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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.78 Curitiba  2023  Epub 04-Out-2023

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.078.ds06 

Dossiê

Pensamento complexo e crise da racionalidade moderna: notas para pensar educação e formação de professores

Complex thinking and the crisis of modern rationality: notes por thinking about education and teacher training

Título do artigo no segundo idioma

Sidinei Pithan da Silva1  [a]
http://orcid.org/0000-0001-6400-4631

Ana Laura Alves de Araújo2  [b]

1Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), Ijuí, RS, Brasil

2Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), Ijuí, RS, Brasil


Resumo

O presente texto discute a emergência do pensamento complexo no contexto epistemológico e educacional contemporâneo. De forma particular, busca situar o paradigma da complexidade na crise do paradigma moderno (simplificador), explicitando a leitura que Edgar Morin faz desta crise e, a tarefa que precisa ser feita pelos educadores / intelectuais, para reconstruir os pressupostos “alienantes” constitutivos da modernidade filosófica, científica, social e educacional. Objetiva, desta forma, contribuir no processo de “reconstrução” dos enfoques educacionais “críticos”. Com isso, aponta novas possibilidades para pensar a antropologia, o conhecimento, a educação, a pedagogia e a formação de professores. Uma perspectiva complexa / multidimensional parece ser a saída mais razoável “construída” por Edgar Morin.

Palavras-chave: Crise da Modernidade; Complexidade; Educação.

Abstract

This text talks about the emergency of complex thinking in the epistemological context and contemporary educational. In a particular way, it tries to situate the paradigm of the complexity in the crisis of the modern paradigm (simplifier), expressing the reading which Edgar Morin has about this crisis and the work which needs to be done by educators / intellectuals, to rebuild the “alienating” presupposes constituents philosophic, scientific, social, and educational modernity. So, it has as an aim, to contribute in the “rebuild” process of the critical educational focus. With this, it has new possibilities to think the anthropology, the knowledge, the education and the pedagogy, and the teacher training. A complex / multidimensional pedagogy seems to be the more reasonable exit “constructed” by Edgar Morin.

Keywords: Modernity Crisis; Complexity; Education.

Resumen

Lorem ipsum dol. Este texto discute el surgimiento del pensamiento complejo en el contexto epistemológico y educativo contemporáneo. De manera particular, se busca situar el paradigma de la complejidad en la crisis del paradigma moderno (simplificador), explicando la lectura que hace Edgar Morin de esta crisis y la tarea que debe hacerse por parte de los educadores/intelectuales, para reconstruir lo “alienante”. supuestos que constituyen la modernidad filosófica, científica, social y educativa. Pretende, por tanto, contribuir al proceso de “reconstrucción” de los enfoques educativos “críticos”. Con ello, apunta a nuevas posibilidades para pensar la antropología, el saber, la educación, la pedagogía y la formación docente. Una perspectiva compleja/multidimensional parece ser la salida más razonable “construida” por Edgar Morin.

Palabras clave: Crisis de la Modernidad; Complejidad; Educación.

Introdução

Este estudo tem o objetivo de caracterizar o contexto epistemológico contemporâneo destacando a emergência do pensamento complexo de Edgar Morin e sua relevância para a educação e a formação de professores para a educação básica. O enfoque de pesquisa constitui-se numa abordagem bibliográfica, de cunho qualitativo, sendo que foram estudadas algumas das principais obras do autor, de seus comentadores, e de estudiosos da teoria da complexidade, procurando analisar seus pressupostos filosóficos em relação à crise da racionalidade moderna, e às possíveis vias para pensar a educação e a formação de professores no âmbito da complexidade.

De modo particular, foram escolhidos alguns textos de Edgar Morin que explicitam o cenário da crise do paradigma simplificador, e o significado do paradigma complexo, no enfrentamento das policrises que atravessam a humanidade, tais como os que constituem as obras, Introdução ao pensamento complexo (2011a) e Ciência com Consciência (2018b). Procurou-se perceber como outros livros do autor apresentam a referida problemática, de forma a nos permitir um diagnóstico global das crises, ou mesmo, uma saída para elas, tais como, - Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade (2011b), A via para o futuro da humanidade e, - É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus (2021).

Também foram estudadas as obras em que, especificamente, o autor evidencia o vínculo com a educação e a reforma do pensamento, tais como, A cabeção bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento (2018a), Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação (2015), e, Os sete saberes necessários à educação do futuro (2007). Textos importantes que enfocam a problemática referente aos paradigmas do conhecimento no ocidente, escritos por Marques (1992), Demo (2000), Martinazzo (2002; 2014; 2016), Petraglia (2011), Moraes (2012) e Kuhn (2018), foram analisados.

Após a leitura das referidas obras e artigos, efetuou-se um fichamento, que permitiu registrar e destacar os conceitos, ideias e definições centrais dos autores. Em seguida, refletiu-se sobre eles, procurando responder às questões propostas para a pesquisa. Os comentadores e outros estudiosos da complexidade, nos permitiram um diálogo crítico-hermenêutico com as obras de Edgar Morin, possibilitando situar amplamente o significado e o alcance de seus estudos para a educação e a formação de professores.

As perguntas de pesquisa que mobilizaram a leitura sobre as obras de Edgar Morin e dos estudiosos da teoria da complexidade, foram as seguintes: a) qual o significado do termo - paradigma - para concebermos a racionalidade, a educação e a formação de professores no contexto contemporâneo?; b) quais os desdobramentos do paradigma moderno/simplificador na configuração do conhecimento, da educação e dos currículos que formam professores para a educação básica?; c) quais sentidos principais emergem da abordagem paradigmática da complexidade, e em que medida eles nos permitem enfrentar a crise da racionalidade moderna na educação, reconfigurando a perspectiva filosófica e epistemológica para a formação de professores para a educação básica no contexto da pós-pandemia da covid-19?

Com o intento de compreender o fenômeno educativo em busca de possíveis alternativas, Edgar Morin assume, no conjunto da sua obra, uma perspectiva que elege o critério epistemológico como parâmetro a partir do qual reflete e constrói a sua argumentação acerca dos diversos âmbitos da vida humana. E assim também o faz ao debruçar-se sobre o fenômeno educativo.

Morin (2015), assim, traz à reflexão e discussão o próprio processo de conhecer, ou seja, o modo pelo qual o ser humano exerce a sua racionalidade, o qual, segundo o autor, reflete-se no modo pelo qual ele se relaciona com o mundo natural e cultural, com os outros e consigo mesmo. Assim, a análise de Edgar Morin repercute também sobre o fenômeno educativo.

Esta constatação nos direciona para o objetivo deste artigo, qual seja, trazer à reflexão e discussão os modos hegemônicos pelos quais a racionalidade humana foi/é entendida e exercida no decorrer da história do pensamento ocidental e que configuram os denominados paradigmas epistemológicos, como também as concepções de educação e de conhecimento a eles inerentes.

Neste movimento, tematizamos os paradigmas epistemológicos simplificador e complexo, a partir da perspectiva de Edgar Morin, arguindo sobre o contexto de surgimento e desenvolvimento de cada perspectiva paradigmática. Apresentamos, ainda, alguns princípios, indicados pelo filósofo, que assinalam e dão contorno ao modelo de racionalidade próprio de cada paradigma, relacionando-os ao fenômeno educativo, em particular destacando contribuições para pensar a formação de professores para a educação básica.

Qual a atualidade dessa via antropológica, epistemológica e pedagógica para pensar a formação de professores? O novo cenário pandêmico evidenciou uma crise em nossa forma de percepção, explicação e compreensão do real, ampliando a necessidade de uma reforma do pensamento (MORIN, 2021). Tal movimento precisa vir acompanhado de uma reforma educacional, a qual precisa nos ajudar a criar uma inteligência da complexidade, ou seja, uma inteligência que nos permita compreender o aspecto multidimensional implicado nos fenômenos que atravessam a vida em geral. Este parece um desafio capital, no que tange a formar professores para a educação escolar que compreendam os desafios globais de nosso tempo.

Por toda parte, esclarece Morin (2015, p.17), “ensinam-se conhecimentos, em nenhum lugar se ensina o que é o conhecimento” [...]. Uma política pública de educação que considere que a formação de professores para atuar na escola precise favorecer na reforma dos espíritos e dos pensamentos, em direção a uma civilização planetária, precisaria considerar o caráter multidimensional do humano, e a complexidade do conhecimento, do ser e da realidade. Para tanto, importa, não apenas uma reforma programática da educação, como sobretudo, paradigmática, a qual permita uma reforma do próprio pensamento no âmbito da formação de professores para atuar na educação básica. Mas, para melhor entender o que o termo paradigma comporta, cumpre-nos abrir esta discussão, para em seguida, delinear os limites do paradigma simplificador, e configurar então um paradigma complexo que nos auxilie a repensar a formação de professores para a educação básica.

Paradigmas epistemológicos e educação

Kuhn (2018, p. 72) afirma que “alguns exemplos aceitos na prática científica real [...] proporcionam modelos dos quais brotam as tradições coerentes e específicas da pesquisa científica”. São esses modelos exemplares que o autor denomina de paradigma. E complementa ele mais à frente que “Homens cuja pesquisa está baseada em paradigmas compartilhados estão comprometidos com as mesmas regras e padrões para a prática científica” (KUHN, 2018, p. 72).

Em sua acepção, Kuhn se refere ao contexto das comunidades de cientistas, entretanto, ampliando-se o entendimento do termo, pode-se compreendê-lo como as estruturas mais gerais e mais radicais do pensamento as quais não limitam a sua influência somente ao âmbito da ação científica, mas também a todos os setores da ação humana. Morin assim o conceitua:

Um paradigma é um tipo de relação lógica (indução, conjunção, disjunção, exclusão) entre certo número de noções ou categorias mestras. Um paradigma privilegia certas relações lógicas em detrimento de outras, e é por isso que um paradigma controla a lógica do discurso. O paradigma é uma maneira de controlar ao mesmo tempo o lógico e o semântico (MORIN, 2011a, p. 112).

Recorrendo-se a outra de suas obras, podemos complementar o que pensa o autor a respeito de paradigmas:

[...] o paradigma efetua a seleção e a determinação da conceptualização e das operações lógicas. Designa as categorias fundamentais da inteligibilidade e opera o controle de seu emprego. Assim, os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles (MORIN, 2007, p. 25).

Nessa perspectiva, tudo o que fazemos ou pensamos, como fazemos e como pensamos, inclusive o nosso modo de ser, pode ser relacionado ao paradigma vigente, inscrito em nós por meio da cultura da qual participamos e a qual herdamos. Ele opera alimentando nossos valores e nossos sistemas de ideias individuais e coletivas, que mantemos e defendemos, embora, nem sempre, com o necessário discernimento a respeito de suas origens ou fundamentos.

O paradigma, muitas vezes, opera ao nível do inconsciente, irrigando e controlando o pensamento consciente, o que o faz ser também supraconsciente. Atinge uma certa autonomia e soberania diante das teorias, ideologias e doutrinas. Constitui-se em ‘princípio oculto’ que controla e governa nossa cosmovisão, sem que muitas vezes tenhamos consciência desse fenômeno (MARTINAZZO, 2002, p. 33).

Assim concebidos, pode-se compreender que os paradigmas também estendem suas influências à educação. Ao perseguir o seu objetivo de inserir as novas gerações no mundo cultural vigente, a educação e o conhecimento com o qual trabalha serão, inevitavelmente, expressão do paradigma vigente, não obstante esta relação nem sempre se mostre evidente ou consciente para os educadores. É nesse sentido que se pode fazer referência aos paradigmas da razão e do conhecimento e, em decorrência, aos paradigmas da educação.

Sobre eles, adverte Marques (1992, p. 549):

Como toda ação humana, a ação educativa necessita, dessa forma, tematizar, isto é, erigir em explícita questão de reflexão e discussão, os paradigmas recônditos e, por isso, necessitados de reexame, como base do esclarecimento e da práxis política, vale dizer, gerada e articulada em ampla publicidade crítica.

E complementa o mesmo autor, alertando:

Os paradigmas básicos do saber, que se sucederam interpenetrados e que continuam operantes, necessitam recompor-se em quadro teórico mais vasto e coerente. Sem percebê-los dialeticamente atuantes, não poderemos reconstruir a educação de nossa responsabilidade solidária (MARQUES, 1992, p. 549).

Nesse sentido, evidencia-se a necessidade de uma incursão à temática com o objetivo de compreender as diferentes vertentes no que diz respeito à operacionalização da razão e à concepção de conhecimento assumidas ao longo da história do pensamento ocidental, principalmente aos educadores e a todos que lidam com a educação básica. Importa ampliar a consciência acerca do paradigma epistemológico que fundamenta o fenômeno educativo, e que influencia e determina o modo como formamos professores para a educação básica, desafio a que se propõe este trabalho.

O paradigma simplificador: simplificando para compreender e ensinar

É sobre o paradigma simplificador e sobre a lógica que lhe é própria que Edgar Morin debruça-se em sua crítica tenaz. Nesse sentido, realizamos um breve resgate da história do pensamento ocidental, destacando as circunstâncias que culminaram no surgimento deste paradigma, suas características, princípios que orientam a racionalidade simplificadora e, por fim, como a referida acolhe e manifesta a questão da educação e do conhecimento.

Em que pese se tratarem de dois períodos históricos com características distintas, tanto a Idade Antiga, representada pelo pensamento dos filósofos gregos Sócrates, Platão e Aristóteles, quanto a Idade Média, representada pelas ideias dos pensadores católicos Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, comungavam de uma concepção comum. A realidade seria formada por objetos, cujas essências (o verdadeiro conhecimento, a verdade), imutáveis, eternas, deveriam ser encontradas, desveladas, por meio da inspiração racional ou da inspiração divina (MARQUES, 1992).

A este modo de se compreender a realidade, em que o ser está para sempre posto, metafisicamente definido, convencionou-se o que se denominou de paradigma epistemológico das essências ou ontológico. Nele, a ênfase recai sobre o objeto, ou seja, sobre a objetividade do mundo a ser conhecido, imutável, definitivo. Por isso, a educação, neste modelo, consistia em apresentar ao educando a ordem do mundo e dos homens, transmitindo fielmente as verdades imutáveis, as quais deveriam ser aprendidas passivamente, assimiladas através da repetição e da memorização (MARQUES, 1992).

Na Idade Moderna, no entanto, observa-se uma mudança de perspectiva. A partir do colapso do feudalismo no século XIV e das profundas transformações econômicas, sociais e políticas ocorridas, inicia-se um processo de questionamento e oposição em relação às autoridades e às tradições religiosas até então constituídas. Para essa virada paradigmática, contribuiu o movimento renascentista e o pensamento humanista que o caracterizava, o que significou um retorno à cultura clássica no que se refere à autonomia do pensamento, ao culto da razão e à crença nas capacidades e livre-arbítrio do ser humano (MARQUES, 1992).

Desembaraçando-se de toda forma de tirania, superstição ou crença religiosa, o ser humano proclama-se como ser autorreferente, ou seja, ele mesmo seria a referência para todas as coisas. Este movimento culminou, posteriormente, no movimento intelectual e filosófico conhecido como Iluminismo, caracterizado pela valorização da razão humana (a luz) como instrumento para se abandonar o antigo regime (as trevas) e para se alcançar o conhecimento. Convencionou-se denominar esse pensamento de paradigma do sujeito, subjetivo ou da consciência, em que a ênfase na relação entre o sujeito e objeto de conhecimento é dada ao sujeito (MARQUES, 1992).

Este pensamento se tornou hegemônico e orientou o desenvolvimento da ciência moderna, tendo em vista que se apresentou como instrumento eficaz para a ampliação do domínio do ser humano sobre o mundo natural, recebendo de Morin (2018b) a alcunha de O grande paradigma do Ocidente. É sobre ele, a partir de uma perspectiva epistemológica, que o referido pensador constrói a sua crítica, direcionando-a à própria ciência e estendendo-a aos diversos aspectos da vida humana em sociedade. Segundo o autor, tais aspectos, no decorrer da história, foram atravessados direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, pelas influências do que ele denominou de paradigma simplificador, importante conceito para a compreensão da obra de Morin.

Ao caracterizar o paradigma epistemológico da ciência moderna como simplificador, Edgar Morin leva em consideração a sua tendência à simplificação da realidade e à rejeição de tudo o que contraria essa ideia. Nesse sentido, o referido autor aponta alguns princípios que, segundo sua perspectiva, caracterizam a inteligibilidade neste paradigma, dentre os quais mencionamos alguns, sendo eles: o princípio da ordem, o princípio da universalidade, o princípio da disjunção, o princípio da redução, o princípio da causalidade linear e o princípio da validade absoluta da lógica clássica (MARTINAZZO, 2002; MORIN, 2011a, 2015, 2018a, 2018b).

Ao se estruturar sobre tais princípios, o paradigma da simplificação, em torno do qual se alicerça a cientificidade clássica, acredita que a complexidade observada no mundo é apenas aparente e que a extraordinária diversidade de seres e de fenômenos poderia ser explicada por meio dos elementos simples que os constituem ou causam e a partir de algumas operações lógicas destinadas a revelá-los. Assim, unifica-se aquilo que é diverso ou múltiplo ao que é elementar, formalizável, quantificável, matematizável.

Deste modo, em nome de uma pretensa objetividade, imparcialidade e rigor, a ciência acredita manter afastadas de seu método de investigação e de suas conclusões quaisquer interferências não controláveis ou potenciais distorções advindas do sujeito que conhece, das inter-relações entre os fenômenos e entre estes e o seu contexto de origem. Ignora também, como fruto de uma ignorância a ser sanada, quaisquer vestígios de incerteza, aleatoriedade e imprevisibilidade.

Para Morin (2011a, p. 54):

O que afeta um paradigma, isto é, a pedra angular de todo um sistema de pensamento, afeta ao mesmo tempo a ontologia, a metodologia, a epistemologia, a lógica, e por consequência a prática, a sociedade, a política. A ontologia do Ocidente estava baseada em entidades fechadas, como substância, identidade, causalidade (linear), sujeito, objeto. Essas entidades não se comunicavam entre elas, as oposições provocavam a repulsão ou a anulação de um conceito pelo outro (como sujeito/objeto); a “realidade” podia, pois, ser circunscrita pelas ideias claras e distintas.

Nesse contexto, resta perceptível o caráter instrumental do qual se transvestiu a razão, destinada a prover os meios para se conhecer o mundo e dominá-lo a despeito de quaisquer restrições não adstritas ao método científico. Este modelo de pensamento não limitou o seu alcance ao âmbito estritamente epistemológico, mas passou a afigurar-se como parâmetro orientador dos demais aspectos da vida humana, como as suas relações com a natureza e as relações entre os próprios seres humanos. O sentido da educação escolar, de seus currículos, bem como do perfil dos professores que deveriam nela atuar esteve circunscrito por este paradigma simplificador.

Na esteira do otimismo científico e tecnológico proporcionado pelo paradigma simplificador, a educação avoca para si o objetivo de contribuir para o alcance de um mundo mais desenvolvido e de uma vida mais confortável por meio da formação de indivíduos racionais, hábeis a apropriarem-se de todo o conhecimento produzido até então e a expandir os processos de racionalização e de dominação do mundo por meio da ciência.

Assumindo as próprias características desse modelo de razão, a educação configurou-se então como processo a ser estudado e aperfeiçoado por critérios científicos a partir dos quais deveriam ser definidas estratégias eficientes para o alcance de objetivos precisamente definidos e quantificáveis e métodos para a verificação de seus resultados.

No currículo, o paradigma simplificador evidenciou-se no culto ao conhecimento científico em detrimento de outros saberes e na institucionalização de disciplinas a serem ensinadas isoladamente, cada qual com seu objeto de estudo específico, além da valorização dos aspectos cognitivos, objetivos e quantitativos em detrimento dos demais aspectos envolvidos no processo educativo. Nesse sentido, complementa Marques (1992, p. 554), ao afirmar que a partir da inteligibilidade simplificadora:

Os currículos escolares configuram-se como mera justaposição de disciplinas autossuficientes, grades nas quais os conhecimentos científicos reduzidos a fragmentos desarticulados se acham compartimentados, fechados em si mesmos e incomunicáveis com as demais regiões do saber. A elaboração cognitiva faz-se em negação das complexidades do mundo, da vida, do engajamento humano e da questão dos valores, questão política, em que implica.

Cabe ressaltar ainda que, à medida que cumprem a sua função de inserir as novas gerações no mundo cultural vigente, os processos educativos, como visto acima, necessariamente inseridos em determinado paradigma epistemológico e, por isso, embebidos nele, transmitem também, a estas novas gerações, um modo específico de compreender a realidade e de se relacionar com ela, condizente com este mesmo paradigma.

Além dos conhecimentos construídos pela cultura até então, o processo de educação escolar veicula também uma visão de mundo que se oculta sob o paradigma vigente, o próprio paradigma, dando-lhe assim, continuidade e mantendo-lhe a hegemonia. É nesse contexto que se pode afirmar que os paradigmas epistemológicos carregam em si o dualismo de emprestarem as lentes necessárias pelas quais enxergamos o mundo e, ao mesmo tempo, de funcionarem como os padrões escravizadores que não nos deixam enxergar novas realidades.

Paradoxalmente, um paradigma tanto nos permite acessar e conhecer uma realidade, como nos encarcera, bitola e normatiza. Por um lado, somos libertados pelo paradigma e, por outro, somos escravizados. [...] pode-se dizer que o paradigma permite uma compreensão da realidade que produz um paradigma (MARTINAZZO, 2002, p. 33).

Não se pode esquecer de que os critérios de investigação da ciência clássica revelaram extraordinária fecundidade para o progresso da Física, desde a gravitação de Newton à relatividade de Einstein, e, na Biologia, permitiram a compreensão da natureza físico-química das organizações vivas, dentre outros avanços. No entanto, os próprios progressos científicos, colocando em pauta a complexidade das partículas subatômicas, da realidade cósmica e dos progressos da biologia ao conceber as relações ao mesmo tempo de autonomia e dependência dos seres, acabam por colocar em questão a cientificidade que lhe deu origem e a desafiá-la. Cumpre compreender que o formato hegemônico dos currículos que formam professores obedece em linhas gerais às concepções do paradigma moderno simplificador. Este modelo encontra-se em crise na atualidade. Esboçamos a seguir uma via para repensar o paradigma moderno e simplificador desde os caminhos da complexidade sugeridos por Edgar Morin.

O paradigma complexo: compreender e ensinar superando a simplificação

Não há dúvidas no fato de ser, a ciência clássica, a grande responsável pelas inúmeras inovações que melhoraram, sobremaneira, a qualidade de vida de parcela significativa da humanidade. No entanto, mostrou, posteriormente, não ser merecedora de toda a credibilidade depositada, flagrada que foi, ao longo do tempo, quebrando algumas de suas promessas.

Ademais, o próprio desenvolvimento da ciência levou o conhecimento a ultrapassar os próprios limites a princípio inimaginados, surgindo proposições de saberes que não se amoldam aos critérios existentes e reconhecidos como hegemônicos. Tais postulados provocam o repensar e o questionamento das próprias bases sobre as quais se alicerçou a ciência moderna (MORIN, 2018b).

É a partir desta perspectiva que se pode referir a uma crise que se evidencia a partir do momento em que os princípios simplificadores da ontologia clássica, suas construções teóricas e o progresso que dela decorre, dão indícios de insuficiência para a compreensão da realidade em sua complexidade e multidimensionalidade e ainda, para a resolução de suas problemáticas.

Esta crise da racionalidade moderna, no entanto, não limita seus efeitos somente ao âmbito epistemológico. No século XX, ela se amplia alcançando-nos nos dias atuais e estendendo sua influência aos mais diversos aspectos da vida em sociedade. Nesse contexto, há referências a uma crise civilizatória planetária (MORIN 2002, 2007, 2011a, 2011b, 2015, 2018b, MORIN; DÍAZ, 2016, PETRAGLIA, 2011).

Nesse sentido, a superação desta crise exigiria uma reparadigmatização, uma reforma profunda que se interesse pelos próprios princípios sobre os quais se fundamenta o pensamento humano no ocidente. Somente por meio desta regeneração, seria possível reaprender a pensar e a estruturar o sistema de produção e organização de conhecimento sobre outros parâmetros, além daqueles sobre os quais se fundamenta a perspectiva simplificadora.

A princípio, cabe assinalar que o termo complexidade não possui um sentido objetivamente definido. Vulgarmente, é entendido como caos, confusão, dificuldade, complicação. Edgar Morin, contudo, dá ao termo o desafio de integrar e desenvolver a formalização e a quantificação própria da ciência clássica sem restringir-se a elas, superando a ideia de que aquilo que não se amolda à coerência abstrata de um sistema de pensamento não existe ou representa a parcela desprezível do real. Assim, para o autor:

Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade (MORIN, 2007, p. 38).

Sob esta perspectiva, Martinazzo (2014, p. 138) assim conceitua o pensamento que se pretende complexo:

O pensamento complexo é um paradigma pós-cartesiano que procura compreender a realidade e suas diferentes manifestações sob um referencial lógico-epistemológico próprio e encaminha as soluções de forma não simplificadora: religa o que a análise separa, contextualiza o dissociado, reúne o disperso, complexifica o simplificado, historiciza o intemporal e trata o sujeito como produtor e produto de seu pensamento e de suas construções.

Desse modo, um paradigma referenciado na complexidade baseia-se na não-simplificação, ou seja, na não-eliminabilidade daquilo que é eliminado na concepção clássica de ciência, embora isso não signifique abandonar por completo seus princípios. Pressupõe, por conseguinte, a busca por uma inteligibilidade que enfrente o problema da complexidade procurando fazê-la presente também nas formas de se conhecer e produzir conhecimento. Demo (2000, p. 65) nos auxilia na compreensão da complexidade ao afirmar:

Por isso, não podemos confundir complexidade com caos. Os teóricos sempre dizem caos estruturado, porque não se trata de desordem pura e simples, mas de ordem complexa, não linear, irreversível. O conhecimento científico, entretanto, precisa habituar-se a estilos mais flexíveis de ordenamento, porque a realidade ‘quadrada’ é puramente lógica, não real. O próprio conceito de complexidade induz a esta maneira mais generosa de ver: não dá para reduzirmos complexidade à questão simples, pois é o oposto.

Em complemento aos princípios do paradigma simplificador, Morin (2011a) formula princípios de uma inteligibilidade mais adequada à nova conjuntura e atenta à problemática da complexidade. Dentre eles, mencionamos o princípio da irredutibilidade do acaso e da desordem, o princípio da transgressão da abstração universalista pela não-eliminabilidade da singularidade, da localidade e da temporalidade, o princípio hologramático, o princípio do círculo recursivo, o princípio da auto-eco-organização, o princípio dialógico, o princípio da introdução do conhecimento em todo conhecimento (MARTINAZZO, 2002; MORIN, 2011a, 2015, 2018a, 2018b).

A partir da exposição de tais princípios, necessário se torna enfatizar que não se deve desconsiderar os princípios assumidos pelo paradigma simplificador da ciência clássica. Trata-se de constatar a sua validade, reconhecendo, porém, a sua parcialidade e a sua insuficiência no que se refere ao desafio de compreender e explicar a realidade em sua complexidade. Por outro lado, compreende-se que a complexidade, ao contrário do que se possa supor, não intenta a apresentação de respostas definitivas, nem determina um método específico para a elaboração do conhecimento. Seu mérito reside no fato de marcar com clareza os limites do conhecimento científico construído nos moldes do paradigma simplificador, pois a realidade não é puramente lógica. Nesse sentido, complementa Demo (2000, p.66):

Essa foi certamente a descoberta amarga da ciência moderna que, em boa medida, deslanchou o pós-modernismo: a pressuposição de simplicidade da natureza em seu fundo, correspondendo à simplicidade da explicação científica, ruiu por completo, obrigando-nos a repensar cautelosamente.

Morin também formula algumas indicações de como compreende a educação e o próprio conhecimento em relação ao desafio imposto pela era planetária vivenciada na atualidade e pela conscientização acerca do problema da complexidade. Em coerência com a sua crítica reiterada ao paradigma simplificador, o qual estende sua influência também sobre o âmbito educativo, Morin esclarece, em sua argumentação, não se referir a reformas meramente pontuais ou relacionadas a aspectos específicos e sim, a uma transformação mais ampla e profunda da educação. Isso nos interessa, para pensar uma outra via para reconfigurar a formação de professores para a educação básica, tendo em vista outro pressuposto antropológico. Em sua obra Educar na Era Planetária: o pensamento complexo como método de aprendizagem pelo erro e incerteza humana Morin (2003, p.18) explicita que:

O conhecimento do humano deve ser, ao mesmo tempo, muito mais científico, muito mais filosófico e, enfim, muito mais poético do que é. Seu campo de observação e de reflexão é um laboratório muito amplo, o planeta terra, na sua totalidade, no seu passado, no seu futuro e também na sua finitude, com seus documentos humanos que começam há seis milhões de anos. A terra constitui um laboratório único onde, no tempo e no espaço, manifestaram-se as constantes e as variações humanas - individuais, culturais, sociais: todas as variações são significativas, todas as constantes são fundamentais. Os casos extremos, como Buda, Jesus e Maomé, Hitler e Stalin, permitem compreender melhor o ser humano. A escravidão, o campo de concentração, o genocídio e, finalmente, todas as desumanidades são reveladoras de humanidade.

Nesse sentido, Morin (2018a) refere-se à necessidade de uma reforma do ensino a qual seria forjada por meio de uma verdadeira reforma do pensamento, ou seja, uma reforma que se volte para a nossa própria aptidão para organizar o conhecimento e que permita o pleno emprego da inteligência para responder aos desafios da era planetária. De fato, o desenvolvimento disciplinar das ciências, próprio do paradigma simplificador, pode ser apontado como responsável pela significativa ampliação dos conhecimentos sobre o mundo, mas a sua lógica mutiladora apresenta limitações e impõe suas consequências negativas à humanidade. Martinazzo e Barbosa (2016) concordam com a necessidade dessa reforma ao afirmarem que:

Estamos vivendo em um mundo complexo, multicultural e planetário e, por seu lado, a escola continua a se orientar por um paradigma insuficiente, que não permite levar em conta tal realidade. Há uma carência cognitiva típica do mundo ocidental ou ocidentalizado [...] A produção, a assimilação e a transmissão do conhecimento necessitam de novos princípios cognitivos que contemplem a complexidade do real (MARTINAZZO; BARBOSA, 2016, p. 37).

Para Morin (2018a), a compartimentação das disciplinas arrastou a humanidade para um cenário de expansão do saber nunca visto, no qual, entretanto, não sabemos nos movimentar. Convivemos com uma gigantesca quantidade de informações, às vezes discordantes, mas não dispomos de critérios que nos permitam organizá-las e relacioná-las diante dos problemas que enfrentamos. Por outro lado, a hiperespecialização, por meio de uma inteligência que só sabe dividir e isolar, decompõe os problemas em seus elementos constituintes, unidimensionaliza o multidimensional e fragmenta o complexo do mundo, atrofiando a reflexão e a compreensão de conjunto e a longo prazo. Sobre isso, afirma o autor:

Há a inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre os saberes separados, fragmentados, compartimentados entre disciplinas, e, por outro lado, realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários (MORIN, 2018a, p. 13).

Ao mesmo tempo em que produz conhecimento e elucidação, esta inteligência mostra-se cega, inconsciente e irresponsável, incapaz de perceber o contexto e o complexo, produzindo também ignorância e cegueira (MORIN, 2000, 2002, 2007, 2011a, 2011b, 2018a, 2018b). Por isso, reconhece-se cada vez mais, a necessidade de superá-la, substituindo-a por uma inteligência que distingue e une, que compreenda que o conhecimento das partes depende do conhecimento do todo e vice-versa, que reconheça a natureza multidimensional dos fenômenos em vez de isolar suas dimensões, que reconheça e trate as realidades, concomitantemente, solidárias e conflituosas, que respeite a diferença enquanto reconhece a unicidade, enfim, uma inteligência complexa. Nesse sentido, Moraes assim se expressa aos educadores:

[...] não podemos continuar trabalhando com modelos equivocados, com explicações causais lineares, com dualidades irreconciliáveis, com paradigmas tradicionais, construindo abstrações estereotipadas da realidade e que, em absoluto, refletem a complexidade estrutural e dinâmica da realidade. Precisamos de novas teorias, de novos aportes teóricos e epistemológicos capazes de nos ajudar a ecologizar a ontologia, ou seja, as relações do ser com sua realidade, a ecologizar a epistemologia, para melhor compreender as relações sujeito e objeto, bem como os aspectos metodológicos relacionados às nossas práticas pedagógicas (MORAES, 2012, p. 81).

Deste modo, para Morin (2018a), cabe à educação, em todos os níveis, assumir o objetivo de promover o que ele denomina de uma cabeça bem-feita em lugar de uma cabeça bem cheia. Isso significa substituir uma educação com ênfase na transmissão e acumulação irrefletida de uma grande quantidade de conteúdos fragmentados e isolados, pelo desenvolvimento de aptidões gerais que capacitem os discentes a organizarem os saberes, a identificar e tratar problemas, considerando-os em suas múltiplas dimensões e inter-relações com seu contexto e entre todo/partes, unidade/diversidade, local/global, evitando, assim, a acumulação estéril de conhecimentos e informações. Infelizmente, conforme infere-se da argumentação de Morin (2018a), os sistemas de ensino têm se esforçado em oferecer uma educação pautada na formação de cabeças bem cheias.

Na compreensão do autor, uma educação que objetiva a formação de uma cabeça bem-feita, em substituição a uma cabeça bem cheia, deve primeiramente, alicerçar-se sobre os princípios da inteligibilidade complexa, alguns dos quais foram apresentados anteriormente neste trabalho. Somente por meio deles seria possível alcançar o que Morin (2002, 2007) denomina de conhecimento pertinente, aquele que põe em evidencia o contexto, o global, o multidimensional e o complexo em vez de torná-los invisíveis, como costumam fazer tradicionalmente os nossos sistemas de ensino. Nas palavras de Martinazzo:

[...] a educação escolar deveria promover a veiculação e a construção do chamado conhecimento pertinente que tem sua sustentação na compreensão complexa da realidade. Compreender a realidade sob o ponto de vista da complexidade significa olhá-la, analisá-la e interpretá-la com base nos princípios organizadores do conhecimento complexo tendo em vista que o pensamento científico, embora tenha produzido incontestáveis e significativos avanços para a humanidade, não consegue mais elaborar explicações convincentes sobre a complexidade do real, pois se assenta sobre saberes isolados, especializados e estanques traduzidos em disciplinas compartimentadas e incomunicáveis entre si (MARTINAZZO, 2016, p. 103).

Ao interessar-se pelo contexto, o conhecimento pertinente busca sempre a relação de inseparabilidade e as inter-relações entre as informações e os dados isolados e seu contexto local e planetário para que adquiram sentido. Atento ao global, vai além do contexto em direção ao conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organizacional. Ao considerar o multidimensional, reconhece as diversas dimensões que se inter-relacionam no real. Ao voltar-se para o complexo, capta as realidades que são simultaneamente, solidárias e conflitivas, respeitando a diversidade e, ao mesmo tempo, a unidade do todo com as partes e das partes com o todo. Este parece um desafio fundamental para reconfigurar a formação de professores para a educação básica no Brasil.

Considerações finais

Por meio deste estudo, debruçamo-nos sobre a temática dos paradigmas epistemológicos simplificador e complexo a partir da perspectiva de Edgar Morin, relacionando-os ao fenômeno educativo. Se paradigma epistemológico, conforme a compreensão utilizada neste trabalho, refere-se ao modelo hegemônico a partir do qual o ser humano exercia/exerce sua racionalidade, a base mais profunda que sustenta o pensar e que orienta as relações com o mundo natural, com os outros seres humanos e consigo, inevitavelmente, ele influenciou/influencia também o fenômeno educativo, seus objetivos e seus fazeres, embora nem sempre de modo consciente.

Neste sentido, por meio deste trabalho, concluímos acerca da necessidade de trazer esta discussão aos educadores e educadoras, que atuam nas escolas, de modo a produzir uma consciência acerca do paradigma epistemológico de que se participa e que se ensina, caso se queira compreender o fenômeno educativo mais profundamente e problematizá-lo. Este estudo faz pensar também a respeito das limitações e da parcialidade com que os problemas são e foram pensados a partir do paradigma simplificador, especificamente, aqueles relacionados à educação, sensibilizando acerca da necessidade de ampliarmos e aprofundarmos nossos olhares sobre os fenômenos e problemas da contemporaneidade de modo a enfrentá-los mais adequadamente, a partir de uma visão menos simplificadora, mais inter/trans/disciplinar e mais complexa.

Repensar a educação, e a formação de professores, em vista da crise da modernidade, da reforma do humanismo clássico, e dos aprendizados da pandemia da covid-19, constitui a via central do pensamento moriniano. Através desse paradigma há não somente uma tematização dos desvarios da razão instrumental e racionalizadora típica do conhecimento moderno, mas também uma proposição ousada e desafiadora para a humanidade e, em particular para os educadores que atuam na escola, no sentido de: constituir - uma nova política de civilização em escala planetária. O pensamento complexo, antes que uma saída fácil e, um remédio para todos os males, é, portanto, uma tarefa e um desafio, para a reconstrução crítica dos “fundamentos” da modernidade filosófica, social e educacional.

Para Morin (2018a), no mesmo espírito kantiano, a educação depende das luzes, e as luzes dependem da educação. Analisar as “condições de possibilidade” para as Luzes constitui-se a tarefa ainda imperiosa para a continuidade dos projetos educacionais críticos. Sobretudo, torna-se missão inadiável, no processo de reconstrução dos fundamentos que orientam os processos da educação escolarizada no Brasil, e em particular, para a formação de professores. O pensamento complexo, nestes termos, parece uma via que permite dialogar, conjugando ao mesmo tempo, os desafios sócio-históricos-ambientais, a educação, o conhecimento e a formação de professores. Em linhas gerais nos permite compreender e enfrentar a crise da modernidade, nos indicando os limites do humanismo moderno, e do paradigma simplificador, e de sua vontade dominadora. Como contraponto, propõe um humanismo regenerado, e um paradigma complexo, que recomenda um novo modo de pensar, “capaz de unir e solidarizar conhecimentos separados, desdobrando uma ética da união e da solidariedade entre humanos” (MORIN, 2001, p.97).

Este pensamento complexo nos sugere, em contextos pós-pandêmicos, que devemos mudar de via, favorecendo a emergência de outras alternativas epistêmicas que nos permitam enfrentar nossas patologias sociais, ambientais, políticas, éticas e culturais. Uma nova forma de reforma econômica e empresarial, por um lado deveria advir, e, de outro, uma reforma democrática. Precisaríamos de uma reforma democrática, que ampliasse a participação cidadã, tal como a política que foi instaurada em Porto Alegre durante o final do século passado e início deste século XXI.

Projeto que também enseja uma ecopolítica, a qual, também se articula com uma luta pelas reformas da sociedade, em direção à redução das desigualdades, e de instauração de uma política de solidariedade. Todas essas vias, projeto de uma educação escolar integral, favoreceria o nascimento de uma política civilizacional, e uma ética de alcance planetário, a qual sem desconsiderar os avanços e progressos já alcançados, nos ajudaria a enfrentar os males de nossa civilização, quais sejam a individualização, a tecnicização, a monetarização (MORIN, 2021, p. 55-72). É preciso, no âmbito da educação escolar, para tanto, “substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une”, ou seja, é preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto” (MORIN, 2001, p.89).

Referências

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Recebido: 30 de Abril de 2023; Aceito: 01 de Junho de 2023

[a]

Doutor em Educação, e-mail: sidinei.pithan@unijui.edu.br

[b]

Mestranda em Educação, e-mail: anelise.rodrigues@sou.unijui.edu.br

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