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Revista Diálogo Educacional

versão impressa ISSN 1518-3483versão On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.79 Curitiba  2023  Epub 22-Fev-2024

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.079.ao01 

Artigos

Formação e prática de professores de uma escola quilombola no Amapá: por uma didática culturalmente pertinente

The training and accounts of practice of teachers in a quilombola school in Amapa: for a culturally relevant didactics

Brigida Ticiane Ferreira da Silva[a] 
http://orcid.org/0000-0001-9742-8326

[a]Universidade do Estado do Amapá, Macapá, AP, Brasil


Resumo

O objetivo central deste estudo foi analisar as contribuições da formação de professores (inicial e continuada), de uma escola quilombola, para a prática pedagógica em um contexto rico em relações interétnicas. A nível metodológico, a abordagem qualitativa revelou-se a mais adequada para apreender as particularidades de um contexto específico; utilizou-se a entrevista semi-estruturada junto à sete professores do ensino fundamental II. Em relação à análise dos dados, adotou-se o método de Análise de Conteúdo. Constatou-se através das narrativas dos professores a ausência de um currículo mais diversificado durante a formação inicial, que tratasse dos problemas das comunidades socialmente excluídas no Brasil. Essa ausência fragiliza, de certa forma, o exercício da docência nas escolas quilombolas, pois não os prepara para atuar nesse contexto escolar. Entretanto, essa fragilidade não os impediu de integrar em suas práticas didáticas culturalmente pertinentes, através da implementação de vários projetos pedagógicos abordando temáticas como danças tradicionais, rituais religiosos, artesanato, atividades agroalimentares comunitárias, de forma a articular saberes disciplinares e locais. Quanto à continuidade do processo formativo, foi mencionada a grande carência de formação continuada no campo da educação étnico-racial. Em muitas situações, os professores se sentem sozinhos e buscam meios próprios para aprofundar seus conhecimentos e aprimorar sua prática em sala de aula. Nesse contexto, não basta que a escola seja reconhecida como quilombola conforme exigido pelas “Diretrizes Curriculares Nacionais Quilombolas” (2012), se não houver uma preocupação real quanto ao tipo de ensino necessário para as necessidades de formação dos alunos quilombolas em suas mais variadas dimensões.

Palavras-chave: Formação de professores; Prática pedagógica; Escola quilombola.

Abstract

The main objective of this study was to analyse the contributions of teacher training (initial and in-service) in a Quilombola school on their pedagogical practice in a context rich in interethnic relations. At the methodological level, the qualitative approach proved to be the most relevant to capture the particularities of a specific context, which is why a semi-structured interview was conducted with seven secondary school teachers. As for the data analysis, the content analysis method was adopted. The teachers' accounts revealed the absence of a more diverse curriculum during initial training that addressed the problems of socially excluded communities in Brazil. This absence weakens, in a way, the practice of the teaching profession in quilombola schools, as it does not prepare them to work in this school context. However, this did not prevent them from integrating culturally relevant didactic practices into their teaching practices, through the implementation of various educational projects on traditional dances, religious rituals, handicrafts, community agro-food activities, in order to articulate disciplinary and local knowledge. Regarding the continuity of the training process, the considerable lack of continuous training in the field of ethno-racial education was mentioned. In many situations, teachers feel alone and seek by their own means to deepen their knowledge and improve their classroom practices. In this context, it is not enough for the school to be recognised as quilombola as required by the 2012 national directives if there is no real concern for the type of education needed to meet the educational needs of quilombola pupils in their different dimensions.

Keywords Teacher training schools; Activity learning; Quilombola's school.

Resumen

L'objectif central de cette étude était d'analyser les apports de la formation des enseignants (initiale et continue) dans une école quilombola, pour la pratique pédagogique dans un contexte riche en relations interethniques. Au niveau méthodologique, l'approche qualitative s'est avérée être la plus appropriée pour appréhender les particularités d'un contexte spécifique ; un entretien semi-structuré a été utilisé avec sept enseignants du niveau collège. En ce qui concerne l'analyse des données, la méthode d'Analyse du Contenu a été adoptée. Les récits des enseignants ont permis de constater l'absence d'un programme plus diversifié pendant la formation initiale, qui traitait des problèmes des communautés socialement exclues au Brésil. Cette absence affaiblit, d'une certaine manière, l'exercice de la profession d'enseignant dans les écoles quilombolas, puisqu'elle ne les prépare pas à travailler dans ce contexte scolaire. Cette faiblesse ne les a cependant pas empêchés d'intégrer dans leurs pratiques d'enseignement des pratiques culturellement pertinentes, par la mise en œuvre de divers projets pédagogiques sur les danses traditionnelles, les rituels religieux, l'artisanat, les activités agroalimentaires communautaires, de manière à articuler savoirs disciplinaires et savoirs locaux. En ce qui concerne la continuité du processus de formation, le grand manque de formation continue dans le domaine de l'éducation ethno-raciale a été mentionné. Dans de nombreuses situations, les enseignants se sentent seuls et cherchent par leurs propres moyens approfondir leurs connaissances et améliorer leur pratique en classe. Dans ce contexte, il ne suffit pas que l'école soit reconnue comme quilombola comme l'exigent les directives nationales de 2012, si l'on ne se préoccupe pas réellement du type d'enseignement nécessaire aux besoins de formation des élèves quilombolas dans leurs différentes dimensions.

Palabras clave Formation des enseignants; Pratique Pédagogique; École Quilombola.

Introdução

Os quilombolas são populações negras rurais (originalmente) que representam a continuidade das lutas e aspirações dos negros no Brasil. Esses sujeitos são marcados por uma historicidade de resistência ao sistema social, econômico e político do período colonial escravocrata, que resultou na formação de espaços de resistência, denominados Quilombos.

É importante ressaltar que as comunidades quilombolas têm uma identidade própria, formada pelos modos de vida dos povos tradicionais e afrodescendentes, pelo trabalho, pela relação com a terra e pela ancestralidade negra. Nelas vivem homens e mulheres com amplo conhecimento etnocultural, adquirido por meio da tradição oral, o que inevitavelmente deixa sua marca nas escolas quilombolas e em sua forma de ensinar.

Os quilombolas têm características específicas ligadas à região, à cultura e à religião que os tornam únicos e, ao mesmo tempo, os definem como populações tradicionais. Reconhecer que se pertence a um determinado grupo é uma forma de expressar sua identidade. A esse respeito, Diegues (2001) afirma que um dos elementos mais importantes na definição de comunidades tradicionais é, sem dúvida, o fato de se reconhecer como membro de um determinado grupo social, o que formaria a base da identidade. A construção da unidade identitária é, portanto, influenciada pelas relações que ocorrem dentro dos grupos nos quais os indivíduos evoluem. De acordo com Gomes (2003, p. 171), "a construção de uma identidade negra positiva em uma sociedade que historicamente ensinou aos afro-brasileiros, desde cedo, que para serem aceitos eles devem negar a si mesmos é um desafio que eles devem enfrentar". Essa situação nos leva a reconhecer que a construção e a valorização da identidade são o reflexo das relações dos indivíduos.

Observamos, portanto, que o processo identitário dos afrodescendentes no Brasil está intrinsicamente ligado à herança de um passado escravocrata que, mesmo após a abolição, permeia as relações sociais, levando os indivíduos negros a construírem suas identidades em meio a constantes conflitos interraciais (MUNANGA, 2004). Entendemos, portanto, que é necessário levar em conta as questões sociais, políticas, étnicas, individuais e coletivas que influenciam a construção ou a valorização da identidade de cada pessoa, bem como as questões educacionais, como a formação etnocultural dos professores, os quais possuem um importante papel a desempenhar na construção da identidade dos jovens estudantes, principalmente os oriundos de comunidades negras com status social desfavorecido.

Nessa perspectiva, quando consideramos a escola como um espaço específico de formação, inserida em um processo educativo muito mais amplo, temos a convicção de que ela possui competências que transcendem o arcabouço estritamente pedagógico da educação escolar. A escola é um local que influencia consideravelmente na construção da identidade do indivíduo e a postura pedagógica do professor desempenha um papel importante.

Existem diferentes formas e modelos de educação, e a escola não é seu lugar privilegiado e o professor o único responsável pelo ato educativo. No entanto, no âmbito do nosso estudo, nos limitaremos a estudar o que se passa dentro da Instituição Escolar, porque a escola é aqui considerada como uma instituição onde partilhamos não só os saberes escolares, mas também os valores, as crenças, os hábitos, as representações etc. É essa visão do processo educativo escolar e suas relações com a cultura e a educação - vistas de forma mais ampla - que nos permite compreender melhor os complexos caminhos que envolvem a construção da identidade negra e sua articulação com os processos de formação etnocultural dos professores.

Postulamos, assim, que quanto mais a formação inicial e continuada do corpo docente se centrar numa abordagem do ato docente contribuindo para a desconstrução de preconceitos, para a consciência de um olhar menos colonial e homogêneo, mais o professor será capaz de implementar uma didática culturalmente pertinente, mais reflexiva e descentralizada e, dessa maneira, influenciar de forma positiva a construção da identidade desses alunos afrodescendentes. Levar em conta a dimensão etnocultural da formação dos professores e, consequentemente, do currículo está longe de ser um problema irrelevante. Apoiando-nos nas afirmações de Candau e Leite:

A questão das diferenças não é um elemento externo às reflexões pedagógicas e formativas, uma vez que elas permeiam nossa vida cotidiana e são fundamentais para as relações sociais. Muitas vezes negadas, ignoradas ou naturalizadas, as diferenças são intrínsecas às práticas educativas e estão presentes tanto nas relações entre os indivíduos quanto nos diferentes grupos que compõem a sociedade (2006, p. 24).

Reconhecer os professores como sujeitos socioculturais significa atribuir-lhes o papel de agente educacional por excelência, participando do processo educacional da mesma forma que os demais sujeitos sociais. Nesse sentido, pensar na educação como uma realidade complexa sujeita a uma teia de múltiplas relações sociais revela que "educação, diferença e ensino não são palavras muito inocentes. São palavras que carregam consigo a dimensão da formação e da prática de quem educa" (Gusmão, 2017, p. 76).

Portanto, é possível abordar a questão central do nosso estudo a partir de uma perspectiva dinâmica, que leva em consideração três níveis de questionamento: a) Como os professores percebem o tratamento dispensado a questões que abordam as relações etnorraciais durante sua formação inicial? Como evoluem suas concepções a partir de suas experiências e trajetórias com a educação quilombola? b) Nesse universo específico de relações interétnicas e interculturais, como os professores das escolas quilombolas percebem a importância de integrar em seu cotidiano escolar princípios que levem em consideração os saberes culturais locais? Desse modo, desenvolver pesquisas que articulem formação de professores, currículo, cultura e identidade é uma abordagem que faz parte de um movimento interessante cada vez mais presente nas discussões acadêmicas no Brasil.

Referencial teórico

Quem são os Quilombolas?

Os termos Quilombo e Quilombola têm significados de resistência social, muito antes dos conceitos jurídicos assim expostos atualmente. As lutas por um espaço de existência e direitos afirmavam a busca pela liberdade, representando sua forma de declaração de identidade, reconstituindo seu modo de vida, apropriando-se e adaptando-se em áreas estratégicas.

É preciso dizer que essas áreas de resistência também ocorreram em outras regiões, como nos territórios colonizados pela Espanha. Na América Espanhola, "a resistência à escravidão africana estava presente: os cimarrones eram escravos fugidos, e os palenques eram seus espaços fortificados" (Ferreira, 2012, p. 647).

Entender a construção do território brasileiro é entender o passado e, portanto, entender o significado da escravidão africana no país. Os discursos conformistas da realidade sugerem que, com o fim do regime escravocrata, tudo terminou, mas, ainda assim, isso contribuiu para a criação do território pluricultural que existe até hoje, ainda caracterizado por fortes desigualdades sociais.

Dessa forma, podemos entender que o negro liberto foi inserido na nova ordem social estabelecida de forma desigual. Não nos esqueçamos de que ele foi privado de direitos, desqualificado, discriminado e segregado espacialmente, tudo com base em uma ideologia racista.

É importante observar que, ao longo do tempo, a luta dos quilombolas foi se desdobrando, preparando o cenário para o desenvolvimento e as conquistas. Esse processo de transformações do conceito demonstra não apenas as evoluções conceituais e normativas, mas, sobretudo, a mudança na realidade social das populações rurais negras, que, em sua busca pela liberdade, reivindicam seus direitos e, entre eles, a posse de suas terras. Isso reflete o surgimento de uma lógica racional nas relações, que se tornaram outra faceta de dominação, exploração e controle. Esses processos dão origem e consolidam as "comunidades negras", tanto rurais quanto urbanas, em um movimento de emancipação e conflito diante dos padrões hierárquicos das relações raciais na sociedade brasileira após a abolição da escr0avidão.

Nesse contexto, os territórios quilombolas representam o desenvolvimento das comunidades negras. Seu desenvolvimento é complexo, envolvendo uma luta por suas identidades, suas terras e sua cidadania, ou seja, eles reivindicam seu espaço de existência para desenvolver seus meios de sobrevivência. Dessa forma, os quilombolas, no processo de construção de suas identidades e territorialidade, podem ser identificados como "sujeitos de direitos", em decorrência do resultado de suas lutas, com base na consolidação do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (Adct, 1988): "Art. 68. Os remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras serão reconhecidos como propriedade definitiva, devendo o Estado emitir os títulos respectivos".

A aplicação da dimensão constitucional estimulará interpretações do quilombo, onde ele é redefinido, ampliando seu significado conceitual. Isso possibilita expressar uma compreensão que apreende as formas de organização e existência do passado como definidoras de direitos no presente, levando, assim, "a uma releitura da formação do território brasileiro e, nesse sentido, constitui novas formas de articulação entre passado e presente - o que cria novas possibilidades de futuro para as comunidades quilombolas" (Santos, 2008, p. 654). Nessa perspectiva, as definições que emergem destacam aspectos de resistência, formação de sujeitos, processos identitários, territorialidade e patrimônio cultural, entre outros aspectos mobilizados como características que constituem os sujeitos de direitos, retirando da história o monopólio da instituição das representações do que é ou não quilombo (Santos, 2008).

Olhar para o passado é importante porque nos permite pensar nos quilombos não como uma forma de existência no passado, mas como uma existência múltipla no presente.

A escravidão marcou os três primeiros séculos da formação da sociedade brasileira, desumanizando os escravos, mas também permanecendo presente na sociedade após a abolição (MUNANGA, 2004). As mazelas deixadas pela colonização e pela escravidão persistem até hoje, e iniciativas governamentais têm sido necessárias para apoiar a população negra afetada. Assim, com o objetivo de reduzir as desigualdades, a criação de políticas educacionais que garantam a integração socioeducacional dessa população em diversas áreas influencia, sem dúvida, a construção da identidade dos afrodescendentes e seus sentimentos de pertencimento ao país, ainda mais para aqueles oriundos das comunidades quilombolas, nosso público-alvo.

As políticas educativas e a formação de professores em contexto quilombola

Antes de dar início às discussões em relação à formação e à prática docentes, deve-se refletir sobre a importância do contexto histórico e das lutas e resistências assumidas pela comunidade negra e quilombola no Brasil para ressignificar suas identidades ao longo de suas trajetórias. Nesse contexto em que predominam relações sociais assimétricas, houve a inclusão da Educação Escolar Quilombola como modalidade da Educação Básica foi necessária: o Parecer CNE/CEB 07/2010 e a Resolução CNE/CEB 04/2010, que instituem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (Dcneeq, 2012), foram frutos de lutas dos movimentos sociais negros (Carril, 2017).

Desse modo, levando-se em consideração as especificidades etnoculturais e a formação específica de seu corpo docente, o que não é a realidade em todos os espaços, as escolas quilombolas são uma referência para a compreensão da realidade e das experiências vividas pela comunidade; por esse motivo, os processos educativos comunitários baseados no cotidiano, nas tradições orais, possibilitam a construção entre educadores e educandos, de uma verdadeira "consciência histórica" (Larchet; Oliveira, 2013, p. 52). Porém, segundo as DCNEEQ, para que essa consciência aconteça, “é preciso um diálogo interdisciplinar, incorporando experiências sócio-históricas dos saberes construídos pelos quilombolas” (BRASIL, 2011, p. 32). Assim, o ensino em escolas quilombolas terá o papel de difundir os saberes produzidos localmente, mas sem descontextualizá-los.

Para atuar em escolas quilombolas o professor precisa possuir uma sólida formação teórica, garantindo a utilização de metodologias e estratégias adequadas de ensino, que visem a inserção e a articulação entre os conhecimentos disciplinares e os conhecimentos tradicionais produzidos pelas comunidades quilombolas, segundo os artigos 40 e 50 das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (Dcneeq, 2012). Para o educador brasileiro Paulo Freire (1996), nenhuma formação docente pode estar alheia à realidade do educando, ensinar exige reflexão crítica sobre a prática e o reconhecimento da identidade cultural. E dentro dessa perspectiva, a formação e a prática docentes possuem um papel primordial na construção de uma educação escolar quilombola e para o fortalecimento do protagonismo dos educandos quilombolas nas dinâmicas emancipatórias.

Segundo Pimenta (1997), a identidade profissional é o resultado das representações sociais e dos significados advindos do ser docente; das mutações constantes dos significados ligados à profissão docente e às suas tradições, em função das mudanças e exigências no campo educacional e social. O saber docente não é formado somente a partir da prática de sala de aula, mas é construído paulatinamente pelos saberes científicos, os quais são fundamentais para que o educador repense sua prática.

A tríade da formação: conhecimentos disciplinares, contexto e cultura

Segundo Feldmann e Masetto (2017, p. 566), é necessário que se compreenda que a formação de educadores é uma tríade: « currículo, contexto e cultura », sendo função pedagógica do currículo estabelecer práticas que valorizem e reconheçam as identidades e as culturas presentes na escola por meio de ações em prol de um ensino democrático e reflexivo. Acredita-se ser esta a grande tarefa dos educadores nos tempos atuais. Considerar o currículo como um meio pelo qual é possível incluir as identidades, antes marginalizadas, é reafirmar seu papel político e social na escola, através da prática do professor. É compreender a educação como um bem universal, como um direito humano na construção da identidade e no exercício da cidadania. Revela-se, dessa forma, a necessidade de reinventar os currículos, sobretudo o de formação inicial de professores, de modo que acolham as vozes dos diferentes sujeitos que compõem as populações.

Entende-se, dessa forma, que a « ação cultural », conforme concebida por Freire (1981), poderá ser uma luz no fim do túnel na constante busca por uma humanização e por sociedade mais justa. Assim, repensar o currículo de formação dos professores a partir da inclusão das identidades culturais de grupos invisibilizados é pensar a formação do humano, é repolitizar o currículo tanto no espaço acadêmico quanto no espaço escolar (Arroyo, 2013).

Nesse contexto, trata-se do reconhecimento das especificidades históricas das comunidades quilombolas, os legados das lutas das gerações anteriores aos mais jovens, a necessidade de preservação de línguas reminiscentes, práticas culturais, repertórios orais, festejos, costumes, tradições e demais elementos que fazem parte do patrimônio cultural dos povos de quilombo de todo o Brasil. Desse modo, reconhecer as crianças e jovens quilombolas e suas culturas como parte integrante do currículo escolar, assim como reconhecer as diferenças que os constituem, significa romper com o modelo curricular hegemônico e hierárquico. Porém, é preciso levar em consideração que a relação estabelecida entre « nós » e o « outro » é percebida, primeiramente, a partir das diferenças e negar essas diferenças, seria contribuir para o isolamento do outro em sua inacessível alteridade. Toda diferença é vista como uma ameaça e provoca reações de defesa através de atitudes agressivas ou comportamentos de rejeição (Silva, 2009). A singularidade do indivíduo pertencente a um grupo cultural é caracterizada por uma perspectiva dinâmica que se inscreve em um processo relacional intersubjetivo. Esse olhar descentralizado de humanizar-se a partir do outro promove aos professores e alunos uma atitude positiva mediante a experiência da alteridade.

Dessa maneira, a prática docente tendo como base uma didática culturalmente pertinente, torna-se o espaço principal para a desconstrução de estereótipos e preconceitos, rompendo com a história oficial (Akkari; Santiago, 2015); ela deve se constituir em uma prática crítica e reflexiva, envolvendo sua própria percepção enquanto sujeito, mas incluindo o outro no processo intersubjetivo, na relação dialógica. Diante de tal contexto, é sabido da necessidade de formação específica para os docentes, mas também para os gestores educacionais e corpo técnico; bem como das dificuldades enfrentadas, principalmente por aqueles que atuam em escolas quilombolas, a maioria localizada em áreas rurais e de difícil acesso, como é o caso de algumas escolas situadas no Amapá, mais precisamente na Amazônia brasileira, nosso contexto de estudo.

Diante de tantos desafios formativos e curriculares, a escola precisa se reinventar e ultrapassar os limites de seus muros, romper com os modelos que distanciam as crianças e os jovens de suas realidades socioculturais (Moreira, 2002). Como mecanismo de resistência, a escola é considerada pelos quilombolas como um espaço privilegiado, como um estímulo a uma formação mais humana, mais plural. A escola, pensada a partir de uma educação para as relações étnico-raciais, se fundamenta no reconhecimento do direito às diferenças, valorizando as identidades antes excluídas do processo educativo. No mais, o fazer pedagógico sob essa perspectiva oportuniza a possibilidade de desconstrução do mito hierárquico entre as culturas; e o respeito à cor, à religião, às artes, ao modo de vida propiciam a nós e ao outro o sentimento de pertença.

Caminhos metodológicos e precisões sobre o público-alvo

Coleta e análise dos dados

Para apreender as particularidades de um contexto específico, neste caso a educação escolar de alunos quilombolas no Amapá, situado no extremo norte do Brasil, mais especificamente o Quilombo Curiaú, a entrevista nos pareceu o instrumento de coleta mais acessível. A utilização deste tipo de método altera não só a relação entre os inquiridos e o investigador, mas também a natureza dos dados, uma vez que será uma questão para os interessados falarem, interagirem, falarem com alguém: é neste sentido de que a entrevista é “encontro”, (Blanchet; Gotman, 2001). Tendo em conta as dinâmicas que regem o nosso objeto de estudo, preferimos, por isso, recolher apenas “discursos sobre” porque o nosso interesse reside naquilo que contribui para criar e nas representações que dele se produzem.

No que diz respeito à sistematização da entrevista, optamos por desenvolver um roteiro de acordo com as premissas de Blanchet e Gotman em L’enquête et ses méthodes: l’entretien (2001). Foram selecionados quatro eixos temáticos que deverão responder aos nossos questionamentos iniciais, é o que veremos a seguir: Formação de professores; Prática pedagógica; Vínculos entre formação e prática; Representações sobre cultura e identidade quilombolas.

Ressaltamos que as entrevistas foram realizadas em março de 2021, após duas semanas de observação em duas turmas do 9° ano, para melhor compreender o cotidiano escolar. Esses momentos vividos na escola nos permitiram criar uma relação de proximidade com os professores e alunos, o que facilitou as interações no momento das entrevistas. Daremos mais detalhes sobre o público e o contexto de estudo mais adiante.

Em relação ao tipo de método de análise, optamos pela análise de conteúdo, pois é preciso antes de tudo atentar para o que foi relatado pelo participante da pesquisa. Nessa perspectiva, segundo Calixto, Cavalcante e Pinheiro « [...] na análise de conteúdo como método, a ênfase não está na quantificação, mas na análise do fenômeno em profundidade, elencando subjetividades, suas relações, bem como interlocuções na rede social » (2014, p. 17). A escolha desse método de análise pode ser compreendida pelo objetivo de ir além do óbvio, justamente porque potencializa a interpretação dos discursos de forma mais profunda.

É importante destacar que os professores foram informados antecipadamente dos objetivos deste estudo, e que após o aceite para participar foi assinado o Formulário de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), conforme a orientação da resolução n°466/2012, do Ministério da Saúde, concernente à pesquisa envolvendo seres humanos. O documento foi redigido em uma linguagem clara e de fácil compreensão, contendo o objetivo do estudo e os instrumentos que serão utilizados, reforçando que as entrevistas seriam gravadas (somente o áudio).

Destacamos igualmente que os participantes foram informados do direito de tirar dúvidas a todo momento sobre a pesquisa em questão, com a garantia que todas as perguntas seriam respondidas. Dessa maneira, após os esclarecimentos aos participantes e a assinatura do TCLE, as entrevistas individuais foram realizadas, em função da disponibilidade de cada professor.

Algumas informações sobre o campo de estudo

A Comunidade Quilombola do Curiaú1 está situada a 10 km da cidade de Macapá, capital do estado do Amapá, localizado no extremo norte do Brasil, fronteira com a Guiana Francesa. Nesse espaço residem cerca de 108 famílias (CPISP, 2019)2. As terras da comunidade receberam o título de Área de Preservação Ambiental (APA) em 1998, integrando as comunidades do Curiaú (De dentro, De fora, Extrema e Mocambo), Curralinho, Casa Grande, Pescado e Pirativa, com uma área de 21.676 ha, onde vivem aproximadamente 3.500 pessoas. Em 1999, a Comunidade do Curiaú foi a primeira comunidade reconhecida como Quilombo, no estado do Amapá, pela Fundação Palmares, órgão vinculado ao Ministério da Cultura.

A Escola Quilombola Estadual “José Bonifácio”, situada na comunidade quilombola do Curiaú, foi criada no dia 23 de janeiro de 2001; é uma escola de referência na região pelo engajamento na difusão e preservação da cultura local. Recebe alunos do Ensino Fundamental I (manhã) e Ensino Fundamental II (tarde) oriundos, em sua grande maioria de bairros vizinhos não quilombolas, por conta da proximidade. Possui atualmente, 96 alunos no EF I e 165 alunos no EF II, tendo um corpo docente formado por 27 professores, sendo 7 professores pertencentes à comunidades quilombolas. Alguns professores trabalham na parte administrativa da escola.

Quem eram os participantes da pesquisa?

Optamos por realizar nossa pesquisa com os professores do Ensino Fundamental II, sete professores no total, os quais lecionam as seguintes disciplinas: Geografia, História, Teologia, Biologia, Esporte, Português e Língua Francesa. Os alunos não recebiam aulas de Arte e Inglês, devido à falta de professores. O professor de Matemática demonstrou pouco interesse em nossa pesquisa. Optamos por realizar nosso estudo entre os professores da escola mencionada acima, uma vez que o Quilombo Curiaú é uma referência na região do Amapá por suas fortes tradições religiosas e culturais.

Referente à proveniência dos professores, seis eram naturais do Amapá, com exceção do professor de esportes, que nasceu no estado vizinho do Pará. A média de idade variava entre 33 a 47 anos, com exceção da professora de Geografia, que tinha 58 anos. A grande maioria havia estudado na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Todos os professores possuíam especialização, com exceção da professora de História, que também trabalha como policial quando não está lecionando na escola. O professor de Teologia estava cursando doutorado em educação na Universidade do Estado do Pará (UFPA), cujos cursos eram ministrados à distância.

Gostaríamos de destacar que entre os sete professores que participaram do nosso estudo, apenas três são descendentes de quilombolas, ou seja, a minoria. De acordo com a Resolução nº 08 de 2012, que institui a educação escolar quilombola no Brasil, é importante ter professores quilombolas nas escolas, o que atualmente representa um desafio tendo em vista a carência de professores de modo geral.

Análise dos dados

Para a presente contribuição, tomaremos como base três categorias de análises as quais fazem a interconexão entre nosso referencial teórico, os dados empíricos e os questionamentos iniciais da pesquisa:

  • - Formação inicial e prática em escolas quilombolas;

  • - Formação docente, currículo e cultura;

  • - Formação continuada em contexto quilombola.

Formação inicial e prática em escola quilombola

Um aspecto que nos chamou atenção diz respeito à dicotomia existente entre a formação inicial e a prática de sala de aula evocada pela maioria dos participantes. Dos sete professores, quatro afirmaram que a formação inicial não contribuiu de forma substancial para o exercício da profissão em uma escola quilombola por diversas razões: uma grande distância entre a teoria e a prática, ausência de abordagem de aspectos socioculturais dos grupos minoritários durante a formação e uma formação centrada nos conhecimentos disciplinares eurocêntricos e urbanos. Vejamos alguns depoimentos:

Karen3: A gente tem hoje a lei 10.639 que fala sobre a obrigatoriedade do ensino dos povos vindos da África para os alunos... a gente não tem um conhecimento muito aprofundado, porque a formação inicial não trabalha muito isso. Mas a gente vai adquirindo a prática mesmo sobre essa questão quilombola quando a gente está em sala de aula com os alunos.

Edgar: Durante o curso não teve nada voltado para a cultura quilombola, ribeirinha, diversidade... só a formação geral. A gente é que tem que procurar depois. Iniciei sem preparação aqui na zona rural. Meu conhecimento sobre as leis, normativas já passei a conhecer aqui na escola. Aos poucos eu passei a entender que tem essa especificidade, que a escola quilombola é diferente de uma escola da cidade. Temos que conhecer um pouco da cultura local, da realidade deles. O ideal é a gente adaptar as nossas aulas à cultura deles.

Maíra: Tem uma diferença muito grande em relação aos conhecimentos adquiridos na universidade, acaba sendo muito distante do que a gente ensina, mas é claro que a gente aprende muita coisa. Lembro que quando eu comecei a dar aula, eu precisei estudar muito mais do que eu estudava na universidade.

Maurício: Não! A minha formação inicial foi muito branca, europeia. O curso de Filosofia e o de Teologia são cursos muito brancos. O que me ajudou a me afirmar enquanto negro foi a militância que tenho. Então essa minha aproximação com a cultura, com a temática negra, me possibilitou fazer esse diálogo pedagógico e metodológico na escola.

A partir das falas dos professores, notamos que para eles, de uma maneira geral, a grande lacuna da formação inicial aponta para dois aspectos relevantes: a) a grande dicotomia existente entre a teoria e a prática; b) a fragilidade do conhecimento curricular, responsável pela organização e estruturação dos conhecimentos escolares que serão ensinados.

Em relação ao primeiro ponto, podemos avançar que a há grandes dicotomias na formação de professores, as quais impedem, muitas vezes, o desenvolvimento de um pensamento mais reflexivo, mas também impedem políticas e práticas pertinentes. No momento atual, onde a escola precisa se adequar às profundas transformações impostas pela era tecnológica e pelos avanços de uma política neoliberal, não há nada mais prejudicial à formação docente do que essa distância que separa a teoria da prática, tornando o ensino desconectado da realidade dos alunos; é o que transparece, por exemplo, na fala da professora Maira, descendente de japoneses, atuando na escola há sete anos: “Tem uma diferença muito grande em relação aos conhecimentos adquiridos na universidade, acaba sendo muito distante do que a gente ensina”. Ela lembra que no início do exercício da profissão docente, ela precisou estudar bastante para poder “adequar” os conhecimentos adquiridos na universidade às suas aulas.

Repensar a formação de professores perpassa a criação de novas práticas de formação, que promova uma política integrada de formação de professores, dentro da universidade, às escolas da cidade e das zonas rurais, no caso do nosso público. O objetivo seria o de criar “pontes” de interconexão, o que implicaria em mudanças importantes na organização dos currículos de formação de professores de Biologia, de História, de Geografia, de Língua Portuguesa, de Matemática, etc. Para Nascimento e Feldmann, “[...] o problema da articulação entre o pensar e o agir, entre a teoria e a prática, configura-se como um dos grandes desafios de formação de professores” (2022, p. 34).

Um segundo ponto a ser abordado que transparece nas proposições dos professores diz respeito a ausência de um currículo mais diverso durante a formação inicial, que trate das questões das comunidades socialmente excluídas, como os grupos indígenas e quilombolas, por exemplo. Essa ausência fragiliza o exercício da profissão docente, de um certo modo, visto que não os prepara para atuarem nesse contexto escolar, como nos evoca o professor Edgar, não-quilombola, que já trabalha na escola situada na comunidade Curiaú há sete anos: “Durante o curso não teve nada voltado para a cultura quilombola, ribeirinha, diversidade... só a formação geral”. Ele afirma que no decorrer do exercício da profissão na escola, passou a conhecer mais a cultura local, as especificidades dos alunos quilombolas. Ele entende que é uma escola diferente de uma escola da zona urbana, por esse motivo, passou a adaptar suas aulas à realidade local, com o objetivo de valorizar a identidade cultural dos alunos. Essa postura mais sensível ao contexto local só foi possível a partir de sua experiência profissional.

A utilização de um currículo mais diverso e inclusivo deveria fazer parte da formação de professores, pois o currículo precisa cumprir a sua função pedagógica e social de oportunizar práticas que valorizem as riquezas das identidades e das culturas presentes no contexto escolar. Segundo Apple, é importante que o currículo reconheça “[...] as próprias raízes, na cultura, na história e nos interesses sociais que lhe deram origem” (2011, p. 90).

Para o professor Maurício, descendente de quilombolas, doutorando em Educação, atuando na escola quilombola “José Bonifácio” há quase dez anos, sua formação em Filosofia e Teologia foi baseada em um currículo eurocêntrico e urbanocêntrico, o que não lhe permitiu fazer a interconexão dos conhecimentos disciplinares e curriculares com a realidade de uma escola quilombola. Ele explica que foi o seu engajamento político e social no movimento negro da região que lhe possibilitou a adoção de uma prática mais pertinente em sala de aula, através de um currículo mais heterogêneo, contextualizado e menos eurocêntrico.

Deve-se observar que todos os sete professores entrevistados concluíram seus estudos superiores antes de 2015, ano em que foram publicadas as novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a formação de professores, as quais abordavam questões de diversidade étnica e racial no Brasil; embora ainda precisassem de ajustes, as novas diretrizes já representavam um progresso nessa direção. Além disso, todos os diplomas de graduação obtidos antes de 2015 ainda eram regidos pelas primeiras DCNs de 2002. Garcia (2015) explica que os programas de formação de professores da época reduziam o ensino à simples tarefa de implementar programas para alcançar resultados pelos quais os professores poderiam ser recompensados. Não havia questões de diversidade ou aspectos que pudessem refletir a realidade sociocultural do aluno, as primeiras diretrizes simplesmente se referiam a acolher e lidar com a diversidade como um princípio, repetindo o que já existia na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 1996, o que justificaria os depoimentos dos professores.

Apesar da docência ser um construto que extrapola o ambiente universitário, os conhecimentos curriculares são centrais nos cursos de formação de professores, pois é durante todo o processo de formação que as bases epistemológicas, pedagógicas e metodológicas são construídas. E através dos saberes sobre o currículo que se materializa em fazer pedagógico, pois se revela como elemento de interligação entre o pensar e o agir, entre a teoria e a prática. Desse modo, é de responsabilidade da formação inicial uma sólida formação sobre o currículo, para que os futuros professores tenham a capacidade de perceber a “ancoragem social dos conteúdos” (Moreira, 2007), tendo em vista que existe uma dicotomia entre a concepção e o exercício da profissão docente, segundo o discurso da maioria dos participantes.

Formação docente, currículo e cultura

O que nos interessa aqui é a imbricação entre o currículo, a cultura local e o processo formativo, que se materializam a partir do fazer pedagógico em uma escola quilombola. Para isso, questionamos os professores participantes do nosso estudo, sobre a percepção dos mesmos em relação a importância em se ter um currículo diferenciado nas escolas de comunidades quilombolas, ou seja, um currículo que valorize os aspectos da cultura e dos saberes locais. Todos foram unânimes em afirmar que as escolas situadas em comunidades quilombolas precisam ter um currículo adaptado à realidade sociocultural dos alunos, ou seja, um currículo endógeno (Thiam, 2022). O depoimento do professor Edgar, atuante na escola há sete anos é bastante representativo:

Acho que tem que ser adaptado sim a questão local daqui. Só que as vezes não é fácil adaptar. Só falar da cultura e da religiosidade, da ancestralidade, como eles vivem, do trabalho deles local, não é fácil, mas tem que ter por que eles vivem isso. Não tem como não falar da questão religiosa, da cultura deles daqui. Acho que a escola faz bastante isso aqui. No dia a dia a gente acaba fazendo essa adaptação através dos projetos, por exemplo, o projeto « Curiaú mostra a tua cara » ele se foca basicamente em mostrar como a comunidade vive aqui. Então essa adaptação do currículo tem que ser feita sim, senão tiver fica difícil. Tem que entender a cultura deles pra poder trabalhar.

É importante lembrar que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (Dcneeq, 2012), orientam para o redimensionamento dos currículos das escolas quilombolas; no entanto, nem todas as escolas quilombolas do Amapá reformularam seus currículos; o processo de reformulação é lento e, uma vez concluído, é preciso aguardar a aprovação dos setores responsáveis da Secretaria de Educação. No caso da escola em questão, ainda é necessário fazer mais ajustes no currículo para alinhá-lo às diretrizes curriculares nacionais, mas isso não impede que os professores adaptem suas práticas da melhor forma possível. Um exemplo é uma atividade criada pelo professor de teologia, que frequentemente organiza encontros entre uma curandeira quilombola e os alunos durante seu curso sobre religiões de raízes africanas. Ela explica os rituais envolvidos na purificação do corpo, o uso de plantas medicinais, as orações usadas dependendo do tipo de doença etc. Esse tipo de atividade é interessante porque demonstra a ligação entre o conhecimento disciplinar e a cultura local, de acordo com os requisitos das diretrizes de 2012.

A partir das declarações dos sete professores participantes, é possível perceber o compromisso com a disseminação e a valorização da identidade cultural da comunidade local por meio do currículo escolar, mas também por meio da implementação de várias atividades extracurriculares (projetos educacionais) sobre danças tradicionais, rituais religiosos, artesanato, produtos locais, atividades agroalimentares da comunidade etc., realizadas pelos professores ao longo do ano letivo, com o apoio da diretora da escola, que é originária do quilombo do Curiaú e se envolve em todos os projetos.

Como vimos acima, a interconexão entre currículo e cultura é um pré-requisito essencial para a função social da formação docente e evidencia o quanto a escola e sua educação possui um papel integrador nas suas várias dimensões: afetiva, educativa, cultural, sociológica, política etc. Observamos que a dicotomia existente entre a formação inicial e o exercício da docência, mencionada anteriormente pelos professores, não os impediu de perceber a importância de integrar a realidade e os saberes locais às suas práticas; porém, esse entendimento acerca das especificidades das comunidades, sejam elas quilombolas ou indígenas, precisa se fazer presente na formação docente, considerando a complexidade em que os professores de escolas quilombolas estão imersos. Concordando com Freire, “Nenhuma formação docente pode estar alheia à realidade do educando, ensinar exige reflexão crítica sobre a prática” (1996, p. 17).

Diante do que foi dito, a educação precisa estar conectada com os vários contextos que se revelam, o que exige uma percepção curricular multicultural no processo de formação de professores. O currículo é um meio que torna a escola um instrumento social e político, e essa característica própria do currículo, na formação docente, tem o poder de determinar o tipo de mediação que o professor realizará entre as culturas presentes no espaço escolar.

Mas veremos a seguir, que o processo formativo inicial não é o único meio de busca de conhecimento, a continuidade e atualização dos conhecimentos é fundamental. O professor precisa ter consciência que sua formação não se encerra na graduação.

Formação continuada em contexto quilombola

Está previsto nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (Dcneeq, 2012), em seu artigo 53, que a formação continuada de professores atuantes na Educação Escolar Quilombola deverá ter como “componente primordial da profissionalização docente a estratégia de continuidade do processo formativo, articulada à realidade das comunidades quilombolas” (p. 17). Sobre a continuidade do processo formativo, as falas dos sete professores da escola quilombola “José Bonifácio” convergem para o mesmo ponto de vista: a falta considerável de formação continuada na área da educação para as relações étnico-raciais.

Vários professores relataram que, quando foram lotados na escola, não receberam nenhum tipo de (in)formação sobre as legislações, as práticas em escolas quilombolas ou sobre as especificidades culturais da comunidade. A grande maioria passou a ter conhecimento sobre a educação escolar quilombola e a cultura local ao longo dos anos de experiência docente na escola, a partir das interações com os alunos e com a comunidade. Alguns professores participam, inclusive, das manifestações religiosas e culturais organizadas pelos moradores, em datas comemorativas, como a festa de São Joaquim, santo padroeiro do Curiaú, a fim de compreender mais sobre a realidade local e, desse modo, promover uma aproximação com seus alunos, principalmente àqueles professores que não possuem descendência quilombola. Segundo a professora Maira, que não é quilombola e nem possui descendência quilombola: “A gestão sempre fala que nós temos que trabalhar conforme as diretrizes em sala de aula, mas não é fácil. A gente faz o que pode. A teoria é uma maravilha, mas na hora da prática é complicado!” Em muitas situações, os professores se sentem sozinhos e buscam por meios próprios aprofundar seus conhecimentos.

A gestão da escola quilombola “José Bonifácio” promove palestras no início do ano letivo, durante a “Semana Pedagógica”, como forma de atualizar os docentes sobre questões que envolvem as políticas educativas voltadas para as comunidades quilombolas, mas também em relação às práticas metodológicas de sala de aula, porém, segundo os relatos dos docentes, apesar de ser uma atividade interessante, essa iniciativa não é suficiente. Em conversa com um assessor pedagógico do Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais (NEER), da Secretaria de Educação do Estado do Amapá (SEED), segundo o seu relato, existe uma enorme carência de profissionais na área da educação escolar quilombola e indígena no NEER, o que os impede, muitas vezes, de desenvolver projetos de formação continuada juntos aos professores que atuam em escolas localizadas em zonas rurais. Vejamos um recorte da fala do assessor no momento de nossa conversa:

O que a gente promove são palestras, porque não temos estrutura para ofertarmos formação continuada. Não temos técnicos o suficiente, técnicos específicos formados para esse tipo de trabalho, mas trabalhamos palestras, difundimos a lei 10.639 de 2003, as resoluções n°025, n°08, n°077 e falamos sobre a importância da cultura afro-brasileira nas escolas públicas e principalmente quilombolas, pra combater o racismo, para que os alunos quilombolas possam se auto-afirmar fora das comunidades quilombolas.

A falta de estrutura, a carência de técnicos especializados na área, mas também a falta de interesse dos gestores educacionais que estão à frente das secretarias de educação são entraves para a implantação de políticas de formação para esses professores atuando em escolas quilombolas, em certos casos. Para Akkari e Santiago (2014), leis e diretivas que valorizam a educação dessas comunidades existem e foram conquistadas a partir das lutas dos movimentos negros, mas sem uma verdadeira aplicação, elas não oportunizarão a mudança necessária.

Diante desse contexto, não basta a escola ser quilombola ou ter professores quilombolas, se não houver uma preocupação com o tipo de ensino que está sendo realizado junto aos alunos; se não houver uma preocupação em relação ao tipo de professor que se faz necessário para as necessidades formativas dos alunos em suas mais variadas dimensões; se não houver a preocupação com uma prática pertinente, menos excludente, que não inviabilize as identidades presentes; todos esses aspectos perpassam por uma formação tanto inicial quanto continuada sensíveis ao diverso, ao outro, às diferenças. Por isso, Freire (1981) nos fala sobre a necessidade urgente de efetivação de um projeto de formação docente emancipatória, o qual representa um desafio para os professores e professoras de escolas quilombolas, pois estes ainda precisam vencer inúmeros obstáculos, dentre eles, a inoperância das políticas educativas.

Considerações finais

As reivindicações dos movimentos sociais por uma educação escolar quilombola culturalmente referenciada, não tem a pretensão de isolar ou fechar sobre si mesmas as comunidades, o que não seria possível devido as interações existentes entre os indivíduos da sociedade atual, aceleradas e facilitadas pelos meios tecnológicos. Contudo, o que se pretende é o reconhecimento e a valorização da historicidade e da identidade das comunidades quilombolas, a fim de que não sejam negadas, excluídas e marginalizadas. Assim, ao afirmar a diversidade inerente às suas identidades, possam ter seus direitos enquanto cidadãos garantidos, seus modos de vida, seus saberes culturais e suas práticas preservadas e respeitadas.

Desse modo, a formação de professores é um elemento central no combate à discriminação e à invisibilização, pois é durante essa etapa de preparação que a postura do professor se construirá, a partir de vários tipos de conhecimento: científicos, pedagógicas e curriculares, mas também a partir dos conhecimentos advindos da experiência profissional como vimos, onde as práticas foram sendo moldadas ao longo do processo educativo, e se adaptando à uma nova realidade, levando-se em consideração que a formação não se resume somente ao espaço acadêmico.

Essas questões confirmam que o processo educativo é um ato ético e político, que exige do professor uma ação reflexiva possível de desconstruir antigos saberes e construir novos, à medida que a docência exige novas abordagens teórico-metodológicas, e sobretudo, uma abordagem mais humanista, que entende ser a formação do professor uma das dimensões mais importantes para a construção de um currículo inclusivo e diverso na escola.

1Os moradores mais antigos utilizam o termo Cria-ú, referindo-se a um bom lugar para se criar gado, mas optamos por utilizar o termo mais popular conhecido pela maioria da população: Curiaú.

2Comissão Pró-Índio de São Paulo. Disponível em: www.cpisp.org.br.

3Para preservar a identidade dos professores, os nomes são fictícios.

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Recebido: 11 de Fevereiro de 2023; Aceito: 15 de Setembro de 2023

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