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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.76 Curitiba jan./mar 2023  Epub 05-Abr-2023

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.076.ds19 

Dossiê

Avaliação na Educação Infantil: que saberes mobilizar?

Assessment in Early Childhood Education: what knowledge to mobilize?

Evaluación en Educación Infantil: ¿qué conocimientos movilizar?

aUniversidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Frederico Westphalen, Rio Grande do Sul, BR. Doutoranda em Educação, bolsista Capes, e-mail: eronehl@gmail.com.

bUniversidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Frederico Westphalen, Rio Grande do Sul, BR. Doutora em Educação, e-mail: jordana@uri.edu.br.


Resumo

A avaliação na Educação Infantil se diferencia expressivamente da avaliação nas demais etapas da educação e representa um desafio tanto para a elaboração de documentos norteadores quanto para o desenvolvimento das práticas. A proposta deste estudo bibliográfico consiste em apresentar reflexões sobre a avaliação nesta etapa, tomando como ponto de partida aspectos pertinentes ao conceito de avaliação definido pelas orientações legais em vigência e pelas discussões teóricas específicas da área, com o objetivo de identificar como e quais saberes docentes os/as professores/as mobilizam no processo avaliativo. Destaca-se o papel fundamental dos/as docentes como agentes políticos comprometidos e transformadores das práticas. Considera-se a necessidade de que os textos dos documentos legais referentes à avaliação apresentem orientações mais específicas e aprofundadas no sentido de possibilitar clareza quanto à finalidade da avaliação na Educação Infantil. Propõem-se a adoção de uma perspectiva organizacional para o processo avaliativo, considerado como complexo e não linear. Conclui-se que, para além de definir um conjunto de saberes docentes mobilizados na avaliação, importa compreender que o processo é reflexivo, permanente, contínuo e mesmo que se repita um número indefinido de vezes, sempre haverá aspectos a serem revisitados, tanto no percurso avaliativo adotado, quanto nos saberes mobilizados.

Palavras-chave: Saberes docentes; Avaliação; Educação Infantil

Abstract

Assessment in Early Childhood Education differs significantly from assessment in other stages of education and represents a challenge both for the elaboration of guiding documents and for the development of practices. The purpose of this bibliographic study is to present reflections on evaluation at this stage, taking as a starting point aspects relevant to the concept of evaluation defined by the legal guidelines in force and by the theoretical discussions specific to the area, with the objective of identifying how and which teaching knowledge teachers mobilize them in the evaluation process. The fundamental role of teachers as political agents, committed and transforming practices is highlighted. It is considered the need for the texts of the legal documents referring to the evaluation to present more specific and in-depth guidelines in order to provide clarity regarding the purpose of evaluation in Early Childhood Education. It is proposed the adoption of an organizational perspective for the evaluation process, considered as complex and non-linear. It is concluded that, in addition to defining a set of teaching knowledge mobilized in the evaluation, it is important to understand that the process is reflective, permanent, continuous and even if it is repeated an indefinite number of times, there will always be aspects to be revisited, both in the evaluative approach adopted, as well as in the knowledge mobilized.

Keywords: Teaching knowledge; Evaluation; Child education

Resumen

La evaluación en Educación Infantil difiere significativamente de la evaluación en otras etapas educativas y representa un desafío tanto para la elaboración de documentos orientadores como para el desarrollo de prácticas. El presente estudio bibliográfico tiene como objetivo presentar reflexiones sobre la evaluación en esta etapa, tomando como punto de partida aspectos relevantes al concepto de evaluación definido por los lineamientos legales vigentes y por las discusiones teóricas propias del área, con el objetivo de identificar cómo y qué saberes didácticos movilizan los docentes en el proceso de evaluación. Se destaca el papel fundamental de los docentes como agentes políticos, comprometidos y transformadores de las prácticas. Se considera la necesidad de que los textos de los documentos legales referentes a la evaluación presenten lineamientos más específicos y profundos a fin de brindar claridad a la finalidad de la evaluación en Educación Infantil. Se propone la adopción de una perspectiva organizacional para el proceso de evaluación, considerada como compleja y no lineal. Se concluye que, además de definir un conjunto de saberes docentes movilizados en la evaluación, es importante entender que el proceso es reflexivo, permanente, continuo y aunque se repita un número indefinido de veces, siempre habrá aspectos a revisar, tanto en el enfoque evaluativo adoptado, como en el conocimiento movilizado.

Palabras clave: Saber didáctico; Evaluación; Educación Infantil

Introdução

As práticas pedagógicas e educativas realizadas na Educação Infantil abarcam um conjunto de elementos: adaptação, acolhida, planejamento, tempos, espaços, materiais, linguagens, rotina, brincadeira, interações, hipóteses de escrita, saberes das crianças, direitos de aprendizagem e desenvolvimento, desenho, registro, documentação pedagógica, desenvolvimento infantil, escuta, movimento, formação, experiências, currículo, gestão, família, colegas docentes, acompanhamento do desenvolvimento e da aprendizagem, avaliação, etc. Certamente, se perguntarmos a um/a professor/a da Educação Infantil qual desses itens tem maior importância na realização de seu trabalho, serão necessários alguns minutos de reflexão para o recebimento de uma resposta, que tende a ser parcial e não conclusiva.

Os itens citados anteriormente se conectam entre si e, possivelmente, a outros diversos que ainda poderiam ser elencados, compondo uma rede complexa que nos leva a entender que um não se efetiva sem o outro e por isso não suporta o status de maior importância. Embora esta etapa da educação, em âmbito nacional e internacional, ao longo das últimas décadas, venha batalhando tanto pelo reconhecimento do trabalho que realiza, da importância deste para a vida da criança, bem como do espaço e papel que a criança ocupa e desempenha na sociedade, muito ainda precisamos nos aprofundar sobre a complexidade das práticas desenvolvidas na Educação Infantil.

A avaliação ocupa um lugar desafiador tanto no contexto das práticas quanto no contexto das políticas que normatizam a etapa, pois é composta por dois objetos que ao mesmo tempo em que se distinguem, se relacionam profundamente. A avaliação “na” Educação Infantil se refere àquela feita internamente no processo educativo, focada nas crianças como sujeitos e como coautoras de seu desenvolvimento, assim, trata do acontecer pedagógico e do efeito que este gera sobre elas (DIDONET, 2014). Por sua vez, a avaliação “da” Educação Infantil se refere ao fenômeno educativo, visando responder se e o quanto ele atende a sua finalidade, aos objetivos e às diretrizes que definem a identidade desta etapa da educação, portanto, envolve os sujeitos responsáveis pelo processo, o espaço em que acontece e as relações que estabelece com o meio sociocultural, ou seja, avalia o contexto da oferta da educação desenvolvida com as crianças (DIDONET, 2014).

Independentemente do foco da avaliação, o debate sobre a temática está instalado já há algum tempo, principalmente a partir da elaboração da Política Nacional de Avaliação da Educação Básica (BRASIL, 2018) e, recentemente, pela implementação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (BRASIL, 2021). Para Didonet (2014, p. 339), tal debate deve evoluir para a compreensão “da forma justa de apoiar, incentivar e mediar o processo de desenvolvimento e aprendizagem das crianças nos estabelecimentos de educação infantil”.

No entanto, o recente e amplo estudo exploratório realizado por Ribeiro (2018) abrangendo 125 municípios do país, buscando verificar se as orientações federais relativas à avaliação expressas na legislação vigente e nos documentos normativos da área são compreendidas, implementadas e utilizadas pelas redes municipais e suficientes para garantir que esta ocorra de forma alinhada aos fins e objetivos da Educação Infantil, evidenciou a majoritária incoerência com esses. Os resultados da pesquisa apontam para a ocorrência de avaliações classificatórias, focadas em determinadas áreas do conhecimento (português e matemática) ou ainda no comportamento da criança, restringindo-se à mera aquisição de competências e habilidades. Padronizações que desconsideram as singularidades do desenvolvimento de cada criança, como ser único, e que, portanto, não apresentam ao mesmo tempo, as mesmas características no decorrer deste.

Outro desafio pertinente a ser apontado são as particularidades da avaliação de bebês, sobretudo de 0 a 1 ano, e a avaliação de crianças bem pequenas e pequenas. Conforme anunciado anteriormente, partimos da compreensão de que cada criança é única e se desenvolve em seu ritmo próprio, contudo, a ressalva quanto à diferenciação necessária na avaliação dos bebês diz respeito ao fato de que eles não expressam verbalmente as opiniões sobre seus próprios fazeres, mas percebem-se e fazem várias coisas consigo (GUIMARÃES, 2011) e com o entorno que lhes é proporcionado. Nessa perspectiva, engendram outras formas de observação, registro e escuta por parte dos/as professores/as.

Diante do exposto, é notório destacar que as orientações legais sobre a avaliação na Educação Infantil, em âmbito federal, soberanas as normatizações elaboradas pelos sistemas de ensino municipais, aproximam-se aos princípios da Educação Infantil e aos direitos da criança (RIBEIRO, 2018), o que nos remete ao questionamento do motivo das efetivações práticas das orientações, em sua maioria, ainda estarem inadequadas e quais seriam as ações necessárias para superar este cenário.

Neste sentido, apontamos os/as professores/as como agentes principais de transformação, sujeitos que fazem o ato educativo acontecer e diariamente mobilizam diferentes saberes para legitimar suas práticas. Reconhecer e compreender os saberes docentes necessários para avaliar a aprendizagem e o desenvolvimento das crianças pode contribuir para o empoderamento dos/as profissionais, no sentido de torná-los cientes do trabalho que realizam e de sua capacidade de propor adequações em seus contextos de atuação, tornando-os propositores e não apenas reprodutores de ações que possivelmente consideram inadequadas, ou ainda, ajudá-los a superar os desafios e lacunas existentes no processo avaliativo, identificando necessidades de formação.

Para tanto, a proposta deste estudo consiste em apresentar reflexões sobre a avaliação na Educação Infantil, tomando como ponto de partida aspectos pertinentes ao conceito de avaliação definido pelas orientações legais em vigência e pelas discussões teóricas específicas da área, objetivando caminhar entre os saberes docentes que nos possibilitam avistar um ponto de chegada para a seguinte questão: quais saberes os/as professores/as mobilizam para realizar a avaliação na Educação Infantil?

Alicerçado no estudo bibliográfico, o texto inicia dialogando com as orientações legais nas quais as redes de ensino e os/as professores/as buscam suporte para realizar a avaliação, com o intuito de problematizar os principais pressupostos presentes nos textos das leis. Posteriormente, apresentamos a discussão sobre os saberes docentes discutidos por três autores clássicos da área, com vistas a refletir sobre quais, a nosso ver, são mobilizados para o ato de avaliar na Educação Infantil. Para tanto, propomos um percurso, não linear, de ações a serem desenvolvidas no processo avaliativo, considerando que a efetivação destas resulta da mobilização de diversos saberes. Não pretendemos classificar, verificar ou definir a rigor quais são os saberes mobilizados pelos professores na avaliação da aprendizagem e desenvolvimento das crianças, pois temos ciência de que tais ações não contemplam a complexidade dos processos educativos, tampouco de avaliar. Intentamos sim, compreender a forma fluida com que os saberes são mobilizados nas atuações dos/as professores/as.

Finalizamos destacando a importância e a necessidade de que os/as professores/as compreendam que avaliar na Educação Infantil se diferencia expressivamente da avaliação nas demais etapas da educação e, portanto, os saberes docentes mobilizados no processo são compostos por outras tantas dimensões da complexa prática realizada nesta etapa.

Bases legais da avaliação na Educação Infantil

Os documentos legais que se referem especificamente à avaliação da aprendizagem e do desenvolvimento na Educação Infantil1 podem ser compostos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/1996 (LDBEN), pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEIs), publicada em 2010, e pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) publicada em 2018. A análise dos textos dos documentos aponta para algumas diferenciações, concordâncias e complementaridades no que diz respeito aos focos dados para orientar o processo avaliativo.

A LDBEN trata de forma sucinta o assunto, apresentando apenas um inciso no artigo 31. Interessante notar que orienta a avaliação mediante acompanhamento e registro do desenvolvimento das crianças, porém não se refere ao acompanhamento do trabalho pedagógico e das práticas, orientações que aparecem respectivamente nas DCNEIs e na BNCC.

Outro aspecto de diferenciação aparece na citação dos termos aprendizagem e desenvolvimento, visto que na LDBEN encontra-se no texto apenas o termo desenvolvimento, já nas DCNEIs encontra-se tanto o termo desenvolvimento quanto aprendizagem, ao passo que na BNCC o foco é dado para a aprendizagem, de modo que o termo desenvolvimento não aparece no parágrafo referente à avaliação, passando a fazer parte do texto somente no momento em que são elencados os direitos de aprendizagem e desenvolvimento.

É pertinente refletir sobre o que tais opções de escrita podem desencadear na interpretação das leis, pois considerando as especificidades do trabalho na Educação Infantil e a própria organização deste por meio do arranjo curricular em campos de experiência proposto na BNCC, apresentar foco na aprendizagem ao tratar da avaliação pode incorrer no risco das práticas desenrolarem-se pelo viés conteudista e de transmissão do conhecimento, com a avaliação voltada a verificar se a criança aprendeu ou não o que foi ensinado. Soa adequada a utilização dos dois termos, diante dos vastos estudos realizados por grandes teóricos da educação, como Piaget, Vygotsky, Wallon, entre outros, que esclarecem a relação entre a aprendizagem e o desenvolvimento no ser humano, bem como para atender aos fins da Educação Infantil como primeira etapa da educação básica, ou seja, o desenvolvimento integral da criança em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade (BRASIL, 1996).

Quanto aos modos de realização da avaliação, a LDBEN anuncia o caráter de acompanhamento e a utilização de registros, o que posteriormente vem a ser complementado nas orientações descritas pelas DCNEIs. Nestas, indica-se a observação crítica e criativa das atividades, das brincadeiras e interações das crianças no cotidiano, a utilização de múltiplos registros realizados por adultos e crianças (relatórios, fotografias, desenhos, álbuns, etc.) e a produção de documentação específica que permita às famílias conhecer o trabalho da instituição junto às crianças e os processos de desenvolvimento e aprendizagem delas (BRASIL, 2010).

Já na BNCC, os modos de realização da avaliação são descritos com um texto ligeiramente diferenciado, com destaque para a descrição do foco da observação, orientado a se dar na trajetória de cada criança e de todo o grupo, para reconhecer as conquistas, avanços, possibilidades e aprendizagens. Quanto aos registros, amplia as orientações contidas nas diretrizes, no sentido de que devem ser realizados em diferentes momentos, ou seja, a interpretação possível do texto da lei é de que devem contemplar a jornada diária das crianças na instituição e não somente durante as atividades, que de maneira equivocada são consideradas como essencialmente pedagógicas2, bem como no decorrer do ano, e não somente em momentos específicos de entrega da avaliação às famílias. Aos exemplos de instrumentos, além daqueles já descritos nas DCNEIs (citados no parágrafo anterior) são acrescentados o portfólio e textos, sugestionando que por meio do uso dos diferentes instrumentos é possível evidenciar a progressão da criança ocorrida durante o período observado.

Retomando a orientação contida nas DCNEIs, quanto à possibilidade de que as próprias instituições e sistemas de ensino elaborem seus instrumentos de avaliação, consideramos que essa perspectiva abre dois caminhos interpretativos. O primeiro, em viés positivo, permite que o processo avaliativo seja adaptado ao currículo e à realidade sociocultural do local, questão prevista na LDBEN e posteriormente na BNCC. Essa flexibilização legitima as referências culturais e regionais onde as instituições estão inseridas e, dessa forma, reconhece a diversidade de infâncias, suas vivências e suas características múltiplas com relação ao desenvolvimento e à aprendizagem, dadas as dimensões continentais de nosso país. Por outro lado, existe o viés negativo, as falhas na interpretação do texto, que levam ao desconhecimento ou a opções incoerentes com o que se deseja e orienta para a elaboração de procedimentos de avaliação na Educação Infantil.

Ambos os documentos aqui analisados apresentam orientações objetivas quanto à avaliação não possuir caráter classificatório, de retenção ou de comparação, distanciando-se do processo dualista de avaliar as crianças em “‘aptas’ e ‘não aptas’, ‘prontas’ ou ‘não prontas’, ‘maduras’ ou ‘imaturas’” (BRASIL, 2018, p. 39). Contudo, o estudo de Ribeiro (2018) apresentou fragmentos de relatórios que demonstram tamanha incoerência diante dessas orientações, com enfoque apenas nas competências e habilidades não adquiridas pelas crianças, gerando listas de itens que supostamente as crianças estão em “falta” em relação ao restante da turma, ou seja, classificando-as em aprendeu ou não, fez ou não, participou ou não, etc., e ainda em comparação com os/as colegas.

No texto da BNCC nota-se que a superação dessa perspectiva se dá pela compreensão de que a avaliação da criança está intimamente relacionada às condições de oferta das práticas, bem como serve como subsídio para (re)pensar o modo como elas estão sendo desenvolvidas, ou seja, “trata-se de reunir elementos para reorganizar tempos, espaços e situações que garantam os direitos de aprendizagem de todas as crianças (BRASIL, 2018, p. 39). Nesse sentido, a BNCC aponta como papel dos/as professores/as “refletir, selecionar, organizar, planejar, mediar e monitorar o conjunto das práticas e interações, garantindo a pluralidade de situações que promovam o desenvolvimento pleno das crianças” (BRASIL, 2010, p. 39). Trata-se de um papel amplo e complexo do qual emerge a necessidade de um trabalho coletivo e articulado entre professores/as, coordenação, gestão, famílias e as próprias crianças.

O termo monitorar introduz a discussão sobre outro aspecto a ser analisado. Diferentemente da LDBEN e das DCNEIs, a BNCC não apresenta no corpo de seu texto o termo “avaliação”, assim como não há um tópico específico para a discussão do assunto. As orientações contidas são breves e se referem ao “acompanhamento” e “monitoramento” das práticas e das aprendizagens e não especificamente à avaliação na Educação Infantil. Diante das tensões3 ocorridas durante a elaboração das versões preliminares da BNCC, emerge o questionamento acerca da opção pelo não aprofundamento de um tema tão complexo em um documento mandatório que apresentou várias reestruturações para a área da educação.

Contudo, compreendemos a relação entre acompanhamento e avaliação como a possibilidade de avançar na discussão sobre a temática, sobretudo considerando a documentação, anunciada pelos documentos oficiais como o instrumento para a realização de tal acompanhamento. Necessário ressaltar a diferenciação entre os conceitos de “documentação” e de “documentação pedagógica” feita por Fochi (2019), destacada por ele como fundamental para não reduzir o conceito a simples técnica de registrar ou compilar informações. Segundo o autor, a documentação pedagógica é a estratégia pedagógica,

[...] envolve um modo de olhar, de refletir, de fazer, de pensar e de comunicar o cotidiano pedagógico e as aprendizagens das crianças e dos adultos. [...] este conceito, enquanto uma estratégia para a construção do conhecimento praxiológico, vai muito além de um modo de registrar e comunicar, pois transforma o sistema de relações no interior das escolas e reposiciona crianças e adultos no processo educativo (FOCHI, 2019, p. 13-14).

Na perspectiva da transformação do sistema de relações que envolvem o processo de avaliação e no esperançar do alcance da documentação pedagógica como estratégia, é notório perceber que nas DCNEIs o destinatário da documentação inclui as famílias, destacando o intuito de possibilitar que estas conheçam “o trabalho da instituição junto às crianças e os processos de desenvolvimento e aprendizagem da criança na Educação Infantil” (BRASIL, 2010, p. 29), ou seja, abre-se a possibilidade para que o acompanhamento e a avaliação sejam realizados de forma compartilhada, participativa e democrática (OLIVEIRA-FORMOSINHO, PASCAL, 2019), com todos os envolvidos no processo, professores/as, crianças e famílias.

Concordamos com Ribeiro (2018) quando aponta para o longo caminho a ser percorrido na construção e consolidação da avaliação da aprendizagem na Educação Infantil na perspectiva da garantia dos direitos fundamentais das crianças, pois ainda carecemos da compreensão sobre o que de fato significa avaliar nesta etapa (HOFFMANN, 2018). Nesse âmbito, reside a necessidade de construir reflexões contributivas com os processos, os saberes docentes envolvidos na avaliação pode ser uma delas.

Ações que envolvem acompanhar e avaliar: saberes docentes em ação

Há mais de vinte anos atrás, Rocha (2001) nos advertia sobre o nascimento de uma Pedagogia da Educação Infantil, possível de analisar criticamente o real, a partir de reflexões sistemáticas, procedimentos e conceituações próprias, ou seja, constituía-se como um campo de conhecimento em construção. Nos últimos anos, vemos o campo ganhar forma e firmar sua posição como primeira etapa da educação básica, entre outros fatores, em decorrência do surgimento de pesquisas localizadas no próprio campo das pedagogias para a pequena infância, principalmente com os Estudos da Infância e Estudos da Criança4.

Neste contexto situa-se a docência na Educação Infantil, que se diferencia das demais etapas da educação, pois é permeada por concepções de infância, de criança, de modos de conceber e proporcionar a aprendizagem e o desenvolvimento, etc. Ou seja, nenhuma das dimensões5 do trabalho pedagógico desenvolvido na Educação Infantil ocorre de forma isolada, há uma estreita articulação entre os diferentes elementos que compõem a jornada das crianças e dos adultos nas instituições.

Nessa perspectiva, compreendemos que o processo de avaliação na Educação Infantil se articula aos demais elementos do fazer pedagógico e constitui uma parte fundamental deste, visto que possibilita tanto avaliar o processo educativo e a própria prática docente quanto acompanhar suas influências no desenvolvimento e na aprendizagem da criança.

Para Contreras (2002, p. 211):

Avaliar a importância educativa de uma certa prática é avaliar também o que para nós significa e supõe intimamente. Assim, o processo de autoconhecimento profissional nasce e retorna ao contexto de relações nas quais tentamos desenvolver nossas próprias convicções e recursos como profissionais da educação.

Dito isso, ressaltamos que discorrer acerca dos saberes docentes mobilizados no processo de avaliação significa buscar compreender os/as professores/as, o caráter fortemente subjetivo da avaliação (HOFFMANN, 2002), questionar-se sobre o que permeia suas ações e, assim, investigar: quais saberes docentes são mobilizados no processo de avaliação na Educação Infantil? O que é necessário saber para avaliar? É possível um/a professor/a declarar que sabe avaliar?

Não são recentes as pesquisas que se aprofundam na investigação sobre o que os docentes necessitam saber para abarcar em suas práticas a complexidade dos processos educativos. Vários estudiosos se dedicam à temática dos saberes docentes, dentre eles, citamos os escritos de Gauthier (1998), Pimenta (1997, 2009), Tardif (2011) e Fossatti et al.

Os estudos de Gauthier (1998) são motivados pela busca do conhecimento do repertório de saberes próprios ao ensino, condição fundamental para a profissionalização docente, pois toda profissão precisa formalizar os saberes necessários à execução das tarefas que lhe são próprias. Para Pimenta (1997), o interesse surge como uma forma de contribuir para a constituição da identidade profissional e com a ressignificação dos processos de formação, incluindo a formação inicial universitária, a partir da reconsideração dos saberes necessários à docência. Já Tardif (2011) buscou identificar a natureza dos saberes docentes, pois suas análises consideram tais saberes inseparáveis das demais dimensões da educação e do trabalho realizado diariamente pelos/as professores/as. Fossatti et al., por sua vez, fazem uma leitura de autores6 que abordam a temática para então ampliar proposições, considerando que os docentes, no desenvolvimento da prática pedagógica, articulam diversos tipos de saber.

Uma síntese das proposições discutidas pelos autores é apresentada no quadro 1, a seguir.

Quadro 1 Saberes docentes 

Autor Saber docente Descrição
Gauthier Saberes disciplinares Produzidos pelos pesquisadores e cientistas nas diversas disciplinas científicas, relacionados à matéria, às áreas do conhecimento.
Saberes curriculares Relacionados ao programa escolar. A escola organiza certos saberes produzidos pelas ciências para transformá-los num corpus de ensino. Os professores/as devem conhecer o programa, pois lhes serve de guia para planejar e avaliar.
Saberes das ciências da educação Relacionados a determinados conhecimentos profissionais, típicos da profissão, que não auxiliam diretamente na ação pedagógica, mas contribuem com o ofício ou com a educação em geral (noções sobre sindicato, carreira docente, classes sociais, diversidade cultural, etc.). Permeiam a maneira de o/a professor/a existir profissionalmente.
Saberes da tradição pedagógica Relacionados à representação da tradição escolar, os quais, muitas vezes, os/as professores/as possuem antes mesmo de obterem formação na área e servem de molde para guiar seus comportamentos, porém pode comportar muitos erros.
Saberes experienciais Saberes advindos das próprias experiências docentes, portanto de caráter pessoal e privado, que por serem repetidamente utilizados, se tornam rotineiros no desenvolvimento das ações pedagógicas. Feito de pressupostos e argumentos que não são verificados por métodos científicos.
Saberes da ação pedagógica Resultantes dos saberes experienciais que se tornam públicos e validados por pesquisas realizadas em sala de aula e, assim, passam a ser conhecidos e aprendidos por outros/as professores/as.
Pimenta Saberes do conhecimento Advindos de conhecimentos específicos da área, mobilizados em uma educação voltada à humanização dos sujeitos, são, portanto, relacionados à preparação científica, técnica e social. Visam produzir as condições de produção do conhecimento.
Saberes pedagógicos Relacionados à didática e dados pelas necessidades pedagógicas postas pelo real - a partir da prática social da educação.
Saberes da experiência Relacionados a dois aspectos: a) saberes da experiência como aluno, o modo como vê a profissão professor como aluno - formação inicial; b) saberes da experiência produzidos no cotidiano docente, no processo de reflexão sobre suas práticas e suas experiências de socialização.
Tardif Saberes disciplinares Relacionados aos diversos campos de conhecimentos, aos saberes de que dispõe a nossa sociedade, tais como se encontram hoje integrados à universidade sob formas de disciplinas.
Saberes curriculares Saberes focados nos discursos da instituição escolar, bem como seus objetivos, conteúdos e métodos.
Saberes da formação profissional ou pedagógicos Saberes das ciências da educação e da ideologia pedagógica, adquiridos na formação inicial ou continuada.
Saberes experienciais ou práticos Partem do conceito de reflexividade para a recuperação, reprodução, reiteração do que é conhecido para o que é conhecido por ser feito, a fim de produzir sua própria prática profissional. Também partem das suas relações sociais.
Saberes humanos ou da interação Relacionados a valores, ética e modos de interação com os alunos7.
Fossatti et al. Saberes da humanização Saberes que embasam as relações entre professores-alunos, relativos à capacidade do ser, saber e conviver de forma integrada e harmônica.
Saberes criativos Relacionados a todos os conteúdos mobilizados pelo professor em prol de criar e (re)criar novas e atraentes alternativas para aprimorar os processos de ensino e de aprendizagem.

Fonte: Gauthier (1998), Pimenta (1997), Tardif (2011), Fossatti et al. (2012). Elaborado pelas autoras.

Embora apresentem diferenciações entre as terminologias e descrições sobre o que caracteriza os diferentes saberes, as pesquisas desses três autores corroboram com a compreensão de que os/as professores/as não são somente executores de tarefas, mas que no decorrer de suas ações, pensam acerca do processo, das problemáticas que surgem e buscam soluções para estas, mobilizando diferentes saberes.

Quando se trata da problemática da avaliação, a decorrência de tais ações não podem ser consideradas de forma esporádica ou isolada, é necessário compreender que para avaliar, os/as docentes realizam diversas ações resultantes da mobilização de diversos saberes. Como vimos anteriormente, os documentos legais definem orientações globais quanto à avaliação, porém a efetivação prática de tais orientações acentua a necessidade de uma organização intencional e sistemática do processo pedagógico como um todo, exigindo que os/as professores/as, já no planejamento das práticas8, tenham clareza sobre o que irão observar, registar e refletir (FREIRE, 1996; OSTETTO, 2017).

O quadro 2, a seguir, expressa a possibilidade de um percurso para a avaliação na Educação Infantil compreendida como processo de acompanhamento do desenvolvimento e da aprendizagem e como subsídio para a reflexão e continuidade da própria prática pedagógica. Neste percurso, compreende-se que uma ação pressupõe a outra, constituindo um movimento cíclico de mobilização de saberes docentes que as permitam executá-las, não necessariamente na mesma ordem, mas sempre com a finalidade de encontrar um sentido para a realização do processo avaliativo.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Quadro 2 Proposta de percurso para a avaliação na Educação Infantil 

Avaliar é uma prática tão antiga quanto o próprio ser humano, naturalmente as pessoas avaliam coisas, outras pessoas, situações e momentos que observam e reagem. Esta aproximação com o ato avaliativo não é nova, porém no contexto educativo deve se evitar o enfoque somente na subjetividade inerente a essas ações, embora seja impossível desconsiderá-la. É preciso conceber um ponto de equilíbrio entre o que nos constitui humanamente como seres que avaliam e o que se preconiza enquanto processo educativo, pois nossas impressões são geralmente insipientes e não muito adaptáveis a contratos formais (PARENTE, 2004).

Corroborando com tal perspectiva, apontamos Gauthier (1998) ao alertar que para que se tenha um ofício docente feito de saberes, não basta conhecer o conteúdo, ter talento, ter bom senso, seguir a intuição, ter experiência ou conhecer a cultura, é preciso identificar os saberes próprios ao ensino, levando em conta o contexto complexo e real no qual ele evolui. O autor ressalta os riscos que se corre com a cegueira conceitual que permeia os processos educativos, pois embora “o ensino já venha sendo realizado há séculos, é muito difícil definir os saberes envolvidos no exercício desse ofício, tamanha é a sua ignorância em relação a si mesmo” (GAUTHIER, 1998, p. 20).

No tocante a avaliação, quando relacionamos os saberes docentes (quadro 1) com o possível percurso para sua realização na Educação Infantil (quadro 2), é possível perceber que os saberes disciplinares, curriculares, da ciência da educação, da ação pedagógica e/ou pedagógicos, do conhecimento, humanos ou da interação, da humanização e criativos são inerentes ao processo e podem/devem ser mobilizados pelos/as professores/as. Quanto aos saberes da tradição pedagógica e experienciais ou da experiência, é pertinente uma ressalva, pois pautando-nos em Gauthier (1998), Pimenta (1997) e Tardif (2011), compreendemos que podem comportar representações enraizadas e equivocadas sobre o processo avaliativo, derivadas das experiências dos/as professores/as como alunos, de representações demasiadamente subjetivas acerca dos processos ou ainda de práticas da sua própria experiência docente que não sejam coerentes com a identidade da avaliação na Educação Infantil.

Contudo, é preciso esclarecer que os saberes da experiência ou da tradição pedagógica não devem ser desconsiderados, outrossim, devem ser socializados, analisados e, portanto, validados. Será por meio dessas ações que os/as professores/as poderão contribuir com o aprimoramento do processo.

A validação dos saberes docentes possibilita o alcance do conhecimento praxiológico situado, “que articula dialogicamente o sujeito e seu contexto para responder à complexidade do cotidiano pedagógico” (FOCHI, 2018, p. 26), pois,

A pedagogia organiza-se em torno de saberes que se constroem na ação situada, em articulação com as concepções teóricas (teorias e saberes) e com as crenças (crenças, valores e princípios). [...] Convocar crenças, valores e princípios, analisar práticas e usar saberes e teorias constitui o movimento triangular de criação da pedagogia. Dessa forma, a pedagogia sustenta-se em uma práxis, ou seja, em uma ação impregnada de teoria e sustentada por um sistema de crenças. Uma vez que a práxis é o lócus da pedagogia ela se torna o lócus para o desenvolvimento do conhecimento pedagógico (FORMOSINHO; OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2019, p. 27, destaques dos autores).

Para Formosinho e Oliveira-Formosinho (2019), é necessária a recusa tanto ao academismo, no qual a lógica dos saberes é o único critério para conhecer e desenvolver conhecimento, quanto ao empirismo, pautado somente na experiência do cotidiano, não ampliada, nem refletida. É no “entre-lugar”, complexo e diverso, que se situa a possibilidade de participação dos professores para a transformação das práticas. Defendida por Nóvoa (2017), esta perspectiva trata da constituição de um terceiro lugar para a formação de professores, vista como uma formação profissional universitária, que ocorre na zona de fronteira entre a universidade e as escolas com a “construção de um lugar de diálogo que reforce a presença da universidade no espaço da profissão e a presença da profissão no espaço da formação” (p. 1.116).

É indiscutível que prospectar a formação profissional tanto inicial quanto continuada, alicerçada no diálogo entre universidade e instituições educativas, com o desenvolvimento de pesquisas que partem de contextos concretos e ampliam considerações à luz de teorias, possibilitaria o conhecimento acerca do próprio ofício e, consequentemente do saberes docentes, necessidade apontada por Gauthier (1998) já destacada anteriormente.

Dito isso, consideramos que revelar o percurso de aprendizagem e desenvolvimento realizado pela criança implica, também, na mobilização de saberes relacionados à tomada de decisões, à consciência e coerência acerca do caminho a ser percorrido, à necessidade de lidar com os desafios e às incertezas que surgem, pois o processo não é linear e, acima de tudo, ao olhar a observação e a escuta aguçada das crianças para perceber os fatos relevantes, críticos, potenciais, nas manifestações e modos de agir delas e assim, proporcionar situações potencializadoras a partir do observado.

A mobilização de tais saberes pressupõe que os/as professores/as desenvolvam e exercitem constantemente tais habilidades, nos levando a refletir sobre quais são os espaços formativos para tanto? Para Rinaldi (2017, p. 138):

Nesse ponto, a questão que surge claramente é a educação dos professores: ela deve ser muito ampla e abranger diversas áreas do conhecimento, não apenas psicologia e pedagogia um professor cultivado tem não só formação multidisciplinar, como cultura da pesquisa, da curiosidade, do trabalho em grupo: a cultura do pensamento baseado em projetos. Acima de tudo precisamos de professores que se sintam realmente pertencentes e participantes desse processo como professores porém, mais ainda como pessoas.

De acordo com Oliveira-Formosinho (2014) a participação compartilhada de professores/as, crianças e famílias possibilita a criação de espaços, tempos e relações pedagógicas que “[...] valorizam a experiência, os saberes e as culturas das crianças em diálogo com os saberes e as culturas dos adultos [...]” (p. 195), contribuindo para que o conhecimento seja visto como significativo e confiável, pois é construído em conjunto e validado por aqueles que estão sendo investigados, ou seja, as próprias crianças.

A avaliação compreendida como processo permeado por diversas ações possibilita uma descrição rica, reflexiva e compreensiva acerca do que a criança viveu, manifestou e do que pode ou necessita ser ampliado. Nesse âmbito reside a gênese, o sentido da avaliação na Educação Infantil que utiliza a documentação pedagógica como estratégia e tem o acompanhamento como premissa, ou seja, tornar explícitas, visíveis e partilháveis as aprendizagens e o desenvolvimento da criança, por meio dos elementos de valor definidos durante o processo (RINALDI, 2017).

Para concluir as reflexões aqui apresentadas, destacamos a prudência do reconhecimento de que avaliar a aprendizagem e o desenvolvimento da criança, busca mobilizar um conjunto de saberes que permite aos/às docentes fazerem aproximações, atribuindo valor a determinadas aprendizagens dos bebês e crianças, com a consciência de que suas observações, registros e reflexões não alcançam a totalidade e a complexidade destas.

Considerações finais

Para que a Educação Infantil em nosso país firme posição de importância para a vida da criança e para a sociedade, precisamos também firmar nossa posição como docentes, afirmar nossos saberes diante das práticas que realizamos e, sobretudo, possuirmos clareza e conhecimento sobre os fins daquilo que fazemos. Como destaca Nóvoa (2017), buscar novos caminhos para pensar as instituições educativas e a própria educação demanda “integrá-los, sempre, a partir do lugar do conhecimento, pois sem isso tudo se torna volátil, enganador, etéreo, dificultando o esforço de educar” (p. 1.120).

Najmanovich e Lucano (2008), citam uma frase inquietante de Heinz von Foerster (1911-2002) para nos dizer que “todos tenemos una epistemologia pero no sabemos que la tenemos”. Diante das reflexões aqui apresentadas, alcançar a compreensão de que possuem conhecimentos que precisam ser valorizados e validados, significa a abertura de um caminho para a participação dos/as docentes na melhoria e/ou transformação das práticas, para que sejam vistos como agentes políticos e comprometidos com a transformação social e, consequentemente, para a melhoria da qualidade da educação na Educação Infantil como um todo.

Na defesa da educação democrática, voltada à garantia dos direitos das crianças e da valorização de seus/suas profissionais, apontamos a necessidade de uma “perspectiva organizacional de avaliação”, que auxilie as redes de ensino e os/as professores/as na orientação e realização do processo. Não se trata de um conjunto de procedimentos específicos, mas da reflexividade necessária para tornar possível, organizar e dar sentido aos procedimentos de avaliação e aos saberes docentes mobilizados para tal. Nesse contexto,

[...] reconhecer a documentação como ferramenta possível para a aferição e avaliação nos dá um “anticorpo” extremamente poderoso contra a proliferação de ferramentas de aferição e avaliação cada vez mais anônimas, descontextualizadas e só aparentemente objetivas e democráticas (RINALDI, 2017, p. 119-120).

Para tanto, o princípio da reflexividade cabe aqui como resposta à pergunta que apresentamos no início deste texto, sobre os saberes mobilizados pelos/as professores/as para realizar a avaliação na Educação Infantil, pois para além de definir um conjunto de saberes, importa compreender que o processo é permanente, contínuo e mesmo que se repita um número indefinido de vezes, sempre haverá aspectos a serem revisitados, tanto no percurso avaliativo adotado, quanto nos saberes mobilizados. Nesse movimento, outros questionamentos emergem e demonstram a importância dos saberes para a formação, atuação e desenvolvimento docente e a necessidade de encontrar o sentido da avaliação da aprendizagem e do desenvolvimento dos bebês e crianças, construir uma gramática da avaliação e uma literacia de avaliação, como defende Parente (2014).

Por fim, ressaltamos os limites deste estudo bibliográfico, que não contempla vozes reais dos professores e professoras envolvidas com o desafio da avaliação na Educação Infantil ano após ano, certamente um estudo empírico alcançará profundidade para articular efetivamente teoria e prática, pois como coloca Gauthier (1998, p. 28) “não podemos identificar, no vazio, os saberes próprios ao ensino; devemos levar em conta o contexto complexo e real no qual o ensino evolui, [...] saberes isolados corresponderão a formulação de um ofício que não existe”.

Referências

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1Optamos por refletir sobre três principais documentos que fazem referências específicas a avaliação “na” Educação Infantil, porém, documentos que articulam a discussão entre avaliação “na” e “da” também compõem as bases de orientações legais sobre a temática.

2As atividades denominadas “pedagógicas” abarcam especialmente: jogos dirigidos, colagens, recortes e desenhos coletivos, contação de histórias e atividades voltadas ao ensino da leitura e da escrita. De maneira equivocada as atividades “pedagógicas” são compreendidas como as únicas que ensinam algo para as crianças (BUSS-SIMÃO, 2014), quando na Educação Infantil, as aprendizagens ocorrem a todo o momento na vida cotidiana da instituição.

3Segundo Fochi (2020), a construção da BNCC se deu em meio a uma agenda política peculiar, o documento homologado passou por quatro versões. Na versão homologada, apesar da tentativa de mudança de rumo que estava sendo dada ao documento, graças à luta travada por movimentos sociais e por pesquisadores ocorreu a manutenção de muitos dos conceitos e ideias defendidos e amplamente discutidos nas primeiras versões.

4Segundo Barbosa; Delgado; Tomás (2016), embora possuam diferenciações no tocante às metodologias de investigação, às perspectivas teóricas que definem os conceitos e à análise de dados, os Estudos da Infância (conceitual) e os Estudos da Criança (aqui e agora) compartilham um mesmo objeto de estudos, amparados pelos pressupostos da centralidade da criança na investigação, a alteridade infantil, a dimensão geracional, e, o caráter interdisciplinar da investigação com crianças.

5Além do planejamento, observação, registro e reflexão, podemos acrescentar como dimensões da prática pedagógica na Educação Infantil, os tempos (rotina), os espaços, os materiais, a articulação entre educação e cuidado, a escuta, as interações, a brincadeira, a jornada parcial ou integral, entre outros.

6Dentre eles: Pimenta, Tardif, Lessard e Lahaye.

7Tardif (2011) apresenta os saberes humanos ou da interação somente no início da obra e acaba não retornando a eles no decorrer do livro, porém consideramos relevante apontá-los pela importância que os valores, a ética e modos de interação com os alunos têm sobre o processo de avaliação.

8Consideramos como práticas da Educação Infantil tanto as ações relacionadas aos projetos/temas de trabalho desenvolvidos com as crianças quanto as ações que integram a vida cotidiana da instituição: chegadas, saídas, sono, alimentação e higiene.

Recebido: 21 de Outubro de 2022; Aceito: 06 de Janeiro de 2023

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