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Revista Diálogo Educacional

Print version ISSN 1518-3483On-line version ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.78 Curitiba  2023  Epub Oct 04, 2023

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.078.ao06 

Artigos

Histórias de vida de professores de educação física iniciantes: tempos, contextos e sujeitos da formação

Life stories of beginning physical education teachers: times, contexts and subjects of training

Historias de vida de maestros principiantes de educación física: tiempos, contextos y sujetos de formación

1Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil


Resumo

Este artigo discorre sobre os resultados de uma pesquisa que teve por objetivo investigar as correlações entre as histórias de vida de professores de Educação Física (EF) iniciantes, processos formativos e o enfretamento dos desafios da iniciação à docência. O estudo é de caráter qualitativo, com uma abordagem biográfica. Foi utilizado um único instrumento de construção de dados: a entrevista narrativa. O estudo foi realizado com 12 professores/as iniciantes de EF, egressos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), todos com até três anos de inserção profissional na escola básica. Os dados mostram que uma diversidade de vivências formativas formais, não formais e informais são tomadas pelos professores como significativas ao processo de formação e intervenção profissional no início da carreira. Tais achados da pesquisa sugerem que as histórias de vida conformam professores dotados de experiências de formação plurais, com disposições sociais diversas, o que tornaria as trajetórias de inserção profissional um fenômeno social plural, situado e intrasferível, visão que relativizaria os marcadores temporais (cronológicos) dos ciclos da carreira docente, como da caracterização de significados mais gerais sobre a experiência de iniciar a carreira docente. Não apenas porque os contextos de inserção profissional são diversos, mas também porque os professores que iniciam a profissão são sujeitos que carregam consigo histórias de vida e patrimônios formativos singulares que acabam por tornar a experiência de inserção profissional um fenômeno muito particular.

Palavras-chave: Trajetórias de vida; Iniciação à; docência; Educação Física Escolar.

Abstract

This article discusses the results of a research that aimed to investigate the correlations between the life stories of beginning Physical Education (PE) teachers, training processes and coping with the challenges of starting to teach. The study is qualitative, with a biographical approach. A single data construction instrument was used: the narrative interview. The study was carried out with 12 beginner PE teachers, graduates of the Federal University of Minas Gerais (UFMF), all with up to three years of professional insertion in basic school. The data show that a variety of formal, non-formal and informal training experiences are taken by teachers as significant in the process of training and professional intervention at the beginning of their careers. Such research findings suggest that life stories conform teachers with plural training experiences, with different social dispositions, which would make professional insertion trajectories a plural, situated and transferable social phenomenon, a view that would relativize temporal (chronological) markers of the teaching career cycles, as well as the characterization of more general meanings about the experience of starting a teaching career. Not only because the contexts of professional insertion are diverse, but also because teachers who start the profession are subjects who carry with them life stories and unique training assets that end up making the experience of professional insertion a very particular phenomenon.

Keywords: Life trajectories; Initiation to teaching; School Physical Education.

Resumen

Este artículo discute los resultados de una investigación que tuvo como objetivo indagar las correlaciones entre las historias de vida de los profesores principiantes de Educación Física (EF), los procesos de formación y el enfrentamiento a los desafíos de empezar a enseñar. El estudio es cualitativo, con un enfoque biográfico. Se utilizó un único instrumento de construcción de datos: la entrevista narrativa. El estudio fue realizado con 12 profesores principiantes de EF, egresados de la Universidad Federal de Minas Gerais (UFMF), todos con hasta tres años de inserción profesional en la escuela básica. Los datos muestran que una variedad de experiencias de formación formal, no formal e informal son tomadas por los docentes como significativas en el proceso de formación e intervención profesional al inicio de sus carreras. Tales hallazgos de investigación sugieren que las historias de vida conforman docentes con experiencias formativas plurales, con diferentes disposiciones sociales, lo que haría de las trayectorias de inserción profesional un fenómeno social plural, situado y transferible, visión que relativizaría los marcadores temporales (cronológicos) de los ciclos de la carrera docente, así como la caracterización de significados más generales sobre la experiencia de iniciar la carrera docente. No sólo porque los contextos de inserción profesional son diversos, sino también porque los docentes que inician la profesión son sujetos que llevan consigo historias de vida y valores formativos singulares que terminan por hacer de la experiencia de inserción profesional un fenómeno muy particular.

Palabras clave: Trayectorias de vida; Iniciación a la docencia; Educación Física Escolar.

Introdução

O presente artigo relata achados de uma pesquisa que teve como objetivo central conhecer e analisar a percepção que professores iniciantes de Educação Física (EF) constroem acerca das relações entre as experiências formativas incorporadas no transcorrer de suas trajetórias de vida e no enfrentamento dos desafios colocados pelo início da carreira docente, no contexto de escolas das redes de ensino pública e privada no Brasil.

De forma mais específica, a pesquisa nutre-se de estudos do campo da formação de professores que têm procurado atravessar a tradicional ruptura do eu profissional e do eu pessoal, de modo a recolocar os professores no centro dos debates educativos e da problemática de investigação (NÓVOA, 1991). Tal perspectiva toma a pessoalidade como uma face da identidade docente, em tensão, interdependência e complementaridade com os aspectos da profissionalidade docente. Aspectos esses (da pessoalidade) forjados em situações e contextos diversos e que podem atuar de maneira silenciosa em ações de julgamento e deliberação em contextos de atuação profissional (TARDIF e RAYMOND, 2000).

Tendo esse debate em perspectiva, partimos da premissa de que as trajetórias de vida e a pluralidade das experiências formativas (informais, não formais e formais), incorporadas em diferentes tempos da vida, contextos e instituições, podem vir a se constituir em um reservatório de saberes (saberes, saber-ser, saber-fazer), os quais os docentes iniciantes se mobilizariam em situações de enfrentamento dos desafios e dilemas da iniciação à docência, do ciclo da carreira docente. Este último marcado, em geral, por sentimentos extremos de desamparo, solidão, estranheza, alienação, insegurança, obscuridade, ambiguidade e intensos processos de aprendizagem profissional (NONO, 2011; PAPI e MARTINS, 2010).

Nesse horizonte investigativo, o estudo toma como referência as narrativas de 12 professores de Educação Física iniciantes, licenciados pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a fim de identificar e problematizar possíveis continuidades, descontinuidades, rupturas, quebras, desníveis entre as experiências de formação vividas ao longo da vida e o enfrentamento dos desafios da iniciação à docência no espaço escolar.

Assim, buscamos construir respostas a tais questões: as experiências formativas não formais e informais são mobilizadas na lida com os desafios da iniciação à docência? Que experiências formativas seriam essas? De que modo as experiências formativas incorporadas na socialização primária (familiar, escolar) participam, informam e tornam-se referências morais, afetivas e práticas à atuação profissional de professores iniciantes? Em que medida as experiências de socialização primária atuam nos processos de exploração e estabilização na/da profissão docente? De que maneira as experiências formativas incorporadas ao longo da vida articulam-se às características do período da iniciação à docência?

As histórias de vida, histórias de formação?

Estudos que tratam da tipologia dos saberes docentes têm chamado a atenção para a necessidade de reconhecer as dimensões temporais do saber profissional, ou seja, de que parte do reservatório de saberes dos professores tem sua inscrição na história de vida desses sujeitos, que transcende e ultrapassa os saberes acadêmicos universitários e/ou aqueles construídos em meio ao trabalho cotidiano nas escolas. Para esses estudos, essa inscrição no tempo é particularmente importante visando compreender a genealogia dos saberes docentes (TARDIF e RAYMOND, 2000).

Nessa direção, estudos que se dedicam a identificar, a descrever e a problematizar as características do pensamento dos professores e de suas formas de deliberação em situações de ação têm apontado para a necessidade de olhar, de maneira mais analítica, os processos de socialização não circunscritos à formação e atuação profissional. Isso porque, em tais cursos de vida, seriam incorporados à formação dos professores determinados marcadores afetivos, conservados sob o modelo de preferências, disposições e repulsões, referenciado em tempos, lugares e sujeitos, atuando de modo a indexar e afixar essas experiências na memória. Os vestígios da socialização primária e da socialização escolar do professor seriam, portanto, fortemente marcados por referenciais de ordem temporal. A temporalidade estruturaria, pois, a memorização de experiências educativas marcantes para a construção do “Eu” profissional (TARDIF e RAYMOND, 2000).

Tal discussão nutre-se dos aportes teóricos produzidos no campo da sociologia do conhecimento, em especial por Berger e Luckman (1980), no livro seminal, intitulado “A construção social da realidade”. Para esses autores, o processo de socialização é ininterrupto, podendo ser subdivido em dois momentos distintos e interdependentes: a socialização primária e a socialização secundária. A socialização primária, como o nome sugere, é a primeira socialização que o indivíduo experimenta na infância, por meio da qual se torna membro da sociedade. Nela, os outros significativos (pais, irmãos, professores) lhe são impostos, e a definição desses à situação de cada um no mundo se apresenta como a realidade objetiva. Aqui se constituiu o primeiro mundo do indivíduo, e sua peculiar solidez pode ser explicada pela inevitabilidade da relação dos indivíduos com estes outros significativos (familiares, professores).

Em função disso, a socialização primária implicaria mais do que aprendizado puramente cognoscitivo, mas ocorre em circunstâncias carregadas de alto grau de emoção. Por isso, o mundo interiorizado na socialização primária tornar-se-ia mais entrincheirado na consciência daqueles mundos interiorizados nas socializações secundárias.

Apesar da forte carga emocional presente na socialização primária, a socialização nunca é total, nem jamais acabada. Numa sociedade marcada pela divisão social do trabalho e pela distribuição social do conhecimento, faz-se necessária a ocorrência de processos de socialização secundária. Nestas são interiorizados submundos institucionais ou baseados em instituições. Ela exigiria, segundo Berger e Luckmann (1989), a aquisição de vocabulários específicos de funções e interiorização de campos semânticos e condutas de rotina numa área institucional. Os submundos institucionais interiorizados na socialização secundária são geralmente realidades mais ou menos parciais, comparativamente com o mundo básico adquirido na socialização primária. Contudo, eles também são realidades mais ou menos coerentes, caracterizadas por componentes normativos e afetivos.

Haveria, portanto, uma espécie de sobreposição entre esses tipos de socialização, já que não se pode construir a realidade do nada ou internalizá-la a partir de um vazio experiencial. Isso representaria um problema, porque a realidade já interiorizada tem a tendência a permanecer. Sejam quais forem os conteúdos a serem interiorizados, esses precisam, de certo modo, sobrepor-se à realidade já presente. Ocorreria, pois, um problema de coerência entre a interiorização primária e interiorização a secundária. Tal passagem pode vir a tornar-se uma dificuldade, conforme o caso. Por vezes, são necessários graves choques no curso da vida a fim de desintegrar a maciça realidade interiorizada na socialização primária. Ao contrário, seria preciso muito menos para destruir a realidade interiorizada na socialização secundária (BERGER e LUCKMANN, 1980).

Portanto, o tempo é, para Berger e Luckmann, uma estrutura intrínseca da consciência, ou seja, ela é coercitiva. Uma sequência de experiências de vida não pode ser revertida facilmente. Não há operação lógica que possa fazer com que se volte ao ponto de partida e que tudo recomece. A estrutura temporal da consciência proporciona a historicidade que define a situação de uma pessoa em sua vida cotidiana como um todo e lhe permite atribuir, muitas vezes a posteriori, um significado e uma direção à própria trajetória de vida. Para isso, os professores utilizariam referenciais espaço-temporais que consideram válidos para alicerçar a legitimidade das certezas experienciais que reivindicam (TARDIF e RAYMOND, 2000).

Em sintonia com as essas reflexões teóricas, uma abundante literatura do campo da formação de professores (GOODSON, 1991; NÓVOA, 1991; SOUZA, 2006) tem apontado para o fato de que boa parte do que os professores sabem a respeito do ensino, dos papéis do professor, da função da escola, do ofício de aluno e de como ensinar provém de sua história de vida, em especial, de sua trajetória de formação na escola básica. Sobre esse ponto, Goodson (1991) coloca em questão os estudos que têm uma incidência direta e predominante sobre a prática docente, por considerá-la o aspecto mais exposto e problemático do mundo dos professores (é como se o professor fosse a própria prática). Tal incidência deveria ser complementada, pelo menos parcialmente, com uma consideração mais lata sobre a vida do professor. Isso porque os professores, ao discorrerem sobre seus processos de formação, fazem menções constantes a fatos, sujeitos, contextos, incidentes críticos diretamente relacionados a sua história de vida, em especial a situações relacionadas a contexto de origem mais primária, ou seja, fora dos submundos profissionais.

Dada a relevância afetiva, moral e ética do experienciado nas histórias de vida, faz necessário, segundo o autor, entender o pessoal e o biográfico se quisermos compreender o social e o político. A atuação dos professores no contexto escolar está diretamente ligada a essas suas experiências. Essa perspectiva de análise deveria galgar uma dimensão política porque, em contextos de crise e de desejo de mudança na educação, seria prudente tomar como referência o potencial do professor como agente de mudança positiva. Sendo necessário para tal dar destaque à sua biografia pessoal - às missões e entregas pessoais que subjazem aos seus sentidos de vocação e de zelo pela sua profissão.

Ainda sobre a importância das histórias de vida no processo de formação dos professores, Nóvoa (2000) lembra que o processo de construção identitária dos professores tem como um dos seus lastros a apropriação dos sentidos da sua história pessoal e profissional. Essa passa também pelo exercício da autonomia e se faz no tempo, nas decisões tomadas diariamente, as quais, para nós professores, cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar, como também desvendam tudo isso. Para o autor, precisamos operar com uma nova epistemologia da formação que situe o desenvolvimento pessoal e profissional dos professores ao longo dos diferentes momentos de vida. É por essa razão que, desde há algumas décadas, se admite que a qualidade do trabalho do professor esteja fortemente relacionada com o desenvolvimento do “professor total”. Para esse conhecimento contribuem, de forma significativa, os seus conhecimentos, as suas crenças, as suas competências, assim como aquilo que é, os seus propósitos, a sua biografia e experiências de vida, bem como os diversos contextos em que está inserido (HARGREAVES, 1992).

Essa ideia do “professor total” reconhece a centralidade dos processos de autoformação levados a cabo pelos sujeitos adultos. A tomada de consciência do poder de formação pelo sujeito, que evolui em permanência por muito tempo (PINEAU; BRETON, 2021), é concomitante com a temporalidade da vida. Aqui o professor é tomado na condição de pessoa adulta em situação de formação, portador de uma história de vida e de uma experiência com múltiplas dimensões, nomeadamente no domínio profissional; assim, mais importante do que pensar em formar esse adulto professor, deve-se “refletir sobre o modo como ele próprio se forma, isto é, o modo como ele se apropria do seu patrimônio vivencial através de uma dinâmica de compreensão retrospectiva” (NÓVOA, 1991, p. 128).

Nessa perspectiva, ganha evidência e importância a vida em geral como um campo aberto de possibilidades de formação formal, não formal e informal.1 Com isso, reconhece-se o papel central da história de vida da pessoa adulta. A centralidade da história de vida na educação de adultos advém do fato de que os adultos não podem retirar-se da vida para aprender (FERNANDEZ, 2006), porque o processo de formação é intrínseco e concomitante com a vida. Isso pelo fato de que “ninguém se educa e forma primeiro para depois, finalmente, viver, participar no mundo social, afirmar-se como cidadão ativo em contexto democrático.” (LIMA, 2020, p. 203).

A globalidade e a continuidade do processo de formação, como também a centralidade do sujeito nessa dinâmica, ganham consistência com base na linha de investigação em torno das histórias de vida (DOMINICÉ, 1990). O recurso à abordagem biográfica na investigação-formação permitiu compreender a diversidade e a complexidade das dinâmicas de formação da pessoa adulta. O adulto em formação é portador de uma história de vida e de uma experiência; por isso, mais importante do que formar o adulto, é acompanhá-lo na reflexão sobre o modo como ele próprio se forma (NÓVOA, 1991).

Os princípios anteriormente enunciados demonstram a importância da formação experiencial no processo de desenvolvimento humano, numa linha antropológica. A formação experiencial resulta de um trabalho do sujeito sobre si próprio, na interação com os outros e com o meio envolvente, quando ele é confrontado com acontecimentos geradores de problemas e desafios que exigem alteração nos esquemas de pensamento e de ação (JOSSO, 1991). A formação experiencial ocorre em todos os tempos e espaços de vida (família, trabalho, lazer e escola); está interligada com o patrimônio de experiências; permite o desenvolvimento de conhecimentos, saberes e competências nos domínios instrumental, relacional e emocional; e tem interferência nas dimensões identitária e existencial. Quando se fala de formação experiencial, tem-se subjacente o pressuposto básico de que se aprende por meio da experiência (CAVACO, 2009). Na opinião de Pineau (1989), a formação experiencial é uma formação por contato direto, mas refletido. Por contato direto, porque não há a mediação dos formadores, de programa, de livros, de palavras. A formação experiencial, na perspectiva de Roelens (1991), é a descoberta progressiva por um sujeito (individual ou coletivo) da sua capacidade de pensar e de produzir a realidade valendo-se de cada experiência, capitalizando, de modo singular, a potencialidade heurística das situações em que se inscreve a sua identidade.

O campo da investigação sobre histórias de vida de professores de EF tem reforçado tais apontamentos e reflexões. Pesquisas nessa área revelam que as experiências esportivas na infância e na adolescência (fora e dentro da escola) são determinantes para a escolha da profissão (SANTOS et al., 2009, ALMEIDA e FENSTENSEIFER, 2007). Mais do que isso, as experiências sociocorporais construídas na trajetória individual de relação com as práticas corporais impactam a forma como tais sujeitos atuam didaticamente em sala de aula, como se relacionam com os conhecimentos acadêmicos da área, bem como na construção de representações sobre o campo de atuação profissional e o papel do professor de Educação Física (FIGUEIREDO, 2008; ALMEIDA 2009).

Ciclos de desenvolvimento profissional e a iniciação à docência

A literatura no campo da formação de professores vem apontando que o processo de formação de professores teria como referência a existência de marcadores temporais (ciclos, fases), que, à sua maneira, contribuem diversamente para o desenvolvimento profissional docente. Na opinião de Feiman-Nemser (1984), tais ciclos seriam quatro: pré-formação, formação inicial, indução e formação em serviço. Flores e Day (2006) reforçam a tese de que existiriam também três fenômenos de marcação que têm forte influência sobre o processo de construção, desconstrução e reconstrução da identidade profissional dos professores, a saber: a influência anterior à experiência de formação profissional, a formação acadêmica/profissional inicial (licenciatura) e o exercício profissional nos contextos de ensino.

Nesse debate teórico sobre os ciclos ou as fases do desenvolvimento profissional dos docentes, pode-se perceber que, sobre determinado ponto, há certo consenso de que as experiências formativas anteriores à formação acadêmica inicial e à iniciação à docência são dois momentos singulares da trajetória de formação dos professores, e que, enquanto tal, poderiam influir no tipo de relação a ser estabelecida com o trabalho, como também no processo contínuo de formação.

No que trata da fase da iniciação à docência, é vasta a literatura que tem descrito e analisado os aspectos que demarcam as singularidades desse tempo da carreira docente. Em geral, a entrada na profissão tem sido retratada como algo traumático. O encontro com a realidade profissional é muitas vezes narrado na literatura em termos duros, como de crise com a profissão, como uma espécie de “batismo de fogo” (KELCHETERMANS e BALLET, 2002). O início da carreira é designado também como “choque de realidade” e “choque de transição” (VEENMAN, 1984, HUBERMAN, 1992). Tais termos são utilizados para referir à situação que muitos professores vivem nos primeiros anos de docência e que corresponde aos seguintes impactos sofridos: experiência de contato inicial com o meio socioprofissional e de ruptura da imagem ideal de ensino; colapso das ideias missionárias forjadas durante a formação dos professores, em virtude da dura realidade de ter que lidar com desafios oriundos da vida cotidiana na sala de aula; da relação com os pais, com os pares, com a diversidade dos alunos e suas dificuldades de aprendizagem; e com a falta de recursos e apoio da comunidade escolar. Em alguns casos, esse período traumático se estende por mais ou menos tempo; isso dependerá da assimilação e da compreensão da realidade complexa que o professor tem de enfrentar (VEENMAN, 1984).

Por outro lado, a entrada na carreira também é descrita como um período de intensa aprendizagem profissional, dada a urgência das demandas de trabalho, das inúmeras e diversas atividades próprias da função docente (ensino, planejamento, administração) e da grande autonomia de trabalho na sala de aula, que torna o professor, muitas vezes, a única pessoa em contexto de ação. Nesse ambiente de urgências e incertezas, as descobertas da profissão podem ser inúmeras e plurais: a identificação dos alunos reais; o conhecimento da burocracia escolar; o controle do tempo (subjetivo e objetivo); as estratégias de supervisão da sala de aula; o fato de lidar com conteúdos de ensino até então nunca ministrados ou conhecidos; a necessidade de manter a disciplina dos alunos, de implicá-los nas ações de ensino e aprendizagem; de assegurar o equilíbrio emocional em face das tensões decorrentes da interação entre os atores escolares; de articular a vida profissional e vida privada, dentre outras aprendizagens próprias do processo de descoberta da profissão.

A iniciação na profissão docente, portanto, poderia ser considerada um momento-charneira na vida de um professor. Tais momentos vinculam-se a situações de conflito e/ou de mudanças de estatuto social, e/ou com relações humanas particularmente intensas, e/ou o acesso a conhecimentos socioculturais inusitados (familiares, profissionais, políticos, econômicos). Nos momentos-charneirais, os sujeitos confrontam-se consigo mesmos. A descontinuidade impõe aos sujeitos transformações mais ou menos profundas e amplas e surgem-lhes perdas e ganhos (JOSSO, 1987). No caso dos professores iniciantes, trata-se da difícil e complexa experiência de transição entre a vida de estudante e a vida de ser, pensar e agir como professor. Sendo esses docentes, na sua maioria, jovens em idade cronológica, tal processo de transição envolve riscos, dúvidas e inseguranças, próprios da passagem para a vida adulta.

Em um ponto específico, a literatura sobre o tema tem manifestado certo consenso: o caráter muitas vezes traumático da experiência de entrada na profissão e/ou da múltipla aprendizagem profissional, possibilitada pelo início da carreira docente, faz com que a iniciação à docência se torne um período singular da trajetória docente e potencialmente determinante na construção da história profissional dos professores, atuando de forma a influir no tipo de relação a ser estabelecida com o trabalho, seja no presente, seja no futuro. Não haveria, portanto, um salto da formação acadêmico inicial à plena maturidade profissional. A iniciação à docência seria, assim, um período entre-dois, entre a formação e a profissão, que marca decisivamente o modo como nos tornamos professores (NÓVOA, 2022).

No caso dos professores de EF iniciantes, pesquisas tem apontado para aspectos singulares da inserção profissional. Destaca-se que o déficit crônico de legitimidade acadêmica/pedagógica da disciplina tem criado condições particulares para a entrada na profissão, potencializando, em muitos casos, um quadro de dupla vulnerabilidade profissional. Sobrepõem-se às tensões e aos desafios provenientes da condição de professores iniciantes, dilemas e enfrentamentos advindos de situações específicas de desrespeito profissional. Isso porque, de forma geral, são baixas as expectativas dos pares e da gestão escolar com as aprendizagens que se realizam nas aulas dessa disciplina; a sala de aula da EF (quadras, ginásios) e seus objetos didáticos (bolas, arcos, colchões, cordas) não são reconhecidos como dispositivos didáticos necessários à uma aprendizagem singular na EF; as condições ambientais da sala de aula da disciplina potencializam a falta de privacidade dos professores, produzindo sensações de exposição institucional e insegurança profissional; diluição da autoridade docente junto ao discentes, fruto do não reconhecimento da EF como componente curricular, exacerbam as tensões na relação pedagógica; a presença de desafios extras no trabalho de organização curricular da disciplina, em função de um contexto de atuação profissional onde quase inexistem referentes curriculares e didáticos mais diretivos (livros didáticos)2. Tal cenário acentua o estresse, as incertezas, as angústias e inseguranças no trabalho, como também, podem avivar processos de reflexão e aprendizagem profissional. (GARIGLIO, 2016; QUADROS et al., 2015).

Ao tomarmos as experiências formativas incorporadas no curso das histórias de vida como parte importante do processo de constituição da pessoalidade e da profissionalidade docente, arriscamo-nos a inferir que os professores iniciantes se valem de suas biografias para fins de enfrentamento dos dilemas profissionais colocados pela iniciação à docência. Nessa linha, perguntamos: segundo o olhar dos professores de EF iniciantes, que experiências formativas incorporadas ao longo da vida seriam mobilizadas para fins de enfrentamento dos dilemas e dos desafios do início da carreira? Sobre que plano o exercício da docência em EF se configura como uma vivência em coerência e/ou de descontinuidade em relação aos processos de socialização primária?

Metodologia

Método

Este estudo caracteriza-se por ser uma pesquisa qualitativa, já que pretende compreender em profundidade os sentidos e os significados construídos pelos professores de Educação Física iniciantes acerca dos conteúdos, do valor e do alcance existencial/profissional das experiências formativas incorporadas no decorrer da vida. Não nos interessou verdades absolutas, tipos ideais de experiências formadoras, generalizações abstratas ou comparações estatísticas. As percepções e os sentidos construídos pelos sujeitos expressam-se de maneira mais contundente em palavras, signo esse capaz de representar de forma mais potente as sombras, o caos, a beleza, a incompletude, a complexidade e as dialéticas da subjetividade humana.

Pretendemos, desta forma, compreender o complexo mundo da experiência humana: como as pessoas vivem, experimentam, interpretam e constroem os significados do mundo social e de que modo esses são integrados na cultura, na linguagem e nas ações dos atores sociais. Isso tudo, com a finalidade de conseguir imagens multifacetadas do fenômeno social estudado, tal como se manifesta nas distintas situações e nos contextos sociais (SCHWANDT, 1994).

Instrumentos de coleta de dados

Esta pesquisa fez uso de apenas um único instrumento de pesquisa: a entrevista narrativa. Trata-se de uma entrevista que se caracteriza, segundo Souza (2008), como uma das entradas do trabalho biográfico, que se inscreve na subjetividade e se implica com as dimensões espaço-temporal dos sujeitos quando narram suas experiências, nos domínios da educação e da formação. Como técnica singular de conduzir/construir uma entrevista, a entrevista narrativa evidencia-se por ser menos diretiva, comparativamente com outros tipos de entrevista existentes (estruturada, semiestruturada), de maneira a possibilitar ao interlocutor mais liberdade para escolhas de fatos, interpretações e do fio condutor de sua narrativa.

Jovchelovitch e Bauer (2010) defendem que existe uma estrutura na narrativa, que eles chamam de “paradoxo da narração”, a qual se consubstancia nas exigências das regras implícitas que permitem o contar histórias. Portanto, faz-se necessário estabelecer a entrevista narrativa como técnica de entrevistas, com regras claras, por exemplo: como ativar o esquema da história; como incitar a narração dos entrevistados; e, depois de iniciada a narrativa, conservar a narração, seguindo a mobilização do esquema autogerador.

Em diálogo com essas indicações metodológicas, organizamos um roteiro de entrevista composto por apenas duas questões: a primeira, a qual denominamos de “questão desencadeadora” da narrativa. Tal tópico indutor instigou os sujeitos a narrarem livremente as experiências formativas mais significativas, vividas em diferentes contextos e tempos da vida (familiar, escolar, esportiva, cultural, religiosa, universitária, política), e que, segundo eles próprios, foram fundamentais à sua formação e atuação profissional. A segunda questão incitou os docentes a refletirem sobre a transferibilidade das experiências formativas, incorporadas ao longo da vida, ao enfrentamento dos desafios da iniciação à docência. As demais questões foram formuladas de improviso (questões imanentes) no transcurso das narrativas, de maneira a solicitar aos professores o adensamento descritivo/reflexivo de partes específicas de seus relatos, partes essas que entendíamos serem merecedoras de complementação e esclarecimento. Foi feita apenas uma entrevista com cada um dos sujeitos da pesquisa. Em função da pandemia de Covid-19, todas as entrevistas foram realizadas de modo remoto.

Sujeitos da pesquisa

Os sujeitos da nossa pesquisa são 12 professores (7 mulheres e 5 homens) de EF, formados em licenciatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Todos os sujeitos da pesquisa tinham, no máximo, três anos de inserção profissional na escola, ou seja, todos ainda iniciantes na carreira docente.3 A escolha por docentes de uma única universidade teve por objetivo tentar estabelecer relações mais críveis entre os fluxos de formação próprios dos tempos e os contextos da socialização pré-profissional, acadêmica inicial e da iniciação à docência. Os docentes participantes da pesquisa foram escolhidos de forma aleatória e por meio de adesão voluntária. O convite à participação na pesquisa foi feito via e-mail, a todos os egressos do curso de licenciatura em EF, formados entre os anos 2017 e 2020.

Alguns achados da pesquisa

Os 12 docentes, quando solicitados a elegerem, em sua história de vida, experiências de formação que entendiam ser significativas para sua atuação e formação profissional, quase sempre optaram por construir sua narrativa por meio de uma lógica cronológica, da infância à vida adulta. Foram relatadas experiências diversas de formação que fazem menção aos tempos da infância e juventude, ao contexto familiar, à trajetória escolar/universitária, à vivência religiosa, à inserção em projetos culturais e à participação política (movimento estudantil, partidos políticos). Vamos neste artigo destacar algumas dessas experiências formativas indiciadas pelos nossos sujeitos de pesquisa.

A vivência narrada pelos professores expressa, de forma inicial, o papel central que determinados sujeitos (pais, mães, irmãos, professores, maridos) tiveram, seja para a internalização de certos crenças e valores, seja para a manutenção de uma necessária autoestima elevada. Parafraseando Berger e Luckmann (1980), tais sujeitos configurariam uma espécie de outros significativos, atores esses fundamentais para a definição da realidade objetiva. Quaisquer que sejam, a interiorização ocorre quando há forte identificação com os sujeitos significativos. Melhor dizendo, os sujeitos incorporam os papeis e as atitudes dos outros significativos, interiorizando-os, tornando-se seus. Na narrativa abaixo uma das docentes, ao discorrer sobre a sua identificação com uma treinadora de vôlei, quando ainda adolescente, indica alguns dos aprendizados incorporados e de como esses se fazem presentes e necessários em contexto de inserção profissional. Vejamos:

Durante a minha vida no vôlei, que eu jogava vôlei, tinha a Shirley e ela foi fenomenal na minha vida, porque minha mãe não aceitava que eu jogasse vôlei, porque na verdade eu queria ser uma jogadora desse esporte e ela não aceitava de forma alguma. Achava isso errado pela religião dela; ela dizia que eu estaria ganhando dinheiro pelo jogo. E a Shirley foi uma pessoa que sempre ia lá em casa, conversava com minha mãe, explicava para ela que não era bem assim e aí por causa dela eu consegui, porque, se eu dependesse só dos meus pais, eu não conseguia jogar vôlei. Então ela foi muito importante na minha vida. Sim, ela era coordenadora do vôlei, ela era sensacional, porque ela ia na casa dos meninos, ela ia pegando todos os meninos para jogar e para conhecer o projeto e muitos ficavam. Ela que faz esse movimento e, se não fosse por ela, eu acho que não existiria o programa, porque ela tem essa iniciativa. Ela é um membro da comunidade que tem essa iniciativa de te trazer para o esporte. Ela foi uma pessoa muito importante na minha trajetória. [...] Primeiro, porque ela (Shirley) era uma pessoa que sempre me apoiava e também buscava dar perspectivas pra gente, mesmo que fosse nesse ambiente esportivo. Eu fiz teste no Cruzeiro. Ela fazia com que a gente tivesse essas possibilidades. Por isso que ela foi muito importante, ela conversava com a gente também; além dessa coisa de perspectiva, ela era uma psicóloga para a gente, porque ela falava sobre muitos problemas e dialogava bastante. Levava a gente na casa dela para fazer aquelas comemorações de final de ano. Era muito bacana, e eu estou tentando encontrar aqui uma palavra para poder te explicar no sentido social o papel dela. Ela é uma inspiração, pelo trabalho que ela faz na comunidade. Inspiração de determinação, de que a gente pode ter uma perspectiva. Mais ou menos isso. (Profa. 1)

Essas correlações indiciadas pela Profa. 1, ao tentarem dar razão à importância que a professora de vôlei teve em sua vida, sugerem que os valores relacionados à determinação e à expansão de perspectivas de vida conformariam uma via de continuidade entre a socialização primária e a socialização secundária. Nesse caso narrado, ensejam-se situações de aprendizado que envolveriam mais do que um conhecimento cognoscitivo (BERGER e LUCKMANN, 1980). Tais aprendizagens carregaram alto teor de emoção, o que explica, em parte, a forte identificação com os valores propagados pela treinadora.

É bom situar que a construção da narrativa da Prof. 1 e de sua identificação com os valores da transmitidos pela “Shirley” diz respeito a um certo mundo e só pode ser subjetivamente apropriada juntamente com esse mundo. Dito de outra maneira, todas as identificações realizam-se em horizonte que implicam um mundo social específico (BERGER e LUCKMANN, 1980). A identificação com outro significativo - a “Shirley” - está umbilicalmente relacionada às origens sociais da Profa. 1, oriunda de uma classe social com severas restrições socioeconômicas, moradora de um bairro popular (com traços de aglomerado subnormal) da cidade de Belo Horizonte. Tal origem impunha certas interdições a projetos de vida outros que não aqueles de continuidade da trajetória de inserção laboral e de cultural dos pais e dos parentes próximos.

Paralelamente, a inserção em um projeto de ensino de vôlei no bairro onde residia consubstanciava uma possibilidade concreta de vislumbrar a ampliação de horizontes culturais e profissionais. A ideia da superação e determinação como inspiração para a atuação docente parece estar conectada a aspectos de recuperação/manutenção da autoestima em contextos de vulnerabilidade social, apoio e solidariedade em comunidades de referência, à cultura do cuidado, à possibilidade de descoberta de outros mundos (culturais) e à incorporação de competências diversas (corporais, relacionais). Experiências formativas essas passíveis de ser transferíveis para situações de trabalho na escola, indicando, portanto, certa coerência entre a interiorização de realidades primitivas (socialização primária) e a luta pela sobrevivência em submundos profissionais dispostos no início da carreira. No relato abaixo, a Profa. 1 indicia aspectos da localização de um determinando mundo, como também do papel que o projeto de ensino de vôlei representou para a sua formação como professora:

Eu venho de uma comunidade carente e agora estou morando em Betim, mas a minha vida inteira morei, por muitos anos, no Morro das Pedras e não tinha quase nenhuma oportunidade de esporte nem de lazer. Então este projeto foi muito impactante por isso, foi uma oportunidade única de ter um grupo e praticar algo, por exemplo, no esporte, o vôlei. Então eu acho que isso marcou muito nesse sentido; eu fiquei com muita vontade de um dia trabalhar e também possibilitar a outras pessoas a mesma realidade e oportunidade. Essa coisa de adolescente mesmo de você ter um o grupo que você se encaixa, em que você é bem-vindo e que você discute sobre questões importantes. Nesse grupo de vôlei, eu convivi com pessoas de diferentes regiões de BH, tinha muitas pessoas do Morro das Pedras, mas vinham pessoas de outras regiões de BH. Com essa convivência, eu começava a perceber que o mundo não era só aquilo que era o Morro das Pedras. Que tinha um mundo fora muito grande para ser descoberto; então nesse sentido, expandi um pouco em relação à minha visão cultural e de mundo. Conheci outras pessoas de outras regiões e inclusive nesse momento eu comecei a criar essa vontade de fazer faculdade, uma coisa que não era muito comum que acontecesse naquela época. Foi lá que eu comecei a ter essa vontade, porque eu comecei a ter convivência com várias pessoas diferentes dos meus amigos, de diferentes condições sociais, embora sejam muito parecidas, mas eram pessoas que tinham condições sociais um pouco melhores e que jogavam com a gente. Enfim, expandiu entendeu? A minha ideia de mundo. Quando eu paro para pensar, foram esses lugares, essas pessoas que me marcaram na minha formação, e essa formação contribuiu muito também para a minha iniciação. (Profa. 1)

A importância dos outros significativos aparece também de outras formas, como o apoio afetivo, constante e concomitante ao processo de entrada na profissão. Tal suporte é citado como relações humanas fundamentais à recuperação da autoestima, sobretudo em situações-limite. Em geral, são amigos, familiares, maridos, esposas que cumprem o importante papel de conforto afetivo. Esses pontos de amparo são um tipo peculiar de ações de indução profissional “clandestina” que não tem relação direta com a formação profissional, mas que cumpre um papel fundamental e invisível à recuperação do estímulo ao trabalho. Papel esse que, muitas vezes, não se encontra na relação com os colegas de trabalho na escola, relação essa que, em geral, se mostra marcada pela quase inexistência de uma cultura de trabalho compartilhada. Isso nos remete ao que Dubar (2003) diz sobre primazia crescente da vida privada sobre as outras esferas sociais e da importância cada vez mais decisiva do Outro significativo (o cônjuge especialmente) na socialização "secundária" na idade adulta. É na e pela relação amorosa, por exemplo, que se constroem, junto e livremente, identidades pessoais, também formas que asseguram e preservam a construção do "Si-mesmo íntimo". Essa estrutura de apoio é citada por uma das docentes participantes da pesquisa,

Eu acho que assim, meu pai foi o meu primeiro incentivador, meu pai e minha mãe. Então eu tenho pais, graças a Deus, que são muito incentivadores; tudo que eu vou fazer eles incentivam, eles apostam sempre. Então eu acho que meus primeiros incentivadores foram os meus pais. Então, com certeza eu acho que eu tenho outro incentivador que é o meu marido. Eu sempre vou ansiosa para as coisas e assim acho não ter alguém melhor que o meu marido, ele acha que eu sou a melhor pessoa, que eu sou a mais inteligente e que tenho sorte para conseguir as coisas. Ele chega e me dar um empurrão. Você vai conseguir, pode ir, você é inteligente, esperta, a pessoa mais inteligente que eu conheço. (Profa. 2)

Outro dado que emergiu em nossas análises foi a percepção de parte dos professores (em especial daqueles vindos das camadas populares) de que a sua origem de classe (popular) não estaria associada a déficits, que, em tese, poderiam criar dificuldades ao processo de sobrevivência na profissão. Ao contrário, tal pertencimento de classe seria produtor de uma pretensa autoridade decorrente do acúmulo de um conhecimento experiencial fruto da imersão prolongada na cultura da classe popular. O que configuraria um tipo de socialização antecipatória nas escolas e nos bairros de periferia, experimentada nos marcos temporais da infância e da juventude. Esse núcleo identitário conformaria uma espécie de autoridade moral que os fortaleceria nas lutas por poder e reconhecimento social dentro da institucionalidade escolar, em especial na relação com estudantes da classe popular. Em um contexto de fragilização do status da profissão docente, já que ela parece ter perdido a ilusão sobre os fundamentos tradicionais de seu trabalho,4, ser um professor oriundo da classe popular reconfiguraria parte do status perdido.

Aliados a essas percepções, os professores expressam em suas narrativas que sua origem de classe (popular) seria potencializadora de um compromisso ético-político com os estudantes de mesma origem social. Tal compromisso adviria de uma espécie de dever de memória com a própria trajetória de vida e com os próprios estudantes da classe popular que vivem ou viverem em condições análogas de precariedades social e cultural. Esse compromisso tornar-se-ia, portanto, uma espécie de colchão ético que amortizaria sentimentos de desesperança profissional e desinvestimento pedagógico decorrente do choque da realidade. Esta percepção pode ser constatada nos excertos abaixo:

Eu acho que neste sentido foi totalmente positivo em relação à inserção. Estou falando da inserção, já que eu venho do mesmo lugar que os meninos vêm, então eu consigo falar a língua deles. Por exemplo, muito professor chega à escola e tem medo do menino ali, que pode ser traficante. Eu já não tenho essa dificuldade porque eu já falo com eles - se ele é traficante, se ele tem amigos traficantes, se ele conhece traficantes. Então aqui nosso papo é entre eu e você. No meu primeiro dia de aula, um menino de 18 anos, já com um argolão assim, querendo fazer Educação Física... Eu falei: você não pode. Não, você não vai; ‘eu vou’; não, você não pode; ‘eu vou’; senta lá... Foi para a quadra, aí eu parei a aula, e o menino veio, já falou aquele palavrão absurdo para mim e eu fiquei nervoso; só que, por um lado, eu acho que eles têm dificuldade de respeito com qualquer professor mais novo de idade, novo na escola, mas, por outro lado, eu já chego falando que eu também sou do São Bené e que esse papo de que eu sou cabuloso não vai colar. Então, nesse sentido, eu acho que eu tive uma facilidade. (Prof. 4)

Mas eu me identifico mais com o pessoal de Venda Nova. Eu acho que por isso eu não tenho esses preconceitos; no meu turno da noite eu tenho alunos da comunidade Francisco Mariano que é de Contagem. Os meninos chegam, e você vê que tem professor novo que sua até frio; eu não sinto medo nenhum; para mim é normal ele vestir um boné, uma corrente de ouro e chegar com a caixinha de som escutando funk. Eu estou acostumada com aquilo ali por causa de Venda Nova; então a escola não me causa espanto, igual causa em outros professores. Meu Deus do céu, eles ficam com muito medo mesmo desse tipo de aluno. Eu não tenho problema nenhum com isso. Então, na questão da marginalização que tem lá, eu me sinto um pouco mais acuada. Se eu preciso, por exemplo, ir a um colégio particular, fico um pouco mais tensa, me identifico mais com esse público porque a vida inteira eu estudei em escola pública, em universidade pública. (Profa. 5)

Eu, como aluna na escola pública, via o que funcionava e o que não funcionava. E eu como professora, também posso fazer diferente, pegar e melhorar, trazer algo positivo para o bairro que eu nasci. Por exemplo, os meninos aqui na rua de trás jogavam bola; eu fazia estágio, eu os chamava, aí hoje eles me têm como referência, vêm conversar comigo. Assim, para mim, é uma coisa importante, um empoderamento. (Prof. 6)

As narrativas expressas nos excertos acima podem ser tomadas como lugares de memória. Tais narrativas tentam problematizar as ações dos sujeitos na trama das relações e de como são afetados pelas posições sociais e os lugares ocupados pelos sujeitos. Os discursos revelam relações de forças que produzem efeitos e provocam impactos nos sujeitos e das possibilidades de agir, inseridos e atuantes nessa trama. O pertencimento de classe parece ganhar um estatuto de acontecimento, ou seja, algo que vai além da insignificância de uma rotina inscrita no cotidiano das práticas socioculturais (SMOLKA, 2001).5 Nestes dramas individuais, os adquiridos experienciais acessados no cotidiano de bairros populares e em escolas públicas é tomado como algo de valor e dotado de sentido na luta pela sobrevivência no contexto da inserção profissional docente.

Por fim, gostaríamos de destacar o que os docentes dizem sobre possíveis conexões entre as experiências formativas incorporadas na experiência direta com determinadas práticas corporais e os desafios da inserção profissional em Educação Física. Nos excertos abaixo, dois docentes discorrem sobre essas contribuições.

Minha mãe estudou muito pouco, e acho que, para além dessas coisas, todos os projetos que eram gratuitos, que a Prefeitura oferecia, eu participava. Eu lembro que foram uns dois cursos de teatro, mas a maioria tinha a ver com esporte. Então, eu fiz futsal, fiz futebol, fiz taekwondo, fiz judô e natação, eu fiz muito tempo. Na natação, lembro que era por nível. Tinha umas 300 pessoas para dois professores; era nível 1, 2, 3, 4 e 5, e eu fiquei uns 4, 5 anos, acho que foi por aí. Nos dois últimos anos, mais ou menos, eu ficava nesse nível 5, assim era um momento que a gente ficava muito com a professora da hidroginástica. Eu comecei tinha uns 10 anos e acho que eu fiquei até uns 15. E aí foi isso; a gente era o professor da hidroginástica e às vezes a gente era o professor do nível 1. Não era bem professor, mas era como se fosse. Eu acho que por aí; assim, por conta do futsal na escola, apesar de não jogar muito bem, mas eu gostava muito. Acho que, com certeza, eu tinha mais segurança de trabalhar, inclusive assim, pensar o judô, por exemplo, era uma coisa muito diferente para os estudantes. Quando eu levava, eu acho que já quebrava aquela coisa do futsal; então ajudava quando eu levava a roupa, porque eu acho que tem a ver com isso. Então, eu já fiz judô, e sair levando a roupa eu acho que tem um impacto. (Profa. 7)

Então eu digo que essa propulsão do yoga é aquela que eu elegeria, dentro dessas instituições e pessoas, porque ela me move tanto deste ponto de vista prático e pragmático, da relação espacial e geográfica, e do ponto de vista de acreditar em uma transformação. Mas, na relação do afeto, do olhar, da conversa, dessa possibilidade do interior de conhecer as famílias, aí, sim, eu tenho convicção de que eu posso fazer muito mais. Não é desse ponto de vista paternalista não; eu vou ajudar e vou atuar sobre o seu caminho de vida não, não é neste sentido. Mas tipo inspirar esses outros jovens a serem melhor do que eles já são e a trilharem caminhos mais esperançosos na vida deles; isso eu devo à minha relação com yoga. Que é como eu falei, uma relação de sensibilidade, mas uma relação de trajetória de nossa escola, uma relação que olha para essa vulnerabilidade, que olha para esse tipo de situação e se coloca disposto a agir, atuar e intervir sobre esses contextos. (Prof. 8)

Os nossos sujeitos de pesquisa, ao serem provados a refletir sobre sua experiência formativa ao longo da vida, apontam que as dimensões da corporeidade, da educação do corpo e do Se-movimentar conformariam significados duradouros (legítimos), que dariam certo direcionamento à própria trajetória profissional. Destaca-se aqui, portanto, a importância de uma das dimensões da identidade existencial dos sujeitos: “Ser de ação corporal” (JOSSO, 2007). Segundo a autora, o “Ser de ação corporal” é sem dúvida a dimensão de nosso ser-no mundo, que permite tornar tangíveis com mais evidência as formas de laços e de realizações que ele envolve; é a existencialidade em suas facetas aparentes, visíveis. A inscrição necessariamente material da ação corporal mostra que a ação só é pensável em interação social, seja por meio de outras pessoas implicadas pela própria ação, seja pela mobilização de meios técnicos, de objetos e de materiais diversos, seja finalmente nos laços conscientemente criados consigo-mesmo para mobilizar os recursos interiores, a energia, a coragem, a vontade.

O “Ser de ação corporal” combina, mobiliza, põe em ação todas as outras dimensões do ser, a fim de se completar em seu movimento, em seu deslocamento, em sua transformação desejada, de tal maneira que esse movimento, esse deslocamento, essa transformação, levem à sua melhor finalização, ao melhor resultado possível. No caso dos professores de EF, as experiências formativas durante a vida (formais, não formais e informais), inscritas no corpo, podem atuar de maneira significativa no processo de constituição da identidade docente.

Em paralelo, os discursos dos nossos sujeitos de pesquisa confirmam o que as pesquisa sobre história de vida professores têm apontado: a indicação do esporte como uma experiência educativa por excelência, com seus princípios e regras, que pode ensinar disciplina, respeito, cooperação, limites, enfim valores morais (NUNES, 2009), que parecem ser úteis ao enfrentamento dos desafios da iniciação à docência. Nesta direção, urge importante pensar que, ao desenvolvimento de ações de formação inicial e continuada de professores de EF, seria necessário não apenas considerar tal experiência formativa, mas como devolver o seu lugar na aprendizagem dos conhecimentos necessários à existência em geral (DOMINICÉ, 1988) e à atuação profissional em específico.

A narrativa dos participantes da pesquisa também pode ser analisada pelo prisma da incorporação de saberes que seriam fundamentais ao processo de formação dos professores em geral e de EF, em específico. O ato de conhecer os conteúdos da EF (jogos, danças, ginásticas, lutas, esportes, práticas corporais de aventura) envolve aprendizagens de ordem sensível ou saberes-fazeres corporais, o que exigiria, por parte dos professores, a expansão do conhecimento disciplinar para além do domínio de seus elementos teóricos-conceituais.6 Nesse contexto de intervenção didática, aprender teria relação com o domínio de uma atividade, ou capacitar-se a utilizar um objeto de forma pertinente. Não é passar da não posse à posse de objeto (o saber), mas, sim, do não domínio ao domínio de uma atividade. Este se inscreve no corpo. Aprender a lutar é aprender também a própria atividade, de maneira que o produto do aprendizado não pode ser separado da atividade. O sujeito epistêmico é, então, o sujeito encarnado em um corpo, entendendo-se, por isso, no caso, não um sistema de órgãos distintos da alma (CHARLOT, 2000).

Desse modo, o corpo é um lugar de apropriação do mundo, um conjunto de significações vivenciadas, um sistema de ações em direção ao mundo, aberto às instituições reais, mas também virtuais. É também sujeito, conquanto engajado no movimento da existência, na qualidade de habitante do espaço e do tempo. Existe, assim, um Eu nessa relação epistêmica com o aprender, mas não é o Eu reflexivo que abre um universo de saberes-objetos; é um Eu imerso em dada situação; um Eu que é corpo, percepção, sistema de atos em um mundo correlato de seus atos (com possibilidades de agir, como valor de certas ações como efeito dos atos). Chama-se isso de “imbricação do Eu na situação”, ou seja, o processo epistêmico em que o aprender é o domínio de uma atividade “engajada” no mundo (CHARLOT, 2000). Tais adquiridos experienciais, acessados em diferentes tempos e contextos de suas histórias de vida, são tomados por alguns docentes como importantes ao desafio da mediação do conhecimento em EF. Tal intimidade corporal com os saberes da EF parece gerar uma sensação de certa segurança em situações de ensino na sala de aula, fundamental aos processos de exploração da profissão e de enfretamento do choque da realidade.

Considerações finais

Os achados da nossa pesquisa mostraram que as experiências de formação incorporadas no percurso de histórias de vida podem se constituir em disposições sociais passíveis de serem mobilizadas em contextos de transição de vida, como no caso do início da carreira docente. As disposições sociais, ou seja, as propensões a agir, a sentir, a crer ou a pensar (LAHIRE, 2004), incorporadas no decorrer da vida podem criar condições favoráveis ao processo de socialização profissional no início da carreira docente.

No caso dos nossos sujeitos de pesquisa, são destacados aspectos que indicam um fluxo experiencial que comporta cerca coerência entre o processo de socialização primária e o processo de socialização secundária. Dentre as coerências entre essas duas dimensões de socialização, os professores destacam o conhecimento sobre os estudantes (suas linguagens, modo de ser e comportar) e domínio de certas competências que favorecem uma relação de maior intimidade (corporal) com conteúdos de ensino, o que, em ambos os casos, torna o desafio de ensinar algo mais seguro, previsível e menos traumático. Reconhece-se com isso o peso da formação experiencial que ocorre em todos os tempos e espaços de vida (família, trabalho, lazer e escola). Esse patrimônio de experiências permite o desenvolvimento de conhecimentos, saberes e competências nos domínios instrumental, relacional e emocional, e tem interferência nas dimensões identitária e existencial.

Além disso, as narrativas dos professores põem em relevo o caráter interativo dos processos de formação. Diferentes tipos de sujeitos, tornados referência de apoio em distintos momentos da vida, são apontados como fundamentais à manutenção da autoestima, como para o necessário reconhecimento intersubjetivo em situações nos quais os sujeitos estão expostos aos riscos de relações humanas reificadoras, ou nos termos de Honneth (2006): de esquecimento do reconhecimento da condição de sujeitos de direitos. Situação essa muito própria dos professores iniciantes no interior das escolas. Isso porque, na maioria das vezes, esses nem sequer são reconhecidos - pela sociedade, pelos pares, pelos estudantes e pelas políticas públicas - como docentes em início de carreira.

Sem negar a relevância do papel da escola como locus de formação de professores, a perspectiva ampla de educação e formação, indicada pelos nossos sujeitos de pesquisa, interroga tal centralidade. Tal perspectiva reconhece e valoriza os adquiridos experienciais que resultam do saber em todos os contextos de vida: na família, nos espaços culturais, na participação política, na vivência religiosa, na relação com a cidade, em comunidades de aprendizagem e no exercício do trabalho. A ideia da experiência de vida como um dos recursos do processo de formação nos remete à perspectiva ampla da formação de adultos (dos professores). A visibilidade do imenso iceberg dos fenômenos educativos não formalizados e/ou deliberados, além de questionar a hegemonia e a onipresença da forma escolar, permite ultrapassar uma divisão dicotômica entre instituições educativas e instituições não educativas (CANÁRIO, 2013).

Nesse sentido, entendemos que seria profícuo às pesquisas sobre a iniciação à docência questionar a relevância das experiências formativas fora do espaço escolar nos processos de desenvolvimento profissional de professores iniciantes. Que instituições, grupos e espaços não escolares têm ocupado lugar de maior peso no processo de formação contínua de professores em início de carreira, de forma a favorecer o desenvolvimento de repertório teórico-prático passível de ser mobilizado no enfrentamento dos dilemas e dos desafios colocados pela iniciação à docência?

Uma direção possível de ampliação do horizonte investigativo passaria pela incorporação do uso de metodologias que visam compreender e relacionar a história de vida, os processos formativos e o momento singular de início da carreira docente. Sob nosso ponto de vista, seria potente investir na apreensão do professor iniciante, como adulto, na globalidade daquilo que a sua vida lhe permitiu aprender (DOMINICÉ, 1998) e nas conexões desses elementos com os processos de aprendizagem profissional no início de carreira e com o enfrentamento do choque da realidade. Nessa direção, evidencia-se a necessidade de investir na formação centrada no sujeito-aprendiz, via mediação de uma metodologia de pesquisa-formação articulada às histórias de vida, enquanto instrumentos de formação, efetuada na perspectiva de evidenciar e questionar as heranças, a continuidade e as rupturas, os projetos de vida, os múltiplos recursos ligados aos adquiridos experienciais, que têm como premissa o trabalho de reflexão valendo-se da narrativa da formação de si.

Por fim, queremos afirmar a necessidade do avanço do diálogo teórico e temático entre os campos acadêmicos e científicos da formação de adultos e da formação de professores. Entendemos que tais interfaces e conexões podem abrir horizontes de investigação ainda pouco explorados no domínio dos estudos sobre a iniciação à docência. O reconhecimento dos professores iniciantes como pessoas adultas com uma experiência de vida, de suas formas singulares de aprender e de sua agenda de autoformação (compartilhadas ou não), pode trazer contribuições importantes ao debate sobre as políticas de formação inicial e continuada de professores iniciantes, como ampliar a leitura do choque de transição entre a vida de alunos e a de docentes, do fenômeno da retenção/abandono profissional em início de carreira e dos avanços e recuos dos processos de exploração-descoberta-estabilização na carreira docente.

1Para Trilla-Bernet et al (2003), associa-se a educação formal ao ensino regular; a não formal, a todos os processos educativos estruturados e intencionais que ocorrem fora da escola; e a informal, à aprendizagem realizada em contextos de socialização (família, amigos, comunidade).

2O mercado editorial de livros didáticos voltados ao ensino da EF nas escolas é ainda muito restrito (em quantidade e pluralidade). Só recentemente a EF foi inserida no Plano Nacional de livro didático, sem que se tenha realizado, ainda, a difusão de livros didáticos a serem disponibilizados e encaminhados às escolas e aos professores.

3A definição de um marcador temporal do ciclo da iniciação à docência é tema controverso na literatura sobre o tema. Os autores deste campo de estudos têm apontado que esse período da carreira docente pode durar de zero a sete anos (TARDIF e RAYMOND, 2000; FEIMAN-NEMSER & REMILLARD, 1995). Outros pesquisadores sugerem que a iniciação à docência seria mais curta, ou seja, de zero a três anos de inserção profissional (HUBERMAN, 1992; COCHRAN-SMITH, 2012). Não obstante reconhecer a dificuldade de determinar marcos temporais do decurso da iniciação à docência, optou-se, neste estudo, pelo período de três anos de inserção profissional. Isso porque entendemos que nessa extensão de tempo as dimensões do choque realidade manifestar-se-iam de forma mais intensa que em anos posteriores.

4 Tardif e Lessard (2005) apontam que religião, cultura escolar, programas oficiais, autoridade em todos os assuntos, normas oficiais, ideais sociais, sindicais, valores estabelecidos, tudo o que representava um papel bem definido parece em declínio. É neste contexto de instabilidade institucional que os professores se batem sem seus locais de trabalho cotidiano para dar sentido ao que eles são e ao que fazem.

5“Para que haja memória é preciso que o acontecimento saia da insignificância, que adquira valor” (Achard, 1999 apud Smolka, 2011, p.141)

6Os saberes tradicionalmente transmitidos pelas escolas provêm de disciplinas científicas ou, então, de forma mais geral, de saberes de caráter teórico-conceitual. Diferentemente do saber conceitual, o saber de que trata a EF encerra uma ambiguidade ou um duplo caráter: ser um saber que se traduz num saber fazer corporal; ser um saber sobre o saber corporal (conceituais) (BRACHT, 1997). Nesse contexto singular de ensino e aprendizagem, a ação pedagógica da EF estará sempre impregnada da corporeidade do sentir e do relacionar-se BETTI, 1995)

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Recebido: 13 de Fevereiro de 2023; Aceito: 29 de Junho de 2023

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Doutor em Educação, e-mail: angelogariglio@hotmail.com

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