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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.76 Curitiba ene./mar 2023  Epub 05-Abr-2023

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.076.ds16 

Dossiê

Reflexões sobre entrevistar na perspectiva da artesania: diálogos com docentes/pesquisadores sobre Educação Infantil e Didática

Reflections on interviewing from the perspective of craftsmanship: dialogues with teachers/researchers on Early Childhood Education and Didactics

Reflexiones sobre la entrevista desde la perspectiva de la artesanía: diálogos con profesores/investigadores de Educación Infantil y Didáctica

Carolina Gobbatoa 
http://orcid.org/0000-0002-1126-7363

Claines Kremerb 
http://orcid.org/0000-0003-2166-6971

Maria Carmen Silveira Barbosac 
http://orcid.org/0000-0002-3416-4914

aUniversidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), Osório, RS, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: carolinagobbato@gmail.com.

bUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Doutoranda e Mestre em Educação, e-mail: claineskremer@gmail.com.

cUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UEFGS), Porto Alegre, RS, Brasil. Doutora em Educação, e-mail: licabarbosa@ufrgs.br.


Resumo

Este artigo apresenta reflexões metodológicas com foco em entrevistas, procedimento recorrente em pesquisas com abordagem qualitativa. A partir da experiência de uma pesquisa de doutorado sobre as relações entre Educação Infantil e Didática, discutem-se processos vivenciados nas entrevistas com quatro professores/pesquisadores brasileiros e dez italianos que participaram do estudo. O trabalho fundamenta-se na perspectiva de Sennett (2015a) sobre artesania, dialogando com compreensões teórico-metodológicas sobre o entrevistar como um movimento dialógico de abertura em um fazer artesanal, conforme propõem Mills (2009), Caramés Boada (2010) e Contreras Domingo e Lara Ferré (2010). As reflexões metodológicas organizam-se em dois eixos: o primeiro versa sobre a potência do encontro, do diálogo e do compartilhamento de ideias e saberes que pode acontecer na entrevista, destacando a importância da escuta de modo ético e respeitoso; o segundo discorre acerca da flexibilidade no processo de entrevistar e do quanto as entrevistas realizadas retroalimentam as próximas e, por consequência, redimensionam os rumos da investigação. Considera-se que o ato de entrevistar, tecido em um fazer artesanal, é uma experiência que pode ser formativa para o entrevistador e significativa para o entrevistado, pois no exercício dialógico de pesquisa há intercâmbio de ideias e saberes que promovem ressignificações. Ao entrevistar docentes/pesquisadores da Educação Infantil e da Didática, evidenciam-se as posições ocupadas pelos participantes da pesquisa e seus diferentes pontos de vista, colocando em pauta um tema que tem sido invisibilizado, movimentando pensamentos e fomentando o diálogo.

Palavras-chave: Pesquisa; Entrevista; Artesania; Educação Infantil

Abstract

This article presents methodological reflections focusing on interviews, a recurrent procedure in research with a qualitative approach. From a doctoral research experience about the relations between Early Childhood Education and Didactics, we discuss processes experienced in the interviews with four Brazilian professors/researchers and ten Italians who participated in the study. The work is based on Sennett's perspective (2015a) about artesania, dialoguing with theoretical-methodological understandings about interviewing as a dialogical movement of openness in a handmade making, as proposed by Mills (2009), Caramés Boada (2010) and Contreras Domingo and Lara Ferré (2010). The methodological reflections are organized in two axes: the first versifies with the power of encounter, of dialogue and the sharing of ideas and knowledge that can happen in the interview, highlighting the importance of listening in an ethical and respectful way; the second one, discourses the flexibility in the interviewing process and how much the conducted interviews feedback the next ones and, consequently, resize the directions of the investigation. It is considered that the act of interviewing, woven into a handmade doing, is an experience that can be formative for the interviewer and significant for the interviewee, because in the dialogical exercise of research there is an exchange of ideas and knowledge that promote resignifications. When interviewing teachers/researchers of Early Childhood Education and Didactics, the positions occupied by the research participants and their different points of view are evidenced, putting on the agenda a theme that has been made invisible, moving thoughts and promoting dialogue.

Keywords: Search; Interview; Artesania; Early Childhood Education

Resumen

Este artículo presenta reflexiones metodológicas enfocadas en entrevistas, procedimiento recurrente en las investigaciones con enfoque cualitativo. A partir de la experiencia de una investigación doctoral sobre las relaciones entre la Educación Infantil y la Didáctica, se discuten los procesos vividos en las entrevistas con cuatro profesores/investigadores brasileños y diez italianos que participaron del estudio. El trabajo se basa en la perspectiva de Sennett (2015a) sobre la artesanía, dialogando con las comprensiones teóricos metodológicos sobre el entrevistar como movimiento dialógico de apertura en un hacer artesanal, como proponen Mills (2009), Caramés Boada (2010) y Contreras Domingo y Lara Ferré (2010). Las reflexiones metodológicas se organizan em dos ejes: el primero trata sobre la potencia del encuentro, del diálogo y la acción de compartir ideas y saberes que pueden darse en la entrevista, destacando la importancia de escuchar de forma ética y respetuosa; el segundo trata de la flexibilidad en el proceso de entrevistar y de cuanto las entrevistas realizadas retroalimentan las siguientes y, por consecuencia, redimensionan las direcciones de la investigación. Se considera que el acto de entrevistar, tejido en un hacer artesanal, es una experiencia que puede ser formativa para el entrevistador y significativa para el entrevistado, porque en el ejercicio dialógico de investigación hay intercambio de ideas y conocimientos que promueven nuevos significados. Al entrevistar a profesores/investigadores de Educación Infantil y Didáctica, se evidencian las posiciones que ocupan los participantes en la investigación y sus diferentes puntos de vista, poniendo en agenda un tema que ha sido tratado con invisibilidad, moviendo reflexiones y propiciando el diálogo.

Palabras clave: Investigación; Entrevista; Artesanía; Educación infantil

Introdução

Fazer pesquisa envolve um exercício constante de pensar e repensar sobre os destinos: para onde e como ir, quais bagagens levar, quem encontrar. Pesquisar em educação, a partir da perspectiva da experiência, conforme Contreras Domingo e Lara Ferré (2010), não acontece com a aplicação de um método único, predefinido e previamente desenhado. Ao contrário, constrói-se no processo de entrelaçamento dos pensamentos e fazeres ao longo do caminho de uma investigação que intenciona aprofundar algo, pergunta e repergunta, em um fluxo investigativo contínuo para ampliar a compreensão sobre uma questão pedagógica (2010).

Esses autores, ao refletirem sobre a lógica do positivismo, problematizam a exigência de as pesquisas nas Ciências Humanas - em especial as pedagógicas - seguirem procedimentos lineares e homogêneos. Em oposição a essa rigorosidade predefinida, eles advogam a favor da pesquisa como experiência. A partir dessa compreensão, Contreras Domingo e Lara Ferré (2010) sinalizam que a investigação diz respeito ao encontro com o campo, com as leituras, com os pensamentos e significados diversos, ou seja, envolve a construção de sentido da própria experiência de pesquisa que é vivida (CONTRERAS DOMINGO; LARA FERRÉ, 2010).

De forma convergente, Arévalo Vera (2010) pontua que, para pesquisar em Educação, não basta seguir um conjunto de orientações metodológicas precisas, pois é necessário atentar para o movimento de pensar a pesquisa e de pensar-se a partir do próprio processo investigativo. O método entendido como caminho diz respeito às ações de criar e recriar o próprio percurso, considerando seus desvios, tropeços, realinhamentos, sem negar a forma complexa pela qual estamos implicados na investigação. Nas palavras do autor, o método construído durante o “caminhar” relaciona-se a “[...] um andar errante e flutuante de quem empreende e vive a investigação como uma exploração constante por aquilo que desconhece, mas que deseja saber [...]” (2010, p. 192 - tradução nossa).

Ao encontro dessas ideias, a perspectiva de Mills sobre o artesanato intelectual também nos provoca e inspira a pensarmos e vivermos a pesquisa pela via da experiência. Em sua compreensão:

[...] a imagem de um ofício - e sua associação com as ideias de artesanato e oficina - se contrapõe à visão do trabalho como alguém que testa hipóteses construídas a partir de leis gerais e aplicadas através de métodos controláveis. No trabalho do cientista social não haveria fórmulas, leis, receitas, e sim méthodos, no sentido original grego da palavra: via, caminho, rota para se chegar a um fim (MILLS, 2009, p. 13).

Assim, o autor sublinha a importância da pesquisa como um ofício, reconhecendo que a dimensão existencial está presente na formação do pesquisador, em um percurso em que “[...] o trabalhador intelectual forma-se a si próprio à medida que trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício [...]” (MILLS, 2009, p. 22). Diante dos princípios expostos, entendemos que a pesquisa se constrói em um percurso metodológico permeado de intencionalidade e planejamento, mas também reflexivo, com dúvidas e perguntas, num movimento que envolve (des)orientação.

Numa época em que existe uma pressão para que as pesquisas sejam enquadradas na ideia positivista de rigor científico, com caminhos predeterminados e evidências generalizáveis ou comprobatórias, a reflexão de Meirieu (1998) sobre pesquisa em Pedagogia também é oportuna. Para o autor, a validade da pesquisa pedagógica não reside em comprovações, e não há previsibilidade das conclusões a que vamos chegar. Logo, procedimentos advindos apenas de outras disciplinas, como das Ciências Exatas, não podem servir para compreender fenômenos complexos como os da Educação. Assim, a Pedagogia não pode ser reduzida a uma montagem de conhecimentos, mesmo que eles sejam das Ciências Humanas (MEIRIEU, 1998).

Se a Pedagogia atua propondo condições que permitem ao sujeito se educar, ou seja, se não trata de “fabricar” o outro, com relação à ação de pesquisa, não convém circunscrevê-la dentro de um campo teórico de certezas científicas absolutas. Mas como essas ideias ressoam no processo da pesquisa? De que modo podem fazer-se presentes no fazer investigativo? Quais as implicações dos deslocamentos que ocorrem no caminho?

Nessa perspectiva, este artigo apresenta reflexões metodológicas tecidas a partir de uma pesquisa de Doutorado sobre Educação Infantil e Didática, realizada no período de 2016 a 2019, com quatro pesquisadores brasileiros e dez italianos1. O recorte apresentado neste trabalho centra-se nos aspectos metodológicos da referida pesquisa, com foco na entrevista na perspectiva da artesania (SENETT, 2015a; MILLS, 2009; CARAMÉS BOADA, 2010).

Na sequência, o artigo contextualiza a pesquisa sobre Educação Infantil e Didática e situa os fazeres investigativos e as compreensões que embasaram o processo de entrevistar. Em seguida, são apresentadas reflexões metodológicas em torno de dois eixos, que discorrem sobre a dimensão dialógica da entrevista e sobre como as entrevistas desacomodam e retroalimentam a pesquisa. Por fim, são tecidas considerações em torno da entrevista como possibilidade formativa na pesquisa, tanto para o pesquisador quanto para os participantes, em uma perspectiva da artesania.

Os (des)caminhos artesanais da pesquisa: da ausência de interlocução entre Educação Infantil e Didática à busca pelo diálogo

Para apresentar as discussões metodológicas que são foco deste artigo, é necessário situar a pesquisa realizada na qual as reflexões sobre a experiência de entrevistar foram construídas. Conforme já anunciado, tratou-se de um estudo de Doutorado que teve como tema a Educação Infantil e a Didática, o qual surgiu a partir da constatação da ausência de diálogos/interlocução entre as áreas no contexto brasileiro (GOBBATO, 2019). A evidência de resistência ao uso do termo “didática” na Educação Infantil brasileira, somada ao estudo e às leituras italianas, suscitou a busca por possibilidades de dialogar sobre o tema.

Inicialmente, a pergunta de pesquisa intencionava descobrir se existe ou não didática com crianças pequenas. Todavia, percebendo-se que essa intenção de “descobrir” continha uma suposição equivocada de uma resposta única e binária, em que alguns sujeitos “estariam certos e outros errados” no debate sobre o tema, a pesquisa foi caminhando em outras direções. A partir da compreensão do saber pedagógico como algo dinâmico e recriado pelos sujeitos que o significam de determinadas formas (CONTRERAS DOMINGO; LARA FERRÉ, 2010), o problema de pesquisa configurou-se como o seguinte: que relações são estabelecidas entre os campos de estudos e práticas da Educação Infantil e da Didática?

Assim, o exercício de se movimentar entre as perspectivas sobre o tema compôs todos os momentos da pesquisa, combinando ideias que, embora tidas como incompatíveis, poderiam ser pensadas a partir de uma artesania intelectual (MILLS, 2009). Nesse sentido, foi inspirador o conceito de “imaginação sociológica”, o qual diz respeito a cultivar na pesquisa a imaginação, “[...] reunindo itens antes isolados, encontrando conexões insuspeitadas” (MILLS, 2009, p. 28).

Então, a intenção do estudo de Doutorado foi problematizar a discussão entre os campos da Educação Infantil e da Didática, e ampliá-la, buscando compreender quais as possíveis aproximações didáticas com as especificidades da Educação Infantil. Em outras palavras, buscou-se pesquisar os diferentes significados de didática com relação às crianças pequenas de 0 a 6 anos, a partir da interlocução com pesquisadores brasileiros e italianos.

Essa reestruturação do objetivo da pesquisa teve relação com a compreensão da investigação na perspectiva da experiência, que envolve o perguntar-se, e pretende antes abrir questões e aprofundá-las do que encontrar respostas unívocas. Relaciona-se também com aquilo que Fernandes (2009) configurou como pesquisa-experiência, com base no distanciamento de uma ideia de pesquisa-verdade. Para a autora, na “metodologia/experiência”, não apenas problematiza-se uma suposta verdade, mas também se evidencia o movimento de pesquisar com o que somos e pensamos, já que tal pesquisa suspeita do que já sabemos, ao invés de querer transmitir certezas.

Nessa direção, os (des)caminhos da pesquisa instituíram-se em uma atitude problematizadora com relação ao nosso fazer de pesquisadoras e àquilo que pensávamos saber sobre o objeto de estudo (FERNANDES, 2009). Assim, buscou-se pela abertura, por meio de fazeres metodológicos que possibilitassem o diálogo, a ampliação dos pontos de vista e a interlocução entre as áreas da Educação Infantil e da Didática, que aparentemente pouco convergem.

Na disposição em aprender sobre as relações entre essas duas áreas, foi sendo construído o itinerário metodológico da pesquisa, composto por diversos fazeres investigativos. A construção metodológica teceu olhares investigativos para o contexto brasileiro, tanto sobre a(s) Pedagogia(s) da Educação Infantil quanto sobre a Didática, construindo também uma reflexão teórica. Na sequência, tendo em vista que pretendíamos saber como o tema é discutido na atualidade, foram mapeadas, nas reuniões nacionais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), as produções acadêmicas da Educação Infantil que discutissem Didática. O mesmo movimento foi realizado no Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino (ENDIPE), buscando trabalhos que versassem sobre Educação Infantil.

Essas escolhas metodológicas foram sendo desencadeadas e definidas pelas dúvidas que iam surgindo, remodelando-se ao longo do percurso da pesquisa, com base no entendimento de que precisamos deixar-nos guiar por nossas inquietações e pelo próprio fluxo das perguntas (CARAMÉS BOADA, 2010). Tendo em vista a quase inexistente produção sobre Didática na Educação Infantil, na continuidade do percurso metodológico, o procedimento desenvolvido foi realizar entrevistas com 14 pesquisadores brasileiros e italianos dos campos da Educação Infantil e da Didática.

Assim como a didática na prática educativa requer planejamento e disposição à reorganização das ações, o mesmo ocorreu no planejamento desta investigação. Nesse sentido, tal perspectiva de flexibilidade didática foi também propícia à construção processual da metodologia da pesquisa realizada. Significa que o percurso não foi concebido como um trajeto preestabelecido do início ao fim, mas sim como um caminho composto por múltiplos fazeres construídos no cotidiano da pesquisa, envolvendo o relançamento de questões e a atenção constante àquilo que os dados construídos vinham sinalizando.

Desse modo, foi necessário buscar uma “forma de estar artesanal” na construção do itinerário da investigação, considerando que “A pesquisa não nasce do nada, senão de um trabalho cotidiano, nasce de uma maneira de estar, de um fazer, que pode ser preparar o terreno” (CARAMÉS BOADA, 2010, p. 205 - tradução nossa, grifo do autor). Esse terreno onde a pesquisa se situou foi sendo constantemente “preparado”, por meio de fazeres cotidianos, consolidando-se no itinerário percorrido que foi descrito acima. Nele, as entrevistas tiveram centralidade.

Contextualizando as entrevistas: composição do grupo, singularidades e desafios

Com quem conversar sobre Educação Infantil e Didática? Basta ouvir os professores/pesquisadores que se dedicaram a estudar e pesquisar a educação das crianças pequenas? Ou seria importante ouvir também o que pensam os estudiosos da Didática sobre a discussão (não) realizada pela área no que se refere à primeira etapa da Educação Básica no contexto brasileiro? E quanto aos professores/pesquisadores italianos com produção sobre Educação Infantil e Didática que foram identificados na revisão bibliográfica, quais deles entrevistar? O que perguntar?

Essas foram algumas das inquietações consideradas ao esboçar a escolha dos participantes por ocasião do projeto de pesquisa e a construção de algumas perguntas norteadoras para a entrevista. A partir do objetivo do estudo e da revisão de literatura, foi considerado um aspecto base como critério de definição: ter trajetória profissional e de pesquisa com produção acadêmica sobre Educação Infantil e/ou Didática. Dessa forma, havia sido definido inicialmente que seriam quatro pesquisadores, tanto do Brasil como da Itália, totalizando oito entrevistas: dois pesquisadores da área da Educação Infantil e dois da Didática de cada país. Porém, o acesso a um livro sobre didática na creche (MANTOVANI; SILVA; FRESCHI, 2016) provocou a ampliação do número de entrevistados italianos, para que contemplasse também um entrevistado da área da Didática e um da Educação Infantil com produção sobre didática na creche.

No que tange aos quatro pesquisadores brasileiros, foi previsto que seriam incluídos, se possível, um pesquisador com longa experiência de pesquisa e um com trajetória mais recente de cada área. Para defini-los, foi considerada a indicação de professores da banca de avaliação do projeto, sendo que, na área da Didática, levou-se em conta também a sugestão da primeira participante entrevistada, devido ao seu amplo conhecimento do campo.

Embora essas condições assinaladas tenham sido seguidas, parece inapropriado falar em termos de definição dos sujeitos participantes, pois o processo não ocorreu de modo rígido, nem de forma tão objetiva quanto planejado. Por um lado, alguns dos convidados, por questões pessoais, profissionais e indisponibilidade de tempo, não puderam participar. Isso ocorreu tanto com pesquisadores brasileiros da Educação Infantil quanto com pesquisadores italianos da Educação Infantil com produção sobre didática na creche. Por outro lado, houve uma ampliação das entrevistas italianas durante a viagem à Itália.

Por isso, o termo “definição dos sujeitos” pareceu pouco adequado. O que melhor representa o processo vivenciado é a “composição” do grupo, uma vez que se foi incluindo outros participantes no contexto italiano, a partir dos deslocamentos realizados, definindo-se pelos locais visitados e pela possibilidade de conhecê-los. Como exemplo, por intermédio de um dos entrevistados italianos da área da Didática, foi possível conhecer uma professora da área da Pedagogia da Infância e, em rápida conversa, ela mencionou que, em sua opinião, poderíamos falar de didática na creche, mas com algumas condições. Na ocasião, como resultado da inquietude por compreender quais seriam os aspectos condicionais, acabamos agendando um encontro posterior, que resultou em mais uma entrevista.

Com relação à caracterização dos participantes da pesquisa2, todos se dedicam a atividades na área da Educação, possuem produções pedagógicas, acadêmicas e bibliográficas - dos italianos, apenas quatro não têm textos publicados no Brasil. O grupo apresenta as seguintes configurações: a) 12 são do sexo feminino e 2 do sexo masculino, com experiência, tanto profissional como de pesquisa; b) em sua maioria, são docentes de instituições universitárias (uma atua em creche universitária), com exceção de três (duas vinculadas a um centro de pesquisa internacional e uma a um serviço de infância municipal); c) são residentes e/ou atuantes, no Brasil, na região Sudeste (estados de São Paulo e Rio de Janeiro) e, na Itália, nas regiões Emilia Romagna (Reggio Emilia, Parma), Toscana (Florença, Pistoia) e Lombardia (Milão, Bérgamo).

A ideia inicial foi de entrevistar primeiramente os pesquisadores brasileiros e, em seguida, conversar com os pesquisadores italianos. No entanto, o fluxo inverteu-se no decorrer da pesquisa devido à disponibilidade de agenda dos pesquisadores contatados e a questões pessoais e profissionais da pesquisadora que implicaram a viabilização das entrevistas na Itália em seu período de férias. Dessa forma, as dez entrevistas na Itália foram realizadas nos meses de janeiro e fevereiro de 2018, enquanto as quatro brasileiras ocorreram nos meses de maio, agosto e setembro do mesmo ano. Após uma análise preliminar, identificou-se a necessidade de mais dados sobre o contexto nacional e, com isso, foi realizada em maio de 2019 mais uma entrevista com uma pesquisadora brasileira que já havia sido contatada anteriormente.

As entrevistas foram permeadas por especificidades com relação ao aspecto espaço-temporal. Na Itália, em sua maioria, elas ocorreram nos gabinetes dos professores, nas respectivas universidades de atuação, tendo sido agendadas com antecedência; duas delas surgiram por ocasião de um curso e, portanto, foram realizadas naquele local; outra ocorreu em uma cafeteria; e duas aconteceram em instituições de Educação Infantil. Quanto às entrevistas com pesquisadores brasileiros, uma delas foi realizada em uma cafeteria e outra aconteceu durante o evento científico ENDIPE/2018; duas não foram realizadas presencialmente, sendo que uma envolveu o envio de gravações de áudio e a outra, de um arquivo com as respostas digitadas, ambos por e-mail.

Por um lado, se as entrevistas que ocorreram nos gabinetes e nas cafeterias propiciaram uma atmosfera de maior intimidade, por outro, aquelas realizadas em eventos e locais de formação profissional permitiram uma aproximação com questões da área. Como sinalizou uma das participantes, referindo-se ao ENDIPE: “[...] este é um espaço acadêmico, e você vê quanta coisa está nas entrelinhas, quanta coisa que eu não disse, mas que você ouviu dessas disputas [...]” (EB02). No que tange ao tempo de entrevista, aquelas realizadas com pesquisadores italianos duraram, em sua maioria, entre 55 e 60 minutos, sendo que duas foram mais curtas, com 15 e 33 minutos, em função das circunstâncias em que ocorreram. No Brasil, a duração das entrevistas foi mais extensa, compreendendo entre 80 e 115 minutos, o que talvez se deva à questão da língua.

Diante de tais especificidades e da multiplicidade que caracteriza o encontro humano (quer seja presencial ou virtual), cada uma das entrevistas foi peculiar. A ação de pesquisar vivenciada pela perspectiva da experiência e do entrevistar como um fazer artesanal e não prescritivo implicou que aprendêssemos a nos situar na singularidade com a qual cada participante nos acolhia (CARAMÉS BOADA, 2010).

Em algumas ocasiões, não foi possível realizar todas as perguntas elaboradas previamente, sendo necessário priorizar as mais específicas sobre didática na Educação Infantil, devido aos limites do tempo disponível. Em outras, foi possível abarcar questões mais gerais, como a relação entre Pedagogia e Didática, as quais, embora não tenham sido discutidas diretamente na pesquisa, mostraram-se importantes para compreender os conceitos e as relações entre eles na visão dos entrevistados. Mesmo nas entrevistas em que foi possível seguir o “roteiro”, houve diferenças no teor das respostas quanto à sua amplitude: em algumas, as respostas foram mais direcionadas e restritas ao que propunham as questões; em outras, houve mais abertura de temas, trocas, exemplos e comentários sobre assuntos afins. Além disso, algumas ocorreram com mais formalidade e outras aproximaram-se mais da informalidade de uma conversa.

Com relação aos procedimentos, é importante ressaltar que a entrevista, mesmo sendo um fazer artesanal, também envolve técnica. A sua realização pressupôs procedimentos e recursos materiais e, com isso, algumas dificuldades foram vivenciadas: o barulho na gravação de alguns áudios que dificultou a escuta; o desafio de conciliar uma agenda para os encontros e as remarcações das datas; a falta de financiamento para os deslocamentos necessários; o manejo dos instrumentos utilizados nas entrevistas (a perda dos áudios do gravador de voz, sendo que uma entrevista não havia sido registrada também no celular); a dificuldade de contato posterior com um dos pesquisadores estrangeiros devido à anotação equivocada do seu endereço eletrônico.

Essas foram algumas das ações de cunho técnico que, artesanalmente, constituíram o percurso das entrevistas. Sublinhá-las é importante para o entendimento de que a entrevista não é uma simples técnica a ser dominada, a qual seja “partejadora de dados”, tampouco é reveladora de verdades, pois não é uma instância de verificação, conforme afirmam Arfuch (1995) e Silveira (2002). Ao entendê-la como um processo que possibilitou buscar significações dos entrevistados sobre o tema de pesquisa (SILVEIRA, 2002), foi preciso reconhecê-la em sua complexidade e atentar para o fato de que ela está imersa numa rede de relações (ARFUCH, 1995). Com relação às questões éticas, partiu-se do entendimento de que elas permeiam todo o percurso da pesquisa. Então, procuramos vivenciá-las tanto nos preparativos para os encontros quanto nas entrevistas e nos momentos posteriores - por meio do envio dos arquivos para revisão da transcrição pelos participantes (com exceção de um que não foi possível), da postura diante da diversidade de pensamentos mapeados, do zelo com as ideias compartilhadas pelos entrevistados.

Sobre a relação da técnica com a ética, Sennett (2015a) alerta para a importância da reflexão constante ao longo de uma tarefa, enfatizando a relevância de se “fazer perguntas éticas ao longo do processo de trabalho”. Essa postura refere-se a pensar sobre o que e como se faz enquanto se está fazendo; desse modo, a preocupação ética foi contínua no itinerário metodológico. Dentro dessa perspectiva, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, como ação mais formal, foi apresentado e assinado pelos participantes da pesquisa no momento da entrevista - com exceção de três, que receberam o documento, mas expressaram seu aceite em colaborar com o estudo na correspondência eletrônica.

É válido pontuar também a solicitude dos participantes para com a pesquisa. A disposição dos entrevistados inclui os retornos ao primeiro contato feito por e-mail, o acolhimento (físico, simbólico, virtual), o tempo de suas agendas dedicado à entrevista, a disponibilidade para conversar e responder às questões (oralmente ou por escrito), a revisão dos arquivos escritos das entrevistas. Enfim, o acolhimento dos participantes e o compartilhamento de suas perspectivas foi fundamental para os resultados do estudo.

Apresentada a pesquisa e os participantes, nas seções seguintes, compartilhamos reflexões metodológicas sobre o ato de entrevistar, as quais estão organizadas em torno de dois eixos. O primeiro versa sobre a potência do encontro e diálogo na entrevista quando há o compartilhamento de ideias, sentimentos e saberes. O segundo discorre sobre a flexibilidade no processo de entrevistar e como os dados construídos nas entrevistas retroalimentam o fluxo da própria investigação. Por fim, são tecidas considerações em torno da entrevista como possibilidade formativa na pesquisa, tanto para o pesquisador quanto para os participantes, em uma perspectiva da artesania.

Encontros, vozes e reflexões nas entrevistas: “pensamentos em movimento”

É ensinar para você se comunicar e compreender o mundo, se compreender nesse mundo em que está; um mundo que é cheio de conhecimento. Como exemplo, nossa entrevista. Eu estava falando com você, e você comigo; nós estamos nos compreendendo, temos um código linguístico, de expressão [...] Por que você quer fazer uma entrevista se você já leu o que eu escrevi? Porque quer me compreender para além da dimensão formal, do intelecto, do escrito e tudo mais [...] Olha quanto tempo você está tentando falar comigo, foi para a Itália falar com as pesquisadoras de lá. É isso... a pesquisa envolve chegar no ser humano... (EB01) (Grifos nossos).

Esta seção discorre sobre a dimensão do encontro e do diálogo - entre pessoas, entre ideias - que pode ser criada por meio do entrevistar. O sentimento de curiosidade pelo outro, suas ideias e pontos de vista, é um elemento de empatia nos momentos que antecedem as conversas (SENNETT, 2015b), que, no caso da pesquisa em questão, foram tanto presenciais como virtuais. Embora esses momentos fossem precedidos pelo imaginário de como seria cada entrevista, fomentados pelo que queríamos saber no “jogo interlocutivo” (SILVEIRA, 2002), ocorriam em uma postura de abertura e de acolhimento ao outro.

Considerando esse aspecto, a opção metodológica por entrevistar um grupo de pesquisadores da área da Educação Infantil e da Didática permitiu que nós nos aproximássemos das “lacunas” e dúvidas sobre as relações entre as duas áreas que emergiram no levantamento prévio realizado na construção do projeto de pesquisa. Inicialmente, percebemos que seria insuficiente realizar apenas pesquisa bibliográfica, devido à necessidade de adentrar mais a fundo nas reflexões tecidas por alguns autores lidos. Conversar com outros pesquisadores e consultá-los sobre as possíveis relações que poderiam ser estabelecidas entre as áreas, “chegar no ser humano”, como referiu a entrevistada EB01, foi uma escolha fundamental para ampliar perspectivas.

As entrevistas relacionavam-se com nossa curiosidade acerca dos significados que seriam compartilhados pelos participantes, os quais são ressoantes de ideias, de posições e de compreensões que fazem parte de um percurso de autoria coletivo (SILVEIRA, 2002) das áreas da Educação Infantil e da Didática. Na entrevista, são evocados elementos da experiência pessoal do sujeito que, por se situarem numa trama sociocultural, dizem respeito às transformações de uma história maior e remetem a uma memória coletiva (ARFUCH, 1995). Todavia, isso não significa unicidade nem unanimidade de posicionamentos, visto que na conversa há uma pluralidade de vozes.

Assim, por meio da entrevista, aproximamo-nos dos significados históricos do tema pesquisado, o que nos permitiu entender melhor ideias anunciadas (e nem sempre desenvolvidas) em algumas literaturas estudadas, aprofundando questões lidas previamente. Os encontros possibilitaram conversar com pesquisadores sem produção acadêmica direta sobre didática na Educação Infantil, indagando se seus escritos sobre didática, em sua opinião, seriam apropriados para a educação de crianças pequenas, e vice-versa. Além disso, foi possível abrir espaço para que, em alguns casos, os entrevistados pudessem compartilhar reflexões construídas após a escrita de produções bibliográficas.

Como exemplo dessa última situação mencionada, apresentamos trechos de duas entrevistas em que os participantes sugerem a leitura de autores e conceitos que conheceram após suas publicações sobre o tema, os quais compartilham por julgarem que seriam potentes para pensarmos sobre a relação entre Educação Infantil e Didática:

Sim. Eu repito, depois que eu escrevi o texto que está nesse livro [sobre didática na creche], encontrei este artigo [de Barbara Rogoff], e penso que essa seja uma possibilidade de desenvolvimento sobre o tema [...] (EI01 - tradução nossa).

E também tem um sociólogo que se chama Jedlowski, que eu não citei nos livros porque eu conheci depois. Ele diz que [...]. E isso me esclareceu muito sobre o assunto [...] (EI02).

Diante do exposto, entendemos que os conhecimentos compartilhados nas entrevistas não se limitaram à repetição do que já havia sido lido nos textos dos participantes, nem mesmo reduziram-se àquilo que já havia sido pensado sobre o tema a partir das leituras realizadas, pois envolveram a construção de reflexões que foram tecidas no ato da conversa. Em outras palavras, no encontro houve a geração de pensamentos e ideias produzidas in loco, o estabelecimento de relações antes não consideradas, de novas ponderações sobre o tema (ARFUCH, 1995), favorecendo o intercâmbio de ideias e saberes.

Tendo em vista que a entrevista é um processo relacional, é apropriado trazer à cena o movimento mútuo que ela pode desencadear, afinal “[...] longe de ser um mero reflexo do existente, [ela] produz modificações na situação, gerando novas relações entre os interlocutores” (ARFUCH, 1995, p. 46 - tradução nossa). Entre as situações vividas na pesquisa com relação a esse aspecto, destacamos um diálogo demasiadamente expressivo:

EI03: Que é a minha didática, que é a nossa didática! Talvez quando eu falava do modo de fazer, das práticas educativas, que nós nos utilizamos destes termos, todavia eu te falava de uma outra didática, que é a nossa didática.

PESQUISADORA: Ah, ok, entendi. E você já havia pensado nisso?

EI03: Sim, pensei enquanto te falava e refletia.... bem... de qualquer maneira há um outro modo de fazer didática, porque, na realidade, é verdade, é um outro modo de fazer didática. Não é aquela didática predefinida, mas de qualquer forma é um modo de fazer didática.

PESQUISADORA: Ah bom...

EI03: Então, você sabe, quando falamos e refletimos, os pensamentos, como dizia Bruner, se movem... cada pensamento pode tomar o seu caminho. Obrigada. Você também me fez pensar... Obrigada! Você me fez pensar sobre isso. [riso]

PESQUISADORA: Eu?

EI03: Sim, me fez pensar nessa outra maneira de ler o termo didática. Então, não ter medo disso, não ter a ideia de que a didática é somente aquela... Mas, na realidade, é possível fazer precisamente uma outra didática, aquela que tem essa forte ideia do ponto de vista teórico e pedagógico, mas nunca se esquece de dialogar com a prática educativa. (Grifos nossos).

As palavras acima foram retiradas dos trechos finais de uma entrevista, quando a participante pondera que as suas descrições nas respostas às perguntas anteriores poderiam, sim, dizer respeito à “didática”. Tal destaque é feito porque ela, inicialmente, havia se mostrado contrária à discussão. Na ocasião, sem entender que essa (nova) reflexão havia surgido na nossa conversa, perguntamos se já tinha pensado nisso; ela, então, respondeu que “havia pensado isso durante nossa entrevista”, a partir de uma pergunta que provocou sua reflexão. Naquele momento, a participante fez referência às ideias de Bruner, enfatizando que, ao dialogarmos, pensamos juntos, ressaltando que os pensamentos podem “pegar suas estradas”, e então concluiu sintetizando seus posicionamentos sobre o assunto. Destacamos esse acontecimento porque remete às relações que são estabelecidas na entrevista, evidenciando o quanto são imprevisíveis e podem provocar aprendizagens mútuas (ARFUCH, 1995).

A seguir, trechos de outras entrevistas evidenciam também essa dimensão reflexiva, reforçando o quanto podem se configurar como contexto em que os respondentes também estão pensando e repensando, enfim, refletindo sobre o tema:

Ok, mas presta atenção, você está me fazendo pensar um monte de coisas que eu não penso há muito tempo... eu posso estar falando bobagem [risos]. [...] Porque a entrevista é um momento [...] não é só uma concessão de informações para você, é um processo em que a gente, também, vai fazendo uma reflexão de uma série de coisas... (EB02) (Grifo nosso).

Então, o contexto pra mim é esse: eu estou conseguindo pensar à medida que estou falando para você... [...] então, do que eu pude pensar, né, aqui falando com você [risos], tem esses determinantes da história. [...] Então se a didática vai pensar, por exemplo, ... Eu estou aqui pensando, na medida em que vou falando... Então, o que eu poderia dizer [...] Não tenho uma definição a priori [risos], mas pelo que venho dizendo até aqui, é possível [discutir Educação Infantil e Didática] (EB03) (Grifo nosso).

[...] claro que contribui para a área [discutir as relações entre Didática e Educação Infantil] porque eu penso assim... não sei, aqui, se vou é fazer uma reflexão do que que essa pergunta me causou, né, ou como me impactou na reflexão... [...] (EB03) (Grifo nosso).

Além da dimensão de diálogo entre entrevistados e entrevistadora, arriscamos a pensar que, em algumas entrevistas, também pode ter ocorrido um diálogo metafórico entre as duas áreas foco da pesquisa - Educação Infantil e Didática. Ao propor o convite para refletir sobre o tema que não era o de sua especialidade, em certas ocasiões, a entrevista foi, para alguns participantes, uma provocação a “movimentar” pensamentos. Entendemos que isso aconteceu não apenas no âmbito individual, mas com relação à interlocução entre os dois campos.

Mesmo que, em alguns casos, a resposta do entrevistado foi que ainda não havia pensado no assunto ou que precisaria vir a pensar no tema, a entrevista, na perspectiva da conversa dialógica, possibilitou reflexões sobre as relações entre as duas áreas e quais seus limites e possibilidades. Nisso reside uma dimensão importante da entrevista, quando comporta um “talvez”, constitui-se como um processo de troca, um exercício cooperativo no qual os envolvidos podem refletir sobre o tema e ampliar a sua compreensão (SENNETT, 2015b). Sinalizadas essas potências da entrevista em sua dimensão de encontro - com o pesquisador, com o sujeito entrevistado, com opiniões distintas, com sentidos históricos e pessoais -, o artigo prossegue apresentando reflexões metodológicas sobre a ação de entrevistar.

Fluxos do entrevistar: acolher o emergente, desacomodar e retroalimentar a pesquisa

Você veio com todas as perguntas, organizadas em linha reta: uma, duas, três, quatro, cinco... Em vez disso, [assim como] a bola, [a nossa conversa] foi para outro lugar... [risada] (EI10).

Nesta seção, discorremos sobre os fluxos que a entrevista envolve. Ao se referir a uma resposta anterior sobre didática, na qual elucida que o processo de conhecer não é linear, o participante faz uma analogia ao processo de entrevistar, destacando como o encontro provoca “desacomodações” e retroalimenta os percursos, como pode ser observado na citação acima. Sua colocação convida à reflexão sobre como os roteiros de entrevista nunca estão “prontos” e completos - sempre há perguntas que se mesclam nas respostas, questões a suprimir, outras a acrescentar, de acordo com a experiência vivida no encontro com cada entrevistado.

Dessa forma, aquela ordem lógica na qual as perguntas foram previstas nem sempre foi a mais interessante. Por vezes foi necessário deixar-nos levar pelo que emergia nas entrevistas, o que desviava do caminho planejado e apontava novos contornos. Assim, o roteiro tido como semiestruturado foi se tornando cada vez mais transponível, volátil, configurando-se como conjunto de indicativos e pistas para um diálogo progressivamente mais aberto.

Em outras palavras, foi necessário planejar a entrevista a partir da intencionalidade da pesquisa, mas sem que esta fosse extremamente estruturada, de modo que não permitisse acolher a experiência e o que emergia no encontro com o outro (CARAMÉS BOADA, 2010). Houve o desafio de lidar com a angústia de querer fazer tantas perguntas e de que nem sempre se encontraria aquilo que era esperado ou, ainda, “certezas” sobre o tema. Em algumas ocasiões, o que encontramos era justamente o inesperado, o “inconcluso”, que se traduzia em pensamentos potentes, perguntas e reflexões permeadas das ideias que estavam em elaboração por parte dos próprios sujeitos participantes.

Diante das diferenças que permeavam as entrevistas, com tantos sujeitos e temporalidades distintas, o próprio modo de conduzi-las se transformava. Algumas vezes, todas as perguntas eram lidas no início da conversa, em outras, elas iam sendo exploradas uma por uma. Da mesma forma, novas perguntas surgiam e algumas eram abandonadas. Assim, o fluxo das perguntas e respostas ocorreu conforme preferência e/ou singularidade do encontro com cada participante, justo porque a entrevista não é uma situação artificial nem unilateral (ARÉVALO VERA, 2010).

Enfim, foram movimentações como as narradas acima que nos levaram a pensar em aspectos nem sempre tão enfatizados nos livros sobre metodologia, por exemplo, o que significa a atenção à palavra do outro ou a escuta atenta que permite mover-se conforme o andamento da conversa. Realizar as entrevistas tornou evidente que o processo não consistia apenas naquilo “que nós trazíamos”, de nossas inquietações investigativas para a entrevista, mas que, principalmente, tratava-se do “que emergia” nos discursos dos participantes, no diálogo com eles.

É interessante pontuar que nem tudo nesse percurso ocorreu de forma tranquila: o processo de entrevistar é marcado por (des)acomodações constantes. Apesar do roteiro prévio, houve resistências, interrupções, acréscimos, desvios - afinal, toda entrevista é imprevisível, pois se constrói numa trama de relações. Para Arfuch, “[...] a uma cadeia lógica, esperada, podem contrapor-se alternativas tangenciais, respostas laterais, ilusórias, em forma de novas perguntas, jogos de humor, deslizamentos que são estratégias discursivas [...]” (1995, p. 44 - tradução nossa).

As relações que foram se construindo - entre participante e pesquisador, entre o tema e o envolvimento ou distanciamento do entrevistado, entre as próprias questões - provocaram ajustes nos caminhos que foram sendo reforçados ou modificados conforme o fluxo das respostas e das próprias perguntas. E isso não foi uma tarefa banal, pois a interlocução é construída na conversa em um tato artesanal (SENNETT, 2015b), tecida no acontecer da entrevista, como se pode perceber na fala de uma participante: “[...] acho que só a questão 7 mesmo que eu não teria como te responder, porque eu realmente não peguei um fio para entrar em interlocução com você” (EB03).

Tem relevo aprender a conviver com a intensidade e a inconstância que englobam a ação de entrevistar, a qual ultrapassa a simples ação de perguntar e receber uma resposta. Dentro do verbo “entrevistar”, há uma infinidade de outras situações que envolvem “os preparativos”, mas desdobram-se a partir do que ocorre no contexto da entrevista, porque se constroem na relação com o outro, como empatia e confiança (ou o contrário). Significa construir uma postura atenta na pesquisa para que, durante as conversas, seja possível:

Colocar com clareza as perguntas, reperguntar, retomar um tema ou questão que ficou pendente, resumir, interpretar ou desenvolver o que é substancial nas afirmações do outro, fazer avançar o diálogo, anular o silêncio, aproveitar elementos inesperados que sejam relevantes, dar um giro radical se for necessário, abrir uma polêmica [...] (ARFUCH, 1995, p. 49 - tradução nossa).

Tais apontamentos de Arfuch (1995) não são atitudes a serem executadas, mas sim indicativos sobre como agir que nos lembram que o “modo de operar” na entrevista tem implicações na sua condução, nas continuidades e descontinuidades da conversa. Nesse sentido, entrevistar o grupo de pesquisadores brasileiros e italianos foi um desafio e uma intensa aprendizagem com relação ao ofício de pesquisar em sua dimensão de artesania (MILLS, 2009; SENNETT, 2015a).

No que se refere a isso, outro aspecto que exigiu atenção na ação de entrevistar diz respeito à cautela para não “levar ideias prontas” ou projetar as convicções preexistentes sobre o tema. Certamente não é possível isentar-se por completo em uma conversa, uma vez que a forma como percebemos o mundo insere-se na relação dialética entre nossa biografia individual e o contexto histórico (MILLS, 2009). Todavia, é necessário o esforço de primar por um posicionamento de abertura à escuta, com a intenção de na entrevista:

[...] viver experiências que permitem ampliar, renovar, contrastar, enriquecer o sentido de ser e estar no mundo; como um pensar sobre o vivido, extraindo-lhe seu saber; como o acesso a um saber que permita viver e pensar as experiências, e portanto, pensar-se; como um espaço e encontro, de convivência, de conversação na qual o reconhecimento do outro, da outra, permite a cada um se reconhecer e encontrar seu lugar (CONTRERAS DOMINGO; LARA FERRÉ, 2010, p. 70 - tradução nossa).

Ainda assim, abrir-se à modificação que a palavra do outro poderia gerar nas crenças existentes, durante a pesquisa, nem sempre foi tarefa tranquila, visto que, a cada entrevista, as reflexões sobre Educação Infantil e Didática se ampliavam e se complexificavam. Por exemplo, a partir de algumas das leituras realizadas anteriormente, havia certa expectativa em relação às respostas. Porém, ao encontrar nas entrevistas posições distintas às hipóteses iniciais da pesquisa, estas foram transformadas, provocando outros modos de pensar e, com isso, redimensionando a investigação. Esses momentos são desestabilizantes e configuram um grande desafio a quem entrevista. No entanto, esse é precisamente o movimento da pesquisa-experiência, que pressupõe estar aberto às perguntas que são deixadas pelos entrevistados ora indiretamente, ora também de forma explícita.

Uma dessas situações ocorreu quando recebemos de uma das entrevistadas a seguinte provocação: “Então essa é a problematização que eu deixo para vocês” (EB03). Com isso, percebe-se que os enunciados que emergem das conversas reverberam na pesquisa, produzem desassossegos e surgem novos elementos que nos conduzem a reflexões mais complexas sobre aquilo que intencionamos investigar. Ao entrevistar, na experiência do encontro, somos mobilizados e afetados pelas palavras do outro, assim como é possível que o inverso ocorra.

Ademais, ao entrevistar ancorada na perspectiva da artesania, surgiram também aproximações e consensos nas falas, contradição e diversidade dos posicionamentos entre os participantes, conceitos e autores foram sugeridos durante as conversas. Nesse sentido, acolher o emergente do encontro desacomodava e, ao mesmo tempo, retroalimentava a investigação, isto é, “abria” possibilidades de ampliação de abordagens, ângulos e pontos de vista sobre o tema. Isso se relaciona com a “imaginação sociológica” no exercício de pesquisar, ou seja, a capacidade de reflexão que diferencia o cientista social de um mero técnico e “consiste na capacidade de passar de uma perspectiva para outra” (MILLS, 2009, p. 15).

Diante disso, entendemos que não se tratou de somar conhecimentos fragmentados a cada entrevista que era realizada, pois os dados gerados complexificavam a reflexão sobre o assunto pesquisado. Portanto, os diálogos com pesquisadores com tamanha trajetória profissional possibilitaram inúmeras aprendizagens - uma experiência de pesquisar sobre um saber pedagógico que ia sendo nutrido na e da experiência dos encontros.

Nessa reflexão, a conceituação de diálogo de Rinaldi (2014), visto como mais do que uma simples troca de palavras, embora não se refira a procedimentos de pesquisa, foi provocativa no sentido de que este pode envolver transformação. Dialogar envolve provocar o outro a pensar, refletir, problematizar, pensar junto; diz respeito a uma escuta que não se encerra “apenas” com o término da conversa. Assim, foi emergindo uma sensibilização e uma mobilização voltada a um investimento, cada vez maior, numa posição de abertura ao outro no decorrer das entrevistas.

Por vezes, a abertura, no que se refere ao fluxo de ideias, se projetava na próxima entrevista que era realizada. Por exemplo, a partir das respostas de um pesquisador entrevistado e das inquietações decorrentes, tornava-se possível perguntar para o(s) próximo(s) participante(s) o que pensavam sobre determinado aspecto que havia sido comentado anteriormente. Nessa direção, iam sendo compartilhadas ideias sobre o tema da pesquisa que estavam sendo construídas durante o processo, como hipóteses sobre a didática na Educação Infantil que foram tecidas a partir de entrevistas anteriores.

Dessa forma, as entrevistas foram se configurando como oportunidades de criação de intercâmbios não apenas momentâneos, porque se expandiam ao abrigar momentos prolongados de pensar e de elaborar sentidos no e sobre o próprio curso da pesquisa (CONTRERAS DOMINGO; LARA FERRÉ, 2010). No fluxo dos encontros com os participantes, os dados construídos retroalimentavam o itinerário da investigação.

Nesse sentido, compreendemos que as entrevistas, quando se situam no entrelaçamento entre o fazer e o pensar, são intensas e provocativas, justamente por fazerem a pesquisa “se movimentar” ao mesmo tempo em que provocam o(s) pesquisador(es) a movimentarem-se a partir dela. Às vezes, alguns aspectos que aparecem nas falas dos participantes não são compreensíveis num primeiro momento, mas impulsionam a continuidade da investigação. A cada entrevista, podem ser tecidas confirmações e novas interrogações, que desacomodam e incitam à necessidade de rever o já pensado e adentrar o não pensado, redirecionando o percurso metodológico. Assim, entrevistar pode configurar-se como uma experiência formativa a quem entrevista e significativa a quem é entrevistado.

Considerações

Na perspectiva da pesquisa como experiência, compreendemos que a entrevista possibilita encontros, desvios, “movimentar os pensamentos”, configurando-se como um fazer artesanal quando vai sendo feito de modo engajado (CARAMÉS BOADA, 2010). Nos movimentos e caminhos trilhados na pesquisa sobre Educação Infantil e Didática, que foi base para as reflexões tecidas neste artigo, investigar envolveu buscas, desorientações, perguntas e reperguntas. Em meio aos fazeres e aos itinerários percorridos, a experiência da pesquisa constituiu-se como formativa (CONTRERAS DOMINGO; LARA FERRÉ, 2010), além de possibilitar a construção de dados sobre o tema.

A realização de entrevistas com pesquisadores brasileiros e italianos das áreas da Educação Infantil e Didática foi uma experiência extremamente formativa. Essa formação aconteceu tanto pela questão técnica como pela questão teórica e conceitual que permeava cada encontro com pesquisadores. Em relação à técnica, por nos colocar frente a desafios como reagendamentos, manuseio dos instrumentos, a questão da língua estrangeira. Sobre a questão teórica e conceitual, a experiência de entrevista na perspectiva da artesania foi formativa por ampliar as leituras, redimensionar as perguntas e possibilitar o encontro de vozes muitas vezes dissonantes.

Além disso, podemos sugerir, a partir da experiência vivenciada ao entrevistar, que o caráter formativo ao qual nos referimos também pode ter sido dimensionado a alguns participantes da entrevista. Isso porque, não raro, durante os diálogos, os entrevistados também indicavam sentirem-se provocados pela conversa e pelas perguntas, apresentando o que Mills (2009) chamou de “conexões insuspeitadas”, que possivelmente não se encerraram no encontro.

Consideramos que entrevistar na perspectiva da investigação como “[...] experiência de conhecer, de aprender e de perguntar-se pelo sentido do educativo” (CONTRERAS DOMINGO; LARA FERRÉ, 2010, p. 19 - tradução nossa) significa interrogar, desconfiar, duvidar, ler, mapear, refletir, dialogar, perguntar-se e perguntar aos outros, viver o encontro com o outro. Ao entrevistar docentes/pesquisadores da Educação Infantil e da Didática, coloca-se na agenda um tema quase invisível e convida-se a um diálogo em que as posições ocupadas pelos participantes da pesquisa e seus diferentes pontos de vista movimentam os pensamentos sobre o tema. A experiência da entrevista é, portanto, um fazer que ultrapassa a simples ação de realizar perguntas e ouvir respostas, quando compreendida como um exercício cooperativo tecido em um fazer artesanal.

Referências

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ARFUCH, L. La entrevista, una invención dialógica. Barcelona: Paidós, 1995. [ Links ]

CARAMÉS BOADA, M. Investigar en educación: Un espacio posible y sobre todo imposible. In: CONTRERAS DOMINGO, J.; LARA FERRÉ, N. P. de (Org.). Investigar la experiencia educativa. Madrid: Ediciones Morata, 2010. p. 199-210. [ Links ]

CONTRERAS DOMINGO, J.; LARA FERRÉ, N. P. de. La experiencia y la investigación educativa. In: CONTRERAS DOMINGO, J.; LARA FERRÉ, N. P. de (Orgs.). Investigar la experiencia educativa. Madrid: Ediciones Morata, 2010. p. 21-86. [ Links ]

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1Referente à Tese "Diálogos sobre Educação Infantil e Didática: por entre distanciamentos e aproximações" (GOBBATO, 2019).

2Neste artigo, os participantes das entrevistas serão identificados por códigos alfanuméricos. A primeira letra “E” indica “Entrevista”; a segunda letra contextualiza o país, sendo “B” para Brasil e I para “Itália”; e por fim, a numeração de 01 a 04 refere-se às entrevistas brasileiras, e de 01 a 10 às italianas.

Recebido: 18 de Outubro de 2022; Aceito: 06 de Janeiro de 2023

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