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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.76 Curitiba ene./mar 2023  Epub 05-Abr-2023

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.076.ds15 

Dossiê

A escuta de docentes em pesquisas de Educação Infantil

Listening to teachers in Early Childhood Education research

Escuchando a los docentes en la investigación en Educación Infantil

Marlene Oliveira dos Santosa 
http://orcid.org/0000-0002-5894-1298

aUniversidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: dossantos.ufba@gmail.com.


Resumo

Este artigo tematiza a escuta de docentes em pesquisas no campo da Educação Infantil. O que significa escutar docentes em pesquisas? Além de buscar refletir sobre essa questão, o texto também pretende fazer discussões sobre os desafios éticos, teóricos e metodológicos em relação à escuta do professor da Educação Infantil, dialogando sobre o ato de escuta à luz dos estudos de Paulo Freire (1996) e Levinas (1980). Trata-se de um texto de natureza teórica que tece diálogos com o pensamento desses dois autores. Freire (1996) aponta a escuta como ato político que abre caminho para falar com o outro; e Levinas (1980), ao discutir sobre a ética da alteridade, apresenta aportes teóricos relevantes para a compreensão do que é escutar outrem. Escutar é uma ação humana complexa e, no contexto da pesquisa em Educação Infantil, exige do pesquisador, cada vez mais, uma escuta paciente e crítica. O estudo conclui que o ato da escuta, na pesquisa, extrapola a ritualidade burocrática da produção de material no campo empírico, e pede ética na produção das relações a partir das diferenças.

Palavras-chave: Escuta; Docentes; Ética; Pesquisa; Educação Infantil

Abstract

This article discusses the listening of teachers in research in the Early Childhood Education field. What does it mean to listen to teachers in research? Further seeking to reflect on this issue, is the text also intend to discuss ethical, theoretical, and methodological challenges regarding to listening to the Early Childhood teacher, dialoguing about the act of listening in the light of studies by Paulo Freire (1996) and Levinas (1980). It is a theoretical nature text which weaves dialogues with the thinking of these two authors. Freire (1996) points out listening as a political act that opens the way to talk to the other; and Levinas (1980), when discussing the ethics of alterity, presents relevant theoretical contributions to understand what is to listen to others. Listening is a complex human action, and in the context of Early Childhood Education context, increasingly requires a patient and critical listening from the researcher. The study concluded that the act of listening in the research goes beyond the bureaucratic ritual of the production of material in the empirical field and asks for ethics in the production of relationships based on differences.

Keywords: Listening; Teachers; Ethic; Search; Child education

Resumen

Este artículo aborda la escucha de docentes en la investigación en el campo de la Educación Infantil. ¿Qué significa escuchar a los maestros en investigación? Además de buscar reflexionar sobre esta cuestión, también se pretende discutir los desafíos éticos, teóricos y metodológicos con relación a la escucha del docente de Primera Infancia, dialogando sobre el acto de escuchar bajo la luz de los estudios de Paulo Freire (1996) y Levinas (1980). Es un texto de carácter teórico que teje diálogos con el pensamiento de estos dos autores. Freire (1996) señala la escucha como acto político que abre camino para hablar con el otro; y Levinas (1980), al discutir la ética de la alteridad, presenta aportes teóricos relevantes para la comprensión de lo que es escuchar al otro. Escuchar es una acción humana compleja y, en el contexto de la investigación en Educación Infantil, exige cada vez más una escucha paciente y crítica por parte del investigador. El estudio concluye que el acto de escuchar en la investigación va más allá del ritual burocrático de producción de material en el campo empírico, y pide ética en la producción de relaciones desde las diferencias.

Palabras clave: Escuchando; Maestros; Principio moral; Búsqueda; Educación Infantil

Introdução

Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que, em certas condições, precise falar a ele (FREIRE, 1996, p. 127-128).

A escuta paciente e crítica é um caminho para falar com o sujeito, como anuncia Paulo Freire (1996). Mas o que significa escutar paciente e criticamente o outro? Quem está em condição de escutar pacientemente em uma sociedade que se move pela instantaneidade e pelo aqui e agora? Etimologicamente, a palavra escutar deriva do latim auscultare, que pode ser traduzida como ouvir com atenção. Escutar é uma ação humana que pede pausa para se tomar consciência do que está sendo dito por outrem, e pede a paciência para vivência do tempo de outrem. É um tempo que põe quem escuta no lugar da espera: esperar o outro falar, esperar o tempo de fala de cada pessoa. É comum ouvir “espere aí, que eu estou falando”, “espere um pouco que fulano de tal está falando”, “espere que sua vez de falar está chegando”. Esperar é uma condição para escutar. Essa espera não é neutra, ao contrário: ela é política. Só se espera alguém falar, isto é, só se escuta com atenção quando se reconhece que aquela pessoa tem algo importante para dizer. Os professores têm algo importante para dizer? Quem está interessado em escutar o que os docentes têm a dizer? As pesquisas com a participação de professores são muitas, mas eles foram, de fato, escutados? A escuta paciente freireana está relacionada com essa espera e com o respeito ao tempo de cada sujeito.

Escutar criticamente é, mesmo na divergência de ideias e princípios, continuar ouvindo atentamente o outro falar e criar um ambiente que favoreça o diálogo, a partir de pontos de vista diferentes, sem se colocar em uma posição de inferioridade ou de autoanulação. “A verdadeira escuta não diminui em mim, em nada, a capacidade de exercer o direito de discordar, de me opor, de me posicionar” (FREIRE, 1996, p. 135). O pesquisador, ao escutar, também discorda, se opõe e se posiciona. Essa possibilidade é forjada em espaços-tempos, nos quais princípios democráticos são respeitados e vividos, tanto por quem escuta como por quem fala.

No ato da escuta, um fala e o outro se põe em silêncio. É um silêncio público momentâneo, porque os papéis, durante a escuta, se invertem entre pesquisador e professor, e porque enquanto a escuta acontece, uma teia de conexões se forma internamente no escutador e entre quem fala e quem escuta. O ato da escuta é um ritual que conecta, acolhe e afasta também, pois nem tudo o que foi dito entra no campo da concordância. A discordância faz parte do ato da escuta e não pode ser um impeditivo para se continuar falando com o sujeito, como afirma Freire (1966).

Escutar outrem pressupõe abertura para estar com o outro, para ir ao encontro do outro, não somente do ponto de vista físico ou virtual. Trata-se de um encontro que ultrapassa a aparência e coloca quem vai escutar em alerta para a palavra pronunciada. A linguagem é o fio que possibilita esse estar junto no ato da escuta. É pela linguagem que o pesquisador tem notícias de quem é aquele sujeito que está em sua frente e que pode escutá-lo a partir de sua voz. A voz se manifesta em múltiplas formas de expressão. O olhar de quem vai escutar não consegue acessar o que o outro tem a dizer. O pesquisador tem um rosto (o eu) diante de seus olhos, mas esse rosto é incapturável, não é controlável, dado que é infinito, como menciona Levinas (1980, p. 173, grifo do autor):

Outrem permanece infinitamente transcendente, infinitamente estranho, mas o seu rosto, onde se dá sua epifania e que apela para mim, rompe com o mundo que nos pode ser comum e cujas virtualidades se inscrevem na nossa natureza e que desenvolvemos também na nossa existência. Mas a palavra procede da diferença absoluta.

Esse pressuposto do filósofo Levinas (1980) rompe com a ideia de totalidade e de domínio sobre o outro. O outro é infinito, é estranho, e sua revelação é palavra. Se a revelação do outro é a palavra, o olhar de quem escuta está presente, mas não consegue enxergar o outro infinito. Sobre esse tema e inspirado no pensamento de Levinas, o filósofo espanhol Mèlich (1998, p. 172) reitera:

O olhar não é capaz de descobrir o rosto do outro, mas somente sua face, seu personagem, seu papel social. Mais além do olhar e da face, encontra-se o rosto que jamais pode ser observado. Sabemos dele por sua linguagem.

Mèlich (1998) fala de um rosto escondido, que o olhar não alcança, pois ele permanece na superfície e no que está visível aos olhos. Assim sendo, o ato da escuta envolve outros sentidos e percepções que se tornam viáveis pela relação, pela alteridade. É no movimento de um olhar multirreferenciado e contextualizado que se extrapola o dentro-fora e o subjetivo-objetivo, que tramas escutatórias se constituem e o outrem ganha visibilidade no olhar de quem escuta. A alteridade pressupõe produção de relação com o outro em sua singularidade. Assim, “sem reconhecimento da alteridade não há objeto de pesquisa e isto faz com que toda tentativa de compreensão e diálogo se construa sempre na referência aos limites dessa tentativa” (AMORIM, 2004, p. 29).

Na perspectiva de uma ética da alteridade (LEVINAS, 1980), só há ética se existe alteridade, e esta não significa colocar-se no lugar de outrem, mas produzir relação a partir das diferenças. O rosto de outrem revela-se pela palavra. Portanto, o encontro entre duas pessoas apresenta-se como possibilidade de tecer uma relação ética e inaugurar a humanidade do ser humano.

O pesquisador, por exemplo, pode estar diante de um professor da Educação Infantil, identificar suas características fenotípicas pelo olhar, ter informações sobre o seu itinerário acadêmico-profissional, traçar seu perfil étnico e sociocultural, mas ele não é capaz de prever o que será dito e como será dito pelo professor. Somente quando o professor fala (linguagem verbal e não-verbal) é que uma espécie de portal se abre para que a escuta se torne viável. Ainda assim, isso não significa que a escuta seja paciente e crítica, porque ela se efetiva quando quem está na posição de escutador tem interesse e disponibilidade para acolher o que será dito, mesmo que o dito seja diferente do que pensa o pesquisador. O encontro entre duas pessoas é um convite à escuta, mas estar junto, por si só, não garante que, ambos tendo falado, a escuta se efetivou de forma paciente e crítica.

O ato de escutar é singular e nenhuma escuta é igual a outra. Um pesquisador pode ter escolhido vários docentes para participar de sua pesquisa e ter adotado o mesmo dispositivo metodológico para escutá-los, mas o ato da escuta será diferente com cada um deles. O que será escutado de cada professor não será a mesma coisa, pois os sentidos atribuídos serão diferentes. Isso porque as pessoas são diferentes, porque os espaços e tempos de fala são distintos, porque o ponto de vista sobre os conteúdos abordados é diverso e enraizado em culturas, saberes e experiências múltiplas, porque o modo como cada um se expressa representa intenções e reações únicas, porque cada sujeito fala de si e de suas vivências de forma singular, porque cada história é irrepetível.

O outro que fala com o pesquisador “[...] não é o resultado de meu conhecimento. Situa-se muito além do saber e do conhecer” (MÈLICH, 1998, p. 173). O outro é o que ele quer ser, e não aquilo que, muitas vezes, o pesquisador pensa que ele é ou sabe sobre quem ele é. A intencionalidade do olhar do pesquisador sobre quem ele pensa que é o professor que está sendo escutado permanece no olhar, é uma camada superficial da escuta. Cada rosto que está diante do pesquisador é inalcançável e intraduzível a olho nu. Isso significa que o ato de escutar outrem, no âmbito das pesquisas, é uma ação humana complexa e marcada por desafios éticos, teóricos e metodológicos, como pode ser visto neste artigo, que tem como objetivo discutir o que é escutar o docente em pesquisas e os desafios éticos, teóricos e metodológicos sobre a escuta do professor da Educação Infantil.

O texto caracteriza-se como uma produção científica de natureza teórica, alicerçada na obra de Paulo Freire (1996), A Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa; e na obra de Emannuel Levinas (1980), Totalidade e infinito; e está organizado em três seções. A primeira seção contextualiza o tema abordado, explicita seu objetivo e como ele foi organizado. A segunda seção apresenta reflexões sobre imagens do professor da Educação Infantil e de como elas incidem nas escolhas teórico-metodológicas do pesquisador. Discute, também, os desafios éticos, teóricos e metodológicos envolvidos no ato de escuta do professor no contexto da pesquisa em Educação Infantil e o lugar do pesquisador e do professor no que tange a criação e a autoria na pesquisa. A última seção, as considerações finais, traz reflexões sobre os ecos da escuta na pesquisa depois que o pesquisador se despede do professor e faz uma síntese dos aspectos inerentes à escuta de professores nas pesquisas em Educação Infantil.

Escuta de docentes e desafios éticos, teóricos e metodológicos na pesquisa em Educação Infantil: um debate em aberto

Falar sobre a escuta de professores abre precedente para algumas notas sobre como as imagens dos docentes da Educação Infantil produzem repercussões no ato de escuta no contexto da pesquisa. Imagens de professores que trabalham com crianças encontram-se enraizadas em concepções assistencialistas, compensatórias e escolarizantes que teceram e tecem a Educação Infantil brasileira. A imagem de professora foi, historicamente, associada a atributos maternos (jeitosa, carinhosa, meiga, doce…) e/ou filiada a grupos parentais (tia, tio). A docência com crianças ainda carrega marcas deixadas por uma concepção de magistério na Educação Infantil associada à condição feminina, à assistência, ao cuidado e à socialização da criança (KRAMER, 2005).

Na atualidade, ainda é possível encontrar professores e professoras sendo chamados/as de tios e tias em escolas de Educação Infantil. Considera-se que essa é uma estratégia de desprofissionalização e de desgaste da imagem social do professor que persiste, mesmo com avanços importantes na legislação educacional e nas políticas públicas educacionais. Além das nomenclaturas citadas, pesquisas mostram outros nomes que são atribuídos àqueles que exercem a docência, principalmente em creches: cuidadores, pajem, monitores, berçaristas, recreacionistas e muitos outros (CAMPOS; PATTO; MUCCI, 1981; VIEIRA, 1988; CERISARA, 2002; ABRAMOVICZ, 2003; CÔCO, 2010). Mudar o nome para se referir ao docente pode ser uma forma de burlar a legislação para não garantir direitos trabalhistas e planos de carreira dignos, mas mais do que isso, representa depreciação à profissão docente e ao significado do que é ser professor na etapa inicial da Educação Básica. Esse movimento de descaracterização da identidade docente esgarça e mina todo o esforço epistemológico e político de formulação e consolidação dos processos de profissionalização do professor da Educação Infantil (BRASIL, 1996; BRASIL, 2008; SILVA, 2013).

Professor é profissão (NÓVOA, 1995), e as imagens inadequadas ainda associadas ao docente produzem visões e ecos na sociedade e na própria categoria que contribuem para a valorização ou desvalorização do professor e do que ele tem a dizer. E qual é a imagem que o pesquisador tem de um professor? E de um professor da Educação Infantil? Esse é um dos desafios teóricos que o pesquisador tem, pois a compreensão sobre quem é o professor deve estar no horizonte de quem faz pesquisa. A imagem que o pesquisador possui do professor que trabalha com crianças incide na escolha de abordagens teóricas, dos dispositivos metodológicos de uma pesquisa, e no lugar destinado às suas narrativas, seja na produção do texto, seja na comunicação dos resultados da pesquisa.

O pesquisador pode fazer o exercício de olhar “[...] a imagem do outro não como a imagem que olhamos, mas como a imagem que nos olha e que nos interpela” (LARROSA; LARA, 1998, p. 8). A imagem do outro nos olha e nos interroga. No contexto de uma pesquisa, tanto a imagem do professor como a do pesquisador podem ser interpeladas e indagadas. Perguntas sobre quem somos, o que fazemos, o que sabemos, e o que será feito com o que será escutado podem circular nos discursos de quem fala e de quem escuta.

Além de trabalhar para a atualização das imagens inapropriadas do professor, o pesquisador tem o compromisso de validar, em sua pesquisa, matrizes teórico-metodológicas que reconheçam a voz do professor como uma inspiração potente e criadora de conhecimentos. Para tanto, é preciso “[...] assegurar que a voz do professor seja ouvida, ouvida em voz alta e ouvida articuladamente” (GOODSON, 1992, p. 67)”.

Além da teorização sobre a imagem social do professor, é indispensável que as categorias raça, gênero, classe social e pertencimento geográfico sejam consideradas pelo pesquisador, pois elas se entrecruzam com a imagem que se tem de docente e, dependendo de como elas forem tratadas, podem intensificar a desigualdade nos atos de escuta. Quais professores vêm sendo escutados nas pesquisas? Professores negros, indígenas, com deficiência, das camadas populares, moradores da periferia, do campo, com formação em nível médio, que trabalham na Educação Infantil são escutados? As falas desses diferentes docentes ecoam do mesmo jeito nas pesquisas e, para além delas, nos processos de formulação de políticas públicas, na atualização de abordagens teórico-metodológicas para a formação inicial, continuada e para as práticas pedagógicas, na reestruturação de planos de carreira, cargos e salários?

O valor e o eco da fala de um professor na sociedade estão relacionados à sua valorização, reconhecimento e prestígio social. Quanto mais renomado é o professor, maior a relevância do que ele diz. O professor da Educação Infantil, principalmente aquele que trabalha na creche, com bebês, ainda não tem o mesmo reconhecimento que os professores dos demais segmentos da Educação Básica e do Ensino Superior: a fala ainda é pouco escutada, quando pronunciada por esses profissionais (SANTOS, 2017).

A escuta do professor, no âmbito da pesquisa, pode ser marcada pela sensibilidade, pelo conhecimento, mas ela é eminentemente política. A imagem que se tem do professor é uma construção social e histórica, e o pesquisador faz suas escolhas na pesquisa. Quais professores o pesquisador escolhe para participar da pesquisa? Quais são os critérios adotados para a escolha dos professores? Como o professor é convidado a participar da pesquisa? O que muda no agir do pesquisador diante da presença do professor? Como o professor será escutado? Qual o melhor dispositivo para escutar o que o professor quer dizer? Como ele será nomeado na pesquisa? O que será feito com o que os professores dizem? Como a palavra do professor será escovada1 pelo pesquisador? Como ele se despede do professor ao final da pesquisa? São perguntas que se inserem no espectro do debate sobre o tripé ética-teoria-metodologia da pesquisa, e cujas respostas assumem dimensão polissêmica, dada a infinita possibilidade de perspectivas conceituais que o pesquisador pode lançar mão para a construção de seus argumentos e posicionamentos no acontecer da pesquisa.

As falas, cenas, gestos e expressões anunciados por um professor requerem um tratamento que não o exponha a situações que coloquem em risco sua integridade física, moral e profissional. Talvez um dos maiores desafios éticos do pesquisador seja, de posse do material produzido a partir da escuta, fazer a interpretação e a tradução do que foi escutado, sem expor o professor. É o momento em que aquele que pesquisa encarna sua atitude ética, lança mão de conhecimentos e usa sua potência inventiva para traduzir a palavra do professor e deixar que ela alce voo, sem a certeza de onde será o seu pouso.

Outro aspecto que possui relação com os desafios éticos diz respeito à postura do pesquisador, que pode intimidar ou criar um ambiente favorável para a escuta e para o diálogo com o professor. Escutar o professor requer ética, não apenas porque existem normatizações sobre o assunto (BRASIL, 2016), mas porque o encontro com o ser humano pede respeito e acolhimento às diferenças. Essas são questões que se inserem nos desafios éticos que o pesquisador vivencia antes, durante e após a finalização da pesquisa. Os cuidados éticos em relação ao professor e ao que ele diz no contexto da pesquisa precisam ser tomados, também, na difusão dos conhecimentos produzidos na pesquisa, seja em forma de artigos, palestras ou comunicações em eventos que o pesquisador participe.

A realização de pesquisas com docentes é bastante comum no campo da Educação Infantil. O fato de ser uma prática recorrente em investigações científicas não significa que a escuta de professores seja fácil. Ao contrário: saber escutar é uma aprendizagem que deve integrar o processo de formação de um pesquisador. Escutar adultos no contexto da pesquisa é complexo e qualquer dispositivo metodológico eleito para a escuta do professor é matizado de potências, fragilidades, contradições e tensões.

A participação de professores da Educação Infantil em pesquisa de pós-graduação stricto sensu acontece por meio de variados dispositivos teórico-metodológicos. Em leitura exploratória de relatórios finais disponibilizados em repositórios de diferentes universidades públicas, nota-se que alguns dispositivos são mais usuais: a entrevista (semiestruturada ou dirigida), a observação, o questionário, o grupo focal (com diferentes nomes), fotografia, encontros coletivos (círculos dialógicos, tertúlias narrativas), diário de bordo ou de campo, dentre outros. Esses dispositivos propiciam a escuta do professor? Além desses dispositivos, quais outros podem ser criados e incorporados às pesquisas?

Conforme já mencionado, a escuta de docentes em pesquisas pode ser mobilizada mediante diferentes dispositivos e linguagens, expandindo as técnicas e os procedimentos metodológicos. A pedagogia e a educação das crianças podem constituir fontes inspiradoras para tecer e organizar os percursos teórico-metodológicos das pesquisas, assim como já ocorre na interlocução com os campos da sociologia da infância e da antropologia da criança. A escuta, na perspectiva antropológica, por exemplo, acontece no cotidiano do sujeito, que recebe o pesquisador para experienciar os modos de vida do seu grupo social, deixando-se ser interpelado pela imagem do outro. A convivência com as pessoas na vida cotidiana é geradora de uma escuta mais genuína e com maior possibilidade de ter acesso à palavra, que os olhos não alcançam (LEVINAS, 1980).

Do ponto de vista da modalidade de escuta, o pesquisador pode escutar o professor individualmente, em pequenos ou grandes grupos. Independentemente da quantidade, a ética será o fio condutor das relações e ações que se estabelecem no ato da escuta na díade pesquisador e professor. A escuta individual favorece maior proximidade entre o pesquisador e o docente. Nessa modalidade, o escutador pode dedicar uma atenção mais individualizada àquele que fala, deixando-o mais à vontade para fazer sua narrativa. A escuta coletiva envolve mais de um sujeito e requer uma atenção mais ampliada do pesquisador para escutar diferentes docentes. O pesquisador, nesse caso, pode recorrer ao apoio de outros pesquisadores e ao uso de dispositivos audiovisuais para o registro das falas, pois sozinho terá dificuldade para fazer os registros de todas as falas, gestos e circunstâncias que ocorrem no ato da escuta. A manutenção da fidedignidade do que foi dito pelos professores passa pela dimensão ética e precisa ser assegurada desde o processo de documentação do material produzido no campo empírico.

A escuta de um professor pode ser feita presencialmente ou virtualmente. A primeira modalidade é mais comum nas pesquisas, mas com o advento da pandemia da covid-19, a escuta mediada pelas telas digitais passou a ser adotada com mais frequência nas pesquisas, dado o impedimento da escuta presencial. Cada uma das modalidades apresenta vantagens e desvantagens, como mostra o quadro 1, mas o fato é que, independentemente da escolha feita pelo pesquisador, os princípios éticos permanecem em vigor.

Quadro 1 Vantagens e desvantagens da escuta presencial e virtual 

Modalidade de escuta Vantagens Desvantagens
Presencial - Propicia o encontro físico entre o pesquisador e o docente;
- O pesquisador pode observar, além da fala, expressões e sentimentos manifestados pelo docente;
- Criação e/ou fortalecimento de vínculo afetivo entre pesquisador e docente; e
- Aproximação com o lócus de trabalho e/ou estudo do docente e do pesquisador.
- Surgimento de nervosismo e de possíveis desconfortos antes e durante a escuta; e
- O deslocamento e o custo para chegar ao local onde a escuta acontecerá.
Virtual - Facilita a escuta de docentes que vivem e/ou trabalham em diferentes lugares;
- O docente pode se sentir mais à vontade para falar de seu ambiente familiar e/ou de seu local de trabalho; e
- Evita deslocamentos e custos com transporte.
- A ausência de qualidade de artefatos tecnológicos e de conectividade para que o ato de escuta se concretize sem interrupções e ruídos na comunicação; e
- A impessoalidade e a formalidade podem atrapalhar o ato da escuta.

Fonte: Autora (2022).

A escuta virtual é mais uma modalidade que o pesquisador pode recorrer para escutar docentes, mas se sabe que a escuta presencial ainda apresenta melhores indicativos para o encontro entre o pesquisador e o docente e para o ato da escuta no âmbito da pesquisa. Estar presencialmente com o professor, olhá-lo nos olhos e ter a possibilidade de recebê-lo com um abraço forte e caloroso faz muita diferença para a tecitura de uma relação amistosa, mesmo que pontual, e para a criação de um ambiente de bem-estar para quem fala e para quem escuta.

Do ponto de vista dos procedimentos, o pesquisador pode fazer uma escuta menos dirigida, a escuta heurística. A escuta heurística é organizada pelo pesquisador em um ambiente planejado para essa finalidade. Nesse ambiente, o professor a ser escutado terá acesso a uma composição de dispositivos metodológicos que conversam entre si, suscitam curiosidade e evocam memórias sobre o tema da pesquisa. Os objetos e materiais disponibilizados nesse lugar podem ser trazidos pelo pesquisador previamente, e/ou pelo próprio professor. A escuta do docente acontece mediante múltiplas linguagens. Em uma escuta heurística, tanto docente quanto pesquisador podem ser afetados em suas memórias e experiências pelo olfato (cheiros), tato (texturas, temperatura, tamanho, forma), paladar (sabores, temperatura), visão (imagens, películas fílmicas) e audição (músicas, sons diversos). A composição de dispositivos metodológicos que apresentem diferentes linguagens é uma aposta na criação de percursos e procedimentos metodológicos de pesquisas em Educação Infantil com docentes e na ampliação do diálogo com princípios e fundamentos da Educação Infantil.

A escuta heurística retira o docente do lugar de sujeito passivo, que responde ao que é perguntado pelo pesquisador, e coloca-o em relação ao que foi ofertado no ambiente organizado para a sessão de escuta. É um convite ético e estético que mobiliza múltiplas dimensões do professor, fazendo-o ver o fenômeno estudado pelo pesquisador de modo menos recortado, mesmo que toda pesquisa tenha sua delimitação temática.

A formação de um pesquisador requer a inclusão de discussões sobre qualidades que são essenciais para o exercício investigativo. Freire (1996, p. 136), ao refletir sobre saber escutar no âmbito do ensino, menciona qualidades que podem ser estendidas ao pesquisador: “[...] amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto pela alegria, gosto pela vida, abertura ao novo, disponibilidade à mudança, persistência na luta, recusa aos fatalismos, identificação com a esperança, abertura à justiça [...]”.

Para ele, uma prática pedagógico-progressista não se faz apenas com ciência e técnica: entende-se que saber escutar no campo da pesquisa também não. É preciso conhecimento, técnica, afeto e posicionamento político, porque todas as escolhas feitas por um pesquisador produzem repercussões na composição do grupo de docentes que vai participar da pesquisa e na arquitetura de seu texto, tanto do ponto de vista da forma quanto do conteúdo.

Para alguns pesquisadores, escolher os professores que serão escutados, fazer o convite para participar da pesquisa, pedir a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, elaborar um roteiro de entrevista ou de planejar outra técnica, agendar horário, testar equipamentos para gravação da fala e/ou imagem, encontrar o professor e fazer as perguntas são itens suficientes para que a escuta aconteça. Esse passo a passo é necessário em uma pesquisa, mas para escutar um professor é preciso ir além. É compreender que o ato da escuta extrapola a ritualidade burocrática da produção de material no campo empírico. O encontro entre dois seres humanos é sempre um acontecimento em que habita o inesperado e o inédito, e que não há como prever o que vai acontecer do ponto de vista relacional, físico e discursivo.

Para escutar é inevitável uma preparação intelectual, física e mental, dada as exigências que ouvir atentamente requer. Se prestarmos bem atenção, é possível notar que o pesquisador e o docente, no ato da escuta, ajeitam o corpo onde estiver apoiado, fixam os olhos em direção a quem vai falar, preparam a mente para estabelecer conexões com as palavras anunciadas, e diferentes sentimentos e reações se manifestam, como suores, palpitações, tremores, pigarro, tosse, toques repetitivos em partes do corpo ou em objetos que estiverem ao alcance das mãos, dentre outras situações. É como se, de modo consciente ou inconsciente, a escuta reclamasse por um espaço-tempo simbólico, que não está sob o controle de quem está no papel de escutador e de narrador.

O professor que participa da pesquisa, pela sua palavra, interroga, abre fendas nos modos de ser, pensar e agir de quem escuta. A palavra anunciada afeta, deixa marcas, produz ecos, abre novas rotas e dilui certezas, tanto em quem escuta quanto em quem narra. Portanto, a incerteza (MORIN, 2000), a imprevisibilidade e as circunstâncias sociais, cotidianas, pessoais e/ou profissionais que afetam o humor, a concentração e a organização mental alcançam ambos, pesquisador e professor no ato da escuta.

Quando pesquisador e docente falam ao mesmo tempo, a escuta não acontece. O que ocorre, nesse caso, é uma produção de sons e gestos que esmaecem antes de encontrar abrigo nos vãos humanos que constituem os sujeitos. Uma escuta que fala com e não para o professor é tecida na contramão das políticas de avaliação e das exigências de produtividade advindas das agências de fomento de pesquisa, que encurtam o tempo e abreviam os processos de encontro entre pesquisador e professor. O que é mais valorizado nesse cenário não é o percurso feito pelo pesquisador e pelo docente na pesquisa, mas os resultados alcançados. Esse tempo do capital, que molda o tempo acadêmico, é um forte adversário do pesquisador e de suas experiências investigativas.

O tempo das pesquisas, em nível de Mestrado e Doutorado, é um aspecto que também merece reflexão e pode produzir repercussões na qualidade da escuta dos professores. O pesquisador cursa os componentes curriculares, faz a pesquisa empírica e a escrita do relatório final, às vezes, de forma muito acelerada, para cumprir um tempo burocrático instituído sem diálogo com quem pesquisa. Um encontro destinado à escuta, vivido às pressas, pode, pela sua natureza pontual, abreviar a fala do professor, de modo que o foco do encontro se volta para a informação que ele tem para dar, e não para a história que tem para contar. As histórias que os professores têm para narrar não envelhecem (BENJAMIM, 2012), diferentemente das informações que passam e possuem prazo de validade.

Um encontro para escutar o docente, dependendo do tipo de dispositivo adotado pelo pesquisador, pode ter um tempo humano que não coincide com o tempo das políticas de avaliação, com o tempo de uma sociedade forjada no individualismo, na competitividade e no enfoque em resultados. O tempo da escuta é de outra natureza, é kairós, um tempo mais alargado, que corre o risco de não caber nas pesquisas e nos prazos estabelecidos. Será que não temos, então, uma pseudoescuta nas pesquisas? Ou será uma escuta destinada ao atendimento de exigências acadêmicas? O tempo kairós deve permanecer no horizonte dos pesquisadores e, mesmo que não seja vivido no acontecer da pesquisa, é possível promover atos de escuta enraizados na ética, na alteridade e nas qualidades descritas por Freire (1996) sobre saber escutar.

Os dispositivos teórico-metodológicos da pesquisa devem incluir pressupostos de diferentes matrizes teóricas, como a afro-brasileira, dos povos indígenas, dos povos que vivem no campo, nos assentamentos, nas florestas, no litoral, nas periferias das grandes cidades. O engajamento do pesquisador em outras epistemologias é uma atitude política frente ao pensamento colonial que está profundamente enraizado na educação brasileira. O distanciamento de modelos hegemônicos e universalizados, ainda predominantes nas pesquisas em Educação Infantil, é feito com incorporação de conceitos, pressupostos e procedimentos presentes na tradição, história, cultura e acervo científico-tecnológico de diferentes povos. Considerar epistemologias do Sul é urgente para descolonização do pensamento e para a identificação e a viabilização de práticas socioculturais e de conhecimentos produzidos em diferentes territórios brasileiros e latino-americanos.

Escutar vozes silenciadas historicamente, reconhecer as diferenças negadas e fazer anúncios e denúncias é tarefa de quem pesquisa. O pesquisador tem o compromisso de produzir conhecimento socialmente relevante, sobretudo em uma sociedade estruturada nas desigualdades sociais, como é a brasileira.

Da criação à autoria na pesquisa: o lugar do pesquisador e do docente

Se a atividade humana se reduzisse apenas à repetição do passado, então o homem seria um ser voltado somente para o passado e incapaz de se adaptar ao futuro. É justamente a atividade criativa humana que faz do homem um ser que se projeta para o futuro, um ser que cria e modifica seu presente (VIGOTSKI, 2014, p. 3).

Se a criação e a invenção são capacidades do ser humano, o pesquisador, no seu ofício, também cria, inventa e, consequentemente, aumenta e modifica o mundo enquanto pesquisa, tem notícias do outro e produz conhecimentos. Sem desconsiderar o rigor científico necessário à ciência, o pesquisador pode fomentar uma pesquisa com criatividade, trazendo novas abordagens teóricas, métodos e procedimentos de pesquisa, e reconhecendo o sujeito que dela participa como alguém que tem notícias para dar, que indaga e pode trazer inspirações potentes para a tecitura argumentativa e analítica do texto.

O lugar atribuído ao sujeito que participa da pesquisa, aqui, realça o professor da Educação Infantil, e está correlacionado às imagens de docente que se tem, conforme afirmado anteriormente. Se o professor é visto como um profissional que tem saberes e conhecimentos, que tem coisas relevantes para dizer, ele certamente será mais bem acolhido, e as chances de ser escutado se ampliam. Contudo, se o docente for visto como alguém com uma imagem inadequada, existe a tendência de olhar para ele e para o seu trabalho pela dimensão do que falta, tanto em relação a sua trajetória formativa quanto no que tange sua prática pedagógica. O lugar que o professor ocupa nas pesquisas é um campo de discussão ainda em aberto, que requer atenção daqueles que pesquisam na área da Educação Infantil. No quadro a seguir constam nomes atribuídos aos professores que participam das pesquisas e significados correspondentes.

Quadro 2 Nomes e significados atribuídos ao professor na pesquisa 

Nomes Significados
Informante O professor é uma fonte de informações.
Respondente O professor responde perguntas.
Colaborador O professor colabora com a produção dos dados.
Participante O professor participa da pesquisa como espectador ou como interlocutor.
Integrante O professor integra a pesquisa e faz parte dela com presença e fala.
Sujeito O professor é um profissional escolhido para experienciar o processo investigativo.

Fonte: Autora (2022).

Cada um desses nomes e de outros que não foram citados carregam significados que expressam a imagem e o lugar que os professores ocupam na pesquisa. Ver o professor como alguém que apenas dá uma informação é diferente de reconhecê-lo como profissional que tem saberes, experiências e vivências pessoais e profissionais para serem narrados.

Sabe-se que, quando o que é dito pelos professores é apropriado e anunciado por terceiros, como acontece com aqueles que adentram a escola para realizar estudos e pesquisas, o eco da fala desses profissionais da educação parece penetrar espaços mais longínquos com a socialização dos resultados de investigações científicas realizadas com os professores. É uma espécie de terceirização da fala do professor legitimada, às vezes, por ele próprio, que autoriza, verbalmente ou por escrito, que as suas narrativas sejam narradas por outrem sob a forma de artigos, ensaios, relatórios, palestras, entre outros. Nesse cenário, os professores “são afinal os locatários e não os proprietários de seu próprio saber-fazer” (CERTEAU, 2013, p. 134).

O professor como locatário em uma pesquisa ocupa lugar de mero provedor de dados e informações. Já o docente como proprietário é autor de sua história e de seu saber-fazer, e pode trazer notícias importantes para a compreensão do tema estudado na pesquisa. O lugar do professor da Educação Infantil nas pesquisas é mais de locatário ou de proprietário? A construção desse lugar de autoria do professor no contexto das pesquisas pode ser uma fonte rica e ponte para a tecitura de fundamentos teóricos, éticos e metodológicos da pesquisa, e uma estratégia para projeção e fortalecimento de sua imagem social na sociedade.

Ecos da escuta do docente na pesquisa: considerações finais

Quando começa e termina a escuta do docente na pesquisa? Se partimos do pressuposto de que o pesquisador escuta com outros sentidos e não exclusivamente com a audição, podemos afirmar que a escuta em uma pesquisa não se encerra no ato de despedida do professor que foi escutado. Escutar as gravações, assistir às filmagens, fazer as transcrições das falas, ler e reler o texto transcrito, pensar e escrever sobre o que foi escutado é a plasticidade da escuta, pois ela segue produzindo eco em quem escutou. A escuta, então, não se encerra quando o pesquisador agradece ao professor pela sua presença e participação na pesquisa e se despede dele. A escuta se expande e produz ecos, mesmo quando o sujeito escutado não está presente, fisicamente ou online.

Escuta. Espera. Silêncio. Relação. Diferença. Alteridade. Ética. Essas palavras coexistem na busca pela compreensão do que significa escutar o professor. A escuta do docente, no âmbito de uma pesquisa, é uma escuta temporal e pontual, pois o que um professor sabe e tem para dizer não cabe em uma pesquisa. O rosto que está diante do pesquisador é infinito, como afirmou Levinas (1980), e cada ato de escuta do docente deve primar pela alteridade e pela relação ética. O papel do pesquisador que escuta é acolher, respeitar e visibilizar as notícias que o professor traz de si e de suas práticas pedagógicas pela palavra. O outro é palavra. O professor é palavra. Palavra que produz ecos, durante e após a despedida do professor da pesquisa, no texto da pesquisa em si, na difusão dos resultados da pesquisa (artigos, livros, comunicações, palestras, vídeos, lives) e no encontro da tese ou dissertação com os leitores.

Os desafios éticos, teóricos e metodológicos concernentes à escuta do docente na pesquisa atravessam: a) a imagem que o pesquisador tem sobre o professor, suas escolhas políticas e teóricas para a abordagem do tema da pesquisa: b) a composição do desenho metodológico com suas técnicas e procedimentos; c) a escolha de quais docentes participarão da pesquisa; d) o modo como o docente será abordado e escutado, durante e após o ato da escuta, pois os ecos da fala do professor permanecem, mesmo quando ele se despende da pesquisa; e e) o processo de escovação das palavras no texto e em outros discursos do pesquisador, após a conclusão da pesquisa.

A propagação dos ecos do que foi escutado dependerá de como o pesquisador se relaciona com os temas que emergiram das falas do professor e os aborda. As falas podem coexistir no texto com autoria ou ser inseridas como falas ilustrativas, uma espécie de adorno que enfeita o texto do pesquisador. Cada palavra está cheia de gente, de histórias, de saberes, de práticas, de concepções, de resistências, de indignação, de contradições, de afeto, de amorosidade, mas dependendo de como ela foi escovada pelo pesquisador, seu conteúdo pode ser invisibilizado ou potencializado no processo de interpretação, tradução e socialização das palavras ditas pelo professor. O professor é palavra e a escuta de sua palavra passa por palavras que são fundantes no contexto de uma pesquisa: ética, alteridade, conhecimento, afeto, paciência e crítica.

A imagem que o pesquisador tem sobre o professor da Educação Infantil incide na escolha dos dispositivos teórico-metodológicos, bem como na definição se o professor ocupa o lugar de locatário ou proprietário de seu saber-fazer na pesquisa. Apostar que o professor é autor de sua história e proprietário de conhecimentos e escutá-lo mediante a escuta heurística pode ser uma via para chegar mais perto do rosto que o pesquisador tem diante de si. A escuta paciente, crítica e forjada na alteridade, isto é, na produção de relação a partir das diferenças, é um caminho que não tem mais volta, pois as histórias que cada docente tem para contar importam e são relevantes para a atualização do pensamento pedagógico nas pesquisas em Educação Infantil.

Referências

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1Palavra inspirada no poema Escova, de Manoel de Barros (2003).

Recebido: 30 de Outubro de 2022; Aceito: 12 de Janeiro de 2023

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