitação. Em todo o percurso da investigação, “eles podem surgir antes, durante e depois que um projecto de investigação seja concluído”. Nesse sentido, é necessário considerar, em todo o processo de investigação, as ações, as implicações teórico-metodológicas, as responsabilidades, a definição de quais métodos utilizar e formas de comunicação com as crianças. Isso significa, conforme indicam Christensen e Prout (2002, p. 484), tomar como premissa: “[...] que a prática ética está ligada à construção ativa das relações de pesquisa e não pode basear-se em ideias ou pressupostos sobre os estereótipos de crianças ou de infância”. Exige um engajamento com o que Christensen (2004, p. 174) chama de: “[...] culturas de comunicação das crianças, incluindo o contexto e o momento da comunicação, que são, muitas vezes, fundamentais para este processo”.

No diálogo com a terceira e última categoria temática apontada por Christensen (2004), trazemos para análise as relações com as/os adultas/os que fazem parte do contexto de relações investigadas. Com o acúmulo teórico-metodológico a que chegamos, no âmbito das pesquisas com crianças, consideramos que trazer essa discussão parece-nos uma importante e necessária ponderação a ser incorporada pelas pesquisas.

Nos contextos de educação infantil, o/a adulto/a pesquisador/a se lança ao encontro, tanto com um coletivo de crianças, como com outras pessoas adultas, sejam elas profissionais que atuam diretamente com as crianças, ou que atuam, de um modo geral, no contexto investigado (por exemplo, profissionais da equipe diretiva: diretor/a supervisor/a, coordenador/a; profissionais dos serviços gerais: limpeza, cozinha, segurança; e adultos/as-familiares). Nesse sentido, a pesquisa com crianças pode ser compreendida como “tempo e espaço de inúmeros encontros” (OSTETTO, 2011, p. 2). Ostetto (2011) caracteriza a dimensão do encontro que é tecida no âmbito do estágio docente na educação infantil. Tomamos emprestada suas palavras para relacionar com os inúmeros encontros que se fazem na tessitura da pesquisa nesses contextos educativos. O encontro do/a pesquisador/a com a unidade educativa, campo da pesquisa; do/a pesquisador/a com as crianças; do/a pesquisador/a com as/os adultas/os-profissionais e familiares; do/a pesquisador/a consigo mesmo, ao encontro de suas concepções e princípios e, principalmente, o encontro da pesquisa com a educação pública. Nesse sentido, nas pesquisas com crianças, ainda que suas perspectivas sejam consideradas centrais, precisamos levar em conta que a investigação também é contornada pelas relações estabelecidas com outras pessoas adultas, as quais também exigem compromisso ético e encaminhamentos metodológicos.

Assim, no percurso investigativo, processos dialógicos de reconhecimento do/a pesquisador/a nas relações com os/as adultos/as que fazem parte do contexto investigado e que se relacionam com as crianças, são necessários. Uma das estratégias adotadas nas pesquisas vem sendo o consentimento negociado, a partir de uma relação de parceria e por meio do compartilhamento dos dados, a qualquer momento da pesquisa, em consonância com o que determina a normativa vigente no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos7 para as Ciências Humanas e Sociais. E, também, na perspectiva de que as relações das crianças, foco das pesquisas com crianças no contexto da educação infantil, não estão desvinculadas das relações educativo-pedagógica com as/os adultas/os profissionais que atuam diretamente com elas.

No trecho que se segue, Buss-Simão (2012, p. 53-54) explica como esse processo ocorreu na pesquisa:

Com o objetivo de tornar o processo de pesquisa mais transparente e, ao mesmo tempo, possibilitar que a professora se sentisse mais segura com a minha presença quase que, cotidianamente, durante esse ano, combinamos que a professora teria acesso aos meus registros. Mesmo que a partir de meu foco de pesquisa pretendia atentar para as relações e interações das crianças, não seria verdade que não observaria as proposições das professoras, pois estas definiriam e influenciariam as ações ou não ações e interações das crianças, bem como, interessavam-me também observar as relações das crianças com os adultos.

O acesso a qualquer momento aos dados de campo produzidos, permite às/aos professoras/es, sobretudo no planejamento das relações educativo-pedagógicas, uma aproximação maior com um outro olhar para as situações e relações das crianças e com as questões que vão sendo problematizadas na pesquisa. Situações que chamam a atenção do/a pesquisador/a podem ser compartilhadas com as/os profissionais, assim como, nesse diálogo, outros olhares ou informações que complementam podem ser sugeridas pelas/os professoras/es. É possível que essas/es profissionais, que estabelecem relações pedagógicas diretamente com um grupo de crianças, possam validar algumas situações, seja complementando com informações contextuais, seja verificando se elas ocorrem rotineiramente, contribuindo sobre o entendimento da importância ou não de tais situações (BUSS-SIMÃO, 2012).

Entre as negociações que vão se fazendo na pesquisa com as pessoas adultas, diretamente envolvidas no contexto investigado, uma delas pode passar pela própria construção do objeto e entendimento daquilo que é sua dimensão educativa e pedagógica. Na educação infantil, a pesquisa com crianças realizada no espaço-tempo do refeitório (LESSA, 2019) revela ser este um contexto em que a dimensão nutricional é preponderante, pelo próprio estranhamento do lugar e da posição da pesquisadora observado nas relações com outras pessoas adultas:

[...] Depois de alguns diálogos estabelecidos com as famílias sobre a pesquisa, percebemos a necessidade de demarcar meu estatuto de professora. Isso evitaria confusões sobre o campo científico da pesquisa: da educação e não da nutrição. Após a apresentação da pesquisa, era comum perceber uma confusão gerada com o tema, pela associação recorrente da alimentação com a nutrição. Alguns adultos/as familiares, após serem informados da pesquisa abriam-se ao diálogo colocando questões nutricionais, [...], buscando maiores informações, e mesmo compartilhando dúvidas e angústias. [...]. Fui confundida com uma nutricionista não apenas entre os/as adultos/as familiares, como também entre as/os profissionais da instituição. Minha presença durante os momentos de alimentação no refeitório foi sentida, a partir dos encontros, cruzamentos e desvios de olhares. Entre os olhares, abordagens perguntando se eu era uma nutricionista ou alguém da secretaria municipal (LESSA, 2019, p. 85-86 - grifos nossos).

No percurso investigativo, ainda que nas relações com as crianças o reconhecimento da pesquisadora passa, muitas vezes, pelo deslocamento e saída do estatuto comumente atribuído por elas, de uma “profe” ou “professora nova”, nas relações com as/os adultas/os esse reconhecimento pode ocorrer de forma inversa, pela necessidade de afirmação desse estatuto. A pesquisa de Lessa (2019), ao investigar as relações das crianças no contexto do refeitório, evidencia a necessidade de reafirmar o estatuto educativo e pedagógico do contexto investigado e de suas relações. Necessidade essa observada nas relações da pesquisadora com ao/os adultas/os-familiares e profissionais (professoras, auxiliares, cozinheiras). Nesse sentido, pelas relações tecidas com adultos/as, atuantes no contexto, vão se abrindo possibilidades de reflexões acerca da própria construção do objeto de pesquisa.

A partir dos percursos de pesquisas trilhados, consideramos fundamentais as relações que se estabelecem entre a/o investigador/a e os/as demais adultas/os do contexto investigado. A pesquisa em parceria com as/os profissionais permite acessar a intrincada rede de informações que uma investigação vai solicitando na trilha do seu caminhar, permite também trocar impressões e questões sobre os desafios, as inquietações, expectativas, planos, ou demandas imediatas e urgentes.

Considerações finais

Ao longo da discussão, trouxemos alguns desafios éticos, conceituais e metodológicos, no diálogo entre três categorias temáticas discutidas por Christensen (2004) e dados decorrentes de percursos investigativos em pesquisas etnográficas com crianças. Pesquisas essas realizadas no contexto público da educação infantil e que tomaram as dimensões do corpo, das relações de gênero e as práticas do comer como foco de suas análises (BUSS-SIMÃO, 2012; LESSA, 2019).

O diálogo entre os dados e as categorias temáticas, aponta pistas a se considerar em percursos investigativos acolhedores e respeitosos envolvendo pesquisas com crianças na educação infantil. Entre essas pistas, o reconhecimento do estatuto da/o pesquisador/a na relação com as crianças e também com as/os adultas/os que fazem parte do contexto e, que, portanto, contornam as relações investigadas.

Nessa perspectiva, o caminho a ser trilhado pelas pesquisas precisa encontrar os encaminhamentos metodológicos mais apropriados para garantir que, tanto as vozes das crianças possam ser ouvidas e reconhecidas, como também o necessário diálogo com as/os adultas/os que se relacionam com elas. Trata-se, nesse caminho, de estabelecermos relações mais interconectadas entre crianças e adultas/os.

Agradecimentos

Nosso agradecimento a todas as crianças que participaram das duas pesquisas realizadas e às/aos profissionais, que contribuíram para aprofundar questões metodológicas e conceituais da pesquisa. Também agradecemos o coletivo de pesquisadora/es do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Educação na Pequena Infância - NUPEIN, pelos debates e diálogos realizados e cujas sínteses, de alguma maneira, fazem parte das reflexões trazidas no artigo. Por fim, agradecemos à CAPES e DAAD pelo financiamento das pesquisas.

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1Promulgada pela Organização das Nações Unidas, em 1959.

2L’Enfant et la Vie Familiale sous l’Ancien Régime, França, 1960.

3Conforme Gobbi (1997, p. 26): o termo adultocêntrico aproxima-se do conceito antropológico, etnocentrismo, que compreende: “[...] uma visão de mundo segundo a qual o grupo ao qual pertencemos é tomado como centro de tudo e os outros são olhados segundo nossos valores, criando-se um modelo que serve de parâmetro para qualquer comparação. Nesse caso o modelo é o adulto e tudo passa a ser visto e sentido segundo a óptica do adulto, ele é o centro”.

4O termo ‘profe’ é usualmente empregado pelas crianças dos contextos investigados nas pesquisas para chamar as/os adultas/os que se relacionam com elas nas instituições educativas.

5A crítica ao termo ‘tia’ é uma questão cara para a área da educação infantil, uma vez que historicamente (mais marcadamente a partir do contexto de formulação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, promulgada em 1996 e que instituiu a educação infantil como primeira etapa da educação básica, direito das crianças e famílias e dever do Estado ofertá-la) vem afirmando sua função social a partir do reconhecimento de seu caráter educativo-pedagógico. Disso, decorre que a profissionalização docente, pautada nas especificidades pedagógicas das relações educativas na infância, passe pelo reconhecimento profissional como professoras, e não como ‘tias’. Podemos lembrar também a importante obra de Paulo Freire, “Professora, sim; tia não”, publicada em 1993, em que o autor alerta que recusar a identificação de professora como tia, de modo algum objetiva menosprezar ou diminuir a figura da tia, da mesma forma que aceitar a identificação não traz ou valoriza mais as tias, mas, essa identificação tira algo muito valoroso das professoras, ou seja: sua responsabilidade profissional e exigência legal e política de formação (inicial e permanente/continuada).

6Referimo-nos aqui às origens de uma constituição profissional marcadamente feminina, no âmbito da docência na educação infantil, como discutiu Cerisara (1996), na sua tese: “Construção da identidade dos profissionais de educação infantil: entre o feminino e o profissional”.

7Resolução CNS/MS/CONEP n. 510, de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde, Ministério da Saúde, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, que normatiza as pesquisas em Ciências Humanas e Sociais.

Recebido: 31 de Outubro de 2022; Aceito: 12 de Janeiro de 2023

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