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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.76 Curitiba ene./mar 2023  Epub 05-Abr-2023

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.076.ao02 

Artigos

Construção de uma falsa consciência da realidade: as Fake News à luz de Antonio Gramsci

Construction of a false awareness of reality: the Fake News in the light of Antonio Gramsci

Construcción de una falsa conciencia de la realidad: las Fake News a luz de Antonio Gramsci

Patricia Helena de Ribeiro Munhoz Costaa 
http://orcid.org/0000-0002-7138-9653

Peri Mesquidab 
http://orcid.org/0000-0003-4882-6808

aPontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil. Doutoranda em Educação, e-mail: patriciamunhoz0207@gmail.com.

bPontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil. Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Genebra, e-mail: mesquida.peri@gmail.com.


Resumo

Este artigo tem como referência parte de um capítulo da dissertação de mestrado em Educação intitulado jornalismo e comunicação educativa: formação da consciência política à luz do pensamento de Paulo Freire, Antonio Gramsci e Célestin Freinet, de Patricia Helena de Ribeiro Munhoz Costa, 2021. O objetivo é demonstrar como o pensamento gramsciano pode auxiliar na compreensão dos processos e consequências da produção de Fake News no mundo contemporâneo, e compreender a seguinte exigência de Gramsci (1991): de uma escola ligada à vida, para então, analisar um possível caminho para a educação do século XXI, no sentido da formação dos sujeitos para uma realidade permeada de falsos discursos, os quais buscam criar uma falsa consciência da realidade. O percurso metodológico da pesquisa é guiado pela Hermenêutica que nos ajuda a compreender as narrativas em seus dizeres e silêncios que produzem uma concepção de mundo, a partir de uma relação que ultrapassa o tempo, aproximando uma discussão da atualidade com o pensamento de Antonio Gramsci. Assim, o aporte teórico se concentra em três grandes intelectuais que dialogam: Gramsci (1991 e 2000), Freire (1979; 1986 e 2019) e Martí-Barbero (2014). Ao concluir o artigo, acreditamos ter compreendido a urgência de refletir e discutir em profundidade o que permeia a produção de Fake News e os impactos diretos na formação dos sujeitos, a qual se depara constantemente com falsos discursos da realidade. Além da necessidade de introduzirmos práticas educomunicativas, tanto na educação formal quanto informal.

Palavras-chave: Fake News; Falsa consciência; Gramsci; Jornalismo Pedagógico; Pedagógico; Educomunicação

Abstract

This article has as reference one chapter of a master's thesis in Education (2021). The aim is to prove how the Gramscian thought may assist in understanding the process and implications of producing Fake News in the contemporary world, and to understand the following Gramsci (1991) requirement: a school connected to the life. To then analyze a possible way to 21st century education, towards the subject's formation to a reality permeated with false speeches, which seek to create a false awareness of reality. The methodological path of research is guide by hermeneutics that help us to understand the narratives in their sayings and silence, which produce a conception of the world, from a relationship goes beyond time approaching a current discussion with Antonio Gramsci’s thought. Thus, the theoretical contribution focuses on three great intellectuals who dialogue: Gramsci (1991 e 2000), Freire (1979; 1986 e 2019) and Martín-Barbero (2014). We concluded with this paper that it is urgent to reflect and debate deeply what permeates the production of Fake News and the direct impacts on the formation of subjects, which is constantly with false speeches about reality. In addition to the need to introduce educommunicative practices, both in formal and informal education.

Keywords: Fake News; False consciousness; Gramsci; Pedagogical Journalism; Educommunication

Resumen

Este artículo se basa en una parte de un capítulo de la disertación de maestría en educación. Su objectivo es demonstrar cómo el pensamiento de Gramsci pude ayudar a comprender los procesos y consecuencias de la producción de Fake News en el mundo contemporáneo, y comprender lo siguiente requisito de Gramsci(1991): de una escuela vinculada a la vida. Luego, enprender una búsqueda de un camino posible para la educación del siglo XXI, en el sentido de la formación de los sujetos para una realidad impregnada de falsos discurso que buscan crear una falsa conciencia de la realidad. El camino metodológico de la investigación está pautado por la Hermenéutica que nos ayuda a comprender las narrativas en sus dichos y silencios que producen una concepción del mundo, desde una relación que va más allá del tiempo presente con el pensamiento de Antonio Gramsci. Así, el aporte teórico está centrado en tres intelectuales que dialogan: Gramsci (1991 y 2000), Freire (1979; 1986 y 2019) y Martín Barbero (2014). Al final del artículo, creemos haber comprendido la urgencia de reflexionar y discutir en profundidad lo que permea la producción de Fake News y los impactos directos en la formación de personas que se enfrentan constantemente a falsos discursos de la realidad. Además de la necesidad de introducir prácticas educomunicativas, tanto en la educación formal como informal.

Palabras clave: Fake News; Falsa conciencia; Gramsci; Periodismo Pedagógico; Educomunicación

[...] a multiplicidade de críticas, pelo contrário, é a prova de que se está no bom caminho; quando, ao invés, for um só o motivo da crítica, então deve-se refletir (GRAMSCI, 1991, p. 180).

Introdução

Este artigo surge a partir de um capítulo da dissertação de mestrado em Educação. Tem como intuito demonstrar como o pensamento gramsciano pode auxiliar na compreensão dos processos e consequências da produção de Fake News no mundo contemporâneo, e compreender a seguinte exigência de Gramsci: necessitamos de uma escola ligada à vida (GRAMSCI, 1991).

O percurso metodológico da pesquisa é guiado pela Hermenêutica, método que permite uma interpretação contextualizando o objeto de pesquisa a partir da linguagem e do discurso, atribuindo sentido aos significados. “É primeiro e sempre na linguagem que vem exprimir-se toda a compreensão ôntica e ontológica” (RICOUER, 1989, p. 13).

Para tanto, fazemos uma análise interpretativa comparando os escritos de Gramsci com a pesquisa da Fiocruz (2020) que revela dados sobre a propagação de Fake News na contemporaneidade, em relação à Covid-19:

Conduzido pelas pesquisadoras da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), Claudia Galhardi e Maria Cecília de Souza Minayo, um recente estudo apontou as principais redes sociais propagadoras de notícias falsas sobre o novo coronavírus no Brasil. A pesquisa, que analisou denúncias e notícias falsas recebidas pelo aplicativoEu Fiscalizoentre 17 de março e 10 de abril, mostra que as mídias sociais mais utilizadas para disseminação de fake news sobre o novo coronavírus foramInstagram,FacebookeWhatsApp (FIOCRUZ, 2020).

Na última seção, pretendemos analisar um possível caminho para a educação do século XXI, no sentido da formação dos sujeitos para uma realidade permeada de falsos discursos, os quais buscam criar uma falsa consciência da realidade. Enxergamos este caminho nas práticas educomunicativas, tendo como norte referencial o intelectual Martín-Barbero, que tem como base de sua pesquisa sobre a Educomunicação os dois principais intelectuais abordados ao longo desta pesquisa: Paulo Freire e Antonio Gramsci.

A partir destes intelectuais construímos ao longo do artigo a concepção gramsciana de jornalismo pedagógico e demonstramos a sua relevância social e política para a transformação da vida em sociedade, pois todo discurso projeta algo que será refletido na vida prática dos cidadãos. A questão é desenvolvermos, como cidadãos do mundo, uma consciência do funcionamento desses meios de propagação política e uma reflexão crítica para uma vida voltada à práxis no sentido freireano, ou seja, mente e corpo trabalham juntos para a humanização da lógica organizacional de uma sociedade democrática.

O papel social e humano do Jornalismo

A História da Humanidade é desenvolvida pela linguagem, pelas formas de comunicação e socialização, campos que estão no âmbito cultural do mundo. É por meio das linguagens que estabelecemos os relacionamentos humanos que são intrinsecamente sociais. Nesta tríade cultura - comunicação - linguagem está a Informação.

Na contemporaneidade, o campo da Informação ganha evidência entre a população, se tornando, em certa medida, democrático. Este campo está diretamente relacionado ao Jornalismo, que é um empreendimento e, também, um espaço de luta social, política e econômica. Para alguns intelectuais o Jornalismo deve ser sempre combativo, investigativo e com clara posição ideológica. Gramsci (2000), intelectual italiano do século XX, afirma que o jornal pode defender orientações políticas, econômicas-sociais e/ou científicas.

Um exemplo didático que marca a História do Jornalismo Brasileiro é a imprensa brasileira na Ditadura Militar. Devido à forte censura exercida pelo governo ditatorial em relação aos grandes meios de comunicação, jornalistas iniciaram a imprensa alternativa. Alguns desses jornais são: Pif-Paf, Opinião, Movimento, Em Tempo, Versus Bondinho, O sol e O Pasquim (SEABRA, 2006). Os jornalistas denunciavam as barbáries da ditadura e contavam com as verdades para incitar a população a uma reação contra a ação violenta imposta pelo governo-ditatorial.

Este período da nossa história corrobora com a visão gramsciana na qual todo tipo de imprensa deve ser compreendido como partido, ou seja, é um meio de propagar ideologias1. Nesta linha de pensamento, podemos afirmar que não há imparcialidade no Jornalismo, pois toda produção humana é impregnada de uma concepção de mundo pessoal e social, no mínimo.

Seabra (2006) diz que a função do jornalismo político é informar, formar opinião e fiscalizar. O primeiro está diretamente relacionado aos fatos: informar é dizer o que, como, onde, quando, com quem e por que algo aconteceu. O segundo já entra no campo mais subjetivo do que é ser humano em sociedade: formar opinião é um poder intrínseco à mídia. Por fim, o fiscalizar se refere aos outros poderes; o Jornalismo precisa estar à serviço do povo para mostrar aquilo que é de interesse público e cobrar resoluções governamentais para as necessidades da população.

Também podemos afirmar que o Jornalismo possui um sentido pedagógico de “escola de propaganda política” 2 (Gramsci, 2000). Sendo também práxis quando os sujeitos agem conscientes da posição social que ocupam e a favor da luta pela democracia e liberdade humana.

[...] o homem é homem e o mundo é histórico-cultural na medida em que, ambos inacabados, se encontram numa relação permanente, na qual o homem, transformando o mundo, sofre os efeitos de sua própria transformação (FREIRE, 1979b, p. 76).

Freire (1980) dialoga com Gramsci e sua concepção sobre o jornalismo pedagógico. Na visão freireana, faz-se essencial uma educação que vença a falta de criticidade nos diálogos e na qual predomine a humanização no processo de ensino e aprendizagem. Para ambos os intelectuais, tanto a Educação quanto o Jornalismo são espaços de intervenção intelectual que se desenvolvem dentro de uma concepção de mundo. Ambos os campos devem instigar os sujeitos para novas maneiras de pensar e agir.

Por que razão os jornais se manifestam de forma diferente sobre um mesmo fato? Que o povo então desenvolva o seu espírito crítico para que, ao ler jornais ou ao ouvir o noticiário das emissoras de rádio, o faça não como mero paciente, como objeto dos “comunicados” que lhes prescrevem, mas como uma consciência que precisa libertar-se. (FREIRE, 2019, p. 164)

Para haver uma intervenção no mundo, parte-se de uma consciência do funcionamento das estruturas ideológicas de uma sociedade democrática, sendo que o jornalismo faz parte dessas estruturas, de acordo com Gramsci:

a imprensa é a parte mais dinâmica desta estrutura ideológica, mas não a única: tudo o que influi ou pode influir sobre a opinião pública, direta ou indiretamente, faz parte dessa estrutura. Dela fazem parte: as bibliotecas, as escolas, os círculos e os clubes de variado tipo, até a arquitetura, a disposição e o nome das ruas (GRAMSCI, 2000, p. 78).

O que não implica na imposição de ideias e visões de mundo, e sim no papel essencial que a impressa deve exercer de incitar a reflexão, o questionamento e a constante busca pela democracia, liberdade de expressão e desenvolvimento pessoal e, consequentemente, da sociedade. Assim, faz-se necessário um olhar crítico para as diferentes formas de se estabelecer uma comunicação, os espaços de diálogo, a linguagem e a produção de notícias sobre o mundo, a humanidade. Este é o posicionamento que observamos no pesquisador e jornalista Ijuim (2005) ao afirmar:

o compromisso do comunicador envolve a observação e reflexão de mundo, de modo que, percebendo-o, possa expressá-lo. Não lhe cabe, portanto, somente a função técnica, mas a função social de comprometer-se com o mundo, de reconhecer que sua autoria responsável deve ser fruto do diálogo social, de sua cumplicidade/solidariedade com o público- os outros seres humanos (IJUIM, 2005, p. 42).

A educação dos sujeitos-cidadãos precisa estar atrelada ao desenvolvimento de um olhar reflexivo e humanizado para toda a subjetividade presente nas notícias e na maneira como os sujeitos se posicionam no mundo, particularmente no mundo digital.

De um lado há o trabalho jornalístico e o poder da mídia, do outro lado há a produção em massa de Fake News que, nos últimos anos, apareceram constantemente na mídia e nas redes sociais. Este movimento se tornou rapidamente pauta constante no campo da educação, do jornalismo e em outros espaços de sociabilidade. Os brasileiros se viram com dificuldade para separar o que é informação, o que é opinião e o que é falso.

Em tempos voltados ao mundo digital, faz-se ainda mais necessário o debate reflexivo sobre o que são os meios de comunicação, as redes sociais e como as relações humanas se estabelecem pelo e com o mundo digital. É preciso questionar, ato que requer um grande esforço mental e que parece estar cada vez mais ausente na vida em sociedade.

A ausência de questionamento e reflexão se comprova ao observarmos os embates ideológicos e discursos raivosos e vazios de sentido nas redes sociais.

O que está errado com a sociedade em que vivemos, disse Cornelius Castoriadis, é que ela deixou de se questionar. É um tipo de sociedade que não mais reconhece qualquer alternativa para si mesma e, portanto, sente-se absolvida do dever de examinar, demonstrar, justificar (e quem dirá provar) a validade de suas suposições tácitas e declaradas (BAUMAN, 2001, p. 30).

A questão central é refletir e debater sobre a significação dos meios de comunicação e sua influência na vida social dos sujeitos. Ressaltamos também o papel das redes sociais digitais como poder democratizador que possibilita a propagação dos mais diversos discursos por todos e qualquer pessoa. Incluímos aqui os discursos de falsa consciência da realidade.

A construção de uma falsa realidade

As Fake News são narrativas completamente falsas ou parcialmente falsas dos fatos. É essencial ressaltar que as falsas notícias não estão necessariamente atreladas ao Jornalismo, pois muitos dos casos estão nas redes sociais digitais (Facebook, Instagram, WhatsApp).

Essas notícias falsas têm como objetivo a construção de uma falsa realidade do mundo. Pesquisa realizada pela Escola Nacional de Saúde Pública (FIOCRUZ, 2020)3 aponta que 10,5% das notícias falsas sobre a pandemia da Covid-19 foram publicadas no Instagram, 15,8% no Facebook e 73,7% no WhatsApp. O estudo também revela uma das características que dificultam a percepção de ser ou não uma falsa narrativa, que é o uso de fontes confiáveis - geralmente instituições e organizações oficiais - ao longo da narrativa com o intuito de validar uma falsa informação.

71,4% das mensagens falsas circuladas peloWhatsAppcitam a Fundação (Fiocruz) como fonte de textos sobre a Covid-19 e com medidas de proteção e combate à doença. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), juntas, somam 2% das instituições citadas como fonte de informações sobre cuidados e medidas contra o novo coronavírus em mensagens deWhatsApp (FIOCRUZ, 2020).

Esta questão influencia diretamente o papel do Jornalismo na sociedade. Gramsci afirma que o jornalismo deve estar aliado à verdade. Em grego, a palavra é alethéia (a + lethis), sendo que “a” é negação, e “lethis” significa mentira, falsidade. Logo, na visão gramsciana, a verdade é a negação da mentira.

Nesta perspectiva, se o papel do Jornalismo é negar a mentira, é - ou deve ser -, por fim, o combate às Fake News que circulam principalmente no mundo digital, as quais manipulam a consciência da massa e incitam ao caos social, como vivenciamos na prática as consequências das Fake News sobre a Covid-19 ao longo dos anos 2020 e 2021.

Assim, há uma necessidade de humanização dos processos de comunicação e produção de informações que possuem a potência de se transformarem em conhecimento elaborado em prol da democracia e da humanidade. Um jornalismo humanizado deve ser essencialmente um jornalismo pedagógico, que compreende o próprio poder perante uma sociedade e faz uso de suas ferramentas para alavancar o desenvolvimento da consciência sociopolítica dos sujeitos.

[...] compromisso com o mundo, que deve ser humanizado para a humanização dos homens, responsabilidade com estes, com a história. Este compromisso com a humanização do homem, que implica uma responsabilidade histórica, não pode realizar-se através do palavrório, nem de nenhuma outra forma de fuga do mundo, da realidade concreta, onde se encontram os homens concretos. O compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a realidade (FREIRE, 1979a, p. 18).

O Jornalismo tem papel central na elaboração de uma concepção de mundo, a qual se forma coletivamente devido ao poder de disseminação de narrativas que moldam a realidade. Logo, o Jornalismo pode afirmar a mentira ou denunciar e anunciar a verdade, ainda que esta tenha o seu grau de subjetividade. O fazer jornalístico está fundado nas certezas e na acumulação de verdades. À vista disso, pode controlar e até definir códigos socioculturais.

Com Ricoeur (1989), afirmamos que precisamos de uma educação (formal e informal) voltada ao desenvolvimento dos sujeitos do mundo, ou seja, com propósito de compreender o real por meio da construção de narrativas que buscam as verdades na subjetividade do olhar humano ao mundo.

Assim, o tornar-se-sujeito toma o duplo aspecto de um tornar-se consciente e de um tornar-se-Eu, isto é, de um tornar-se vigilante, na fronteira do princípio de prazer e de Realidade, e de um tornar-se senhor na encruzilhada de um complexo de forças. (RICOEUR, 1989, p. 235, grifo do autor)

Existe nesta vertente, uma percepção crítica do mundo e do próprio ser humano em sua totalidade, considerando sua subjetividade, contradições e distorções do real. Isso significa, também, a compreensão da complexidade do ser humano, que é atravessado, sempre e sem exceção, por uma concepção de mundo. A questão é: que concepção de mundo está se formando no imaginário coletivo brasileiro?

Esta é uma pergunta que não poderemos responder com exatidão em um artigo, mas é possível refletir e definir alguns aspectos que influenciam fortemente a concepção de mundo do brasileiro contemporâneo.

Concepção de mundo para uma práxis da vida

Em um mundo cada vez mais avançando nas tecnologias, em pleno século XXI, nota-se, a partir de uma análise empírica sobre o meio em que vivemos e os relacionamentos humanos que estabelecemos ao longo da vida - família, amigos, estudos, trabalho, consumo, cultura e etc. -, uma grande distorção da realidade, uma aceitação a explicações simplistas sobre os problemas mundiais e um posicionamento de superficialidade no discurso mascarado como subjetivo - ou o tão usado “mas é a minha opinião”.

Observamos este fenômeno na sociedade brasileira dialogando com três campos que historicamente possuem um relacionamento de disputa de poderes: o político, o comunicacional e o educacional. Estes se movimentam dentro do campo cultural.

No campo comunicacional está a maneira como nos relacionamos em sociedade, nos determinados espaços privados e públicos. No campo educacional está a nossa formação humana e cidadã. Já o campo político é mais subjetivo, pois não se trata apenas da organização político-partidária de uma nação. Vai além porque é sobre a maneira como nos colocamos no mundo, a qual envolve a relação entre mente e corpo.

A força expansiva, a influência histórica de uma nação, não pode ser medida pela intervenção individual de pessoas singulares, mas pelo fato de que estas pessoas singulares expressem consciente e organicamente um bloco social nacional (GRAMSCI, 1991, p. 67).

Para tanto, é preciso desenvolver as mentes dos sujeitos para uma consciência crítica e criativa voltada ao social e à totalidade da vida humana no Planeta Terra. Isto é, uma consciência da importância dos atos individuais que impactam a sociedade, da preservação do planeta para a própria sobrevivência da espécie humana e da necessidade do desenvolvimento intelectual de todos para possibilitar maior qualidade de vida para nós e para as próximas gerações.

Este é um processo de educação que se inicia com o nascimento e termina com o fim de cada vida. Ou seja, a educação é a própria vida e acontece em todos os espaços, não se limitando a paredes e horários predeterminados. Por isso, Gramsci (1991, p. 133) diz: “retorna-se à participação realmente ativa do aluno na escola, que só pode existir se a escola for ligada à vida”.

Logo, na perspectiva gramsciana, deve-se formar uma nova cultura, atrelada à criticidade dos meios e das relações estabelecidas com o outro e com os espaços sociais. Gramsci completa essa ideia dizendo,

que uma massa de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de modo unitário a realidade presente é fato ‘filosófico’ bem mais importante e ‘original’ do que a descoberta da parte de um ‘gênio’ filosófico de uma nova verdade que permanece patrimônio de um pequeno grupo de intelectuais (GRAMSCI, 1975, p. 1378).

Gramsci, como jornalista que lutou contra o fascismo italiano com suas ideias colocadas no papel, compreendia o fazer jornalismo para muito além do ato de informar. Segundo o intelectual, o Jornalismo tem um papel pedagógico e, portanto, um papel/poder político.

Gramsci também discorre em Cadernos do Cárcere sobre uma educação alinhada à sua concepção de mundo. Usa o termo escola unitária para defender a necessidade de uma escola que busca a formação de uma visão integral dos sujeitos do mundo. A escola, na visão gramsciana, deveria proporcionar um olhar para a palavra que revela o mundo, compreende o ser cidadão e faz o sujeito denunciar e anunciar a própria palavra. Outro conceito gramsciano é o Círculo de Cultura, o qual objetiva o desenvolvimento dos sujeitos no coletivo e na totalidade para uma ação cidadã no mundo, compreendendo os próprios deveres e direitos em sociedade.

Paulo Freire tinha um pensamento semelhante em relação à Educação; “hoje, digo que a educação tem a qualidade de ser política, o que modela o processo de aprendizagem. A educação é política e a política tem educabilidade” (FREIRE, 1986, p. 85). Ambos os intelectuais possuíam uma concepção de mundo para uma educação que desenvolve a consciência crítica.

Tanto o Jornalismo quanto a Educação impactam vidas e, por isso, não podem ser neutros e devem ter como objetivo principal o combate às falsas narrativas que buscam uma colonização das mentes.

Um campo de diálogo e prática: Educomunicação

O campo da Educomunicação é relativamente novo, sendo teorizado a partir de novas práticas educativas exercidas por um grupo de professores que estudou e buscou novas maneiras de criar um espaço de aprendizagem. Este grupo teve como base teórica a Pedagogia Freireana e se consolidou como campo de intervenção social (SOARES, 2011), em 1999, para estudo de novas práticas e pesquisa científica.

Na América Latina, o maior protagonista deste campo de pesquisa é Martín-Barbero. A partir do diálogo entre Freire e Gramsci, compreende a comunicação como um movimento social e, ao mesmo tempo, de embate cultural.

[...] apoiado na análise de Freire sobre a opressão interiorizada pelas sociedades latino-americanas, inseria essa análise na concepção gramsciana de hegemonia como processo vivido, isto é, feito não somente de forças, mas de sentidos (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 21).

As práticas educomunicativas buscam introduzir no processo de ensino e aprendizagem - independentemente se é uma educação formal ou informal, ainda que suas práticas sejam mais comuns em espaços informais de ensino - o desenvolvimento de um olhar reflexivo e mais humano para os problemas da sociedade e do mundo, e ações ativas dos sujeitos do mundo. Ou seja, a Educomunicação trabalha com o desenvolvimento da práxis humana, em um sentido essencialmente freireano.

Este campo de conexão entre Educação e Comunicação prioriza a aprendizagem para uma análise crítica e humanizada dos discursos produzidos para a formação da história. Logo, há uma preocupação com a linguagem e a forma de se comunicar, pois toda narrativa possui uma intenção e, por isso, a comunicação é um campo de poder político e capital social.

Inicialmente, as diversas linguagens são ferramentas de poder humano utilizadas para a construção da história, da nossa história. Esta construção pode ser um movimento de busca pela verdade. Neste sentido, é um movimento contínuo de descobertas e de análises interpretativas da realidade, mas, na contramão, pode ser uma construção de falsa realidade, a qual geralmente busca favorecer um grupo em detrimento de outro. Destacamos o conceito gramsciano de aparelhos privados da sociedade civil, em específico a escola, que possui papel essencial de formação de um tipo de intelectual capaz de realizar uma “reforma intelectual e moral” (GRAMSCI, 1975, p. 1044).

Martín-Barbero aborda a questão da linguagem como expressão do ser e do se fazer existir em sociedade, sendo essencial refletir sobre a linguagem dentro do campo educacional e comunicacional na perspectiva gramsciana que tem na escola unitária uma:

Organização e disciplina do próprio eu interior, apropriação da própria personalidade, conquista da consciência superior, e é graças a isso que alguém consegue compreender seu próprio valor histórico, sua própria função na vida, seus próprios deveres e seus próprios direitos (GRAMSCI, 1976, p. 75).

Percebemos uma aproximação entre a proposta de Gramsci com a escola unitária e a vertente de Martín-Barbero para a Educomunicação. Dialogando com a atualidade, afirmamos que ambas as visões podem servir como combate à dinâmica das Fake News.

Ao mesmo tempo que é ação, a linguagem é expressão. Expressão entendida não como uma função particular da linguagem, nem como um tipo de discurso frente aos outros, mas como sua potência primordial: a de fazer existir a significação. Daí que estudar a expressão não consiste em buscar a informação que ela pode oferecer sobre um mundo interior e escondido do sujeito, mas buscar a maneira como o sujeito habita a palavra, dar conta da experiência que o falar é para o sujeito (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 35).

Esta é uma das vertentes da Educomunicação, sendo que existem outras como, por exemplo, a mais voltada para o uso das tecnologias e que o professor Ismar de Oliveira Soares é referência com seu grupo de pesquisa na USP. Independentemente disso, as práticas educomunicativas possuem como norte central a formação dos sujeitos para o exercício pleno da cidadania sempre no sentido da construção e aperfeiçoamento da sociedade democrática.

Considerações finais

Podemos pontuar algumas considerações centrais elaboradas a partir desta pesquisa. A primeira é que tanto o campo jornalístico como o campo educacional possuem a potência de transformação das mentes e, consequentemente, das práticas desenvolvidas pelos cidadãos.

Portanto, em uma perspectiva gramsciana, ambos os campos devem trabalhar contra a mentira. Ainda que o intelectual italiano fale em uma verdade no singular, acreditamos, no sentido filosófico da palavra, que seja mais coerente pensarmos em uma busca contínua por esta verdade, a qual não significa necessariamente alcançá-la. Significa sempre tentar construir o cenário mais próximo possível da realidade a partir de verdades.

Este é um trabalho de oposição às Fake News, as quais são essencialmente falsas narrativas da realidade e que possuem um claro objetivo de construir uma falsa realidade do mundo. Ressaltamos, ao longo desta pesquisa, que as notícias falsas não precisam estar diretamente atreladas ao trabalho jornalístico, pois como a pesquisa da Fiocruz revela, grande parte dessas narrativas estão nas redes sociais digitais, como Instagram, Facebook e WhatsApp.

A partir deste dado e da primeira consideração, estabelecemos a segunda consideração, que é a relevância do pensamento gramsciano neste contexto contemporâneo, no qual somos bombardeados por informações o tempo inteiro e além de termos o papel de assimilar os acontecimentos do mundo, ainda precisamos filtrar as falsas notícias. Nesta perspectiva, o intelectual italiano ajuda na compreensão de que todo discurso possui uma intenção e uma concepção de mundo, sendo, dessa maneira, necessário identificar esses aspectos presentes nas narrativas construir um pensamento analítico-crítico.

Logo, entendemos essas narrativas como uma construção ideológica da falsa realidade do mundo. Para Gramsci, existem diferentes conceitos para a palavra ideologia. Ressaltamos o conceito de ideologias arbitrárias que são a falsa consciência. Outro termo trabalhado pelo intelectual é a hegemonia ideológica, a qual consiste na formação de um consenso de pensamento coletivo, ou seja, um conformismo em relação aos fenômenos simbólicos do centro hegemônico.

Neste sentido, evidenciamos o papel do jornalismo pedagógico na vida contemporânea como combate às Fake News. Ainda que as narrativas jornalísticas sejam sempre um recorte da realidade e uma construção que possui uma perspectiva subjetiva do mundo, devem buscar constantemente a realidade, compreendendo e transmitindo os acontecimentos, colocando em pauta assuntos que modelam a dinâmica de uma sociedade e incitando o pensamento reflexivo e o questionamento nas massas.

Por fim, pontuamos uma terceira consideração que é a relevância das práticas educomunicativas no sentido de buscar formas de aprendizagem voltadas à compreensão do que são as falsas notícias, para que servem e como servem a um grupo ou mais dentro de uma sociedade.

A Educomunicação possui diferentes vertentes. Na presente pesquisa, demonstramos como a Educomunicação abordada por Martín-Barbero é uma prática inovadora e voltada para um ensino e aprendizagem que prioriza o desenvolvimento do pensamento crítico dos sujeitos, com uma leitura crítica do mundo, questionando e buscando soluções para problemas reais da vida. A partir das práticas educomunicativas, na perspectiva de Martín-Barbero, é possível desenvolver um olhar reflexivo e mais humano perante a sociedade e seus problemas.

Ou seja, a Educomunicação trabalha com o desenvolvimento da práxis humana, em um sentido essencialmente freireano. Assim, podemos começar a trabalhar no sentido de busca da verdade, combatendo as Fake News com pensamento reflexivo-crítico, consciência crítica e autonomia da mente e do corpo.

Necessitamos de um Educação como movimento contrário ao das Fake News, um movimento de resistência para o desenvolvimento da consciência sociopolítica dos sujeitos.

Referências

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SOARES, I. de O. Educomunicação: o conceito, o profissional, a aplicação (contribuições para a reforma do Ensino Médio). 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2011. [ Links ]

1Para conceituarmos a palavra ideologia em Gramsci, traduzimos livremente trecho do livro Quaderni del cárcere: Um elemento de erro na consideração do valor da ideologia me parece que se deve ao fato (fato que não é causal) que se dá o nome de ideologia seja à superestrutura necessária de uma determinada estrutura, seja às elocubrações arbitrárias de determinado indivíduo. O pior sentido da palavra passou a ser difundido e se modificou e se perdeu sua natureza no que diz respeito à análise teórica do conceito de ideologia. O processo desse erro pode ser facilmente reconstruído: 1º) se identifica a ideologia como diferente da estrutura e afirma que as ideologias não mudam as estruturas, mas vice-versa (ao contrário); 2º) afirma que uma certa solução política é 'ideológica' quer dizer que é insuficiente para mudar a estrutura, enquanto se creia que se pode mudar algo se torna inútil, estúpido (a ideologia não tem o poder de mudança); 3º) se passa a afirmar que toda ideologia é 'pura' aparência, inútil, estúpida, etc. (falsa consciência?, perguntamos). É necessário distinguir entre ideologias historicamente orgânicas que são necessárias para uma certa estrutura, ideologias arbitrárias, racionalistas, "desejadas'. As ideologias arbitrárias não creem em movimentos individuais, polêmicos não são completamente inúteis até porque são como o erro que se contrapõe à verdade (falsa consciência, eu diria) (GRAMSCI, 1975, p. 868-869).

2No pensamento gramsciano o termo propaganda política refere-se à construção humana a partir de uma determinada concepção de mundo. Esta deve ser clara tanto por quem a produz quanto para quem consome estes produtos. Assim, para Gramsci, a escola e o jornalismo são meios de propaganda política. Ou seja, são meios de construção da concepção de mundo dos sujeitos.

3A pesquisa foi conduzida pelas pesquisadoras Claudia Galhardi e Maria Cecília de Souza Minavo, que realizaram uma análise de denúncias e narrativas falsas recebidas no aplicativo Eu fiscalizo entre 17 de março e 10 de abril de 2020.

Recebido: 07 de Junho de 2022; Aceito: 08 de Dezembro de 2022

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