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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.77 Curitiba abr./jun 2023  Epub 15-Ago-2023

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.077.ao05 

Artigos

A natureza em Goethe: fonte constituidora da formação humana

Nature in Goethe: a constitutive source of human formation

La naturaleza en Goethe: fuente constitutiva de la formación humana

Eldon Henrique Mühl[a] 

Márcio Luiz Marangon[b] 
http://orcid.org/0000-0003-3020-4429

[a]Universidade de Passo Fundo (UPF), Faculdade de Educação. Passo Fundo, RS, Brasil, e-mail: eldon@upf.br

[b]Colégio Notre-Dame de Passo Fundo. Passo Fundo, RS, Brasil, e-mail: mlmarangon@yahoo.com.br


Resumo

A natureza exerce em Goethe uma função determinante na formação humana. O poeta alemão tem uma cosmovisão monista da realidade, considerando não existir matéria sem espírito e espírito sem matéria, opondo-se, portanto, à visão mecanicista, fragmentária e manipulativa expressa na visão cientificista da modernidade. A unidade entre natureza e espírito cumpre um papel nodal na sua teoria, pois parte da compreensão do mundo de uma forma abrangente e totalizadora. Em razão disso, a interação com a natureza não pode ser ignorada ou compreendida como uma ação manipulativa do sujeito sobre a mesma. O conhecimento nasce da inter-relação recíproca entre sujeito e natureza e a formação do ser humano depende do procedimento participativo que envolve a interação intensa e sensível com ela. Para tanto, o poeta afirma que é necessário desenvolver uma reflexibilidade criativa e crítica sobre a experiência em desenvolvimento. Considera que a Urform, a forma básica de que todas as coisas se originam, pertence à natureza, trazendo assim, uma importante e desafiadora contribuição para uma revisão da relação entre natureza e formação humana.

O resgate da compreensão da natureza de Goethe implica em discutir o próprio conceito de ser humano que está implícito em seus estudos e em sua arte.

Palavras-chave: Formação; Natureza; Goethe

Abstract

For Goethe, nature plays a decisive role in human formation. The German poet has a monist worldview of reality, considering that there is no matter without spirit and spirit without matter, opposing, therefore, the mechanistic, fragmentary and manipulative vision expressed in the scientific vision of modernity. The unity between nature and spirit plays a nodal role in his theory, since he starts from the understanding of the world in a comprehensive and totalizing way. Because of this, interaction with nature cannot be ignored or understood as a manipulative action of the subject over it. Knowledge is born from the reciprocal interrelation between subject and nature, and the formation of the human being depends on the participatory procedure that involves the intense and sensitive interaction with it. To this end, the poet states that it is necessary to develop a creative and critical reflexivity about the developing experience. He considers that Urform, the basic form from which all things originate, belongs to nature, thus bringing an important and challenging contribution to a revision of the relationship between nature and human formation. The rescue of Goethe's understanding of nature implies in discussing the very concept of human being that is implicit in his studies and in his art.

Keywords: Formation; Nature; Goethe

Resumen

Para Goethe, la naturaleza desempeña un papel decisivo en la formación humana. El poeta alemán tiene una cosmovisión monista de la realidad, considerando que no hay materia sin espíritu ni espíritu sin materia, oponiéndose, por tanto, a la visión mecanicista, fragmentaria y manipuladora expresada en la visión científica de la modernidad. La unidad entre la naturaleza y el espíritu juega un papel nodal en su teoría, ya que parte de la comprensión del mundo de forma global y totalizadora. Por ello, la interacción con la naturaleza no puede ignorarse ni entenderse como una acción manipuladora del sujeto sobre ella. El conocimiento nace de la interrelación recíproca entre el sujeto y la naturaleza y la formación del ser humano depende del procedimiento participativo que supone la interacción intensa y sensible con ella. Para ello, el poeta afirma que es necesario desarrollar una reflexividad creativa y crítica sobre la experiencia en desarrollo. Considera que la Urform, la forma básica de la que proceden todas las cosas, pertenece a la naturaleza, aportando así una importante y desafiante contribución a la revisión de la relación entre la naturaleza y la formación humana. El rescate de la comprensión de la naturaleza por parte de Goethe implica en la discusión el propio concepto de ser humano que está implícito en sus estudios y en su arte.

Palabras clave: Formación; Naturaleza; Goethe

“Oh, que inútil severidade da moral - exclamou - quando a natureza a seu modo amoroso, nos forma para tudo aquilo que devemos ser! Oh, as estranhas exigências da sociedade burguesa que primeiro nos confunde e nos desencaminha, para depois exigir de nós mais que a própria natureza! Pobre de toda forma de cultura que destrói os meios mais eficazes da verdadeira cultura e nos indica o fim, ao invés de nos tornar felizes no caminho, propriamente!” (GOETHE, 2006, p. 479).

Introdução

“A natureza ama ocultar-se”, diz Heráclito (In BORNHEIM, 1977, p. 43, Fragmento 123). Esta afirmação, de tom quase profético, antecipa uma percepção sobre o rumo que tomaria a discussão sobre a natureza no decorrer dos séculos, chegando à contemporaneidade, em que se tem produzido uma visão de quase desconsideração ou marcadamente reducionista sobre a função instituidora da natureza, tornando-a apenas como um ente a ser explorado conforme a utilidade definida pelo nosso poder explorador.

Não podemos negar, com efeito, que desde o surgimento da modernidade e do desenvolvimento do racionalismo científico, tem sido difícil à humanidade dobrar-se a uma discussão sobre “fontes desconhecidas” de sua existência e aceitar que tais fontes possam caracterizar ou moldar boa parte de suas ações. O racionalismo, de viés instrumental, diminuiu o espaço de discussão sobre aquilo que não pode ser conhecido a fundo ou em si mesmo, como é o caso da natureza. Por isso, a humanidade tem preferido controlar, medicar, manipular, ocultar ou até mesmo desconhecer o que é a natureza.

Isso levou a que na contemporaneidade se tenha tornado difícil esclarecer se a natureza “ama ocultar-se” ou se o receio do que ela possa efetivamente significar, fez a humanidade ocultá-la ou disfarçá-la. Ao desenvolver conceitos que a designam apenas parcialmente e sem a capacidade de um olhar mais profundo acerca de sua influência na constituição da realidade e da vida de cada ser humano, a humanidade tem promovido o distanciamento da natureza, limitando a compreensão sobre seu papel constituinte da condição humana.

Não podemos desconsiderar, porém, que historicamente surgiram iniciativas que apresentam visões diversificadas sobre o poder de ação da natureza e um certo encantamento ou medo diante dos fenômenos provocados por ela. Ainda que a concepção historicamente predominante seja a de que ela deva ser concebida como uma realidade que cabe ser manipulada e controlada pela racionalidade humana, é mister, contudo, considerar que existem muitas outras percepções sobre a relação entre homem e natureza. Neste sentido, não podemos esquecer os lampejos históricos que traduzem momentos de compreensão diferenciada, em que a humanidade se debruça sobre seus enlaces, e permite deleitar-se ou amedrontar-se diante do poder da natureza. Autores como Heráclito, Espinoza, Schopenhauer, Nietzsche, Humboldt, Goethe, foram alguns dos que ousaram não somente falar sobre o tema, como também, buscaram apontar importantes caminhos a serem trilhados para tornar possível decifrar as influências da natureza no cotidiano de cada um, vislumbrando a partir daí uma nova forma de encarar a natureza e seu significado no estabelecimento do sentido da própria existência humana.

Neste breve ensaio vamos retomar alguns aspectos desta discussão, buscando resgatar o sentido de natureza e sua interferência na formação humana. O texto tem como objetivo esclarecer a noção de natureza e natureza humana em Goethe e analisar as implicações desta concepção na formação humana. O deslumbramento do maior poeta alemão diante da mãe natureza (WULF, 2016), será uma fonte orientadora da reflexão aqui desenvolvida. De modo especial, será considerada a concepção de Goethe sobre a Urform1, pela qual ele identifica um certo poder instituidor da natureza, ainda que possa sofrer influências do contexto e do tempo. Para ele, existem afinidades eletivas2 entre o ser humano e a natureza, que faz com que se mantenha algum grau de unidade e uma força vital ativa da natureza, jamais superável. É a partir dele que alguns diálogos serão estabelecidos entre o conceito de formação e o papel da natureza, procurando apontar o significado desta relação na contemporaneidade.

Como metodologia, partimos de uma análise histórico-hermenêutica do conceito de natureza e de seu tratamento em algumas épocas e obras, para chegar a um momento indutivo a partir da concepção de Goethe, buscando apontar possíveis ligações contemporâneas com esta discussão e suas consequências para a formação na atualidade.

Os conceitos de natureza e natureza humana

A modernidade, dentre muitos outros acontecimentos, marca um processo de separação do ser humano da natureza. Esta separação foi, como afirma Burt,

um passo fundamental rumo à expulsão do homem do grande mundo da natureza e do tratamento dado ao homem como um efeito do que acontece em tal mundo, procedimento que se tornou uma característica bastante constante da filosofia da ciência moderna e que simplificou extraordinariamente o campo da ciência, mas que trouxe em seu bojo os grandes problemas metafísicos e especialmente epistemológicos da filosofia moderna (1983, p.71).

Fica explícito que no desenvolvimento da visão científica da modernidade, o conceito de natureza passa a ser entendido de forma suplementar nas reflexões dos pensadores, diferentemente da concepção de destaque que teve no início do pensamento ocidental. Entre os pré-socráticos, por exemplo, prevalece uma concepção de natureza que a considera um fator de essencial importância para a compreensão do mundo e da vida humana. Aristóteles, em sua obra Metafísica (2002), destaca esta visão definindo os pré-socráticos como physikoi, ou seja, os pesquisadores da physis (natureza). Logicamente, o termo physis na visão pré-socrática não significava apenas o que hoje denominamos de “física”, mas sim, uma realidade de fundamental importância para compreender o ser em sua totalidade.

Em sua expressão original, physis designa para os pré-socráticos “o processo de surgir e desenvolver-se em um constante e permanente movimento vital, confundindo-se com a própria força motriz de tal movimento” (IBAIXE JR., 2010, p.23). Ao retomar a concepção desses filósofos, podemos constatar a relação de physis como a arché, ou seja, com aquilo que é fundamental e continuamente presente nos acontecimentos da vida.

Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Empédocles, todos empenharam-se na busca por respostas às questões relativas à constituição da natureza (physis). Buscavam “princípios únicos a partir dos quais a natureza como um todo poderia ser constituída e/ou gerada, bem como seus diversos fenômenos explicados” (POLITO; FILHO, 2013, 334). Em outras palavras,

Em todos eles, a noção de physis está associada a alguma coisa que é fundamental e radical (constitui a base e a raiz) e que, possuindo o atributo da permanência, subjaz ao que é mutável e transitório. Esse princípio é, portanto, constitutivo, mas é também, dentro do pensamento milesiano, principalmente originário e formativo (gerativo) (POLITO; FILHO, 2013, p. 335).

No entender dos pré-socráticos, a physis não é um acontecimento que surge e se desenvolve ao “acaso”. Antes disso, ela esconde certa sequencialidade ou uma “lei” que, “independentemente da intervenção de quaisquer vontades, estabelece uma regularidade necessária no comportamento da natureza” (POLITO; FILHO, 2013, p. 336). Heráclito e Parmênides, apesar de suas divergências, identificam na phisys um mesmo princípio de que tudo é natureza e que nela todas as coisas e todos os seres encontram sua origem e sua dissolução.

A semente desta compreensão plantada pelos pré-socráticos não se restringe a eles, mas segue como tema de reflexão de outros pensadores gregos. Sócrates e os seus “discípulos” se debruçaram sobre o problema dos limites da natureza e Aristóteles aborda a questão da phisys em vários momentos de sua obra. Como constata Angioni, em Aristóteles "natureza é certo princípio ou causa pela qual aquilo em que primeiramente se encontra muda ou repousa em si mesmo e não por concomitância" (2010, p.20). Em Aristóteles, portanto, sem natureza não há possibilidade de mudança nos indivíduos, visto que, é da natureza das coisas que surgem as causalidades que determinam sua finalidade e substancialidade. É na natureza de cada ser que existe a potência e o ato, ou seja, a possibilidade de movimento em direção a perfeição. A realização do ser decorre daquilo que já lhe é inato, que nele está latente.

Para resumir esta primera parte: en la visión aristotélica, lo distintivo del concepto de naturaleza no es otra cosa que el vínculo o enlace íntimo y esencial que dice entre el cambio y el ser de la cosa que cambia, al comprender el cambio como enraizado en el ser de las cosas y el ser como alcanzado, realizado y propagado a través del cambio. Así, el concepto de naturaleza viene a condensar y a comprender en una noción única lo que expresa en el plano de los principios ontológicos la conocida afirmación “el obrar sigue al ser” (PREVOSTI MONCLÚS, 2011, p.36).

Ora, se o fazer segue seu ser, isso significa que a natureza em Aristóteles é causalidade, não condição. É causalidade determinante, não técnica de um acontecer virtual. É potencialidade carregada pelo ser. É o movimento que não perde sua identidade, pois em seu movimento está também sua natureza, no seu sentido e destinação.

Vale destacar ainda a ressalva de Montaigne sobre a natureza. Para este pensador, “o homem não pode impedir que os sentidos não sejam os soberanos mestres dos conhecimentos que possui” (MONTAIGNE, 2016, p.579), ou seja, é inegável que a natureza faz parte da condição do ser humano e interfere na sua ação sobre ela: “Eu tomei, como já disse alhures, bem simplesmente e de maneira crua no que me concerne, este preceito antigo: que nós não saberíamos falhar em seguir a natureza, que o preceito soberano e de se conformar a ela” (MONTAIGNE, 2016, p.960), contudo, isso não significa que ela ofereça certeza, antes sim, pode induzir ao erro.

Para compreender a análise da natureza no sentido de Montaigne é preciso compreender que, se a natureza não engana, os sentidos sim. Ou seja, é possível ser enganado por aquilo que leva a perder de vista a potencialidade da natureza: que são os sentidos. De certa forma, tais expressões já haviam sido abordadas também por Aristóteles, quando este apresenta a necessidade de dialética para confirmação do conhecimento, mas é em Montaigne que ganhará força e tomará um novo caminho para demonstrar que, assim como nos dizeres de Heráclito, a natureza gosta de se esconder, ou, neste contexto, é preciso tomar cuidado para aquilo que se imagina ser a “voz” da natureza. Às vezes é possível enganar-se e, como isso, perder-se, achando que se está no caminho certo.

Se a questão da natureza de Montaigne retoma referências aristotélicas, em Espinoza vê-se novamente uma definição forte de Natureza como expressão de Deus, ou, propriamente como Deus. Para este autor, “Deus (ou substância, ou Natureza) é acima de tudo, a causa eficiente fundamental e geral de todas as coisas, o agente ativo cujo poder explica o início de sua existência” (NADLER. In: HUENEMANN, 2010, p.82). Assim, por natureza deve-se compreender o que existe em si mesmo e, por si mesmo é concebido, exprimindo uma “essência eterna e infinita” de onde tudo segue (SPINOZA, 2010).

Com isso, é possível deduzir que a ideia de natureza em Espinoza aponta para um fator determinante, pois, é causa de tudo aquilo que segue a partir dela, o que significa que a natureza existente no interior de cada ser é fundamental para compreender o que se segue como ações posteriores. Não em vão, é possível visualizar em vários autores que não há livre-arbítrio em Espinoza: se tudo é Deus, e Deus é natureza, e a natureza é o ponto “alfa” do ser, isso significa que tanto o ser, como tudo o que está ao seu redor seguem normas universais, perfeitas e determinadas.

É este pensamento de Espinoza que vai conquistar muitos pensadores, incluindo entre eles, Goethe. Em suas memórias escreveu: “vou dizer, sucintamente, onde me apropriei das maneiras de ver de Espinoza. A natureza age segundo leis de tal modo necessárias, que a própria divindade nelas não pode tocar, e todo o mundo está de acordo nisto, sem o saber” (GOETHE, 1948, p. 319).

Posteriormente, porém, a noção de natureza começa a ter uma nova conotação para Goethe. Ele percebe que a natureza não pode ser reduzida em fonte de recursos que pode ser dominada através de observação, da manipulação e da exploração técnica e científica. A natureza, em todas as suas obras, deve ser compreendida de maneira mais profunda, como um acontecer inesgotável de possibilidades, como fator de influência na constituição de cada indivíduo e de cada realidade. Portanto, resgatar o estudo da natureza de Goethe, não significa apenas estabelecer uma alternativa ao modelo de concepção de natureza contemporânea, mas também discutir o próprio conceito de ser humano que está implícito em seus estudos. Para compreender melhor este tema em Goethe, disponibilizaremos de uma parte deste texto para aprofundá-lo, entendendo a importância que esta abordagem traz para os contextos pedagógicos.

O conceito de natureza em Goethe

A preocupação de Goethe com a natureza provém de sua atuação no campo das ciências e das artes. Ele, como pesquisador e escritor, desenvolve uma concepção de ciências que se difere da concepção vigente em sua época. Integrado ao movimento do Sturm Und Drang (Tempestade e Ímpeto), do Pré-Romantismo Alemão, Goethe absorve muitas das críticas à visão reducionista de ciência e de natureza do pensamento moderno. Isso contribui para o desenvolvimento de uma nova noção sobre a significação e a influência estética da natureza na formação humana.

Sob tal influência, o conceito de natureza torna-se central nas inspirações das obras de Goethe. A natureza não pode ser considerada em seus aspectos fragmentários, “mas como coisa atuante e vivente, [...] como uma totalidade que se esforça por evidenciar-se em suas várias partes” (GOETHE, 1987, p. 8). Ademais, ela não obedece a leis racionais, mas “[...] opera segundo leis que ela a si mesma prescreveu, [...]” (GOETHE, 1987, p. 246). Tal concepção transparece em quase todos seus escritos que se relacionam à formação, como podemos confirmar por suas próprias palavras expressas no romance O sofrimento do jovem Werther:

A primeira vez, numa tarde linda, quando o acaso me levou para debaixo daquelas tílias, achei o lugar bem solitário. Estavam todos no campo; apenas um menino de quatro anos estava sentado no chão, abraçando uma outra criança de uns seis meses, sentada entre suas pernas como se estivesse numa poltrona..Deu-me prazer vê-los ali; sentei-me num arado defronte e avidamente comecei a desenhar aquela postura fraternal. Acrescentei a cerca mais próxima, a porta do celeiro e algumas rodas quebradas...sem colocar nada de meu. Isso fortaleceu o meu propósito de manter-me doravante unicamente ligado com a natureza. (GOETHE, 2009, p. 24)

Em outra obra, Memórias, ele é ainda mais contundente ao escrever: “tudo me empurrava para a natureza que me tinha aparecido em sua maior magnificência” (GOETHE, 1948, p.296). Ao analisar esta colocação é importante entender uma dupla vinculação de Goethe em relação a natureza: tudo o empurrava para uma relação externa da natureza, a partir de um impulso interno, como se a natureza interna e externa buscasse se encontrar, se complementar no seu acontecer.

O olhar de que tudo “empurra” Goethe para a natureza, se mostra através de suas obras como algo que promove nele a vontade de querer, de aprender, de “ser mais”, de ir além e, especialmente, de desenvolver a capacidade de acolher e de reconhecer a beleza estética do mundo, contrapondo-se à vontade racionalista da dominação e exploração da natureza que predomina no ser humano: “Está na natureza do homem gostar mais de se apoderar à vida, força da coisa que ele deseja, do que recebê-la, como um presente que o obriga ao reconhecimento” (GOETHE, 1948, p.131). Goethe extrai da observação e da investigação da natureza, “do fenômeno originário” (Urphänomen) sua categoria decisiva de formação, o que revela o caráter materialista de formatação de seu pensamento. E quer faça ciência ou faça arte o ponto de partida das formulações goethianas é sempre o “fenômeno originário”, enquanto abstração razoável que emana dos ricos tecidos constitutivos do mundo objetivo. A subjetividade em Goethe é sempre uma subjetividade objetivada.

Para superar estes “obstáculos” constituído pela racionalidade, Goethe identifica a arte como a experiência humana diferenciadora da formação humana. Considera que o mundo natural constitui uma totalidade orgânica, que é revestida de uma aura poética. Conforme esclarece Hadot,

Para Goethe, a arte é a melhor intérprete da natureza. À diferença da ciência, a arte não descobre leis, equações, estruturas escondidas por trás dos fenômenos, mas, ao contrário, ensina a ver os fenômenos, a aparência que surge claramente, o que está sob nossos olhos e que não sabemos ver; ela nos ensina que o mais misterioso, o mais secreto, é justamente o que está bem exposto, o visível, mais exatamente o movimento pelo qual a natureza se torna visível. Goethe sonha com um contato com a natureza que abandonasse a linguagem para ser apenas a percepção ou criação de formas (2004, p. 237).

A utilização da arte como ponte entre o homem e a natureza ganha profundidade nos estudos sobre as cores de Goethe. Gianotti destaca que nesta obra o pensador alemão desenvolve uma nova forma de abordar a realidade externa na sua relação com a razão subjetiva da modernidade:

A experiência ótica se torna mais abstrata na medida em que o artista, ao invés de olhar para a natureza na busca de estímulos externos, usa arbitrariamente as cores dispostas em sua palheta e procura expressar um estado interior. As cores são vistas de sua dimensão fisiológica, nos efeitos que produzem internamente na retina do observador (GIANOTTI, 2017, s/p.)

Goethe apresenta uma visão orgânica de natureza, buscando vinculá-la à interioridade humana, às artes, à contemplação, estabelecendo um contraste com a visão de natureza modelada e fragmentada pela racionalidade moderna. Daí decorre o fato de que em Goethe a natureza se põe como fator indispensável para a superação do cientificismo estabelecido pelo iluminismo - principal movimento de defesa da racionalidade em sua época - e de alguns entraves do próprio pensamento romântico.

Para o movimento romântico, a natureza passa ser considerada um organismo vivo e a reaproximação entre ela e o ser humano se dará através da interioridade humana, da contemplação, algo inconcebível na ciência moderna. Conforme destaca Andrade, “a natureza, para os românticos, não é apenas o objeto que sofre o reflexo dos seus devaneios, mas uma morada onde habita a harmonia desejada; ela palpita uma vida que os atrai, guarda sensações não experimentadas pelo mundo da cultura, que lhe é avessa” (2016, p. 41).

Em Herder (1982), por exemplo, já era possível perceber este olhar diferente em relação à natureza, à medida que este autor coloca em questão a sensibilidade do homem que estava perdendo importância diante do desenvolvimento da racionalidade científica. Goethe reforça este olhar sobre a existência de uma ordem natural mais ampla nos seres humanos, com a qual devem estar em harmonia. Em a Doutrina das Cores (2013) desenvolve com mais profundidade esta sua compreensão, acentuando o primado da contemplação da natureza como experiência interativa entre a objetividade das formas vistas e a subjetividade das emoções. Destaca a experiência do “o mundo do olho”, que se constitui por formas e cores. Afinal, refletia Goethe, se cada um percebe as cores de maneira diferente é porque cada um traz diferenças determinantes em sua constituição física. Tais diferenças, se determinantes, determinam também a leitura e o aprendizado da vida e do mundo.

Goethe sustenta a ideia de que a interação com a natureza vai além da relação subjetiva do homem com o mundo. Na relação sujeito-objeto se estabelece a necessidade de cada indivíduo fazer as próprias experiências e reconhecer o significado das sensações para si em todos os momentos. Tal experiência não poderá ser padronizada e nem negligenciar a particularidade de cada indivíduo. Isso implica em reconhecer a natureza como um acontecer inesgotável e o conhecimento como um processo inesgotável de aprendizagens e experiências. Bach Jr. esclarece com propriedade a visão de experiência em Goethe:

Cabe ressaltar que o experimento em Goethe é um posicionamento do sujeito em transformar suas experiências em processos que visam verificar a produção do fenômeno em uma multiplicidade de condições. Deste modo, a fenomenologia goethiana opõe-se ao experimento isolado que descaracteriza o mundo vivido e percebido pelo pesquisador. Pelo contrário, é o aprimoramento da qualidade perceptiva que encaminha o processo de pesquisa para níveis superiores da experiência humana. A pergunta fenomenológica não é o que surge, nem por que surge, mas como o fenômeno surge. (2016, p. 75).

A aprendizagem humana sobre a natureza é, portanto, inesgotável e vem marcada pela sensualidade de cada um. Neste aspecto, Goethe diferencia-se não só de Rousseau3, mas também de Herder4, pois leva em consideração questões da sensualidade, entendendo que também ela pode tornar-se significativa para a formação dos indivíduos. Em Goethe, a benevolência e a simpatia não são mais limites à realização sensual e, por isso, o Jovem Meister caminha por entre seus romances revelando que as suas paixões e emoções o ensinam a viver. Cada experiência individual de seus romances torna-se, assim, uma experiência física-psíquica única para o autoconhecimento. No entendimento de Taylor, para Goethe “o bem viver passa a consistir uma fusão perfeita do sensual e do espiritual, em que nossas realizações sensuais são vivenciadas como tendo a importância maior” (2005, p.478).

É possível perceber então que a questão da natureza em Goethe elabora-se por meio do experienciar, ou seja, insere-se na experiência da autoformação, estando intimamente ligada com a questão da autenticidade5 e da necessidade de omni-compreensão. A incapacidade de estarmos atentos às condições que determinam nossa experiência, limitam nossa percepção sobre o que nos ocorre. Goethe em suas Memórias faz questão de demonstrar que

[...] se pudéssemos, sem nos tornarmos doentes imaginários, prestar a atenção a tudo o que nos é nocivo, pouparíamos bastante sofrimentos. Infelizmente o que se dá com a natureza física é o mesmo que se dá com a natureza moral: não reconhecemos nossos erros, nossos defeitos que nos restam não se parecem em nada com aqueles de que nos desembaraçamos, e é-nos impossível vê-los tais quais são, enquanto estivermos sob sua influência (1948, p.192).

Portanto, natureza e autenticidade juntam-se à intersubjetividade (na condição do “outro eu”) e à liberdade para constituir, em Goethe, a formação integral do homem para a condução de sua perfectibilidade, com equilíbrio entre os talentos naturais e uma formação voltada para a sociedade. Com isso, o homem de Goethe, segundo Nietzsche, é

[...] um homem forte, muito cultivado, hábil em todas as atividades corporais, contido em si mesmo e respeitoso de si mesmo, capaz de atrever-se a sentir alegria por toda amplitude e riqueza do natural, pois tem forças suficientes para exercer semelhante liberdade; pensou em um homem tolerante, não por debilidade, mas por força [...] (In LÖWITH, 2008, p.236).

Força, é claro, não significa aqui apenas uma força física, no sentido de imposição ou a capacidade de ser e agir, mas sim, uma força harmoniosa de ser, de equilíbrio subjetivo e de realização estética. Goethe demonstra entender que o equilíbrio é a maior demonstração de força de um indivíduo, pois possibilita cultivar-se e expandir-se, sem prejudicar a si ou aos outros à sua volta. O indivíduo que tem como força a harmonia de si, consegue conviver e evoluir também na (e pela) intersubjetividade por relações saudáveis, em processos de fortalecimento mútuo.

Goethe percebe, no entanto, que a vida não é somente força, energia, potencialidade e harmonia. Levar em consideração a natureza é também ser capaz de acolher a vida em suas diferentes fases, em suas limitações e vicissitudes, como bem expressa quando escreve:

Aumenta o meu sofrimento verificar que perdi aquilo que fazia o encanto da minha vida: sagrada e tumultuosa força graças à qual podia criar mundos e mundos em torno de mim. Essa força não mais existe! Quando contemplo, da minha janela, o sol matutino rasgar a bruma sobre a colina distante, iluminando campina silenciosa no fundo do vale, e vejo o riacho tranquilo correndo para mim e serpenteando entre os salgueiros desfolhados, essa natureza me parece fria e inanimada como uma estampa colorida (GOETHE, 2009, p. 110).

Assim sendo, ao olhar para a interpretação da natureza em Goethe é possível entender um pouco mais de sua visão sobre a necessidade de uma formação ampla e integral dos indivíduos. É possível visualizar o “porquê” da constituição de um conceito que leva em consideração as expectativas da vida humana em suas diferentes fases e circunstâncias. E esta sensibilidade de Goethe, que em sua época rendeu elogios de muitos pensadores, nos parece ainda desafiadora na contemporaneidade.

Natureza e educação

Como foi possível perceber, a natureza em Goethe é o fenômeno primordial (Urphänomen), que está no princípio de tudo. É de onde e de que tudo surge e a partir do qual tudo se desenvolve. Assim, é determinante porque traz em sua origem algumas questões pré-determinadas que direcionam aspectos vitais, assim como o surgimento da planta constitui e determina o que ela virá a ser enquanto ser em seu futuro. Porém, não significa que ela seja determinante em sua totalidade. Como exemplo, da mesma forma que uma árvore se molda a partir do ambiente em que vive, ou seja, das condições que encontra em seu desenvolvimento, a natureza é em Goethe espaço aberto para formação (Bildung). Ela é parte constituinte do devir humano, é Kínesis, mudança incessante, e, por isso, permite que seja trabalhado em suas constantes manifestações particularizadas.

Uma ilustração que pode ajudar no entendimento desta visão de Goethe sobre vida, natureza e cultura, é a escultura que ele produziu no pátio de sua casa, o cubo e a esfera. O cubo representa aquilo que é fixo no universo. Enquanto a esfera representa aquilo que é mutável e maleável. Com isso, pode-se entender que a existência é uma junção de coisas fixas e maleáveis, ou seja, não é possível dizer que existe algo totalmente maleável em Goethe, ao mesmo tempo, também de que não é possível dizer que há algo totalmente estático e definido.

Diferente dos “deuses”, que são considerados como eternos e veem as coisas em sua totalidade-, os homens percebem o mundo e as coisas - e agem sobre elas - sempre baseados em um limitado recorte espaço-temporal. Por isso, é possível apontar que não há como compreender a natureza de forma absoluta e definitiva, nem mesmo para afirmar em que termos e o quanto influencia ou não a existência humana.

Cabe aqui recuperar o tema a que nos referimos anteriormente, quando baseados em Heráclito, afirmamos que a “a natureza ama esconder-se” e que, em sua profundidade de constituição metafísica - como a entende Spinoza (2010) -, ela está além do limite de nossa compreensão. Não há como determiná-la com exatidão o que ela é, embora seja preciso tentar compreendê-la a partir da mais íntima autorreflexão. Até porque, apesar dela ser universal a todos, sua manifestação realiza-se de forma diferenciada em cada ser.

A partir disso, e pensando na formação humana, admitir que não é possível determinar a natureza como algo de total entendimento pela racionalidade humana, é dar-se conta que todo o saber é de um certo modo temerário, ou seja, que é preciso aprender a andar e a lidar com “escuridão” do processo de realização da vida humana. Por perceber que a trilha de formação e aperfeiçoamento humano é, de algum modo, desenvolvido “às escuras”, revela o fato de que a formação humana depende de dois conceitos indispensáveis: o autoconhecimento e a exclusividade do processo. A natureza, compreendida como um conjunto de forças plasmadoras, só é possível de ser conhecida a partir do entendimento dos princípios formadores do próprio conhecimento, qual seja, a experiência concreta com os objetos e com a natureza que nós também somos. A particularidade e a exclusividade da experiência são fundamentais no desenvolvimento da formação humana.

Porém, é preciso considerar que a exclusividade no sentido de que, se somos - como menciona Merleau-Ponty (1999) - um corpo-próprio, isso significa que partimos de diferentes raízes de natureza, o que leva compreender também que cada um terá um desenvolvimento próprio e necessitará compreender tal desenvolvimento para potencializá-lo. Neste contexto, a concepção de uma formação “universal” pode ser aceita somente em aspecto limitado. É preciso que cada indivíduo possa ter suas próprias experiências e um plano de vida diferenciado. Este fato, como é possível perceber, joga por terra a ideia de formação em massa e de que é possível educar com maestria vários indivíduos ao mesmo tempo através de conteúdos iguais e de métodos similares.

Diferente disso, parece indispensável a educação contribuir para que os indivíduos consigam se conhecer melhor, entender sua condição de ser da natureza, sua forma de pensar e agir. A exclusividade do processo pedagógico, ou mesmo, a possibilidade de constituir uma avaliação que auxilie no desenvolvimento da individualidade de cada um, só é possível de forma efetiva a partir do autoconhecimento. É a omnicompreensividade em Goethe que permite compreender nossa omnilateralidade. Retomando novamente a escultura da casa de Goethe: é o quadrado que dá suporte para a esfera, ou seja, é a parte fixa que dá suporte para aquilo que é maleável. De maneira analógica, é somente a partir do momento que a laranjeira descobre que ela somente pode dar laranjas, e que não poderá dar outra fruta, é que ela consegue produzir laranjas. Se negar seu lado fixo, não conseguirá sobreviver diante das estações do ano e frutificar.

Assim, é possível vislumbrar uma grande contribuição de Goethe para educação e a formação humana, destacada com muita propriedade por Bach Junior, quando escreve:

Como fenomenologia da natureza, o método de pesquisa de Goethe tem implicação no campo da educação, ao fundamentar um processo de aquisição do conhecimento que não busca a dicotomização entre sujeito e objeto. Ao enfatizar a formação do sujeito em seu aperfeiçoamento em relação às impressões sensoriais, a fenomenologia da natureza possui desdobramentos para a prática educativa ao percorrer processos paradigmáticos diferenciados em comparação ao reducionismo dos modelos matemáticos, herdados do passado como referências referendadas e estabelecidas. Nestes termos, a fenomenologia da natureza se apresenta como processo complementar aos métodos científicos vigentes, evitando, assim, absolutizações e unilateralidades presentes em qualquer formação reducionista. Deste modo, este estudo vem colaborar na proposição de um processo educativo dialógico, tendo a natureza como parceira ativa e o método de pesquisa de Goethe como suporte dialógico e intermediador.” (2016, p. 118).

Diante de tal apontamento, pode-se afirmar que a formação que desconhece as influências de uma natureza ativa, pode conduzir os indivíduos, mas também, pode estar fadada a conduzir os indivíduos a equívocos patológicos irreversíveis.

Considerações finais

Podemos concluir que para Goethe a natureza se faz presente como uma totalidade orgânica de inesgotável poder de realização e de uma força poética dotada de permanente inspiração. Para perceber e usufruir desta totalidade orgânica, é preciso compreender a natureza como physis e superar o passado dos recortes que tem levado a humanidade a se sentir estranho diante da natureza.

A natureza se concretiza em uma continuidade desconhecida, ou como bem observa Heráclito, “a natureza ama esconder-se”. Cabe-nos reconhecer que não temos, efetivamente, a capacidade de conhecê-la em profundidade e de forma definitiva. Esta limitação não significa, porém, que a natureza não lá esteja e que, de algum modo, ela intervém nas experiências cotidianas de cada indivíduo. O desafio está em encontrar formas de compreensão e de sensibilidade que leve cada indivíduo a perceber a ação que a natureza exerce em sua vida. Esta é a preocupação de Goethe em suas reflexões e estudos sobre a natureza.

Neste sentido, parece que Goethe consegue lançar ainda em seu tempo uma reflexão importante sobre algo que a ciência moderna consegue suscitar: não reconhecer que antes mesmo do nascimento os seres humanos já possuem uma constituição física e psíquica, é algo preocupante. Não reconhecer, ou conhecer, como alguém reage às primeiras experiências cotidianas (que serão determinantes para demais experiências basilares da vida) é uma lacuna desafiante para a formação dos indivíduos.

É certo, como menciona Piazza (2021) que nosso cérebro é “aberto” e sempre passível de transformação, contudo, é também importante considerar que esta transformação só é possível através de uma intervenção forte do mundo externo sobre a cultura. Assim, se faz mister refletir que sem a intervenção externa as primeiras impressões, estas, determinadas pela natureza de cada um - não metafísica, mas física, que diz respeito às cores, aos cheiros, aos sabores, a forma de sentir ameaçado, a quantidade de serotonina em cada indivíduo - serão determinantes para os indivíduos no constante de suas relações sociais.

Ora, diante disso, não somente se reforça a importância da formação dos indivíduos, mas que toda a educação precisa estar atenta à individualidade de cada um e voltados para o reconhecimento da natureza de cada indivíduo. É este caminho que o conceito de formação de Goethe parece apontar.

A formação do sujeito, segundo Goethe, é um processo permanente de aprimoramento da subjetividade na sua interatividade com os fenômenos da natureza. Este processo não é, porém, seguro e necessariamente virtuoso. Ela se realiza por uma dinâmica que envolve a permanência e a mudança de forma concomitante e não progressiva. Negar o acontecer da natureza em cada ser humano é negar a sua possibilidade de tornar-se esclarecido e humano. Este acontecer, no entanto, não deixa de revelar o lado trágico da existência humana, uma vez que sempre estamos à mercê de afinidades eletivas que colocam em questionamento a validade de nossas escolhas e de nossas certezas. Eis a tragédia da vida, pois por mais que o ser humano tente, acaba tendo que se render ao fato de que aquilo que mais lhe diz respeito é o que menos ele consegue se apropriar.

Por isso, a formação em Goethe aponta a necessidade de preparar o indivíduo para compreender a si e suas relações com a natureza. Trata-se de compreender como esta conexão entre o eu, a natureza e os outros pode acontecer de forma saudável e evolutiva, sem desconsiderar a própria a incompletude deste acontecer. A formação humana deve ser, assim, necessariamente uma formação omnilateral e omnicompreensiva, que envolve o indivíduo em sua relação com a natureza e a realidade do mundo a partir da compreensão de si mesmo e da autoconstrução. Não é uma formação “industrial”, técnica, mas uma formação que permita cada indivíduo se conhecer e formar integralmente.

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1O termo Urform, significa no entendimento de Goethe, a forma primitiva e originária de todas as outras formas de natureza. É o impulso de formação que assegura a unidade na diversidade e se faz presente em todos os organismos vivos. Sobre o detalhamento desta concepção, ver Wulf (2016, p. 59 e p. 70).

2Afinidades eletivas (2008) constitui o título de uma das obras de Goethe em que desenvolve a ideia que uma consciência iluminada e livre e a esperança de que ela garantirá o progresso e a felicidade dos humanos, termina por torná-los cegos diante da situação em que vivem. O romance apresenta uma confrontação entre as forças da natureza e a suposta liberdade da razão. A relação entre dois personagens, Eduard e Charlotte, é de natureza ambígua: apesar de se apresentarem como esclarecidos, são incapazes de tomar uma decisão sobre os problemas que os cercam, sendo tragados pelas forças naturais, justamente aquelas das quais a razão teria se libertado. Isso revela a força indomável da natureza e a limitação de toda a racionalidade. Diante da impossibilidade da solução, o resultado é a catástrofe.

3Esta relação pode ser percebida na diferença de como o Emílio é preservado da relação com as mulheres, enquanto o Meister, ao contrário, utiliza também suas desventuras amorosas como processo de conhecimento de si e seu aperfeiçoamento.

4Conforme Maas (2000), Herder vai criticar Goethe por estas “relações amorosas”.

5Como menciona Taylor (2005, p.479), “se nosso acesso à natureza ocorre por meio de um impulso ou voz interior, só podemos conhecer a plenamente esta natureza pela articulação do que encontramos dentro de nós”.

Recebido: 29 de Outubro de 2022; Aceito: 08 de Março de 2023

[a]

Doutor em Educação, e-mail: eldon@upf.br

[b]

Doutor em Educação, e-mail: mlmarangon@yahoo.com.br

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