Introdução
Este é um texto através do qual a reflexão sobre a exigência e o rigor acadêmicos, como categorias curriculares e pedagógicas, nos conduziu a estabelecer o confronto entre os pressupostos conceituais do “paradigma pedagógico da instrução” (TRINDADE; COSME, 2016, p. 1032), do “paradigma pedagógico da aprendizagem” (idem) e do “paradigma pedagógico da comunicação” (idem), para se verificar: (i) se só no primeiro paradigma é que aquelas categorias são valorizadas, bem como as implicações educativas de uma tal opção e (ii) se assim não for, como é que, nos restantes paradigmas, se configuram a exigência e o rigor acadêmicos e como é que estas categorias afetam as propostas curriculares e pedagógicas que estes paradigmas nos oferecem.
Importa referir, apenas, que estamos perante uma reflexão que se produz não como um fim em si mesmo, mas como condição de um processo de interpelação mais amplo sobre as condições e as possibilidades de se construir uma Escola culturalmente significativa, humanamente empoderadora e, por isso, mais inclusiva.
Instrução, exigência e rigor
A exigência e o rigor acadêmicos são categorias centrais no campo que o instrucionismo curricular e pedagógico tem vindo a delimitar, ao ponto de serem reivindicadas como categorias que dizem respeito, apenas, a este campo. É uma tal atitude que explica que as abordagens que se lhe opõem sejam reiteradamente acusadas, não de propor leituras distintas das suas, mas de as ignorar, em nome da alegada necessidade de se promover projetos de ação educativa subordinados aos interesses, experiências ou saberes dos alunos e preocupados, sobretudo, com a valorização do desenvolvimento das suas competências cognitivas e socioemocionais.
Estamos perante uma atitude que, para Nuno Crato (2006, p. 19), corresponde à “versão moderna de um preceito de Rousseau e de outros, que recomenda desenvolver o jovem sem ‘interferência tiranizante do indivíduo adulto’”. Deste modo, o “desenvolvimento livre do educando, seguindo apenas os seus interesses e gostos, desembocaria no adulto livre e formado” (idem). Um projeto que, na perspectiva do mesmo autor, teria as suas raízes na corrente intelectual que o romantismo corporiza, a qual seria responsável por repudiar a “tradição racionalista crítica, o desprezo pela cultura clássica, a defesa do predomínio da natureza, o apelo à espontaneidade em detrimento do intelectualismo e a desvalorização dos conteúdos e do conhecimento substantivo” (idem, p. 14). Uma corrente que Crato (idem) acaba por associar ao construtivismo, o qual, na sua perspectiva, “imagina os alunos capazes de criticar e construir conhecimento a partir do nada” (p. 13). Nesta leitura, a articulação entre o alunocentrismo e o construtivismo parte da crença de “que os jovens são capazes de desenvolver um espírito crítico e experimental que se inspira no vazio e não no conhecimento” (idem, p. 89). Assim, prossegue o autor, “o romantismo pedagógico quer fazer crer que um jovem, sem preparação de alguma espécie, é capaz de chegar a conclusões científicas que custaram à humanidade muitos anos e muito esforço a conquistar” (idem).
Na mesma linha de raciocínio, David Justino (2005, p. 107) insurge-se contra os excessos da “obsessão inovadora”, à qual atribui, igualmente, a responsabilidade quer por “desvalorizar e questionar bens adquiridos ao longo de muitas décadas de experiência educativa” (idem), quer por conduzir
“à generalização de condutas que se tornaram desestruturadoras dos sistemas de aprendizagem, nomeadamente nos primeiros anos de aprendizagem: desvalorização do esforço sistemático, da memorização, da repetição e do treino, indispensáveis à aquisição de conhecimentos, bem como de princípios relativos à disciplina na sala de aula, ao rigor indispensável ao desenvolvimento de uma cultura científica, ao cumprimento de metas e objectivos gerais para não sacrificar a especificidade de cada aluno” (idem).
A explicação acerca do desprezo pela exigência e rigor acadêmicos teria, assim, a sua origem no desprezo pelo conhecimento culturalmente validado. Trata-se de uma tese que é ampliada por Guilherme Valente (2012) quando defende que um tal desprezo tem de ser associado, finalmente, à “irracionalidade igualitarista que determinou a inevitabilidade de um facilitismo sempre crescente” (p. 59), em função do qual o “mérito pessoal não existe” (p. 70). Para ele, a
“tentativa de igualização nas escolas e das escolas é um enorme logro. A ideologia subjacente diz que não quer a discriminação, mas acaba, na prática, por promovê-la. Ao baixar os padrões de exigência e qualidade, condena os mais desfavorecidos à sua ‘sorte’. Apregoa que não quer a exclusão, mas acaba de facto por fomentá-la, uma vez que o laxismo na educação afecta muito mais os pobres do que os ricos. Os pobres teriam na escola a oportunidade privilegiada de adquirir os conhecimentos, os valores e as atitudes que permitem a integração social e o sucesso honesto” (p. 72).
Neste sentido, a Escola, ao nivelar por baixo, prejudicaria não só os alunos oriundos dos meios socialmente mais desfavorecidos, aqueles que mais necessitariam que esta escola funcionasse como um elevador social (idem), como, de resto, todos os alunos, o que, na leitura proposta por Valente (idem) comprometeria, afinal, a própria formação das elites, já que aquele alegado utilitarismo não permitiria
“revelar e selecionar os melhores, os melhores, os mais dotados (...), a quem deve ser oferecida a mais exigente formação superior possível. Elites que só o serão, afinal, se forem ‘picos’ num panorama geral de elevada qualidade. Elites que assumam os lugares de maior exigência e responsabilidade, por ser vital para o bem comum e por ser justo” (VALENTE, 2012, p. 120).
Como é possível concluir, para os autores citados, a valorização da exigência e do rigor acadêmicos obriga a conferir ao conhecimento a centralidade educativa que, na sua perspectiva, se foi perdendo, bem como a valorizar o esforço, a memorização e o treino e, por fim, a restabelecer as condições que são necessárias para alegadamente se restabelecer o mérito e os procedimentos de seleção acadêmica.
Perante esta leitura não é difícil compreender porque é que para aqueles que se enquadram no paradigma da instrução, a exigência e o rigor acadêmicos são vistos como propriedade exclusiva do modelo de ensino que propõem. Pode-se verificar que os argumentos através dos quais se pretende conferir visibilidade a tais categorias, constroem-se para demonstrar como estas são negligenciadas pelas correntes pedagógicas que se lhes opõem. É como se a exaltação das alegadas vulnerabilidades dessas correntes fosse suficiente, só por si, para conferir nitidez, por contraste, ao que se entende por exigência e rigor para os autores cujos textos temos vindo a analisar.
Em suma, para aqueles que se encontram vinculados ao paradigma da instrução, uma escola mais exigente e rigorosa, em termos curriculares e pedagógicos, é uma escola que visa promover a disciplina intelectual e atitudinal dos alunos, enquanto condição a respeitar para que as atividades realizadas possam ser identificadas como atividades educacionalmente relevantes. Estas, na perspectiva dos autores atrás referenciados, não poderão ser dissociadas nem da organização de ambientes educativos que se caracterizam por valorizar a reprodução de informações, procedimentos e atitudes, em detrimento tanto da compreensão como do envolvimento dos estudantes em aprendizagens significativas, nem da valorização da seleção acadêmica como instrumento que, na sua perspectiva, visa estimular a possibilidade dos alunos se transcenderem e, por esta via, beneficiarem da ação educativa que tem lugar nas suas escolas. É a partir destes princípios que, nestes ambientes, o ato de aprender se desenvolve ancorado quer num currículo espartilhado e organizado em função de disciplinas insulares, quer no treino de automatismos, instauração de rotinas e realização de tarefas que não têm de suscitar a compreensão dos alunos. Assim se explica porque defendemos que, para o paradigma da instrução, a exigência e o rigor acadêmicos são mobilizados para legitimar um processo de disciplinarização intelectual e atitudinal que se afirma como um processo de disciplinarização circunscrita, o qual visa salvaguardar, por um lado, a possibilidade dos alunos aprenderem a aceitar a realização de atividades letivas sem significado e plausibilidade cultural e, por outro, a legitimar a seleção acadêmica como condição estruturante do trabalho de formação a realizar pelas escolas.
A exigência e o rigor acadêmicos no campo curricular e pedagógico não-instrucionistas: equívocos, tensões e respostas
Para abordar as duas categorias que justificam a reflexão que se propõe neste texto, a partir do campo curricular e pedagógico que se opõe ao paradigma da instrução, é necessário começar por afirmar que, ao contrário do que tendem a defender os adeptos do paradigma da instrução que fomos citando (CRATO, 2006; JUSTINO, 2005; VALENTE, 2012), o campo curricular e pedagógico não-instrucionista está longe de poder ser captado como um campo epistemológica, conceitual e praxeologicamente homogêneo. Para estes autores, o referido campo circunscreve-se ao que Trindade e Cosme (2016, p. 1032) designam por “paradigma pedagógico da aprendizagem”, o qual se caracteriza por considerar “os alunos como o centro de gravidade dos projetos de educação escolar e a adoção de dispositivos de mediação pedagógica que permitam valorizar quer as suas aprendizagens quer a recusa das intenções e das ações instrutivas dos professores” (p. 1039). Trata-se de um paradigma que entende que
“o ato de aprender se encontra mais relacionado com o desenvolvimento de competências cognitivas e relacionais do que com a apropriação de conteúdos construídos por outros. Deste modo, aprende-se quando somos estimulados a pensar e a aprender a aprender, porque, nesta abordagem, é o desenvolvimento cognitivo dos sujeitos e das dinâmicas endógenas que lhe estão subjacentes que poderão garantir a ocorrência de aprendizagens” (TRINDADE & COSME, 2010, p. 44).
Por isso, é que, para o paradigma da aprendizagem, o patrimônio de informações, instrumentos, procedimentos e atitudes culturalmente validado tende a ser ignorado como fator educativo a gerir. Para este paradigma, a relação entre os estudantes e o referido património tende a ser simplificada como uma relação em que mais do que a apropriação deste património se privilegia o acesso ao mesmo, o que explica que se valorize o desenvolvimento das competências cognitivas desses estudantes, da sua autonomia e das situações de cooperação como condição suficiente para que estes realizem as aprendizagens que os capacitarão a lidar com qualquer desafio cultural. Por isso, também, é que o papel dos professores é visto como o de um facilitador, alguém que limita a organizar os ambientes de trabalho, a disponibilizar recursos e a estabelecer diálogos contingentes com os alunos que tanto visam suportar a sua atividade, respeitando sempre a sua autonomia, como a desafiá-los e a interpelá-los, de forma a poder estimular o seu desenvolvimento pessoal e social. Isto é, o desenvolvimento da capacidade de os estudantes interpretarem, analisarem, sintetizarem e avaliarem as informações, o desenvolvimento do seu pensamento crítico e criativo e o desenvolvimento de estratégias capazes de contribuir para a resolução de problemas ou, ainda, o desenvolvimento da sua capacidade de cooperar com os outros são objetivos que dependem da possibilidade de se organizarem situações educativas próximas do que Bruner (2000, p. 85) designa por “desenvolvimento de intercâmbios intersubjetivos”. Isto é, situações educativas que se caracterizam mais pelos momentos de encontro que se suscitam e as preocupações com a interpretação e a compreensão da realidade, por parte dos alunos, do que, propriamente, em aceder à perfeição do conhecimento factual (idem). Perante o quadro conceitual sumariamente descrito, a exigência e o rigor acadêmicos parecem poder constituir-se ou como categorias ausentes do universo curricular e pedagógico que o paradigma da aprendizagem delimita ou, então, como categorias que se recusam porque são inevitavelmente consideradas como categorias que só servem para legitimar a seleção acadêmica e para impedir a afirmação dos alunos como os principais protagonistas dos processos educativos que lhes dizem respeito.
Ainda que se possa admitir que estamos perante uma perspectiva pedagógica que não se pode ignorar, importa reconhecer que esta é uma perspectiva que, do ponto de vista do seu impacto ao nível das práticas educativas concretas, não ocupa, na verdade, um lugar tão relevante como aquele que lhe é atribuído pelo paradigma da instrução. Por outro lado, importa reconhecer, esta não é a única perspectiva pedagógica alternativa à visão e às práticas instrucionistas no campo da educação escolar. Trindade e Cosme (2016, p. 1032) referem-se a uma outra abordagem que designam por “paradigma pedagógico da comunicação” que, como o paradigma da aprendizagem, recusa a instrução como modo de ação educativa, a menorização dos alunos como aprendentes, os professores como instrutores, a gestão burocrática e estandartizada dos planos de estudo, bem como a sua atomização, bem como a avaliação seletiva como modelo de avaliação dominante, ainda que defina o estatuto dos alunos, dos professores e do conhecimento culturalmente validado, em função de perspectivas epistemológicas e conceituais que se distinguem das perspectivas perfilhadas pelo paradigma da aprendizagem.
O fator decisivo que contribui para afastar o paradigma da comunicação do paradigma da aprendizagem tem a ver, desde logo, com o fato de não ser a centralidade dos alunos, mas a relação entre estes e o patrimônio culturalmente validado que o primeiro daqueles paradigmas valoriza.
Por isso, não faz sentido identificar as singularidades dos alunos de forma apriorística, já que a sua identificação só poderá ocorrer no âmbito da relação contextualizada que os estudantes estabelecem com os desafios culturais e os objetos de saber a estes associados. Uma coisa é raciocinar em Matemática, outra é raciocinar em História ou em Artes Visuais, tendo em conta, entre outras coisas, quer as suas especificidades conceituais e heurísticas quer a familiaridade dos alunos com estas áreas e as experiências vividas por estes no seu seio. Por outro lado, se não se compreenderem as particularidades conceituais e heurísticas, bem como as tensões epistemológicas de qualquer área de saber: (i) Como é possível definirem-se os desafios pessoais e intelectuais com que se confrontam os alunos nas escolas, bem como as estratégias e os métodos a adotar? (ii) Como é que se propõem os recursos que eles poderão utilizar no âmbito do seu processo de aprendizagem? (iii) Como é que é possível identificarem-se as dificuldades e os equívocos que se poderão gerar durante um tal processo, bem como as estratégias de tutoria, monitorização e apoio a adotar? e (iv) Como é que se estrutura o processo de avaliação (critérios, instrumentos, feedback e momentos de avaliação)?
Daí que para as correntes pedagógicas que se enquadram no paradigma da comunicação não faça sentido defender o desenvolvimento descontextualizado de capacidades. Para este paradigma, as capacidades, quaisquer que elas sejam (descrever, interpretar, analisar, etc.), não podem ser dissociadas dos conceitos que as alimentam e justificam nem tão pouco dos modos específicos de pensar e agir, bem como dos métodos que caracterizam as diferentes disciplinas e áreas do saber. Não faz sentido, por isso, para o paradigma da comunicação, opor os conteúdos às capacidades, como se os primeiros, só por si, constituíssem um obstáculo ao desenvolvimento das segundas. Não será por acaso que, hoje, em Portugal, o conceito de competência que serve de referência aos documentos curriculares em vigor, seja visto como uma entidade conceitual que se afirma por via das interconexões que se estabelecem entre os conhecimentos, as capacidades e atitudes (MARTINS, 2017)1.
Perante este quadro curricular e pedagógico proposto pelo paradigma da comunicação, os professores assumem-se, então, como interlocutores qualificados (COSME, 2009), reconhecendo-se que as suas intenções educativas, o modo de pensarem a organização dos espaços e dos tempos de trabalho, o modo de conceberem a atividade dos alunos na sala de aula ou o modo como operacionalizam e refletem sobre o processo de avaliação, são fatores determinantes para que os alunos sejam entendidos como protagonistas do projeto de formação que lhes diz respeito. Neste sentido, tanto se afastam da perspectiva dos professores como instrutores, os quais acreditam que podem determinar, de forma absoluta, as aprendizagens desses alunos, como recusam que, em alternativa a esta abordagem, os professores se afirmem, apenas, como facilitadores. Estamos perante uma opção, porque é de uma opção que se trata, que não poderá ser dissociada do vínculo entre uma tal abordagem da ação docente e os pressupostos epistemológicos e conceituais que sustentam o paradigma da comunicação.
A primeira implicação de uma tal opção relaciona-se com a necessidade de pensar o trabalho dos professores como decisores curriculares, sabendo-se que estes terão de ser capazes de pensar e decidir de forma rigorosa quais os desafios pessoais e culturais com os quais vão confrontar os seus alunos. A exigência de um tal desafio tem a ver com a necessidade dos professores compreenderem que estão a estimular uma relação inédita entre cada um dos estudantes e os mais variados objetos de saber, a qual deverá ser epistemologicamente contextualizada. É que um objeto de saber não existe por acaso. Resulta de um processo de construção marcado por vicissitudes várias que, enquadrando-se num determinado campo acadêmico e científico, propõe quadros conceituais e leituras sobre a realidade que estuda, bem como opções heurísticas que configuram modos de pensar e de agir específicos. Neste sentido, e como defende Libâneo (2012, p. 9), alicerçado em Davidov, o “método teórico geral de de cada ciência está expresso nos princípios lógico-investigativos que lhe dão suporte, os quais, por sua vez, indicam o caminho didático para a formação dos conceitos pelos alunos”. Assim, a atividade de aprendizagem dos alunos não é uma atividade aleatória, mesmo que não possa ser previamente determinada, dado que se encontra balizada quer pelos desafios culturais e intelectuais que se encontram vinculados aos objetos de saber que justificam o trabalho dos estudantes, quer pelas questões, pelos conceitos ou pelos procedimentos que se ativam para enfrentar esses desafios e, assim, suscitar as suas aprendizagem.
De acordo com esta perspectiva, a atividade intelectual e relacional dos estudantes é condicionada, inevitavelmente, pelo tipo de objetos de saber que suscitam essa atividade. Daí que não seja possível pensar as tarefas discentes como atividades genéricas, dissociadas da história da construção desses objetos, do investimento produzido, das opções realizadas ou dos já referidos obstáculos, dificuldades, consensos e dissensos, em função dos quais aqueles objetos passaram a existir. Sem se compreender isto, de forma clara, e sem beneficiar de uma tal reflexão não é possível estabelecer os compromissos curriculares capazes de responder às necessidades, exigências e desafios educativos do mundo em que se vive e dos alunos com quem se trabalha. Corre-se o risco da atividade letiva se alicerçar em decisões arbitrárias ou paroquiais, podendo constituir-se, até, como uma atividade aleatória e sem rumo, prescrita, muitas vezes e apenas pelos manuais escolares.
Só uma consciência epistemológica explícita do que está em jogo é que permite compreender que a resposta à pergunta «Como ensinar?» está dependente da resposta a uma questão prévia: «O que ensinar?», tendo em conta que, como o tentamos demonstrar, o modo como se ensina não poderá ser dissociado daquilo que se ensina.
É a partir desta abordagem que se compreende como o rigor e a exigência, enquanto categorias curriculares e pedagógicas, no âmbito do paradigma da comunicação, nada tem a ver com a abordagem de rigor e de exigência que os paradigmas da instrução e da aprendizagem propõem, o que se explica, afinal, em função dos tipos de cosmovisões em presença e das abordagens epistemológicas distintas que as sustentam. Para o paradigma da comunicação, recusa-se a abordagem racionalista, subjacente ao instrucionismo, e se propõe, em alternativa, uma visão que Hessen (2000) designa por intelectualista, a partir da qual sendo necessário considerar a importância do conhecimento prévio e validado, é, sobretudo, necessário considerar a relação entre este tipo de conhecimento e a experiência de cada sujeito cognoscente. Será essa relação que garante que o conhecimento não pode dissociar-se da relação que estabelece com a experiência e os saberes dos aprendentes, nem desprezar este conhecimento para valorizar tal experiência, como propõem as abordagens empiristas da realidade. Tais diferenças acentuam-se, igualmente, quando se confrontam os diferentes paradigmas relativamente ao modo como definem o que entendem por conhecer. O paradigma da instrução entende o ato de conhecer a partir de uma concepção realista do conhecimento (idem), no âmbito da qual os objetos do saber existem independentemente da relação que os sujeitos estabelecem com eles. Por sua vez, o paradigma da comunicação, que adota os pressupostos da abordagem fenomenalista (idem), propõe que os objetos do conhecimento não existem como entidades independentes dos sujeitos que os abordam, ainda que a atividade cognitiva dos sujeitos seja condicionada por algumas das características daqueles objetos e pelas leituras prévias já produzidas sobre os mesmos. Mais uma vez, é a relação entre sujeito e objeto que se valoriza como questão nuclear da reflexão sobre o ato de conhecer e, por inerência, sobre os atos de ensinar e de aprender.
Neste sentido, em termos epistemológicos, o paradigma pedagógico da comunicação afasta-se do paradigma da instrução mas, igualmente, do paradigma da aprendizagem que tende a afirmar-se quer pelo seu empirismo, em função do qual se elege a atividade e a experiência dos sujeitos como a principal fonte do conhecimento humano (idem), quer pelo seu idealismo, no momento em que, ao defender que os objetos do conhecimento existem, sobretudo, em função da atividade cognitiva que esses mesmos sujeitos exercem sobre eles, encontra a sua própria resposta para a questão «O que significa conhecer?» distinta daquelas que foram propostas pelos paradigmas da instrução e da comunicação.
Perante o quadro epistemológico proposto, compreende-se melhor que o paradigma pedagógico da comunicação se distancie do paradigma da aprendizagem e do idealismo epistemológico que sustenta os pressupostos deste último paradigma e as suas implicações educativas, no momento em que à recusa em entender os alunos como seres culturalmente autossuficientes, propõe, em alternativa, abordá-los quer como seres a desafiar quer como interlocutores privilegiados. Isto é, como sujeitos cujas experiências pessoais, modos de olhar, de agir e saberes são vistos como condição necessária para configurar as opções curriculares e pedagógicas que se assumem nas escolas, ainda que, neste âmbito, não possam ser consideradas como condição suficiente. É que, para este paradigma, em vez de se considerar o conhecimento culturalmente validado como um obstáculo potencial da aprendizagem e do processo de formação a estimular, considera-se, antes, que a relação a estabelecer entre os alunos e este conhecimento pode constituir uma oportunidade decisiva para se estimular o seu desenvolvimento cognitivo, interpessoal e socioemocional. Ou seja, o processo através do qual se promove este tipo desenvolvimento passa a ser percecionado quer como um processo culturalmente enquadrado quer como um processo culturalmente subordinado, dado que passa a ser concebido como uma variável dependente da natureza e qualidade da relação que se estabelece entre os estudantes e o conhecimento culturalmente validado que, hoje, tem ao seu dispor.
Exigência e rigor num projeto de educação escolar inclusivo, culturalmente significativo e empoderador
O que tentamos comprovar neste trabalho é que uma discussão consequente e produtiva sobre a exigência e o rigor, enquanto categorias curriculares e pedagógicas, obriga a compreender quer que há várias leituras sobre as mesmas, quer que não podemos continuar ou a subordinar este debate aos pressupostos do paradigma da instrução ou a não atribuir-lhe a importância que merece, como de algum modo parece ser a perspectiva que sustenta as correntes educativas que se identificam com o paradigma da aprendizagem.
Para uma Escola que se pretenda afirmar como um espaço culturalmente significativo, humanamente empoderador e, por isso, mais inclusivo, a exigência e o rigor acadêmicos afirmam-se, desde logo, a partir do reconhecimento que o desafio maior das escolas é o modo como aqui se concebem e se gerem as relações dos alunos com o conhecimento culturalmente validado, enquanto condição das relações que estabelecem com os outros e consigo mesmo. É a partir deste momento que se criam as condições para construir uma “pedagogia complexa” (SÁ, 2015, p. 65), a partir da qual se procure “tecer, religar os saberes, incorporando os processos de análise e de descrição no estabelecimento de um conhecimento representativo dos fatos e eventualmente do fenômeno educacional” (idem), o que, inevitavelmente, nos obriga a entender as intervenções educativas nas escolas como processos complexos, exigentes e rigorosos. Em primeiro lugar, para os alunos que se têm de confrontar com ideias, propostas e conceitos inéditos ou com modos de pensar e de atuar, num primeiro momento, estranhos. São, igualmente, processos complexos e exigentes para os professores que têm de enfrentar dilemas (PERRENOUD, 2001; MEIRIEU, 2005), tomar decisões e gerir este processo de forma esclarecida, já que as atividades que propõem aos seus estudantes não poderão ser dissociadas nem do que estes sabem e são, nem do facto de estarem a ser confrontados com atividades histórica e epistemologicamente situadas. Já não estamos, como no caso do paradigma da instrução, perante objetivos de aprendizagem que exigem que os alunos se mostrem capazes, apenas, de evocar conceitos e de os utilizar, como um fim em si mesmo. Já não estamos, também, como no paradigma da aprendizagem, perante atividades que visam alimentar, acima de tudo, as intersubjetividades dos alunos, como se estes assegurassem, só por si, a apropriação do conhecimento culturalmente validado e o processo de transformação intelectual, pessoal e social que uma tal apropriação suscita.
Perante o conjunto de argumentos que temos vindo a propor, parece-nos ser possível concluir que é tanto o estatuto educativo que no paradigma da comunicação se atribui ao conhecimento culturalmente validado, como a reflexão sobre o poder dos professores enquanto agentes educativos, que permite reabilitar a exigência e o rigor acadêmicos como condições incontornáveis do processo de afirmação de uma Escola culturalmente significativa, humanamente empoderadora e, por isso, mais inclusiva (TRINDADE, 2021).
O confronto que estabelecemos entre os diversos paradigmas mostra-nos que os discursos sobre a valorização do conhecimento como a principal razão que assiste aos instrucionistas para atribuírem a centralidade que atribuem à reivindicação da Escola se afirmar como um espaço de exigência e rigor acadêmicos, é uma exigência a revisitar. Trata-se, na verdade, de uma reivindicação através da qual se tende a instrumentalizar o conhecimento culturalmente validado como condição do que atrás designamos por processo de disciplinarização intelectual e atitudinal circunscrita dos alunos. Neste sentido, há uma espécie de aproximação epistemológica, mesmo que paradoxal, ao paradigma da aprendizagem, para o qual, a instrumentalização do referido patrimônio se justifica, neste caso, pela necessidade de se promover o desenvolvimento das capacidades e atitudes dos alunos. Para o paradigma da comunicação, o investimento faz-se em função da ressignificação, por parte dos alunos, de um tal patrimônio, o que constitui o principal objetivo dos projetos de educação escolar, já que o desenvolvimento de competências é uma consequência desse investimento.
Diremos que é a partir da assunção desta “relação dialógica-problematizadora entre os sujeitos para construção do conhecimento significativo e transformador” (BEHRENS, 2015, p. 24) que se explica porque é que a reflexão sobre o poder dos professores como agentes educativos é tão relevante, não se circunscrevendo, o debate, à sua exaltação como um instrumento de disciplinarização circunscrita dos estudantes. Para o paradigma da comunicação, o papel do professor é decisivo se este se assumir como um “agente capaz de dinamizar um projeto de influência educativa que, mais do que aniquilar o aluno, se constitui como uma oportunidade de promover encontros, quer entre docentes e discentes, quer dos discentes uns com os outros” (TRINDADE, 2009, p. 115-116), os quais se justificam em nome da necessidade de promover a já referida apropriação do conhecimento culturalmente validado e, concomitantemente, o seu empoderamento como seres humanos.
Não é por isso a recusa do poder do professor que poderá contribuir para o desenvolvimento e a afirmação de alunos mais autônomos, proativos, inteligentes e humanamente mais capazes, mas o modo como esse poder se constitui como condição para criar ambientes educativos potenciadores de cooperação, de participação e de autonomia, eixos transversais de um projeto onde os alunos se deverão afirmar como produtores culturais.
Se, pelo contrário, um professor se demite perante a referida resistência dos alunos, renunciando ao poder que detém, então
“corta as amarras e o outro fica à deriva, sem necessariamente pedir socorro, (,,,), em geral na mais total incapacidade de retomar a direção e decidir seu próprio caminho. O vínculo é rompido e não poderá voltar mais a ser refeito: a brutalidade da ruptura desencoraja para sempre o cuidado paciente de se libertar por si mesmo tecendo novos vínculos” (MEIRIEU, 2002, p. 62).
De acordo com esta perspectiva, o poder do professor pode constituir condição do empoderamento dos alunos quando, através dos seus discursos e das suas ações, se mostra disponível para propor “uma palavra que, sem negar nada das suas convicções e da sua conduta, deixa-se trabalhar internamente pela exigência de clareza, pela preocupação com o rigor e pela vontade de explicitar cada vez mais e melhor os desafios que comporta” (idem, p. 79).
Assim, confirma-se que na abordagem que entende os docentes como interlocutores qualificados, nem o professor recusa o poder que lhe foi outorgado, nem se assiste à deslocação do centro do poder para os alunos. O que se pode afirmar é que o poder dos professores se constitui como instrumento e condição da construção de um processo que visa assegurar a existência de um ambiente educativo que, do ponto de vista das suas rotinas, dispositivos e procedimentos, se encontra organizado para que os alunos assumam responsabilidades mais amplas e decisivas no âmbito do projeto de formação que lhes diz respeito, seja ao nível das aprendizagens, seja, em geral, ao nível da gestão da vida em comum no seio das escolas e das salas de aula. Neste caso, os professores não se demitem dos compromissos e iniciativas que lhes compete assumir, para que os seus alunos possam avaliar e discutir propostas ou iniciativas, tomar decisões e, entre outras coisas, estabelecer consensos. Pelo contrário, uma tal possibilidade depende do modo como os professores criam as condições para que mais do que preservar o seu poder se estabeleçam relações de poder que, por um lado, reconheçam os alunos nas suas particularidades e, por outro, se estimule a sua participação no processo de formação que lhes diz respeito.
Conclusão
Perante a reflexão proposta constata-se, em primeiro lugar, que as noções de exigência e rigor académicos não são propriedade das correntes pedagógicas do paradigma da instrução, onde assumem um papel decisivo para legitimar o processo de disciplinarização circunscrita, em função do qual pretendem defender quer que a seleção acadêmica constitui uma condição decisiva da afirmação de um ensino de qualidade, quer que é inevitável que o trabalho dos alunos seja um trabalho carente de significado pessoal e de plausibilidade cultural.
Se, como defendem os defensores do paradigma da instrução, o campo pedagógico alternativo se circunscrevesse àquele que o paradigma da aprendizagem baliza, seria aceitável pretender que a exigência e o rigor académicos fossem pertença exclusiva daquele paradigma. É que, para o paradigma da aprendizagem, estas categorias curriculares e pedagógicas tendem a não ser objeto de qualquer referência curricular e pedagógica, sendo mobilizadas, apenas, para se oporem à leitura que os instrucionistas veiculam sobre as mesmas.
Finalmente, para o paradigma da comunicação, a exigência e o rigor académicos são entendidas como categorias curriculares e pedagógicas decisivas. Sem essa exigência e esse rigor não é possível lidar de forma consequente quer com as múltiplas possibilidades de, cotidianamente, concretizar as iniciativas através das quais aqueles projetos vão acontecendo, quer com as tensões, os equívocos e os desafios que se vão experienciando nesse âmbito. Para o paradigma da comunicação, a exigência e o rigor académicos são condições incontornáveis do desenvolvimento de projetos de educação escolar que, ao contrário do paradigma da instrução, recusa a falta de significado e de plausibilidade cultural dos alunos como ocorrência curricular e pedagógica inevitável, de forma a criarem-se as condições relacionadas com a possibilidade de se criarem aprendizagens culturalmente significativas e humanamente empoderadoras. Também em oposição ao paradigma da instrução, a exigência e o rigor académicos são, para o paradigma da comunicação condição da afirmação de uma Escola mais inclusiva