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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.78 Curitiba  2023  Epub 04-Out-2023

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.078.ds13 

Dossiê

Movimento constitutivo da prática docente complexa, transdisciplinar e criativa em geometria

Constitutive movement of the complex, transdisciplinary, and creative teaching practice in geometry

Movimiento constitutivo de la práctica docente compleja, transdisciplinar y creativa en geometría

1Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil

2Instituto Federal do Paraná (IFPR), campus Curitiba, Curitiba, PR, Brasil

3Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED/PR), Curitiba, PR, Brasil


Resumo

Este estudo indaga como se constitui a prática pedagógica docente complexa transdisciplinar e criativa entrelaçada com a auto-eco-recursão, a auto-reflexão recursiva e a auto-eco-construção, indicados por Guérios, Góes e Monteiro (2022), associados aos constructos “Ser criativo”, “Ser reflexivo” e “autonomia docente” abordados em Góes (2021) como indicadores para uma formação de professores complexa e transdisciplinar. De natureza qualitativa desenvolvida em uma perspectiva interpretativa, o estudo toma como elemento de análise episódios didáticos desenvolvidos por Silva (2023) em salas de aula de turmas de 1º ano do Ensino Médio de uma escola pública de Curitiba. Os episódios referem-se à docência de geometria por meio da organização de sequência didática pelo professor. Como resultado, tem-se a indicação de que a criatividade é potencializada na prática pedagógica quando a perspectiva transdisciplinar possibilita uma visão integrada entre mundo e conhecimentos escolares. Na constituição da prática pedagógica em tela, a criatividade está manifesta desde a ideia geratriz para a constituição da sequência didática, incluindo a incorporação de fatos imprevisíveis e inesperados, na condução ampliada do programado e na decorrente autonomia didática evidenciada. Conclui-se que a sequência didática que foi pensada para o processo formativo dos estudantes, no que tange à geometria como estudo do espaço, tornou-se um processo autoformativo para o professor, evidenciando a recursão e a reflexão como constitutivos da autonomia didática do professor.

Palavras-chave: Prática didática; Docência em matemática; Matemática no Ensino Médio; Formação de professores; Cognição e aprendizagem.

Abstract

This study investigates the complex transdisciplinary and creative teaching practice intertwined with self-eco-recursion, recursive self-reflection, and self-eco-construction, indicated by Guérios, Góes, and Monteiro (2022), when associated with the “Being creative”, “Being reflective”, and “teacher autonomy” constructs discussed by Góes (2021) as indicators for complex and transdisciplinary teacher training. Of a qualitative nature developed in an interpretative perspective, the study analyzes the didactic episodes developed by Silva (2023) in the 1st-year high school classes at a public school in Curitiba. The episodes refer to the teaching of geometry through the organization of a didactic sequence by the teacher. The result shows that creativity is enhanced in pedagogical practice when the transdisciplinary perspective enables an integrated view of the world and school knowledge. In the constitution of the pedagogical practice on-screen, creativity is manifested from the generative idea to the constitution of the didactic sequence, including the incorporation of unpredictable and unexpected facts, in the expanded conduct of the program, and the resulting evident didactic autonomy. It is concluded that the didactic sequence designed for the students’ formative process, regarding geometry as a study of space, became a self-educative process for the teacher, showing recursion and reflection as constitutive of the teacher’s didactic autonomy.

Keywords: Didactic practice; Teaching in Mathematics; High School Mathematics; Teacher training; Cognition and learning.

Resumen

Este estudio investiga cómo se constituye la compleja práctica docente transdisciplinar y creativa, entrelazada con la auto-eco-recursión, la auto-reflexión recursiva y la auto-eco-construcción, indicadas por Guérios, Góes y Monteiro (2022), asociadas a los constructos “Ser creativo”, “Ser reflexivo” y “autonomía docente” abordados en Góes (2021) como indicadores de formación docente compleja y transdisciplinar. De carácter cualitativo, desarrollado en una perspectiva interpretativa, el estudio tiene como elemento de análisis episodios didácticos desarrollados por Silva (2023) en aulas de 1º año de la secundaria de una escuela pública de Curitiba. Los episodios hacen referencia a la enseñanza de la geometría a través de la organización de una secuencia didáctica por parte del docente. Como resultado, hay un indicio de que la creatividad se potencia en la práctica pedagógica cuando la perspectiva transdisciplinar posibilita una visión integrada del mundo y del saber escolar. En la constitución de la práctica pedagógica en pantalla, la creatividad se manifiesta desde la idea generativa hasta la constitución de la secuencia didáctica, pasando por la incorporación de hechos impredecibles e inesperados, en la conducción ampliada del programa y en la resultante autonomía didáctica evidente. Se concluye que la secuencia didáctica diseñada para el proceso formativo de los estudiantes, considerando la geometría como estudio del espacio, se convirtió en un proceso autoeducativo para el docente, mostrando la recursividad y la reflexión como constitutivas de la autonomía didáctica del docente.

Palabras clave: Práctica didáctica; Enseñanza de las Matemáticas; Matemáticas de Secundaria; Formación de profesores; Cognición y aprendizaje.

Introdução

Este estudo está estruturado na perspectiva da complexidade e indaga sobre como se constitui a prática pedagógica docente complexa transdisciplinar e criativa, entrelaçada com a auto-eco-recursão, a autorreflexão recursiva e a auto-eco-construção indicadas por Guérios, Góes e Monteiro (2022) como processos intrinsecamente dinâmicos considerados indicadores constitutivos para a formação de professores.

Assumimos escrever auto-eco-recursão, autorreflexão recursiva e auto-eco-construção e não autoecorrecursão, autorreflexão recursiva e autoecoconstrução, conforme indica a gramática da língua portuguesa, para demarcar e evidenciar as dimensões que constituem esses indicadores para uma formação de professores complexa e transdisciplinar. Cada um deles tem uma especificidade, como se fosse uma identidade. “Auto” é a dimensão do ser. “Eco” é a dimensão do ambiente. “Recursão” é a dimensão do movimento. “Construção” é a dimensão da ação. Cada uma delas é parte-todo em um todo hologramaticamente construído com a combinação dos termos. Daí porque assumimos a grafia dos termos tal como está no texto.

Apoiados em Guérios, Góes e Monteiro (2022), trazemos que o processo auto-eco-recursivo emerge da construção de princípios didáticos que regem a prática docente, conforme postula Guérios (2002). Sua afirmação decorre da percepção de que os professores “constroem e internalizam princípios que apontam uma linha diretriz para sua postura didática como um todo”. (p. 182) Essa linha diretriz poderá advir de princípios construídos em função de uma “concepção mecânica, reprodutiva e estática do método” (p. 182) e determinar práticas verticais e cartesianas cujo objetivo é a comprovação de verdades estabelecidas. Ou poderá advir de princípios construídos em função de uma concepção aberta e flexível, em que a recursividade permite um ir e vir refletido, a que podemos chamar de reflexão recursiva. Daí que, conforme postula Guérios (2002), os professores constroem princípios didáticos que subsidiam suas ações, independentemente do ambiente físico ou do método que utilizem. Esses princípios, por sua vez, podem estar associados a práticas complexas e transdisciplinares, principalmente se o professor tiver desenvolvido em seu “Ser docente” um processo complexo de formação. Com isso, Guérios, Góes e Monteiro (2022, p. 244) consideram que “[…] a construção de princípios didáticos é um processo individual, construído pelos professores em situação de prática, com as variantes previsíveis e imprevisíveis que a constitui”.

Desse modo, compreendemos que os princípios didáticos são originários do entrelaçamento de conhecimentos formais e experienciais, num processo recursivo e reflexivo da constituição profissional do professor, conforme estabelecido em Guérios (2002). E, ao passo que os princípios didáticos regem a prática docente, estes “podem ser compreendidos como um processo auto-eco-construído” (GUÉRIOS; GÓES; MONTEIRO, 2022, p. 244). As autoras abordam a autorreflexão recursiva como um dos indicadores para a formação complexa de professores, a qual está imbricada à “autonomia docente” “como a que estabelece entrelaces, conexões e reflexões entre as práticas didáticas desenvolvidas e as que ainda virão” (GUÉRIOS; GÓES; MONTEIRO, 2022, p. 251).

Isso posto, na indagação sobre a qual nos debruçamos, associamos os constructos “Ser criativo”, “Ser reflexivo” e “autonomia docente” cunhados por Góes (2021) como indicadores para uma formação de professores complexa e transdisciplinar. A autora aponta seis constructos (“reflexão recursiva”, “Ser flexível”, “abertura ao novo”, “Ser criativo”, “Ser acolhedor” e “autonomia docente”) importantes para formação docente complexa, no entanto, para este estudo, tomaremos apenas três constructos indicados a seguir.

A “autonomia docente” está relacionada à livre escolha do professor em estar aberto para o imprevisto e o acaso, em que ele pode desenvolver práticas didáticas com abordagem em geometria que façam a diferença na vida dos estudantes. O “Ser flexível” seria aquele que “desenvolve a flexibilidade em suas ações e em seus processos pedagógicos, resultando no fazer flexível” (GÓES, 2021, p. 229), e a autora relaciona a flexibilidade à natureza pedagógica do professor, a qual é promotora da autonomia do estudante no que tange à reflexão de suas escolhas e ações. Neste artigo, a “autonomia docente” está relacionada às tomadas de decisões do docente, as quais estão imbricadas ao fazer docente, mais adiante exposto na sequência didática apresentadas.

O “Ser criativo”, por sua vez, emerge do processo didático em sala de aula, em que o professor, ao desenvolver a criatividade de seus estudantes a partir da valorização do talento criativo, se torna “motivador e incentivador da criatividade” (GÓES, 2021, p. 230) das seguintes formas: ao repensar suas ações e projetar seu planejamento para uma nova abordagem ao se deparar com as incertezas presentes no cotidiano escolar; nas escolhas remodeladas sobre recursos para aplicar suas aulas; e na repaginação de atividades até então muito conhecidas no universo escolar em algo que inove o ensino, sempre em busca da aprendizagem de seus estudantes.

De natureza qualitativa desenvolvida em uma perspectiva interpretativa, este estudo toma como elemento de análise episódios didáticos desenvolvidos por Silva (2023) em salas de aula de turmas da 1ª série do Ensino Médio de uma escola pública de Curitiba. Os episódios referem-se à docência de geometria por meio da organização de sequência didática, em consonância com princípios da transdisciplinaridade na perspectiva da Teoria da Complexidade, em que se utilizam fotografias que os próprios estudantes tiraram e indicaram para a discussão em sala de aula a partir da questão mobilizadora trazida pelo professor: “Onde está a geometria?”. A análise ocorreu tomando-se como categoria analítica a auto-eco-recursão, a autorreflexão recursiva e a auto-eco-construção, conforme Guérios, Góes e Monteiro (2022), estabelecendo-se elos recursivos entre elas e os fatos dos episódios.

Notas sobre complexidade

A teoria da complexidade, na perspectiva de Edgar Morin, pode ser compreendida como uma abordagem integrada que propõe uma compreensão ampla e entrelaçada do mundo e dos fenômenos complexos que nela ocorrem. A complexidade pode ser considerada um fenômeno presente em todas as esferas da vida, incluindo a sociedade, a natureza, a cultura e o humano. Para Le Moigne (1977), fenômenos considerados complexos são aqueles que apresentam em seus comportamentos a imprevisibilidade. Voltada para a área educacional, compreendemos a sala de aula como um fenômeno complexo, pois esta é repleta de diversidade de sujeitos que agem e interagem com os objetos que nela se encontram, em busca de conexões e relações. Um fenômeno considerado complexo para Backes et al. (2018, p. 2) é compreendido como “um fenômeno complexo e multidimensional, incapaz de ser apreendido apenas pelo reconhecimento de variáveis quantitativas”, por relacionar recursos materiais e humanos, além dos processos de aprendizagem, das experiências, do planejamento, do currículo e do compromisso com o fazer docente, associado ao desenvolvimento de cada estudante e às relações com as expectativas de aprendizagem.

Para Góes (2021), todo fenômeno é complexo, uma vez que a vida em si é complexa, repleta de imprevisibilidade em todo o seu curso, mesmo que o pensar cartesiano não os trate desse modo.

A teoria da complexidade reconhece que a realidade é formada por sistemas complexos interconectados e interdependentes. Morin (2011) enfatiza a importância de se considerar as múltiplas dimensões de um sistema, incluindo as relações entre parte e todo, as estruturas e os processos, as diferentes perspectivas e os níveis de análise. Nessa perspectiva complexa, podemos evocar uma dimensão hologramática entre ser humano e sociedade, entre professores, alunos e escola, ou seja, entre parte e todo. Como ensina Morin, há um movimento retroativo do todo com as partes e vice-versa, de tal modo “[…] que não só a parte está no todo, mas também que o todo está na parte” (MORIN, 1998, p. 181). Sim, podemos relacionar o sujeito ao holograma, uma vez que é considerado parte constitutiva da sociedade, e esta é formada pelas características de cada sujeito que a compõe. Do mesmo modo, vale a relação hologramática entre professor, estudante e escola.

A complexidade não pode ser comparada a modelos simplificados ou abordagens unidimensionais. Moraes e Batalloso (2015) defendem a importância de se adotar uma abordagem transdisciplinar, que integra diversas e diferentes áreas do conhecimento e perspectivas para compreender a complexidade dos sistemas e fenômenos que abordamos.

Segundo Nicolescu (2005), a transdisciplinaridade não se trata de uma nova disciplina, mas de uma abordagem que busca resgatar a pessoa e sua esperança. Além disso, essa perspectiva estabelece um diálogo que pode enriquecer a ciência e o imaginário, pois “o real é uma dobra do imaginário e o imaginário é uma dobra do real” (2001, p. 73).

Nas palavras de Nicolescu, a transdisciplinaridade diz respeito “àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento” (NICOLESCU, 2005, p. 53). Sem pormenores, Nicolescu (2005) destaca que a transdisciplinaridade reconhece a realidade como complexa, portanto, requer abordagens que sejam abertas para as diferentes perspectivas sobre fenômenos ou saberes, e que supere as fronteiras das disciplinas acadêmicas para um entendimento profundo e integrado. Reconhecer a realidade complexa é superar uma visão de mundo cartesiano e, consequentemente, compreender que existe algo para além das partes, mesmo que inesgotáveis.

A transdisciplinaridade nos permite construir um outro modo de pensar que promova diferentes ações, relações, princípios e sentimentos que levem ao pensar complexo, auxiliando na religação dos saberes, com consequências na desfragmentação formativa e no ensino, como lembra Góes (2021). Nesse viés, a teoria da complexidade propõe uma visão integrada do mundo, reconhecendo a complexidade dos fenômenos que acontecem em nossa realidade e a importância de se adotar uma abordagem transdisciplinar para compreendê-los.

Para Morin (1990), a complexidade significa a tessitura comum, que, de modo inseparável, apresenta o sujeito e o contexto, a ordem e a desordem, o sujeito e o objeto, o professor e o estudante, e todos os elementos que ao estarem interconectados resultam nos acontecimentos, como é o caso das ações e inter-retroações que tecem a trama da vida, isto é, “complexo significa aquilo que é tecido em conjunto” (MORIN, 1990, p. 20). Ainda:

[…] complexus é o que está junto; é o tecido formado por diferentes fios que se transformaram numa só coisa. Isto é, tudo isso se entrecruza, tudo se entrelaça para formar a unidade da complexidade; porém, a unidade do complexus não destrói a variedade e a diversidade das complexidades que o teceram (MORIN, 2011, p. 188).

Desse modo, podemos afirmar que existe complexidade quando elementos distintos são inseparáveis (GUÉRIOS, 2002), como a água com açúcar, resultando o todo e a parte, quando emerge a tessitura de acontecimentos, de acasos, de ações e de determinações que formam o nosso mundo.

Não se deve considerar a complexidade uma resposta ou uma receita pronta e acabada, mas sim uma motivação para se pensar que é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, e vice-versa. A complexidade não é algo palpável ou concreto, não apresenta uma fórmula mágica e muito menos propõe uma técnica, e podemos compreendê-la como um processo mental, um modo de pensar que leva a ver, sentir e tomar consciência sobre algo (MORIN, 2000). Em meio à Teoria da Complexidade, Morin desenvolve o pensamento complexo, com estudos embasados na complexidade como um novo paradigma científico, em que a não linearidade é o eixo central e busca conciliar as diferentes esferas da vida moderna e do conhecimento, em prol de contextualizar, articular e relacionar o que está fragmentado e distinto e diferenciar o que está indissociado (MORIN, 2000).

Compreendemos que a fragmentação é um dos principais obstáculos para a compreensão da complexidade dos fenômenos que estudamos. E, de certo modo, a fragmentação é uma tendência natural do modo de pensar do ser humano, que tende a separar/dividir a realidade em partes isoladas e analisá-las distintamente. No entanto, Morin indica que a fragmentação impede uma visão integrada dos fenômenos, pois, ao fragmentar a realidade, perde-se de vista as interações e retroações das partes com o todo e do todo com as partes, bem como o contexto mais amplo em que elas se inserem. Isso posto, o pensamento complexo propõe uma abordagem que supera a fragmentação ao integrar diferentes perspectivas e níveis de análise para compreender a complexidade e os fenômenos considerados complexos. Compreendemos que a complexidade valoriza a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, reforçando que não pode ser compreendida por uma única perspectiva ou disciplina.

O grande desafio do pensamento complexo é propor a articulação entre os mais diversos campos de áreas e disciplinas. Assim, o pensamento complexo traz em si a incerteza e é capaz de conceber a organização, sendo possível “contextualizar e globalizar, mas pode, ao mesmo tempo, reconhecer o que é singular e concreto” (MORIN, 2011, p. 76). É um processo retroativo constante, de idas e vindas, entre a certeza e a incerteza, entre o separável e o inseparável, entre o elementar e o geral. Isto é, “não se trata de abandonar os princípios da ciência clássica, mas de integrá-los de um modo mais amplo e rico” (MORIN, 2011, p. 62), de entrelaçar o concreto das partes à totalidade.

Notas sobre a autonomia docente em processos didáticos

Para este estudo, compreendemos que a autonomia docente está relacionada com a capacidade do professor em decidir sobre práticas e estratégias didáticas, evidentemente, considerando cada contexto, as características dos discentes e os objetivos de aprendizagem. A autonomia docente é, portanto, um constructo fundamental, afinal, garante ao professor liberdade para promover mudanças significativas no andamento de cada aula e flexibilização curricular. Não menos importante, é a autonomia docente que possibilita ao professor certa independência criativa, para suplantar diversidades, incertezas, inconclusões que emergem na sala de aula. É impossível o desenvolvimento de aulas criativas, bem articuladas e dinâmicas, sem que haja autonomia docente. Estamos, pois, falando do docente no que se refere a processos didáticos.

A autonomia docente, ou profissional, é discutida em diferentes perspectivas e em seu espectro, diferentes concepções são formuladas. Rojas (2004), por exemplo, sistematiza seis concepções advindas de diferentes teóricos. São elas: profissional reflexivo, intelectual crítico, técnico especializado, prático artesanal, humanista, culturalista ou academicista.

Sem entrar em discussão sobre profissionalismo docente ou profissionalidade dos professores, trazemos de Contreras (2002) a noção de autonomia docente como expressão de superação de uma racionalidade técnica que, não raras vezes, rege o fazer docente.

Nesse sentido, Valério (2017) ressalta a defesa de Contreras (2002) de que é a autonomia que permite aos professores colocar em jogo os saberes da prática e transformar suas práticas por meio da criação de novos saberes. É um movimento interessante, que talvez tenha a recursividade (MORIN, 1998, GUÉRIOS, 2002) em seu cerne que, em movimento contínuo, colabora para a superação do fazer instrumental abordado por Contreras (2002). Essa superação, como movimento para construção da autonomia docente, em sentido didático, é expresso em Guérios (2002, p.182) como o que possibilita aos professores rumar “de uma concepção mecânica, reprodutiva e estática do método para outra dinâmica e conceitual, fundada em sua experiência na prática profissional”. Tome-se como decorrência professores autônomos didaticamente como “imersos e conscientes de sua realidade, autores de suas intervenções e próprios de suas decisões” (CAMPOS e GUÉRIOS, 2017, p.48). Eis que a criatividade, por certo, emerge na autoria de intervenções no cotidiano docente, conclusão esta que encontra ressonância na afirmação de Rojas (2004) de que a ausência de autonomia docente na prática diária não permite a operacionalização de estratégias inovadoras e, por óbvio, criativas.

De fato, a autonomia docente está diretamente ligada à criatividade presente nos processos que ocorrem em sala de aula. Nesse sentido, a autonomia docente:

[…] significa a possibilidade do docente de estabelecer estratégias […] apontando a interface existente no quanto da autonomia do fazer docente está vinculado à criatividade. Ela também aparece aqui como promotora da “autonomia do estudante”, do porquê o estudante faz, vinculada à autonomia do pensar (cognitiva), desenvolvendo suas próprias estratégias, ou seja, um movimento cognitivo (GÓES, 2021, p. 181).

Utiliza-se, portanto, uma analogia possível e didática na tentativa de compreender melhor o movimento de desenvolver uma autonomia docente. Trata-se de uma analogia com uma criança em suas primeiras conquistas de independência e autonomia.

Os primeiros passos de uma criança são sempre hesitantes. São tentativas corajosas, mesmo que isso signifique cair algumas vezes. Na verdade, esses passos são uma maneira da criança de praticar e aprimorar suas habilidades físicas, enquanto explora e testa seus próprios limites. Esses primeiros passos de uma criança são muito parecidos com os primeiros passos de um professor, sobretudo numa perspectiva transdisciplinar. Para uma prática transdisciplinar, a autonomia do professor é fundamental; no entanto, assim como a criança, a autonomia do professor só pode ser constituída por meio de experiências desafiadoras que o faça ultrapassar limites diariamente. Geralmente, tais limites são estabelecidos anteriormente, por meio das práticas cartesianas vivenciadas, inclusive, na sua vida estudantil.

Tempo depois, os primeiros passos servem como experiência para novos desafios. Quase na adolescência, o ser humano começa a dançar. Nosso corpo - principalmente os quadris - geralmente já está engessado, e, ao passo que as aulas de dança avançam, os quadris ficam mais flexíveis, os movimentos ficam mais fluidos, e a leveza toma conta da performance.

A prática docente não é tão diferente, o professor inicia sua prática ainda com passos hesitantes, e, na medida em que mais passos são dados e mais desafios são superados, andar torna-se cada vez mais fácil, e a sua autonomia em sala de aula vai se desenvolvendo. Assim sendo, a ação docente se faz com a prática articulada com conhecimentos que se adquire de modo formal ou informal. Isto é, conforme o professor se apropria da sala de aula, da didática e dos recursos, consegue sair-se melhor frente aos desafios que emergem nas dinâmicas transdisciplinares.

Independentemente disso, é importante lembrar que nem todos os desafios que brotam na sala de aula são conhecidos. Muitas vezes o professor precisa começar uma dança da qual ele desconhece a coreografia. Entretanto, a sua experiência sempre fornecerá subsídios suficientes para que ele seja capaz de dançar livremente novos estilos.

O desenvolvimento da autonomia docente é um fator crucial para uma prática transdisciplinar com êxito, visto que permite ao professor flexibilidade para lidar com as situações decorrentes do ambiente escolar e desenvolver seu método de ensino e suas estratégias didáticas de acordo com as necessidades dos alunos e do contexto em que se encontra.

Observe que até mesmo encarar os desafios e aceitar as incertezas constituintes do cotidiano de modo a deixar o novo brotar é uma escolha docente. Afinal, constata Morin que “O novo brota sem parar”, e defende Guérios que não basta saber que o novo brota sem parar: “É preciso deixar o novo brotar” (GUÉRIOS, 2002, p. 176). Tendo isso em vista, a autonomia docente é um constructo que possibilita a liberdade, mas também o enfrentamento constante da complexidade presente na sala de aula, como corrobora Góes (2021, p. 230) quando diz: “[…] todos os constructos estão relacionados diretamente à ‘autonomia docente’, tendo o professor como sujeito em destaque, pois é da livre escolha em estar aberto para o novo, para o incerto, para o imprevisível”.

Assim sendo, o pensar complexo é matéria-prima para pleno desenvolvimento da autonomia docente. Observe, não se trata apenas de conhecer o pensamento complexo como vertente epistemológica, trata-se de pensar de forma complexa.

A abordagem do pensamento complexo surge como uma vertente epistemológica que procura compreender a realidade como um sistema interdependente e dinâmico, em que os fenômenos são diversos e heterogêneos, e as relações entre eles são imprevisíveis e não lineares. A complexidade do mundo contemporâneo exige que os professores adotem uma postura crítica e reflexiva, apta a lidar com a diversidade de saberes, valores e culturas presentes em suas turmas, bem como a identificar as múltiplas causas e consequências dos desafios.

Desse modo, a autonomia docente, aliada ao pensamento complexo, pode contribuir para a construção de uma educação mais participativa capaz de enfrentar os desafios e as incertezas do mundo contemporâneo.

É indispensável ter em mente que a prática transdisciplinar é transpassada pelo pensamento complexo e pela autonomia docente, e pode ser constituída por meio de três princípios nevrálgicos, mais precisamente por processos intrinsicamente dinâmicos e constitutivos da prática docente, denominados por Guérios, Góes e Monteiro (2022) por auto-eco-recursão, autorreflexão recursiva e auto-eco-construção.

Prática pedagógica docente complexa, transdisciplinar e criativa

Em sua pesquisa, Silva (2023) propõe o desenvolvimento de uma sequência didática em consonância com a transdisciplinaridade na perspectiva da Teoria da Complexidade. O autor ressalta que, à luz de uma perspectiva superficial, a sequência didática é sempre fragmentada e compartimentalizada, perdendo de vista o todo a que pertence. No entanto, a complexidade como um paradigma inovador não prescinde da organização da aula pelo professor. É preciso ter uma visão global dos conceitos envolvidos para garantir que a sequência didática seja a mais adequada para atingir os objetivos educacionais escolhidos, como ressalta Zabala (1998):

[…] sistematizar os componentes da complexa prática educativa comporta um trabalho de esquematização das diferentes variáveis que nela intervém, de forma que com esta intenção analítica e, portanto, de alguma maneira compartimentadora, podem se perder relações cruciais, traindo o sentido integral que qualquer intervenção pedagógica tem. Neste sentido, seria adequado identificá-las de forma que se pudesse efetuar a análise de cada uma delas em separado, mas levando em conta que sua avaliação não é possível se não forem examinadas em sua globalidade (ZABALA, 1998, p. 18-19).

Ao final de uma das aulas da sequência didática proposta pelo professor, uma das estudantes perguntou se a geometria estava presente na arte. Quase como em um “relampejo” cognitivo, o professor imediatamente pensou na Monalisa, de Leonardo da Vinci. Usar a Monalisa como objeto deflagrador para essa questão é interessante, sendo possível examinar os cálculos e padrões presentes e explorar a geometria como um elemento fundamental da arte. Entretanto, isso poderia constituir a ilusão de que os padrões geométricos foram impostos pelo pintor na obra, e essa não é uma afirmação precisa, pois não reflete a complexidade e a diversidade da relação entre geometria e arte.

De fato, a geometria é uma presença constante na arte, desde as formas mais básicas até as mais complexas. Isso se deve ao fato de que a geometria é uma parte fundamental do nosso mundo natural e, portanto, influencia a maneira como percebemos e representamos a realidade ao nosso redor. Isso pode fazer com que a geometria pareça artificial e não uma representação da materialidade do espaço em que vivemos.

Arte e geometria

Com o objetivo de proporcionar a essa estudante uma reflexão sobre o fato de que a arte, por vários meios, expressa tanto a realidade quanto a surrealidade, e que, se a geometria é o estudo do espaço, então a arte também é uma expressão daquilo que é geométrico, o professor propõe que os estudantes deixem a sala de aula e fotografem tudo o que no entendimento deles tivesse relação com geometria.

Sem pormenores, o autor percebe que a prática transdisciplinar não é possível sem uma dinâmica intrínseca, que o autor descreve como um “processo de rasgar-se e remendar-se”. A sequência didática inicialmente pensada para o processo formativo dos estudantes, no que tange à geometria como estudo do espaço, torna-se um processo formativo para o professor. O professor e pesquisador percebe-se num movimento de auto-eco-construção e de autorreflexão recursiva. Para Guérios, Góes e Monteiro (2022), o professor complexamente auto-eco-construtor:

[…] está em contínuo diálogo com o professor interno que lhe constitui. Esse processo é individual, vinculado, portanto, de modo celular à experiência que lhe transpassa e provoca transformações conceituais em sua formação, com decorrência na ação didática. (GUÉRIOS; GÓES; MONTEIRO, 2022, p. 253)

Podemos pensar o processo autoecoconstrutor, tomando a obra do artista plástico Bobbie Carlyle, denominada Self Made Man (em tradução livre: homem que se autoconstrói), para mais uma analogia. Nada do que existe está acabado, portanto, nem mesmo nós humanos, em particular, professores. O professor está em um processo contínuo e infinito de reconstrução, sempre em comunicação com o experiencial que lhe é constituinte.

Fonte: https://encurtador.com.br/gpGWX. Acesso em: 19 mar. 2023.

Figura 1 O homem esculpindo a si mesmo 

Na sequência das fotografias de Silva (2023), a dimensão “auto” está não somente na prática do professor, mas também no movimento de aprendizagem dos estudantes. A dimensão “eco” se apresenta no ambiente e nos espaços que são explorados detalhadamente pelos estudantes, na intenção de perceber a geometria não como ciência, mas como presente em praticamente todos os aspectos do mundo físico em que vivemos. E a dimensão “construtor”, como virtude intrínseca do professor complexo, que se percebe inacabado e que precisa se reconstruir em cada nova interação, se dá por meio de reflexões que se refazem durante todo o processo.

Ainda, podemos relacionar o movimento criativo do professor durante o processo da construção e execução da prática didática com a auto-eco-organização apresentada por Morin (2011), a qual representa o modo de compreender que o ser humano se organiza a partir das relações que realiza no ambiente em que vive. Isso, como consequência, apresenta efeito em seu comportamento. É perceptível que o ambiente escolar é formado por processos auto-eco-organizadores que, a partir da ação, da reflexão, de estratégias flexíveis e do pensamento criativo, são mola motriz para fazer brotar a criatividade nos estudantes e no professor pesquisador. Uma vez que nesse espaço ocorrem ações e interações entre indivíduos que se auto-eco-organizam, isso promove a criação de estratégias criativas e permeadas pelo pensar e fazer complexos.

Quanto aos estudantes, as fotografias tiradas durante a prática demonstraram que, além de perceberem geometria, os estudantes foram capazes de se perceberem no espaço e de construírem reflexões sobre o próprio espaço. Observe que esse processo é exatamente um processo de autorreflexão recursiva, que se constitui na medida em que as fotografias são retomadas. Como explica Silva (2023), ao passo que o professor apresentava as fotos tiradas por eles mesmos, os estudantes iam examinando cuidadosamente cada aspecto geométrico, permitindo-lhes perceber como se movimentavam, ocupavam o espaço, se relacionavam com as formas e se adaptavam aos diferentes ambientes.

O rasgar-se e remendar-se na prática docente, que podemos denominar de um processo de autorreflexão recursiva, inerente à prática transdisciplinar na perspectiva da complexidade, é capaz também de extrapolar o processo de ensino e alcançar o processo de aprendizagem. Durante a sequência didática em questão, um questionamento inicialmente considerado simples suscitou uma reflexão relevante e bastante sofisticada. Por dedução, uma estudante pergunta: se a geometria estuda tudo no espaço em que vivemos, podemos concluir que a arte também é geometria? Com certeza! A resposta não poderia ser outra. A arte também é geometria.

Cabe ressaltar a presente autorreflexão recursiva na prática do professor, promotora da autonomia discente e garantida pela autonomia docente, não uma autonomia docente assegurada pelas equipes e instituições externas, mas pela autonomia docente construída, desenvolvida e revelada pelo próprio professor. O professor estabelece autonomia sobre si mesmo e utiliza-se dela para tomar decisões criativas e intrinsecamente dinâmicas. Em Góes (2021) a autonomia docente tratava-se da autonomia na gestão didática.

Duas imagens, dentre várias, chamaram a atenção de Silva. A primeira delas, uma surpresa, em que o estudante percebe a Geometria em gotas de orvalho da manhã.

Fonte: Acervo de SILVA (2023).

Figura 2 Esferas de orvalho da manhã 

A fala do estudante demonstrou que ele percebeu a geometria nas folhas e nos espaços, mas o que realmente chamou sua atenção foram as pequenas esferas formadas pelo orvalho da manhã. As esferas não eram observadas antes, mas agora são observadas pela visão geométrica, percebendo que cada elemento presente na foto é um elemento formado por medidas, relações e padrões. Mais do que isso, as esferas, que antes eram vistas no caderno, com fórmulas de área e volume, estão presentes inclusive nos menores detalhes da natureza.

Outra foto, das mais surpreendentes, foi a de um estudante fazendo uma cesta na praça próxima da escola. Os estudantes, quando perguntados onde a geometria estava presente, descreveram cada elemento da imagem que poderia ser percebido como geométrico, por exemplo, as grades da quadra, o círculo da cesta ou as linhas do chão.

Não precisaram de mais que cinco minutos para extrapolarem essas ideias fixas sobre as formas geométricas. Ao fim, a prática possibilitou um engendramento de questões, reflexões e ideias, ao ponto de que, após alguns comentários, os estudantes concluíram que o movimento realizado pelo estudante para fazer a cesta é um movimento geométrico, tendo em vista que o corpo ocupa lugar no espaço, portanto, qualquer movimento é deslocamento de formas. De modo análogo, os estudantes perceberam a velocidade e aceleração como sendo de natureza geométrica, afinal, é o movimento dessas formas no espaço e no tempo que constitui a velocidade de um atleta para a realização dos pontos. Tudo é geométrico. O movimento é geométrico. Em resumo, eles conseguiram relacionar os movimentos e o espaço como geométrico, alegando que a geometria está presente em cada detalhe do corpo em movimento.

Fonte: Acervo de SILVA (2023).

Figura 3 O movimento é geométrico 

Em um processo formativo intrínseco à prática transdisciplinar, o professor se reconstruiu. Ao propor a atividade, ele esperava muito menos do que os estudantes apresentaram, não porque os subestimavam, mas porque ainda não era capaz de perceber a geometria com o mesmo detalhamento que seus alunos. A combinação da autonomia do professor e da autonomia dos estudantes produziu um pensamento convergente.

Observamos que o processo de autorreflexão recursiva docente “está diretamente relacionado à ‘autonomia docente’ como o que estabelece entrelaces, conexões e reflexões entre as práticas didáticas desenvolvidas e as que ainda virão” (GUÉRIOS; GÓES; MONTEIRO, 2022, p. 251).

Pelo exposto, ousamos fazer uma aproximação entre a análise realizada neste estudo e a afirmação de Morin (1998, p. 60) de que a ciência deve ser considerada como um processo recursivo autoecoprodutor. E explica: “Se autoecoproduz, já que sua ecologia é a cultura, é a sociedade, é o mundo”. Daí que: “A ciência é um fenômeno relativamente autônomo na sociedade, e não é uma pura ideologia social, e sim, a ciência é autoecoprodutora” (MORIN, 1998, p. 61). A recursividade se dá em um processo no qual efeitos ou produtos tornam-se produtores e causas, em um processo ininterrupto. Foi o que identificamos na análise dos episódios da prática pedagógica de Silva, que, tendo a auto-eco-recursão, a autorreflexão recursiva e a auto-eco-construção como categorias analíticas, nos permite considerar como prática pedagógica docente complexa transdisciplinar e criativa. De modo complementar, nos aproximamos da metáfora das gaiolas epistemológicas que D’Ambrosio contrapõem à defesa de uma “grade curricular” que não “engradeie” (2016, p.222), visto que, transdisciplinarmente, a prática docente de Silva em geometria permitiu que seus estudantes encontrassem esferas em orvalho da manhã e geometria no movimento de uma bola rumo a uma cesta de basquete.

Considerações finais

Neste estudo, indagamos como se constitui a prática pedagógica docente complexa, transdisciplinar e criativa, entrelaçada à auto-eco-recursão, à auto-reflexão recursiva e à auto-eco-construção, indicadas por Guérios, Góes e Monteiro (2022), aqui tomadas como categorias para análise de episódios didáticos desenvolvidos por Silva (2013). A análise realizada evidenciou que a docência do professor em geometria com abordagem transdisciplinar esteve imbricada ao seu pensamento criativo.

Ao indagar sobre “onde está a geometria”, o professor possibilitou aos estudantes ampliar o entendimento sobre o conteúdo escolar de geometria, construindo bases para uma compreensão conceitual, que poderá se manifestar em longo prazo, no decorrer dos anos escolares.

Diferentemente da afirmação categórica “geometria é ... ”, a mobilização dos estudantes por meio da indagação “onde está a geometria?” permitiu que eles percebessem que ela “está” em outros lugares além do quadro de giz, das páginas do livro didático, do caderno, dos materiais manipulativos, das fórmulas e dos exercícios. Ora, essa percepção transcende as relações que os estudantes estabelecem quando eles têm como objetivo a aprendizagem delimitada aos elementos citados. Os estudantes, no caso em tela, olharam ao redor de si e para fora. Olhar para fora é necessário, mas não só. Na perspectiva transdisciplinar, é preciso olhar para fora e perceber. Perceber que a geometria está presente nos menores detalhes da natureza. O que levou os alunos a essa percepção? Podemos afirmar que as dimensões do “Ser criativo”, do “Ser reflexivo” e da “autonomia docente” na constituição do professor são contributivas para a prática pedagógica que possibilita o extrapolar do definido previamente em prol de uma aprendizagem conceitual, que envolve a escola, o conteúdo escolar e o mundo. Vimos que a criatividade na prática didática possibilita a ocorrência da transdisciplinaridade, ou melhor, criatividade e transdisciplinaridade são processos recursivos, em que um possibilita o outro e vice-versa, em modo contínuo. De fato, nos episódios analisados, vimos que a criatividade esteve manifesta desde a ideia geratriz na constituição da sequência didática para a docência em geometria. Vimos que fatos imprevisíveis e inesperados foram considerados e ampliaram as possibilidades da abordagem da geometria. Essa consideração se deveu à autonomia didática do professor, decorrente do princípio didático construído no decorrer da sua prática pedagógica. Podemos, pois, afirmar que a criatividade é potencializada na prática pedagógica quando a perspectiva transdisciplinar possibilita uma visão integrada entre mundo e conhecimentos escolares.

De modo conclusivo, vimos como a dimensão do ser (auto), a dimensão do ambiente e da vida (eco), a dimensão do movimento, do ir e vir sendo começo e fim ao mesmo tempo (recursão) e a dimensão da ação (construção) são parte e todo, constituindo um único elemento parte-todo hologramaticamente construído com a combinação dos termos, evidenciando que auto-eco-recursão, auto-reflexão recursiva e auto-eco-construção, indicadas por Guérios, Góes e Monteiro (2022), são processos intrinsecamente dinâmicos considerados indicadores constitutivos para a formação de professores.

Referências

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Recebido: 30 de Abril de 2023; Aceito: 02 de Julho de 2023

[a]

Doutora em Educação Matemática, e-mail: ettiene@ufpr.br

[b]

Doutora em Educação, e-mail: heliza.goes@ifpr.edu.br

[c]

Mestre em Educação, e-mail: adriano.aparecido.silva@hotmail.com

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