Introdução

Se podemos considerar superado o debate acerca da legitimidade da pesquisa qualitativa, não é ainda possível, todavia, descartar a necessidade de tratar de estratégias de validação e aferição de qualidade que considerem as suas características (^{COUTINHO, 2008}; ^{DIAZ-BAZO, 2019}), assim como: a complexidade dos fenômenos sociais, a capacidade interpretativa do pesquisador qualitativo, a interação entre pesquisador e participantes e a subjetividade de ambos.

A busca por enfocar nas experiências vividas pelas pessoas para dar significado a eventos, fenômenos e processos complexos e perceber suas conexões com os contextos é um desafio para pesquisadores qualitativos, não apenas em formação, mas para aqueles que compreendem a necessidade contínua de refinamento, aperfeiçoamento e de atualização metodológica (^{MEYER et al., 2021}).

Demandas diferenciadas em cada projeto de pesquisa, bem como a diversidade e a diferenciação entre campos e áreas também são elementos da pesquisa qualitativa (FLICK, 2009) que colocam à prova sua qualidade, validade e pertinência. Portanto, não se trata de criar protocolos, mas inspirar reflexões acerca do processo de tomada de decisão e de consolidação de um plano de análise de dados consistente e coerente com as escolhas metodológicas do pesquisador.

Na pesquisa qualitativa, o pesquisador é elemento-chave tanto na captação quanto na interpretação dos dados. Há um processo tanto indutivo quanto dedutivo que permite a sua sistematização, atuando com a finalidade de responder ao problema de pesquisa que está proposto (^{CRESWELL, 2014}).

A qualidade da pesquisa qualitativa está associada à visibilidade trazida pelos investigadores em relação aos seus padrões de decisão e intencionalidades (^{DIAZ-BAZO, 2019}).

São estratégias de validação, por exemplo, o tempo de envolvimento no campo, as referências em relação à posição do pesquisador ― suas perspectivas de pesquisa e respostas ao processo empreendido ―, a descrição densa dos procedimentos adotados e a proximidade (rapport) do pesquisador com os participantes. O uso de diferentes fontes de informação visando à triangulação, ao exame ou ao questionamento dos pares e à verificação dos participantes também são formas de validação (^{COUTINHO, 2008}; ^{STRAUSS; CORBIN, 2008}; ^{CRESWELL, 2014}; ^{YIN, 2016}; ^{DIAZ-BAZO, 2019}).

O objetivo do artigo é descrever as especificidades e contribuições do uso do software ATLAS.ti em uma pesquisa do tipo teoria fundamentada nos dados, ou grounded theory, em relação à qualidade da investigação qualitativa na Educação. Com essa finalidade, apresentamos as principais características da teoria fundamentada, da qualidade em pesquisa qualitativa e do ATLAS.ti, e descrevemos o encaminhamento metodológico de uma pesquisa do tipo teoria fundamentada nos dados que usou o software e adotou estratégias de validação visando à maior confiabilidade nos resultados.

Consideramos que é possível fomentar uma aprendizagem colaborativa e em rede voltada para a formação em pesquisa qualitativa, por meio da difusão de relatos de pesquisa empreendidas que esmiucem a abordagem metodológica adotada, seus procedimentos e aplicações.

A qualidade da pesquisa qualitativa

Ao refletirmos acerca da pesquisa qualitativa, nos deparamos com a necessidade de validação do processo e dos resultados do estudo, para que suas conclusões reflitam com precisão o que foi estudado (^{YIN, 2016}). O ato de planejar a pesquisa requer incorporar estratégias de controle de qualidade que possam assegurar sua validação. Portanto, quando o pesquisador quer demonstrar o valor e a integridade da pesquisa qualitativa de forma perceptível aos futuros leitores e avaliadores, o pensar sobre o percurso metodológico se traduz em práticas tanto operacionais quanto estratégicas.

São critérios de qualidade, apontados tanto por ^{Coutinho (2008}) como por Diaz-Bazo (2019), a partir dos estudos metodológicos de ^{Lincoln e Guba (1985}): reflexividade, credibilidade, transferibilidade, consistência e confirmabilidade.

Diaz-Bazo (2019) também sistematizou as nove estratégias de qualidade metodológica mais citadas. São elas: clareza na posição do investigador, permanência no campo visando à coleta abundante de dados, triangulação de fontes, revisão de outros pesquisadores, retorno dos resultados aos participantes, transferibilidade, descrição detalhada dos contextos dos participantes e do processo, e apresentação de evidências para a confirmação dos resultados.

Em estudo sobre como artigos na área de Educação adotam critérios e estratégias para assegurar a qualidade da pesquisa qualitativa, Diaz-Bazo (2019) analisou textos de cinco publicações da América Latina em 2017 e concluiu que 85% dos 60 artigos não trazem de forma explícita as estratégias utilizadas para que os resultados sejam válidos e confiáveis. O estudo evidencia a diversidade de posições, critérios e discussões acerca da qualidade na pesquisa qualitativa, considerando sua complexidade, porém, reafirma que, embora as situações ou fenômenos estudados sejam únicos, é responsabilidade do investigador qualitativo legitimar seu processo de pesquisa por meio da transparência (^{DIAZ-BAZO, 2019}).

^{Meyer et al. (2021}) comentam que a qualidade da pesquisa qualitativa está relacionada não apenas às dimensões técnica e morfológica, mas também a aspectos éticos e políticos, teóricos e interpretativos que passam pela sensibilidade, criatividade, assim como o estabelecimento de um intenso diálogo com o outro e de autoquestionamento do investigador.

A seleção de um software específico para a análise de dados é apenas uma das decisões referentes a essas práticas, que reflete em diferentes fases da pesquisa. Pode colaborar, por exemplo, para a organização dos documentos primários, a guarda de notas de campo que refletem a posição do pesquisador, suas impressões e seus processos de tomada de decisão, até para a confirmação e demonstração dos resultados.

Softwares de análise de Dados: o ATLAS.ti

Existem programas de computador, em constante aprimoramento, que podem auxiliar o processo analítico de dados, denominados softwares de análise de dados qualitativos assistida por computador (CAQDAS - Computer Assisted Qualitative Data Analysis Software), dentre eles o ATLAS.ti.

Softwares de análise de dados como o ATLAS.ti são aliados na análise de dados qualitativos, principalmente para a organização, estruturação, recuperação ou resgate e visualização (^{STRAUSS; CORBIN, 2008}). O programa em si não faz sequer um simples trabalho analítico para o pesquisador (^{YIN, 2016}). É atribuição do pesquisador codificar e interpretar os dados, na pesquisa qualitativa, a partir de seu plano de análise (^{VOSGERAU et al., 2017}). Entretanto, coordenar notas de campo, citações das entrevistas, códigos e categorias, lembretes (ou memorandos), comentários e configurar redes e associações, documentando o passo a passo da pesquisa, permitindo retornos e o acompanhamento do processo de pesquisa é de grande utilidade, especialmente diante de grande volume de dados (STRAUSS; CORBIN, 2008). O uso do software ATLAS.ti potencializa a gestão e a exploração dos dados, além de agilizar seu manuseio (WALTER; BACH, 2025). Funções de busca para localização de citações, ou para a combinação de códigos, ou ainda para verificação de frequência de palavras ou mesmo de códigos também podem auxiliar na interpretação dos dados. Outra função existente permite a comparação dos dados classificados por informações identitárias: como gênero, idade ou tempo de atuação profissional, por exemplo, respondendo possíveis perguntas que dependam da associação entre códigos ou categorias (^{CRESWELL, 2014}).

Softwares como o ATLAS.ti também proporcionam uma imagem visual da análise realizada, o que é importante tanto durante a associação e interpretação dos dados que está sendo realizada pelo pesquisador quanto para demonstração dos resultados.

Cabe a ressalva de que o domínio do software requer um esforço extra do pesquisador, ao aliar habilidades operacionais para gerenciá-lo com o olhar analítico (^{YIN, 2016}). Como não existem fórmulas ou receitas para utilizar o software, seu uso eficiente se relaciona não apenas com o domínio operacional sobre o software, mas também fundamentalmente com o domínio teórico da metodologia adotada, associado ao alinhamento ao encaminhamento metodológico e ao problema investigado e complementado pela criatividade do pesquisador. O uso do software colabora com a transparência da análise de dados, na medida em que o pesquisador está apto a defender a lógica e a validade de toda a operação empreendida (^{SAN MARTIN CANTERO, 2014}; YIN, 2016).

Outras vantagens de uso do ATLAS.ti, a partir de diferentes autores, foram sistematizadas, por ^{Walter e Bach (2015}), em artigo que descreve a aplicabilidade do software em uma análise de conteúdo na área de Administração. Dentre as vantagens, está a manutenção do contato do pesquisador que usa o software com os dados, assegurando maior visualização e potencializando a exploração e integração entre dados e documentos primários organizados em um mesmo projeto.

Em relação à contribuição do ATLAS.ti para a teoria fundamentada, Cantero (2014) enfatiza a coerência entre o software e a abordagem metodológica e afirma que se trata do principal software para desenvolvê-la, por permitir expressar o caráter circular da análise, facilitar a demonstração da saturação das categorias e por explicitar a investigação educativa realizada.

Teoria Fundamentada nos Dados ou Grounded Theory

Na pesquisa qualitativa do tipo teoria fundamentada nos dados, ou grounded theory, o foco é gerar ou descobrir uma teoria ou explicação que não é padronizada, mas emerge a partir da investigação de um processo experienciado pelos participantes (^{CRESWELL, 2014}). ^{Tarozzi (2011}, p. 19) ressalta que a grounded theory é a geração de uma teoria, “uma interpretação racional, densa, articulada e sistemática, capaz de dar conta da realidade estudada”. A teoria que se produz é extraída dos dados coletados, fruto do trabalho de campo. Portanto, mais do que embasada nos dados, é uma teoria ancorada nos dados, de forma visceral ou enraizada na realidade (^{TAROZZI, 2011}).

Existem três tradições predominantes na teoria fundamentada nos dados: a clássica, a straussiana e a construtivista. Em comum, elas têm a origem e as técnicas metodológicas, mas possuem estruturas filosóficas e orientações metodológicas diferenciadas. A adoção cuidadosa e meticulosa de uma das perspectivas da teoria fundamentada também é fator de qualidade e confiabilidade para a pesquisa (^{BRENNAND; LIMA, 2020}). A Figura 1 destaca as características definidoras da teoria fundamentada nos dados, tais como: o pesquisador busca desenvolver uma teoria acerca de um processo em movimento; a principal fonte de dados são as entrevistas em profundidade, em que se transita entre os participantes em momentos de idas e vindas entre a coleta, análise e elaboração da teoria, até a saturação das categorias de informação ou a finalização do processo analítico ao emergir uma teoria complexa. Para isso, o pesquisador empreende uma codificação aberta, que evolui para uma axial ― na qual há um fenômeno central, até a codificação seletiva (^{CRESWELL, 2014}).

Fonte: (MEYER; VOSGERAU, 2018).

Figura 1 Características da grounded theory 

Em artigo sobre a grounded theory na Educação, ^{Prigol e Behrens (2019}) trouxeram a experiência da teoria fundamentada preconizada por ^{Charmaz (2009}), discutindo os passos para sua realização. Compara a perspectiva mais prescritiva e estruturada (^{STRAUSS; CORBIN, 2008}) com a mais construtivista e interpretativa, porém com foco na segunda, mais flexível.

Outro estudo, de ^{Nascimento et al. (2021}), destaca que a teoria fundamentada nos dados é frequentemente aplicada na área da Saúde, Administração e Psicologia, mas pouco utilizada no Brasil na área de Educação, e demonstra a aplicação da teoria fundamentada em levantamento de temáticas em evidência sobre a universidade na contemporaneidade com uso dos softwares My-Sae e Gephi. Conclui que a teoria fundamentada é “propositiva, reflexiva e sistemática”, e sugere a ampliação da difusão da metodologia no país (^{NASCIMENTO et al., 2021}, p. 15).

Em busca de princípios para a concepção de um portal

A teoria fundamentada nos dados, com base em ^{Strauss e Corbin (2008}), ou straussiana, foi a abordagem metodológica adotada em pesquisa de doutoramento realizada em 2018 com intuito de discutir o desenvolvimento profissional da docência em professores universitários (MEYER; VOSGERAU, 2018).

A pesquisa teve como cenário uma Instituição de Ensino Superior (IES) privada comunitária confessional. A percepção de desvalorização da formação didático-pedagógica em professores universitários motivou a realização de incursões preliminares de exploração em campo, que foram constituídas por observações participante de oito eventos de diferentes tipologias como oficinas, palestras, reuniões e simpósios focados na discussão sobre a inovação nas práticas pedagógicas. A IES estudada estava em momento de mobilização em prol da construção de um programa de desenvolvimento profissional docente. As reflexões resultantes dessa etapa preliminar de pesquisa originaram quatro conceitos sensibilizantes: formação didático-pedagógica; internet em prol da formação; compartilhamento de experiências pessoais e pedagógicas, e empoderamento docente.

A teoria fundamentada tem suas raízes no interacionismo simbólico, que sugere a adoção de conceitos sensibilizantes para não engessar a realidade dentro de uma visão limitada ou predeterminada, e para que constituam um pano de fundo por meio do qual se desenvolve o problema de pesquisa (^{TAROZZI, 2011}). O objeto de investigação do interacionismo simbólico, perspectiva teórica e epistemológica aplicada na pesquisa, é a ação humana e a compreensão dos significados e das diferentes interpretações da realidade pelos sujeitos (TAROZZI, 2011).

Em torno desses conceitos, foram elaboradas uma série de questões com intuito de promover diálogo com os participantes por meio de entrevistas abertas, que evoluíram de não estruturadas para semiestruturadas ao longo de sua realização, assim como os pontos mais essenciais a serem observados em eventos de formação docente.

No decorrer da realização das entrevistas e das observações, realizadas em simultâneo, a partir da geração dos primeiros documentos primários e codificações, o protocolo dos dois instrumentos de coleta de dados foi revisado e atualizado, e as entrevistas ficaram cada vez mais direcionadas, como uma tentativa de fechar determinados temas que emergiram e que eram de maior relevância para a pesquisa.

Ao longo do percurso de coleta e análise em campo, ficou evidente como problema de pesquisa: Quais conceitos, definições e proposições norteiam a concepção de um Portal com vistas a contribuir para o desenvolvimento profissional da docência na Educação Superior? A pesquisa teve como objetivo o desenvolvimento, a partir da visão de professores universitários, de princípios para a concepção de um portal que contribuísse para o desenvolvimento profissional da docência.

A primeira versão do protocolo de entrevistas foi aplicada em teste piloto visando validar o principal instrumento de coleta de dados (^{CRESWELL, 2014}), o que permitiu uma revisão prévia.

No total, foram entrevistados 32 docentes universitários, de diferentes áreas do conhecimento, atuando em diferentes cursos de graduação a fim de contemplar a diversidade de cultura de cada área profissional.

Em paralelo às entrevistas, foram empreendidas observações participantes em atividades de formação docente. Dos 32 sujeitos entrevistados, doze foram observados apresentando experiências pedagógicas em quatro diferentes eventos. Os dois instrumentos de coletas de dados aplicados foram entrevistas e observação, os quais atenderam a um rígido protocolo estabelecido pelo pesquisador (^{CRESWELL, 2014}) que foram complementados por notas de campo.

Foram entrevistados treze homens e dezenove mulheres, sendo que 50% do grupo, portanto, dezesseis participantes, tinham entre 35 e 44 anos. A amostra homogênea inicial era composta de professores atuantes em cursos de graduação que participaram, voluntariamente, de eventos de sociabilização e compartilhamento de experiências práticas docentes; entretanto, por ser uma amostragem do tipo teórica, foram inclusos também docentes que não participaram dos eventos. No total foram gravadas 22 horas e 45 minutos de entrevistas. Em média, as entrevistas duraram 42 minutos. A transcrição das entrevistas na íntegra gerou documentos que foram analisados por meio do software ATLAS.ti. Os relatórios de observação também foram documentos primários incluídos e analisados por meio do software.

Imediatamente após a primeira entrevista foi iniciado o processo de análise. A transcrição, a leitura e a preparação dos documentos primários para inclusão no software são consideradas parte da análise (^{CRESWELL, 2014}). Em paralelo ao uso desse software de análise, utilizamos outro para gestão de planilhas que amparassem a organização das entrevistas e do perfil dos participantes, determinando um controle para o processo de coleta e análise. Outra finalidade dessa organização era garantir a variabilidade na amostra ― por área de formação e atuação, além de estabelecer uma estratégia de acompanhamento das datas de envio e reenvio dos convites ― mantendo o cronograma de pesquisa.

Em simultâneo ao ato de transcrição, ocorreu o registro de notas, primeiramente apenas no software de edição de texto, constituindo simultaneamente um diário de pesquisa e alguns memorandos (^{VOSGERAU et al., 2017}). Notas de campo mais reflexivas e que poderiam vir a ser relevantes para a análise, estabelecendo questões ou possíveis associações entre os dados, foram incluídas no documento primário ― realizando o registro das interpretações e ideias provisórias.

A análise de dados com suporte do ATLAS.ti

A teoria fundamentada consiste em três etapas de codificação que são progressivas e, a partir delas, são integradas categorias emersas da codificação e da reflexão acerca dos dados. São elas: aberta, axial (focalizada) e seletiva (teórica) (^{TAROZZI, 2011}; ^{CRESWELL, 2014}).

A primeira etapa ou ciclo de codificação busca abrir os dados em diferentes sentidos. A codificação inicial não parte de um consistente referencial teórico. Ao contrário, a orientação da grounded theory é para que a imersão no campo, para a realização das entrevistas e observações, seja realizada antes de uma análise da literatura (^{TAROZZI, 2011}). A segunda faz uma análise mais ampla do texto, a partir das categorias e subcategorias (^{STRAUSS; CORBIN, 2008}).

A primeira análise dos dados realizada foi do tipo linha a linha ou microanálise (^{STRAUSS; CORBIN, 2008}; ^{TAROZZI, 2011}) para iniciar o processo de codificação no ATLAS.ti. Na codificação aberta foi mantida a aderência às palavras usadas pelos participantes (TAROZZI, 2011) porque o foco é identificar os conceitos, suas propriedades e dimensões a partir de uma abertura do texto concreto, ou seja, o que foi exatamente enunciado pelo participante, o que permite separar em partes e buscar semelhanças e/ou diferenças (STRAUSS; CORBIN, 2008).

Conforme o avanço da coleta de dados e da análise, com a codificação aberta, o roteiro de entrevistas foi sendo ajustado e se tornou mais específico, com questões mais elaboradas e diretas. A Figura 2 exemplifica a aderência à palavra na codificação aberta e demonstra o processo de reagrupamento de dados, relacionando categorias e subcategorias em relação ao fenômeno estudado.

Fonte: (MEYER; VOSGERAU, 2018)

Figura 2 Tela do software de análise de dados ATLAS.TI, versão 8, que evidencia um primeiro ciclo de codificação aberta e, em seguida, a codificação axial 

A codificação axial e aberta não são atos sequenciais e ocorrem em paralelo de forma natural (^{STRAUSS; CORBIN, 2008}), pois conforme é realizada a codificação aberta surge um sentido sobre como os dados estão relacionados entre si. Da mesma forma, a produção de memorandos ou “armazém de ideias” (STRAUSS; CORBIN, 2008, p.152), com a finalidade de destacar as associações, os questionamentos e as percepções que emergem a partir dos dados, de comentários ― que orientam como estamos rotulando e conceituando os códigos e as categorias, indicando seus limites ― e de um diário de pesquisa com notas e indicações operacionais e reflexivas ao longo do processo (^{VOSGERAU et al., 2017}).

Também foi realizada a codificação dos relatos de observação dos eventos de compartilhamento de experiências, com códigos e categorias próprios, atendendo a um plano simplificado de análise de dados em específico. As primeiras conclusões resultantes da análise dos relatos apresentados não apenas auxiliaram na seleção dos participantes, como já afirmamos anteriormente, como permitiram estabelecer uma relação (rapport) para as entrevistas individuais.

Elaboramos redes (networks) por participante de pesquisa (Figura 3), com enfoque naqueles que efetivamente aceitaram o convite e foram entrevistados na sequência da coleta de dados, o que de fato permitiu a triangulação de dados. Os relatórios (reports) das categorias e códigos (Figura 3), por outro lado, deram uma visão geral em relação aos eventos observados.

Se, a partir da transcrição ou codificação, surgia alguma pergunta, reflexão ou tentativa de associação entre os dados, revíamos todos os documentos anteriores e, caso necessário, até mesmo o protocolo para entrevistas seguintes. Em relação às entrevistas, a partir do desenvolvimento de um conjunto inicial de categorias, buscando linhas de coerência entre elas, identificamos a core category¹ (^{TAROZZI, 2011}). Para a realização da terceira etapa de codificação, ou codificação seletiva, elaboramos proposições a serem verificadas, todas em relação à categoria central, o que evidencia tanto a maturação das categorias quanto a emersão de uma teoria. Dessa forma, verificamos as propriedades da categoria central e buscamos validá-la, criando um esquema teórico.

A partir do desenvolvimento de um conjunto inicial de categorias como: Motivação; Condições de Trabalho; Bom Professor; Aperfeiçoamento; entre outras - buscando relações, tecendo comparações e construindo um alinhamento entre elas -, identificamos a "Colaboração" e a subcategoria "Colaboração Limitada" como essenciais para compreender como um Portal poderia contribuir para o desenvolvimento profissional de professores universitários. Destaque para o termo "limitada" que se tornou protagonista por evidenciar a necessidade de alto grau de confiança entre os pares e de redução de condições de insegurança e do medo de julgamentos negativos e avaliações críticas (MEYER; VOSGERAU, 2018).

A análise dos dados coletados permitiu a sistematização de um modelo empírico composto por conceitos e proposições para a concepção da proposta de um Portal que foi confrontado por meio de análise de literatura e, posteriormente, validado (MEYER; VOSGERAU, 2018). Entre os princípios apontados no modelo que emergiu do discurso dos professores, destaca-se a legitimidade do compartilhamento e da socialização em prol da aprendizagem profissional da docência, desde que sejam asseguradas condições de confiança. O conteúdo deve ter validade científica, ter aderência à realidade profissional e ser passível de ser reaplicável em diferentes contextos, mediante ajustes e adaptações. Para potencializar isto, são valorizados os relatos, passo a passo (tutoriais) e os resultados dos estudantes. Prezam que os materiais sejam informativos e didatizados, com foco em exemplos de como fazer, fortemente estruturados para que possam ser acessíveis e utilizados como fonte de consulta. Textos curtos, vídeos breves, planos de ensino e comentários moderados são apreciados, focando em uma aprendizagem do tipo declarativa e procedimental (MEYER; VOSGERAU, 2018).

Operacionalmente, além da elaboração de memorandos e comentários, a análise exigiu a produção de relatórios (reports) e de redes (networks), com suporte do software ATLAS.ti, em relação a cada uma das categorias e dos documentos (participantes), o que permitiu a leitura e a verificação dos dados que estavam emergindo e a constituição do modelo teórico.

A Figura 3 representa visualmente os relatórios e as redes mencionadas, assim como apresenta a rede de um dos participantes com seus dados identitários (perfil), códigos e categorias presentes em sua entrevista e parte do relatório de uma categoria e subcategoria, destacando um fragmento ou citação (quotation) deste participante.

Fonte: (MEYER; VOSGERAU, 2018)

Figura 3 Relatórios e redes utilizadas na análise 

A Figura 3 também demonstra o suporte do software ATLAS.ti ao permitir representações visuais que registram o processo de análise. Junto aos memorandos, aos comentários e ao diário de pesquisa, essas representações foram essenciais para a análise e para os resultados da pesquisa empreendida. Os relatórios também possibilitam a auditoria dos resultados por pares ou avaliadores.

O ATLAS.ti também foi fundamental na apresentação gráfica dos resultados, permitindo associações e a ancoragem entre a interpretação e a análise do pesquisador qualitativo com os dados de campo.

As Figuras 4 e 5 exemplificam as representações visuais utilizadas para demonstrar cada um dos resultados da pesquisa, o que permitiu a comprovação para avaliadores e leitores.

Fonte: (MEYER; VOSGERAU, 2018).

Figura 4 Demonstração dos resultados encontrados com apresentação de códigos, comentários, frequência e citações no ATLAS.ti 

Na Figura 4 é possível identificar a categoria “Bom Professor” e algumas das subcategorias associadas, como exemplo, “Foco Estudante”. Após “G” está o número de citações ligadas ao código, o que permite identificar a sua incidência e fundamentação, e “D” que é o número de códigos associados. Abaixo, há um comentário que registra o significado da categoria e subcategoria, orientando o processo de rotulação e conceituação empreendido. As caixas associadas às principais trazem a identificação do documento primário em que está presente, seguido do número de ordem dentro do documento ("4:4”), assim como os trechos relevantes das entrevistas que indicam a ocorrência do código.

Fonte: (MEYER; VOSGERAU, 2018)

Figura 5 Demonstração dos resultados encontrados com apresentação de códigos, comentários, frequência, associações e citações no ATLAS.ti 

Na Figura 5, é possível identificar uma associação entre códigos e, novamente, os segmentos de dados permitem a comprovação das relações estabelecidas. O software ATLAS.ti permite demonstrar, com clareza, como o pesquisador gerou o conhecimento a partir dos dados coletados em campo, tornando visível a análise e as associações, registrando a interpretação dos dados e contribuindo para a transparência do estudo.

ATLAS.ti e qualidade na pesquisa qualitativa

Na pesquisa descrita, a contribuição do software ATLAS.ti para a efetivação do plano de análise de dados no desenvolvimento da abordagem “teoria fundamentada nos dados” está na facilidade de acesso às informações, e, portanto, no fato de que o processo é em espiral, com idas e vindas, de maneira não linear. Isso obriga o pesquisador a refletir sobre o processo completo de investigação, realizando resgates aos dados de campo de forma permanente; ajustando os instrumentos de coleta de dados para permitir verificações; fortalecendo o vínculo entre a realidade e sua interpretação.

O software também colabora com a agilidade e o trabalho com um grande volume de dados, tendo em vista que foram realizadas e transcritas na íntegra 32 entrevistas e quatro relatórios de observação.

Seus recursos (como relatórios e teias) permitem que o pesquisador visualize as citações, os códigos e as categorias, realizando associações e permitindo que possam emergir novas perguntas.

A apresentação da quantidade de menções de cada código auxilia na determinação da categoria central de análise, assim como na verificação da saturação teórica. A organização do processo de análise de dados é facilitada com o uso dos recursos disponíveis no ATLAS.ti. Ao realçar as citações e realizar o registro das reflexões o pesquisador tem a possibilidade de melhor decidir a criação de um novo código ou categoria de análise de forma mais assertiva. Portanto, o recurso de memos e a geração de relatórios são fundamentais nesse processo. Outrossim, as possibilidades de sistematização dos resultados em forma de tabelas e representação gráfica permitem a realização de associações e ancoragem entre a interpretação e a análise do pesquisador com os dados de campo.

A partir das discussões sobre critérios e estratégias de validação na pesquisa qualitativa, apontadas por ^{Coutinho (2008}), ^{Creswell (2014}) e Diaz-Bazo (2019), é possível determinar que, no caso analisado, o ATLAS.ti contribuiu fortemente em relação aos critérios de credibilidade, consistência e confirmabilidade.

Quanto à credibilidade, o software permite atuar com uma quantidade abundante de informação e facilita a triangulação de diferentes fontes, garantindo facilidade no acesso aos dados, mesmo para usuários principiantes e que conhecem poucos recursos e operações.

Outra contribuição se dá em relação à consistência da pesquisa. O uso dos recursos disponíveis no ATLAS.ti transferem ao relato de pesquisa a potencialidade de descrever com exatidão os processos, permitindo que outros pesquisadores ou avaliadores possam auditá-los, verificando os códigos, categorias e citações.

Sua força maior, porém, está em permitir, a partir da aplicação de seus recursos e de um uso eficiente do software, a exposição de evidências sejam elas, como no caso apresentado, trechos das citações dos sujeitos entrevistados ou ainda fotografias e imagens em outros tipos de estudo, confirmando e trazendo transparência para as inferências, interpretações e resultados obtidos na pesquisa.

Considerações finais

San Martin Cantero (2014) sugere a superação de um mero modismo no uso de softwares específicos de análise de dados para uma posição em que o pesquisador se comprometa com a identidade epistemológica da pesquisa e especifica as construções teóricas que norteiam a sua compreensão e interpretação em relação ao objeto de estudo. Destaca que o uso do ATLAS.ti, em coerência com a teoria fundamentada, permite maior clareza em relação ao processo de análise de dados qualitativos e sustenta a necessidade de "sensibilidade teórica, criatividade e reflexão constante" (^{SAN MARTIN CANTERO, 2014}, p.119) para a realização da análise.

Obviamente, os recursos disponíveis no ATLAS.ti apoiam a análise qualitativa, respeitando autonomia e processo reflexivo do pesquisador. O que se demonstrou uma novidade foi que, ao planejar a sua utilização de forma coerente com o encaminhamento metodológico e com o plano de análise de dados, a aplicação do software reforçou a adoção de cuidados com o rigor, indicados por ^{Strauss e Corbin (2008}) na perspectiva mais prescritiva e estruturada da pesquisa do tipo grounded theory. Além disso, potencializou as medidas necessárias para maior qualidade da investigação qualitativa, especialmente no que se refere à credibilidade, consistência e confirmabilidade. O potencial de transparência do software para “manuseio”, comparações e validação dos dados durante a análise permitiu a construção de um modelo teórico para o desenvolvimento de um portal para contribuir no desenvolvimento profissional da docência em professores que atuam em universidades (MEYER; VOSGERAU, 2018), que segue sendo validado por pesquisas posteriores.

No contexto da pesquisa analisada foi possível confirmar que o uso de um software para análise de dados exige uma organização prévia do pesquisador, que não deveria ser considerado uma especificidade do uso de um software em si, pois afinal todo pesquisador precisa ter planilhas de controle e de verificação, mas pela característica da Grounded Theory, cuja coleta e análise se dão em simultâneo, isso é ainda mais imprescindível. Portanto, planejamento é uma palavra de ordem, em relação ao cronograma, em relação aos documentos, notas de campo e finalmente na análise de dados.

Além disso, é preciso aprender a usar o software e fazer isso de forma a atender as especificidades de sua pesquisa, ao encaminhamento metodológico necessário e ao rigor imprescindível para generalização e validação dos dados. Portanto é preciso dispor de tempo e de capacidade de reflexão para fazer isso. Nesta pesquisa, como foi a primeira experiência tanto do uso do software quanto da Grounded Theory, não foi possível dispor de todo o tempo necessário para a aprendizagem dos recursos de análise mais avançados do software, levando a impressão excessiva de relatórios, o que se pode dizer que não é muito sustentável e dificulta a percepção de todas as possíveis relações entre as codificações realizadas.

Conclui-se que a utilização de qualquer recurso tecnológico para a análise de dados em toda a sua potencialidade necessita de tempo para a compreensão das possibilidades de uso do recurso e, simultaneamente, uma aprendizagem sobre as opções metodológicas de forma autônoma. Ou seja, em um movimento cíclico, o conhecimento com profundidade dos pressupostos e estratégias definidos para o tipo de pesquisa empreendido vão conduzir e direcionar a aprendizagem em profundidade do software, assim como o conhecimento em profundidade das opções oferecidas pelo recurso levarão ao questionamento sobre os cuidados tomados pelo pesquisador para garantir rigor, qualidade e transparências aos processos metodológicos aplicados em sua pesquisa, dando ênfase à necessidade de autonomia de aprendizagem do pesquisador.