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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.78 Curitiba  2023  Epub 04-Oct-2023

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.078.ds05 

Dossiê

Navegar é impreciso: algumas considerações sobre a incorporação do paradigma da complexidade na formação de professores

Navigating is imprecise: incorporating the complexity paradigm in teacher training

Navegar es impreciso: algunas consideraciones sobre la incorporación del paradigma de la complexidad en la formación de docentes

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Cidade, UF, País


Resumo

Procuramos explorar nesse artigo as principais implicações do paradigma da complexidade na formação de docentes. O artigo se divide em cinco partes. Na primeira, fazemos uma introdução geral ao paradigma da complexidade com referências clássicas do tema, tais como Fritjof Capra e Ludwig von Bertalanffy. Em seguida, começamos a extrair algumas de suas principais consequências. Na segunda seção, procuramos demonstrar que, de acordo com o paradigma da complexidade, não existe qualquer possibilidade de seguirmos trabalhando com a concepção moderna de “sujeito” como substância essencialmente racional, consciente e livre. Sem a figura do sujeito, torna-se preciso repensar o próprio significado de “conhecimento”, o que propomos na seção três, com a ajuda dos biólogos Maturana e Varela. Posteriormente, indicamos que o paradigma da complexidade destrói a fronteira entre natureza e artifício e exploramos as possibilidades dessa indistinção com o Manifesto Ciborgue de Donna Haraway e a Psicanálise de MD Magno - pensador que incorpora o paradigma da complexidade na psicanálise. Encerramos nossas investigações com a proposta de uma ética da regência para além de repressão e liberdade. Em nossas considerações finais falamos sobre a teoria do Caos, cuja matemática tornou-se fundamental para descrever sistemas complexos e procuramos indicar qual seria, em nossa visão, a principal contribuição do paradigma da complexidade na formação de professores.

Palavras-chave: Complexity; Subject; Knowledge; Teacher Training; Nature.

Abstract

We aim to explore in this article the main implications of the complexity paradigm in teacher education. The article is divided into five parts. In the first, we provide a general introduction to the complexity paradigm with classic references on the subject such as Fritjof Capra and Ludwig von Bertalanffy. Then, we begin to extract some of its main consequences. In the second section, we seek to demonstrate that according to the complexity paradigm, there is no possibility of continuing to work with the modern conception of the "subject" as an essentially rational, conscious and free substance. Without the figure of the subject, it becomes necessary to rethink the very meaning of "knowledge," which we propose in section three with the help of biologists Maturana and Varela. Next, we indicate that the complexity paradigm destroys the boundary between nature and artifice and explore the possibilities of this indistinction with Donna Haraway's Cyborg Manifesto and MD Magno's Psychoanalysis - a thinker who incorporates the complexity paradigm in psychoanalysis. We conclude our investigations with the proposal of an ethics of regency beyond repression and freedom. In our final considerations, we discuss the theory of Chaos, whose mathematics have become fundamental for describing complex systems, and we try to indicate what, in our view, would be the main contribution of the complexity paradigm in teacher education.

Keywords: Complexity; Subject; Knowledge; Teacher training; Nature.

Resumen

Buscamos explorar en este artículo las principales implicaciones del paradigma de la complejidad en la formación de docentes. El artículo se divide en cinco partes. En la primera, hacemos una introducción general al paradigma de la complejidad con referencias clásicas del tema como Fritjof Capra y Ludwig von Bertalanffy. Luego, comenzamos a extraer algunas de sus principales consecuencias. En la segunda sección, buscamos demostrar que de acuerdo con el paradigma de la complejidad, no existe ninguna posibilidad de seguir trabajando con la concepción moderna de "sujeto" como sustancia esencialmente racional, consciente y libre. Sin la figura del sujeto, se hace necesario repensar el propio significado de "conocimiento", lo que proponemos en la sección tres con la ayuda de los biólogos Maturana y Varela. A continuación, indicamos que el paradigma de la complejidad destruye la frontera entre naturaleza y artefacto y exploramos las posibilidades de esta indistinción con el Manifiesto Ciborg de Donna Haraway y el Psicoanálisis de MD Magno - pensador que incorpora el paradigma de la complejidad en el psicoanálisis. Concluimos nuestras investigaciones con la propuesta de una ética de la regencia más allá de la represión y la libertad. En nuestras consideraciones finales hablamos sobre la teoría del Caos, cuya matemática se ha vuelto fundamental para describir sistemas complejos y tratamos de indicar cuál sería, en nuestra opinión, la principal contribución del paradigma de la complejidad en la formación de docentes.

Palabras clave: Complexidad; Sujeto; Conocimiento; Formación de docentes; Naturaleza.

Considerações iniciais: uma breve introdução ao paradigma da complexidade

Em seu livro A Teia da Vida, o físico Fritjof Capra procura mapear o surgimento e desenvolvimento de um novo paradigma científico com potencial para alterar sensivelmente toda a nossa visão de mundo. “O novo paradigma (...) concebe o mundo como um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas” (CAPRA, 2006, p. 25). Tal paradigma

reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos, e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades estamos todos encaixados nos processos cíclicos da natureza (e, em última análise, somos dependentes desses processos) (CAPRA, 2006, p. 25)

Esse novo paradigma seria caracterizado por uma visão sistêmica que, ao invés de considerar o mundo como uma coleção de objetos isolados, compreende cada existência singular como configuração e concerto de relações e interações.

De acordo com a visão sistêmica, as propriedades essenciais de um organismo, ou sistema vivo, são propriedades do todo, que nenhuma das partes possui. Elas surgem das interações e das relações entre as partes. Essas propriedades são destruídas quando o sistema é dissecado, física ou teoricamente, em elementos isolados. Embora possamos discernir partes individuais em qualquer sistema, essas partes não são isoladas, e a natureza do todo é sempre diferente da mera soma de suas partes. (CAPRA, 2006, pp. 40-41)

O novo paradigma viria quebrar com os pressupostos do paradigma mecanicista-analítico, que se impôs como dominante a partir do século XVII. O mecanicismo-analítico tem como grande expoente filosófico René Descartes e atinge um sucesso sem precedentes nas possibilidades de descrição e previsão de fenômenos naturais com Isaac Newton. Em seu famoso Discurso do Método (2001), Descartes estabeleceu as bases do método analítico em quatro princípios fundamentais: O primeiro seria

nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal; ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não incluir em meus juízos nada além daquilo que se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida (DESCARTES, 2001, p. 23)

O segundo, que faz o método cartesiano passar à tradição com a nomenclatura método analítico consiste em “dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para melhor resolvê-las” (DESCARTES, 2001, p. 23). É o princípio da divisão de um determinado objeto de pesquisa em partes para que se possa investigar cada uma das partes isoladamente. O terceiro nos instrui a começar nossas investigações pelas partes mais simples de um objeto de investigação e progressivamente avançar até o estudo das mais compostas. E o quarto recomenda o registro minucioso do passo-a-passo da investigação: “fazer em tudo enumerações tão completas, e revisões tão gerais, que eu tivesse certeza de nada omitir” (DESCARTES, 2001, p. 23).

A compreensão fundamental em jogo com o paradigma mecanicista-analítico é a de um mundo-máquina regido por leis universalmente válidas e imutáveis em que cada parte, como peça de uma gigantesca engrenagem, desempenha sua função específica, garantindo assim o bom funcionamento do todo. A analogia tecnológica para essa visão de mundo é o relógio. Ao formular as cada vez mais precisas equações capazes de descrever movimentos físicos, os cientistas modernos se sentiam desvendando os segredos da própria mente do relojoeiro divino. Para compreender o funcionamento de um determinado fenômeno-máquina, como vimo na descrição metodológica de Descartes, deve-se decompor e dividir o todo a fim de estudar e descrever suas partes individuais mais simples. Ao compreender a totalidade das partes, estaria garantida uma compreensão certeira do todo, pois o todo nada mais seria do que a soma das partes no exercício das suas devidas funções segundo a regência de uma mesma e única lei fundamental.

Em contrapartida, tal como explicita a excelente descrição de Capra (2006), a visão sistêmica de mundo lida com complexos organizacionais nos quais o todo é maior do que a soma das partes. As interações entre as partes fazem emergir uma lógica de funcionamento que não é redutível a nenhuma das partes isoladamente, nem a uma soma simples de partes individuais no exercício de suas devidas funções. As interações entre as partes compõem um modo de funcionamento e organização do “todo” que, por sua vez, reforça e reafirma certos padrões de organização das partes. Essa é, aliás, a própria definição de complexidade.

Em seu famoso artigo Complex Networks, Amaral e Ottino procuram diferenciar sistemas complicados de sistemas complexos. Eles explicam que sistemas complicados têm “um grande número de componentes os quais têm papéis bem definidos e são governados por leis bem compreendidas” (AMARAL; OTTINO, 2004, p. 147). O exemplo de sistema complicado que eles oferecem é o de um Boeing, composto de muitas partes, mas com possibilidades bastante limitadas de responder a mudanças ambientais. Como os autores nos lembram, sem uma tripulação, tal sistema não consegue desempenhar nem sequer suas mais básicas funções.

Acompanhemos a descrição que os autores fazem de sistemas complexos:

Sistemas complexos: auto-organização e emergência - É muito difícil chegar a uma definição abrangente de sistemas complexos. No entanto, vamos tentar uma: Um sistema complexo é um sistema com um grande número de elementos, blocos de construção ou agentes, capazes de interagir entre si e com seu ambiente. A interação entre os elementos pode ocorrer apenas com vizinhos imediatos ou com distantes; os agentes podem ser todos idênticos ou diferentes; eles podem se mover no espaço ou ocupar posições fixas e podem estar em um de dois estados ou vários estados. A característica comum de todos os sistemas complexos é que eles exibem organização sem nenhum princípio organizador externo aplicado. O todo é muito mais do que a soma de suas partes. Exemplos de sistemas complexos estão entre algumas das questões mais elusivas e fascinantes investigadas pelos cientistas hoje em dia: como a consciência surge das interações dos neurônios no cérebro e entre o cérebro e seu ambiente, como os seres humanos criam e aprendem regras sociais, ou como o DNA orquestra processos em nossas células. (AMARAL; OTTINO, 2004, p. 148)

Os autores destacam, logo no início do trecho, duas características-chave de sistemas complexos. A primeira sendo a auto-organização, isto é, sua organização não é determinada por uma lei ou regente externo pré-existentes. Sua organização é fruto da própria dinâmica de interação das partes do sistema entre si e entre as partes e o todo por elas formado. A segunda característica marcante dos sistemas complexos é a emergência. Da interação entre as partes emerge um novo tipo de organização, com um novo tipo de lógica diferente da lógica organizacional do nível anterior.

O termo foi introduzido pelos chamados emergentistas britânicos no final do século XIX. John Stuart Mill fala do curioso caso em que “a combinação química de duas substâncias produz, como se sabe bem, uma terceira substância com propriedades diferentes daquelas presentes nas duas substâncias isoladamente”, tal como ocorre com a água, que não apresenta “nenhum traço das propriedades do oxigênio ou do hidrogênio” e com os experimentos com “dois líquidos, os quais, quando misturados em uma certa proporção, instantaneamente se tornam, não uma quantidade maior de líquido, mas uma massa sólida” (MILL, 1906, pp 243-244). Coube a George Lewes, em 1875, a cunhagem do termo “emergência” para se referir a esse tipo de interação causal que resulta numa lógica de organização diferente daquela presente no nível anterior (O’CONNOR, 2020).

Ao longo do século XX, a noção de complexidade começou a aparecer em diversos campos do conhecimento. A biologia organísmica, procurando superar o dualismo entre mecanicismo e vitalismo (a noção de que os corpos vivos são animados por uma “força vital” misteriosa), passou a pensar em termos de dinâmicas e padrões de organização. Os biólogos organísmicos

enfatizaram o fato de que uma das características-chave da organização dos organismos vivos era a sua natureza hierárquica. De fato, uma propriedade que se destaca em toda vida é a sua tendência para formar estruturas multiniveladas de sistemas dentro de sistemas. Cada um desses sistemas forma um todo com relação às suas partes, enquanto que, ao mesmo tempo, é parte de um todo maior. Desse modo, as células combinam-se para formar tecidos, os tecidos para formar órgãos e os órgãos para formar organismos. Estes, por sua vez, existem dentro de sistemas sociais e de ecossistemas. Ao longo de todo o mundo vivo, encontramos sistemas vivos aninhados dentro de outros sistemas vivos. (CAPRA, 2006, p. 40).

Com o surgimento da mecânica quântica, a física de partículas tornou-se uma física das redes de relações entre partículas. Ao invés de encontrar as partículas fundamentais que, como blocos de construção independentes, nos ajudariam a compreender a natureza última da realidade, a física quântica se deparou com padrões complexos de interação em que as partículas - e as coisas - não são apenas interativas, mas interconstitutivas, constituindo-se mutuamente através das relações. Como coloca muito bem Carlo Rovelli:

A teoria não descreve como as coisas “são”: descreve como as coisas “acontecem” e como “influem umas sobre as outras”. Não descreve onde está uma partícula, mas onde a partícula “se faz ver pelas outras”. O mundo das coisas existentes é reduzido ao mundo das interações possíveis. A realidade é reduzida a interação. A realidade é reduzida a relação. (...) Todas as características de um objeto só existem em relação a outros objetos. É só nas relações que os fatos da natureza se configuram. No mundo descrito pela mecânica quântica, não existe realidade sem relação entre sistemas físicos. Não são as coisas que podem entrar em relação, mas são as relações que dão origem à noção de “coisa”. (ROVELLI, 2014, p. 123) [Destaques entre aspas do próprio Rovelli]

A emergência da noção de complexidade em campos diversos deu impulso à tentativa de produção de uma Teoria Geral dos Sistemas (2009), título do livro publicado por Ludwig Bertalanffy em 1968. Trata-se de um esforço interdisciplinar para lidar com “problemas de inter-relação de grande número de ‘variáveis’” (BERTALANFFY, 2009, p. 15). Bertalanffy fala então do surgimento de um “novo paradigma”, com uma “nova filosofia da natureza” baseada em um “ponto de vista organísmico do ‘mundo como uma grande organização’”. (BERTALANFFY, 2009, p. 16).

Como vimos, ao longo do século XX, para além do paradigma mecanicista-analítico, surge um novo paradigma que poderíamos chamar de paradigma da complexidade. A partir das referências anteriormente citadas, compreendemos o paradigma da complexidade como uma visão de mundo segundo a qual os seres existentes se articulam como sistemas compostos por relações e interações auto-organizáveis a partir das quais há emergência de modos de ser que não são redutíveis a nenhuma das partes isoladamente.

Após essa breve introdução, passaremos a uma investigação dos principais impactos do paradigma da complexidade na formação de professores, procurando explicitar de que maneira ele desestabiliza, desconfigura ou desconstrói os sentidos mais geralmente atribuídos aos processos educacionais.

Este é um trabalho de Filosofia da Educação. No livro Metodologia e prática de pesquisa em Filosofia (2015), Evandro Barbosa e Thaís Cristina Costa nos lembram que em uma investigação filosófica

Não nos interessa tomar o saber preexistente como dado, mas perscrutar caminhos não percorridos, através de uma atividade filosófica crítica que busque a justificação do conhecimento de uma forma mais profunda que a simples aceitabilidade do senso comum sobre suas definições (BARBOSA; COSTA, 2015, p. 14).

Os autores citam Thomas Nagel para demarcar a diferença entre a Filosofia e os demais campos das ciências:

Ao contrário da ciência, ela não se apoia em experimentos ou na observação, mas apenas na reflexão. E, ao contrário da matemática, não dispõe de nenhum método formal de verificação. Ela se faz pela simples indagação e arguição, ensaiando ideias e imaginando possíveis argumentos contra elas, perguntando-nos até que ponto nossos conceitos de fato funcionam. (NAGEL ap. BARBOSA; COSTA, 2015, p. 14)

Nessa intenção de indagar até que ponto nossos conceitos de fato funcionam, propomos nesse artigo colocar em questão os dois sentidos mais comumente atribuídos aos processos educacionais: a transmissão de conteúdos de conhecimento e o ensinamento de valores morais. Sendo ambos esses projetos baseados na noção moderna de sujeito como centro de comando substancial, racional e consciente, propomos também em primeiro lugar investigar até que ponto esse conceito de sujeito herdado da modernidade ocidental verdadeiramente funciona.

Assim, de acordo com os “passos básicos” (BARBOSA; COSTA, 2015, p. 24) de uma pesquisa em Filosofia, o problema que move nosso trabalho é: se incorporarmos os princípios do paradigma da complexidade em nossa formação enquanto professores, quais seriam as principais implicações sobre a maneira como costumamos compreender o sentido da nossa prática? Trata-se de um problema situado na fronteira entre ontologia - já que se trata de uma investigação sobre quem são as pessoas envolvidas nos processos educacionais articulada a uma investigação sobre a própria natureza do mundo; epistemologia, pois exige que nos questionemos sobre o que é conhecimento; e ética, pois tem um impacto direto em nossa maneira de ser e estar no mundo.

Nossa hipótese básica é que o paradigma da complexidade inviabiliza o conceito tradicional de sujeito, exigindo que repensemos também os sentidos mais comumente atribuídos aos processos educacionais. Por fim, podemos dizer com Evandro Barbosa e Thaís Cristina Costa que

Nem sempre o problema vem acompanhado de uma única questão, por isso sua resolução pode exigir equacionar problemas correlatos que orbitam a questão central. Nesse caso, a resolução da questão central (e suas questões secundárias) passa diretamente pelo nível justificação que oferecemos em nossas respostas, tendo em vista que essa busca ad eterno pelo conhecimento não repousa em uma resposta absoluta. Com isso, somos convidados a revisar nossas crenças a todo o momento, na medida em que nossas respostas repousam sobre argumentos passíveis de revisão e crítica. De certa forma, este trabalho filosófico de refinar nossas respostas e soluções é o que permite aprimorar e aumentar o nível de justificação da argumentação filosófica. (BARBOSA; COSTA, 2015, p. 26)

Quanto ao tipo e procedimentos técnicos, nosso trabalho combina pesquisa exploratória com pesquisa bibliográfica (BARBOSA; COSTA, 2015, p. 32-33) sobre o tema teoria da complexidade entre obras clássicas, de divulgação científica ou obras mais recentes aplicadas a questões específicas. Nossa leitura é guiada pelas exigências do pensamento filosófico que, como muito bem colocado por Gonçalo Armino Palácios, deve mobilizar “espírito crítico, imaginação e poder argumentativo” (PALÁCIOS, 1997, p. 33).

Sem sujeito, como fica?

Ao corrigir trabalhos em um curso de formação de professores é provável que se encontre um bom número de vezes a expressão “formar sujeitos críticos e reflexivos”. Vez por outra, ela se encaixa na linha de argumentação construída até então e vem coroar uma cadeia de argumentos bem-intencionados quanto ao papel do educador. Numa boa maioria das vezes, no entanto, ela aparece como um coringa ou super-trunfo supostamente capaz de elevar magicamente o nível do texto com sua mera aparição. É muito comum vermos eventos e artigos acadêmicos sobre os “sujeitos” da educação, o sujeito professor, o sujeito aluno, a interação entre sujeitos etc.

“Sujeito”, no entanto, é a pedra angular do paradigma mecanicista-analítico. Não por acaso, a filosofia mecanicista-analítica de Descartes é também aquela que aponta como único ponto fixo de certeza imutável a presença do “sujeito” como “substância pensante” essencialmente racional e consciente. É esse sujeito substancial que, criado à imagem e semelhança de Deus, é único e indivisível, resultando no moderno conceito de “indivíduo”, com seus direitos, deveres e propriedades fundamentais. É também ele que, por participar em alguma medida da perfeição divina, é sempre “idêntico a si mesmo”, resultando na noção de “identidade”.

Ao operarmos efetivamente a transição para o paradigma da complexidade, como fica essa noção clássica de “sujeito”? Em sua premiada tese A Cidade sou Eu (2007), Rosane Araújo utiliza o paradigma sistêmico justamente para operar o “alargamento, descentramento, e dissolução do conceito de ?eu” (ARAUJO, 2007, p. 155). Desconstruindo a oposição binária entre “indivíduo” e “cidade” - que possibilita a afirmação que dá título à tese - a autora chega ao seguinte:

Assim como a cidade, também somos redes de formações, campos de força constantemente colocados em jogo, à medida que nos conectamos com os espaços, de maneira imbricada e interdependente. São essas situações relacionais que borram os limites e dissolvem as fronteiras que nos separam da cidade. (ARAUJO, 2007, p. 151)

A ideia de um “sujeito” substancial previamente constituído, único, idêntico a si mesmo e indivisível não sobrevive ao paradigma da complexidade. No paradigma da complexidade cada “coisa”, “objeto”, “pessoa”, “instituição”, “valor” ou “ideia” emerge como resultante de uma trama multidimensional de circunstâncias de todos os tipos - biológicas, físicas, químicas, culturais, tecnológicas. As interações entre circunstâncias variadas produzem padrões de organização específicos que aparecem configurados como singularidades específicas. Essas singularidades, no entanto, não são substanciais, mas relacionais e organísmicas; não são “unidades” previamente constituídas e fechadas sobre si mesmas. Estão abertas a múltiplas e diversas influências, afetações e interações que as compõem; não são “idênticas” a si mesmas, são compostas por multiplicidades de circunstâncias diversas em concerto, por isso mesmo, longe de ser imutáveis, são dinâmicas e experimentam transformações dependendo das variações nas interações que estabelecem.

Assim, não se sustentam como sentidos da educação nem a pretensão “tradicional” de formar sujeitos-padrão segundo princípios morais e conteúdos de conhecimento universais e imutáveis, nem a pretensão “progressista” de formar sujeitos críticos e reflexivos. Sujeitos críticos e reflexivos seriam como substâncias pensantes que, tomando assento num ponto de vista privilegiado, pode ver a totalidade das circunstâncias do seu mundo a partir de “fora”. Isso possibilita ao “sujeito” racional um ponto de vista “crítico” capaz de um diagnóstico preciso dos males do seu tempo, bem como uma ação livre, capaz de “transformar” seu mundo segundo um programa racional previamente estabelecido.

Ao incorporar realmente o paradigma da complexidade na formação de professores, mais do que se perguntar “que sujeito formar diante dessa radical mudança de paradigma?”, será preciso então que nos perguntemos: “como pensar a formação humana sem sujeito?”.

O que significa conhecer?

A despeito de todas as críticas tão bem formuladas por Anísio Teixeira e Paulo Freire, os grandes patronos da nossa Educação, ainda é muito comum imaginarmos que o que acontece em um processo educacional é a transmissão de conteúdos de conhecimento entre sujeitos racionais. Um dos sentidos mais comuns atribuídos à educação é justamente esse e, supondo que caia de paraquedas repentinamente diante de uma turma, um recém-chegado professor muito provavelmente imaginará que um dos sentidos fundamentais da sua presença ali será transmitir os conteúdos de conhecimento da sua respectiva disciplina aos sujeitos racionais e conscientes que o encaram. Numa sala de aula, no entanto, há sempre muito mais do que isso acontecendo. O que talvez não esteja acontecendo de maneira alguma é justamente a transmissão de conteúdos de conhecimento entre sujeitos racionais.

O paradigma mecanicista-analítico canonizou uma concepção de conhecimento segundo a qual há no seio do universo e na face da Terra um ser especial, diferente por natureza de todos os demais, o humano, que, por ser essencialmente racional e consciente, é capaz de conhecimento. O sujeito-racional-humano coloca-se, então, diante de um mundo-objeto e aplica suas faculdades sensíveis e principalmente suas faculdades intelectuais (capazes de processar as informações advindas dos sentidos) para conhecer os objetos que povoam o mundo. Nesse processo, o sujeito é ativo e os objetos passivos e o conhecimento deve buscar ser verdadeiro, isto é, universalmente válido.

O novo paradigma complexifica as coisas. Se tudo o que há emerge como efeito de uma grande rede de interações, não há nenhum “sujeito” nem nenhum “objeto” previamente constituídos que então entram numa relação especial que, por sua vez, produz um resultado chamado “conhecimento”. Incorporando o paradigma da complexidade, os pensadores da chamada teoria-ator-rede dedicaram boa parte de seus esforços a investigações acerca do chamado “conhecimento científico”. Muito além de pensar o conhecimento como produto da ação de um sujeito-cientista-racional em um ambiente-laboratório controlado, a teoria-ator-rede pensa qualquer conhecimento como resultante - inscrita em um suporte material - de interações de atores heterogêneos - artefatos tecnológicos, investimentos financeiros impulsionados por campanhas de marketing, interesses e significações diversos. O criador do termo é John Law. Assim ele descreve o procedimento dos pesquisadores ligados à teoria ator-rede ao investigar o que seja “conhecimento”:

o “conhecimento” (mas eles generalizam de conhecimento para agentes, instituições sociais, máquinas e organizações) pode ser visto como um produto ou efeito de uma rede de materiais heterogêneos. Eu coloquei “conhecimento” entre aspas porque o conhecimento sempre assume formas materiais. Ele aparece como uma fala, ou como uma apresentação numa conferência; ou ele aparece em artigos, livros, patentes. Ou ainda, ele aparece na forma de habilidades incorporadas em cientistas e técnicos (Latour e Woolgar, 1979). O “conhecimento”, portanto, é corporificado em várias formas materiais. Mas de onde ele vem? A resposta da teoria ator-rede é que ele é o produto final de muito trabalho no qual elementos heterogêneos - tubos de ensaio, reagentes, organismos, mãos habilidosas, microscópios eletrônicos, monitores de radiação, outros cientistas, artigos, terminais de computador, e tudo o mais - os quais gostariam de ir-se embora por suas próprias contas, são justapostos numa rede que supera suas resistências. Em resumo, o conhecimento é uma questão material, mas é também uma questão de organizar e ordenar esses materiais. Este então é o diagnóstico da ciência, na visão ator-rede: um processo de “engenharia heterogênea” no qual elementos do social, do técnico, do conceitual, e do textual são justapostos e então convertidos (ou “traduzidos”) para um conjunto de produtos científicos, igualmente heterogêneos. (LAW, s/d, p. 2)

O maior expoente da teoria-ator-rede, Bruno Latour, descreve a experiência hipotética de uma pesquisadora que visita um laboratório a fim de fazer uma pesquisa de campo - posição em que ele mesmo tantas vezes esteve em sua juventude:

ali encontra pessoas de jaleco branco, provetas de vidro, cultivos de micróbios, artigos com notas de pé de página: tudo indica que se encontra “no terreno da Ciência”; logo se põe a anotar com obstinação de onde provém os ingredientes sucessivos que seus informantes necessitam para levar adiante seu trabalho. Ao proceder desta maneira, a jovem reconstitui muito rapidamente uma lista de ingredientes que se caracterizam (…) por conter elementos cada vez mais heterogêneos. No mesmo dia pode ter anotado a visita de um jurista que foi tratar das questões de patentes, um pastor para as questões de ética, um técnico para a reparação de um novo microscópio, de um escolhido para o voto de uma subvenção, de um business angel para o lançamento da próxima start-up, de um industrial para ajustar um novo fermentador, etc. Uma vez que seus informantes asseguram que todos esses atores são necessários para o êxito do laboratório, ao invés de identificar os limites de um domínio, sempre questionados por diversas manchas, nada lhe impede de seguir as conexões de um elemento, pouco importa qual, e ver aonde leva. (LATOUR, 2013, p.44)

Há, portanto, uma rede de elementos heterogêneos - uma rede de circunstâncias de todos os tipos - que interagem e produzem efeitos emergentes.

Em uma sala de aula há uma rede de circunstâncias de todos os tipos: circunstâncias biológicas, eletroquímicas, significações culturais, saberes e técnicas vindos de muitos tempos e lugares diferentes, inscritos em suportes diferentes - papéis, HDs, nuvens, cérebros -, tecnologias diversas, complexos afetivos diversos, interagindo numa intrincada rede que vai produzindo reverberações singulares para cada um dos envolvidos. Não se trata, portanto, de uma relação unidimensional (transmissão de conteúdos de conhecimento) entre sujeitos, mas de uma rede multidimensional de agentes produzindo reverberações singulares.

Se eliminarmos a figura do “sujeito” substancial essencialmente racional e consciente, nos vemos impelidos a repensar o que chamamos de conhecimento. É o que propõem dois grandes nomes do paradigma da complexidade, Maturana e Varela, em seu belo livro A Árvore do Conhecimento (2001). Ao invés da dicotomia entre sujeito e objeto previamente constituídos que estabelecem uma relação específica “de conhecimento”, Maturana e Varela descrevem o processo do conhecer como inseparável do processo de viver e agir em meio a uma teia de relações que produz seres vivos singulares. Há uma “circularidade cognitiva” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 266) e um “acoplamento estrutural” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 87) que fazem com que cada ser vivo venha a existir como efeito de interações entre suas partes componentes e seu ambiente. Uma vez configurado esse mesmo ser vivo segue em interação com as circunstâncias que o compõem. Assim, numa rede de interações que produz transformações mútuas, as partes produzem o todo que produz as partes e o ser-vivo produz o ambiente que o produz.

Cada singularidade é um complexo afetivo que, para usar uma expressão de Spinoza, pode afetar e ser afetado de muitas maneiras:

o corpo humano [e não só o corpo humano] (...) é composto de um grande número de indivíduos de natureza diferente e pode, portanto (...), ser afetado de muitas e diferentes maneiras por um só e mesmo corpo e, inversamente, uma vez que uma só e mesma coisa pode ser afetada de muitas maneiras, poderá igualmente afetar de muitas e diferentes maneiras uma só e mesma parte do corpo. Por isso tudo, podemos facilmente conceber que um só e mesmo objeto pode ser causa de muitos e conflitantes afetos. (SPINOZA, 2016, p. 106)

Conforme suas possibilidades próprias de afetar e de ser afetado, um complexo existente vai mapeando, lendo e percebendo as circunstâncias ao redor de acordo com seus próprios interesses de conservação e expansão da própria força. Nesse movimento de mapeamento e percepção, um complexo existente vai desenvolvendo maneiras próprias de agir e reagir em relação ao mundo circunstante. Vai formando uma maneira própria de experimentar o mundo, ao mesmo tempo em que vai formando uma maneira própria de agir e reagir nesse mesmo mundo.

Maturana e Varela nos convocam a

perceber tudo o que implica essa coincidência contínua de nosso ser, nosso fazer e nosso conhecer, deixando de lado nossa atitude cotidiana de pôr sobre nossa experiência um selo de inquestionabilidade, como se ela refletisse um mundo absoluto. Por isso, na base de tudo o que iremos dizer está esse constante dar-se conta de que não se pode tomar o fenômeno do conhecer como se houvesse "fatos" ou objetos lá fora, que alguém capta e introduz na cabeça. A experiência de qualquer coisa lá fora é validada de uma maneira particular pela estrutura humana, que torna possível "a coisa" que surge na descrição. Essa Circularidade, esse encadeamento entre ação e experiência, essa inseparabilidade entre ser de uma maneira particular e como o mundo nos parece ser, nos diz que todo ato de conhecer faz surgir um mundo. Essa característica do conhecer será inevitavelmente um problema nosso, nosso ponto de vista e o fio condutor (...) Tudo isso pode ser englobado no aforismo: todo fazer é um conhecer e todo conhecer é um fazer. (MATURANA; VARELA, 2001, p. 31-32)

Em toda interação entre complexos afetivos - corpos afetivos que podem afetar e ser afetados de muitas maneiras - está acontecendo conhecimento. Ao invés de conceber um sujeito e um objeto previamente constituídos e passar à investigação epistemológica sobre as possibilidades de “acesso” desse sujeito cognoscente ao objeto - terá o sujeito um acesso ao mundo enquanto tal, ou será o mundo percebido apenas uma ilusão do sujeito? - a ênfase recai sobre a relação que atravessa e constitui corpos afetivos complexos e seus respectivos mundos - ambos formados de acordo com as possibilidades e capacidades mútuas de afetar e ser afetados. Ao contrário do que nos diz o paradigma mecanicista-analítico, o conhecimento é sempre, portanto, perspectivo, interessado e parcial.

A questão deixa de ser, então “como transmitir conteúdos de conhecimento de maneira mais eficaz e completa?”. Nem sequer será “como transmitir critérios seguros para diferenciar a verdade e a mentira, o universal e o particular?”. A questão passa a ser: como produzir abalos e reverberações que possam potencializar as possibilidades de afetar e serem afetados dos complexos afetivos envolvidos? Tal como coloca Spinoza:

É útil ao homem aquilo que dispõe o seu corpo a poder ser afetado de muitas maneiras, ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras os corpos exteriores; e é tanto mais útil quanto mais torna o corpo humano capaz de ser afetado e de afetar os outros corpos de muitas maneiras. E, inversamente, é nocivo aquilo que torna o corpo menos capaz disso. (...) Quanto mais o corpo se torna capaz disso, tanto mais a mente se torna capaz de perceber (...). Portanto, aquilo que assim dispõe o corpo e o torna capaz disso é necessariamente bom ou útil (...), e tanto mais útil quanto mais pode tornar o corpo capaz disso; e, inversamente (...), é nocivo se torna o corpo menos capaz disso. (SPINOZA, 2016, p. 180-181)

Ou seja, o conhecimento deixa de ter um sentido puramente intelectual e passa a ter um sentido ético-afetivo. A questão se torna então: como ampliar as capacidades de afetar e serem afetados dos complexos afetivos envolvidos nos processos educacionais?

Para além de Natureza e Cultura

Em seu Manifesto Cyborg de 1985, Donna Haraway toma o ciborgue - cybernetic organism - como representante máximo da vida contemporânea. Poderíamos tomar, com ela, o ciborgue como representante máximo do paradigma da complexidade. Os ciborgues, como ela nos lembra, são “criaturas que são simultaneamente animal e máquina, que vivem em mundos ambiguamente naturais e artificiais” (HARAWAY, 2019, p. 07).

O desenvolvimento tecnológico do século XX explicitou o caráter ilusório da fronteira entre natureza e cultura e entre natureza e artifício. Como ciborgues, vivemos conectados a uma rede de diversos materiais, técnicas, informações e tecnologias. Isso faz com que, por um lado, possamos pensar que tudo é natural, já que todos os materiais, bem como todas as técnicas e saberes necessários para a produção de tecnologia, não tendo vindo de nenhum “além”, estão na própria natureza. Por outro lado, podemos considerar, com o psicanalista MD Magno - que incorpora o paradigma da complexidade na psicanálise - que tudo é artificial, já que tudo o que há é uma articulação de materiais e códigos diversos. Se antes o “natural” estava envolto em mistério, se nada sabíamos sobre a origem e o modo de funcionamento dos seres “naturais”, uma vez que hackeamos os códigos da natureza, compreendemos que também os sistemas ditos “naturais” são apenas articulações de materiais e códigos em padrões de organização reprodutíveis em laboratório. Nas palavras de Magno:

Para mim, o que quer que haja é artifício. Distingo artifícios naturais, ou seja, dados espontaneamente, e artifícios industriais, produzidos pelo homem, com a sua “mãozinha”. Uma árvore é um artifício dado. Não tenho dúvida de que a insistência, mesmo na sua impotência, do saber, da artificiosidade humana em querer penetrar na construção de uma árvore, possa, um dia, vir a fabricar uma árvore por vias artificiosas. O mistério, o “misticismo”, em torno da natureza é absolutamente boçal. Não é da nossa espécie cultuar um mistério que não passa de ser a própria ignorância. O que é típico nosso é perguntar: será que há mesmo mistério? Será que, se formos penetrando aí e pesquisando, não descobriremos com que artifício a natureza se produz? Tanto é que insistimos e investimos rios de dinheiro na produção artificiosa de dominância sobre a naturalidade do corpo, no caso da medicina, do uso de remédios, dos processos de longevidade, de cura, etc. (MAGNO, 2001, p. 43-44)

Magno recusa qualquer suposição de uma “natureza” original que é acrescentada ou modificada pelo artifício. A suposição de uma “natureza humana” é o que a educação conservadora procura resguardar ou resgatar. O humano natural (ou divino) com seus valores naturais (ou divinos) deve ser protegido da corrupção do artifício. Assim, a mulher natural deve desempenhar seus papéis sociais naturalmente dados, o homem natural deve desempenhar seus papéis sociais naturalmente determinados e a sexualidade tem um único modo natural de expressão. Por isso, Magno insiste que é preciso

recusar-se a fazer reverência ao mito, à ideologia ou coisa que o valha, da existência de uma Natureza. A crença disto é o que faz com que suponhamos que há algo de intocável na realidade externa que é o creme do creme, a essencialidade natural do mundo ou a co-naturalidade do Universo com um certo Deus absolutamente consciente, onipotente, onipresente etc. (MAGNO, 1992, p. 132)

Ao comentar as implicações do manifesto ciborgue para a educação, Henrique Marins chama a atenção para alguns pontos importantes que caem por terra uma vez que se elimina a fronteira entre natureza e artifício:

A partir do momento em que se elimina a necessidade de estabelecer claramente onde termina o homem e onde começa a máquina, possibilitando perceber o ciborgue como uma criatura que é univocamente definida por sua multiplicidade, desconstrói-se os discursos que levam à totalidade. Assim, o ciborgue não é atingido pelo desejo edipiano, porque, enquanto homem-máquina, ele se fragmenta e se restitui sem o desejo de possuir ou de se identificar a seus progenitores; não anseia, tampouco, por uma redenção apocalíptica, pois, se ele não é formado a partir de uma natureza unificadora, seu destino não tem de sê-lo. (CARVALHO, 2013, p. 06)

O ciborgue não é essencialmente determinado por sua origem familiar. Ele é composto por multiplicidades de materiais, articulações e conexões. Assim, ele não está também automaticamente inserido numa comum-unidade ou irmandade de “semelhantes idênticos”. O ciborgue não tem uma História Universal que pré-determina sua origem, seu sentido e sua finalidade. O ciborgue não se dissolve em unidades ou totalidades, ele encarna uma singularidade dinâmica, um complexo afetivo cujo ser, as possibilidades, capacidades e percepções vão se transformando conforme as conexões que estabelece. Suas associações não se fazem pela força de uma natureza comum, nem de uma qualquer identidade cultural, mas sim pela potência de coalizões por afinidade (HARAWAY, 2019, p. 16).

A destruição da fronteira entre natureza e cultura - se está tudo conectado em rede, onde passaria a fronteira? - bagunça seriamente alguns dos sentidos éticos mais comumente atribuídos aos processos educacionais. Já mencionamos que os projetos conservadores tentam ancorar seus anseios numa suposta “natureza” imutável do humano, do homem, da mulher, da criança etc. Mas, mesmo os projetos ditos “libertadores”, ao tomarem como sentido a produção de “liberdade” e “autonomia” estão encarecendo uma suposta diferença de natureza entre o humano como sujeito racional, consciente e, como tal, livre para escolher seu destino, e os demais seres existentes, regidos por leis mecânicas e determinísticas.

Para além de Liberdade e Repressão

A modernidade, ancorada na noção de sujeito racional consciente produziu pelo menos dois macroprojetos educacionais. O primeiro, exaustivamente descrito por Foucault em Vigiar e Punir (2013) apresenta como sentido ético da educação a imposição de ordem, disciplina e de rígidos valores morais preestabelecidos. Tal projeto aposta na repressão de todas as expressões afetivas que destoam da sua norma padrão. O segundo propõe uma educação capaz de produzir liberdade e autonomia.

Até hoje, aquele professor que - como em nosso exemplo anterior - caísse de paraquedas diante de uma turma, provavelmente assumiria como sua segunda tarefa fundamental - ao lado da transmissão de conteúdos de conhecimento - a imposição de ordem e disciplina, o “domínio de turma”, a transmissão dos mais nobres valores morais já forjados pela civilização ocidental e, ao mesmo tempo, lembrando das suas melhores aulas de filosofia da educação, imaginaria que o sentido da sua prática é - paradoxalmente - produzir liberdade e autonomia naqueles “sujeitos” que agora o encaram.

Ambos os projetos tomam como fundamento inquestionado a presença de um sujeito essencialmente racional e consciente. O projeto conservador conta com a possibilidade de reproduzir infinitamente a formação de um sujeito-padrão segundo conteúdos de conhecimento e valores morais universais e imutáveis. Já a “liberdade” pretendida pelo projeto “progressista” é atributo fundamental de um sujeito que, criado à imagem e à semelhança de Deus, dispõe de livre-arbítrio para agir como bem entender. Autonomia seria a capacidade desse sujeito para estabelecer leis racionais - em nível individual e social - para si mesmo e para a comunidade (a comum-unidade) dos seres racionais. Para agir livremente, o “sujeito” teria que poder assumir uma posição externa à rede de circunstâncias e relações que o constituem, que o determinam e impulsionam. “De fora”, como um Deus, o sujeito poderia intervir nas circunstâncias pela única força da sua vontade livre e incondicionada.

Se pensarmos numa dinâmica de redes operantes segundo o paradigma da complexidade, tanto o projeto conservador quanto as pretensões progressistas de “liberdade” e “autonomia” simplesmente não se sustentam. O que faz com que cada um de nós seja o que é - e faça o que faz, e perceba o que percebe? Ter nascido num certo tempo, num certo lugar, sob certo regime de primeiros cuidados, em meio a determinadas condições climáticas, econômicas, sociopolíticas, tecnológicas, ter sido afetado pelas relações com as muitas coisas, pessoas e instituições que atravessaram e compuseram nosso caminho, ter adoecido e se restabelecido de muitas maneiras, ter experimentado uma variada gama de sofrimentos e alegrias, decepções, medos e expectativas, ter sido afetado pelas artes de diversos tipos que circulavam nesse tempo e nesse lugar, ter tomado parte num certo esquema educacional etc. A lista é infinita e inesgotável. Cada um desses elementos é como um ator heterogêneo interagindo numa imensa rede. A interação desse complexo dinâmico de circunstâncias vai formando para cada um de nós uma existência - e uma trajetória - absolutamente singular.

A tentativa de impor um padrão identitário a essa singularidade, reprimindo tudo o que, nela, destoa desse mesmo padrão, exige altos níveis de investimento - de tempo, recursos e energia - e está irremediavelmente fadada ao fracasso. Essa composição singular e complexa sempre destoa, sempre desvia, sempre produz dissonâncias. Por outro lado, a “liberdade” é impossível, pois conta com a ilusão de que em meio a todo esse processo dinâmico de articulações de circunstâncias em rede pudesse haver um “centro de comando” capaz de assumir o controle do processo. Cada um de nós já teve a oportunidade de experimentar, para o bem e para o mal, que uma tal suposição de comando e controle simplesmente não se sustenta. Dizemos que o “sujeito” escolhe carregar um guarda-chuva num dia chuvoso sem levar em conta que o próprio fato - incontrolável - de estar chovendo é um forte determinante dessa “escolha”. A existência de guarda-chuvas, por sua vez, remete ainda a toda uma rede de materiais, trabalhos, técnicas e transportes que tornam possível essa mesma “escolha”.

Assim, talvez, para além de repressão e liberdade pudéssemos tentar apostar na regência dessa multiplicidade de circunstâncias constitutivas a fim de produzir modos de expressão singulares. Mais do que agentes da lei ou agentes da liberdade, professores poderiam, então, quem sabe, ser mensageiros de circunstâncias maestrinas capazes de reger multiplicidades de circunstâncias e afetos. As artes, os esportes e as ciências carregam consigo o potencial de serem excelentes circunstâncias maestrinas. Ao contrário das instituições disciplinares dos projetos conservadores, as circunstâncias maestrinas não estarão preocupadas em consertar os complexos de circunstâncias e afetos que compõem cada um de nós. Circunstâncias maestrinas estarão preocupadas em concertar essa multiplicidade constitutiva, produzindo com ela modos de expressão e de existência singulares.

Considerações finais: navegar é impreciso

Em um dia de inverno de 1961, Edward Lorenz trabalhava em seu supercomputador no M.I.T. Ele trabalhava em um ambicioso projeto meteorológico alimentado pela ilusão megalomaníaca humana quanto à possibilidade de controlar inteiramente o clima do planeta - para fins de guerra e lazer. No computador, sequências numéricas correspondiam a variações climáticas específicas e operavam diversas simulações. Apressado para tomar um café, Lorenz arredondou a sequência numérica com uma diferença mínima, de um para mil. Ao invés de lançar 0,506127, lançou 0,506, julgando que uma diferença tão mínima não produziria qualquer alteração na repetição da simulação anterior. “Ao voltar, uma hora depois, viu algo que plantou a semente de uma nova ciência” (GLEICK, 1990, p. 14).

Essa nova ciência ficaria conhecida como Teoria do Caos e sua imagem paradigmática seria o chamado “efeito borboleta”, que em sua formulação mais popular, diz que “o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode gerar um furacão no Texas”. A matemática do Caos se tornou uma ferramenta chave para a descrição e mapeamento da dinâmica de sistemas complexos. O princípio fundamental da Teoria do Caos é a “dependência sensível das condições iniciais” (GLEICK, 1990, p. 20). Isso significa que em um sistema complexo, as “condições iniciais”, isto é, a rede de circunstâncias que compõe o sistema, atua decisivamente na determinação do seu comportamento futuro. Por isso, uma mínima circunstância não mapeada ou desconhecida, provocará, a médio ou longo prazo, uma resultante inteiramente diferente da inicialmente esperada. Lorenz descobriu que prever inteiramente o que aconteceria com o clima - e com qualquer outro sistema caótico - era absolutamente impossível.

Uma das tentações mais comuns da experiência docente é a vontade de controle. Planejar cada detalhe, prever cada possibilidade, prepara-se para cada cenário, prevenir-se de todo modo possível. Pré-determinar de maneira rígida o sentido do processo. Transmitir conteúdos de conhecimento. Impor ordem e disciplina. Produzir liberdade e autonomia.

A cibernética, que nos presenteou com o conceito de auto-organização - e que está na origem do ciborgue - remete ao grego kybernetes, o timoneiro. A imagem é curiosa. Pois faz pensar - como sempre insistiu Platão - que o timoneiro é o sujeito racional que, porque dispõe de um saber prévio e bem consolidado sobre a arte da navegação, está sempre no controle e no comando do navio. Mas a imagem cibernética do timoneiro é diferente. Diz respeito justamente à imprecisão da arte da navegação. Diz de abrir-se a um não-saber fundamental e a um não estar no controle do processo. O timoneiro, na metáfora cibernética, é aquele que gira o timão de acordo com as informações que lhe chegam do mar. Ele responde ao movimento das ondas. Sua excelência terá mais a ver com um estar aberto e atento, inteiramente conectado ao mar das circunstâncias, do que ao fortalecimento de um centro de comando dotado de conteúdos de saber que garantem seu sucesso.

Se o paradigma da complexidade pode nos ensinar algo talvez seja justamente isso: navegar é impreciso. Viver é impreciso. Dar aula é impreciso.

Referências

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Recebido: 30 de Abril de 2023; Aceito: 26 de Junho de 2023

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Doutor em Filosofia, e-mail: diogobogeaa@hotmail.com

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