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Revista Diálogo Educacional

versión impresa ISSN 1518-3483versión On-line ISSN 1981-416X

Rev. Diálogo Educ. vol.23 no.79 Curitiba  2023  Epub 22-Feb-2024

https://doi.org/10.7213/1981-416x.23.079.ao08 

Artigos

Paulo Freire, Ivan Illich e José Pacheco derrubando os muros das escolas

Paulo Freire, Ivan Illich and José Pacheco tearing down the school wall

Paulo Freire, Ivan Illich y José Pacheco derriban los muros de la escuela

[a]Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil

[b]Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil


Resumo

Seria possível e desejável desescolarizar a sociedade? Essa questão foi o ponto de partida para a pesquisa proposta neste artigo. Esta pergunta não é nova, mas então por que trazê-la novamente à tona? Porque essa discussão ganhou nova importância diante de alguns acontecimentos recentes no campo da educação no Brasil, em especial o fechamento das escolas durante a pandemia de COVID-19 e a ascensão do movimento conservador do ensino domiciliar, bastante conhecido pelo termo em inglês “homeschooling”. O método que guiou esta investigação e a metodologia usada na elaboração deste artigo foram a hermenêutica. Nessa direção, buscamos interpretar, apreender e explicitar em profundidade os sentidos da teoria de Ivan Illich, que defendeu a desescolarização das sociedades e propôs que a educação passasse a acontecer por meio de redes de convivialidade; a práxis pedagógica de Paulo Freire, um dos principais educadores brasileiros, que denunciou uma educação bancária e anunciou uma educação crítica e libertadora concretizada nos círculos de cultura; e, a práxis do educador português José Pacheco, que deixa clara a sua indignação com uma escola que chama de inútil e perversa e sugere uma educação feita em comunidades de aprendizagem. Constatamos que, em meio aos movimentos que suscitam novamente a pergunta se seria possível e desejável desescolarizar a sociedade, o mais importante é pensar em qual educação está sendo realizada e com quais objetivos. De nada adianta derrubar as escolas e seus muros se uma educação conservadora à serviço do capital continuar a ser feita em outros espaços.

Palavras-chave: Paulo Freire; Ivan Illich; José; Pacheco; Escola; Desescolarização.

Abstract

Would it be possible and desirable to deschool society? This question was the starting point for the research proposed in this article. This question is not new, so why bring it up again? Because this discussion has gained new importance in the face of some recent events in the field of education in Brazil, in particular the closure of schools during the COVID-19 pandemic and the rise of the conservative homeschooling movement. The method that guided this investigation and the methodology used in the elaboration of this article were hermeneutics. In this direction, we seek to interpret, apprehend and explain in depth the meanings of the theory of Ivan Illich, who defended the deschooling of societies and proposed that education should happen through conviviality; the pedagogical praxis of Paulo Freire, one of the main Brazilian educators, who denounced a banking education and announced a critical education for freedom implemented in culture circles; and, the praxis of the Portuguese educator José Pacheco, who makes clear his indignation with a school that he calls useless and perverse and suggests an education based on learning communities. We found that, in the midst of movements that once again raise the question whether it would be possible and desirable to deschool society, the most important thing is to think about what education is being carried out and with what objectives. There is no point in tearing down schools and their walls if a conservative education at the service of capital continues to be carried out in other spaces.

Keywords: Paulo Freire; Ivan Illich; Jose Pacheco; School; Deschooling.

Resumen

¿Sería posible y deseable desescolarizar a la sociedad? Esta pregunta fue el punto de partida para la investigación propuesta en este artículo. Esta pregunta no es nueva, entonces, ¿por qué volver a plantearla? Porque esta discusión ha cobrado nueva importancia frente a algunos acontecimientos recientes en el campo de la educación en Brasil, en particular el cierre de escuelas durante la pandemia de COVID-19 y el surgimiento del movimiento conservador de educación en el hogar. El método que guió esta investigación y la metodología utilizada en la elaboración de este artículo fue la hermenéutica. En esa dirección, buscamos interpretar, aprehender y explicar en profundidad los significados de la teoría de Ivan Illich, quien defendía la desescolarización de las sociedades y proponía que la educación debía pasar por redes de convivencia; la praxis pedagógica de Paulo Freire, uno de los principales educadores brasileños, que denunciaba una educación bancaria y anunciaba una educación crítica y liberadora implantada en los ambientes culturales; y, la praxis del educador portugués José Pacheco, quien deja clara su indignación con una escuela que califica de inútil y perversa y plantea una educación basada en comunidades de aprendizaje. Encontramos que, en medio de movimientos que nuevamente plantean la pregunta de si sería posible y deseable desescolarizar a la sociedad, lo más importante es pensar qué educación se está realizando y con qué objetivos. De nada sirve derribar las escuelas y sus muros si en otros espacios se sigue realizando una educación conservadora al servicio del capital.

Palabras clave: Paulo Freire; Iván Illich; José; Pacheco; Escuela; Desescolarización.

Introdução

Seria possível e desejável ‘desescolarizar’ a sociedade? Essa questão foi o ponto de partida para a pesquisa proposta neste artigo. Não somos os primeiros e, provavelmente, não seremos os últimos a nos indagarmos sobre isso. Inclusive, em 1971 o pensador austríaco Ivan Illich publicou um livro chamado “Deschooling Society”, traduzido para o português como “Sociedade sem escolas”. Naquele momento histórico, ele e demais pensadores e pensadoras, entre eles o educador brasileiro Paulo Freire, discutiam sobre temas considerados importantes para a educação da época.

Mas por que, então, trazer novamente essa pergunta à tona? Porque ela voltou a ser atual e essa discussão ganhou nova importância diante de alguns acontecimentos recentes no campo da educação no Brasil, em especial o fechamento das escolas durante a pandemia de covid-19 e a ascensão do movimento conservador do ensino domiciliar, bastante conhecido pelo termo em inglês “homeschooling”.

No início de 2020, a Organização Mundial da Saúde decretou uma pandemia da doença causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). A principal medida de contenção do vírus foi o isolamento das pessoas. Isso levou, entre outras coisas, ao fechamento das escolas. A solução, na maior parte do mundo, foi a retomada das atividades escolares por meio das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). Esse acontecimento impactou a educação, acelerando o uso das TICs, um movimento que já estava em marcha nos últimos anos. Estes acontecimentos fomentaram os questionamentos sobre os espaços escolares formais como única alternativa para a educação.

Somado a isso, a crescente onda de conservadorismo, sentida em todo o mundo, disseminou a ideia do ensino domiciliar, que defende que crianças e jovens deixem de frequentar as escolas e passem a ser ensinados por seus pais e/ou responsáveis dentro de seus próprios ambientes familiares. Inclusive, uma das referências usadas pelos defensores e defensoras do ensino domiciliar é justamente Ivan Illich e sua obra “Sociedade sem escolas”. É neste contexto que refletir sobre a possibilidade e o desejo de ‘desescolarizar’ a sociedade se torna, mais uma vez, essencial.

O método que guiou esta investigação e a metodologia usada na elaboração deste artigo foi a hermenêutica. A hermenêutica como método sugere como caminho para a contextualização das obras escolhidas como referência, a apreensão e a interpretação de seu conteúdo e a comunicação daquilo que delas se apreendeu e interpretou. Já a hermenêutica como metodologia propõe o círculo hermenêutico, que vai do todo para as partes e das partes para o todo, assim como articula o objetivo e o subjetivo, com a finalidade de ampliar a consciência sobre o tema pesquisado (Gadamer, 1997).

Nessa direção, buscamos interpretar, apreender e explicitar em profundidade os sentidos da teoria de Ivan Illich, que defendeu a ‘desescolarização’ das sociedades e propôs que a educação passasse a acontecer por meio de redes de convivialidade; a práxis pedagógica de um dos principais educadores brasileiros, Paulo Freire, que dialogou com Illich sobre o tema, denunciou uma educação bancária e anunciou uma educação crítica e libertadora concretizada nos círculos de cultura; e a práxis do educador português José Pacheco como elemento de novidade, já que ele não costuma ser colocado em diálogo com esses dois outros educadores em trabalhos acadêmicos1. Pacheco deixa clara a sua indignação com uma escola que chama de inútil e perversa e sugere uma educação feita em comunidades de aprendizagem. Além disso, o autor mora atualmente no Brasil e atua intensamente para a disseminação e a implementação de comunidades de aprendizagem.

Ivan Illich, sua proposta de ‘desescolarização’ da sociedade e a criação de redes de convivialidade

A escolha de Ivan Illich para compor a tríade que embasa as reflexões propostas neste artigo se deve a alguns motivos. Illich nasceu em Viena, na Áustria, em 1926. Se formou em Teologia e Filosofia na Universidade Gregoriana de Roma e obteve o título de Doutor em História na Universidade de Salzburgo. Se interessava por assuntos relacionados à religião, mas também por temas relacionados à cultura e à educação na sociedade moderna (Gajardo, 2000).

O interesse de Illich pela escola e pelo processo de escolarização surgiu durante o período em que trabalhou em Porto Rico, após assumir o cargo de vice-reitor da Universidade Católica de Ponse. Imerso nessa comunidade acadêmica, passou a conviver com intelectuais norte-americanos(as) e latino-americanos(as) muito interessados(as) em refletir e agir sobre questões importantes relacionadas à educação e à cultura (Gajardo, 2000). Um deles foi Everett Reimer, a quem Illich (1985, p. 14) atribuiu o seu interesse pela educação como uma função pública:

Antes de nosso primeiro encontro em Porto Rico, em 1958, nunca havia questionado o valor de estender a obrigatoriedade escolar a todo o povo. Juntos, chegamos à conclusão de que a maioria dos homens tem seu direito de aprender cortado pela obrigação de freqüentar a escola.

Entre estes intelectuais também estava Paulo Freire, com quem Illich e demais pensadores e pensadoras debateram sobre educação e conscientização. Grande parte desses debates aconteceram durante os meses de verão em que o Centro Intercultural de Documentação (CIDOC) estava ativo. Esse instituto foi concebido por Illich em 1961 em Cuernavaca, no México. Seu objetivo inicial era ensinar espanhol e preparar os missionários norte-americanos que estavam trabalhando na América Latina. Contudo, com o passar do tempo, ele se tornou um espaço de convívio e diálogo em que Illich discutia suas ideias, especialmente sobre uma educação desescolarizada (Gajardo, 2000).

É nesse período, então, que as ideias de Illich ganham notoriedade e projeção e se tornam conhecidas em diferentes países do mundo, inclusive no Brasil. Em linhas mais gerais, uma das críticas feitas por Illich à sociedade moderna diz respeito às instituições manipulativas e dominadoras que caracterizam o mundo contemporâneo. Nesse sentido, ele criticava radicalmente as igrejas e as escolas institucionalizadas que se comportavam como grandes empresas, produzindo mercadorias com determinado valor de troca dentro da lógica capitalista e garantindo, assim, a reprodução da sociedade que as engendrava e a sua própria reprodução (Gajardo, 2000).

Podemos dizer, então, que também é neste período que Illich desenvolve o que podemos considerar o seu pensamento educacional. Ele publica suas principais obras no campo da educação entre o fim da década de 1960 e o início da década de 1970. Entre essas obras está “Sociedade sem escolas”, que reúne ensaios compartilhados por Illich (1985, p. 14-15) e intensamente discutidos por ele e os(as) participantes do CIDOC:

Às quartas-feiras de manhã, durante a primavera e verão de 1970, submeti as diversas partes desse livro aos participantes de nosso programa CIDOC, em Cuernavaca. Vários deram sugestões e teceram críticas. Muitos reconhecerão idéias suas nestas páginas, sobretudo Paulo Freire, Peter Berger e José Maria Bulnes, mas também Joseph Fitzpatrick, John Holt, Angel Quintero, Lauman Allen, Fred Goodman, Gerhard Ladner, Didier Piveteau, Joel Spring, Augusto Salazar Bondy e Dennis Sullivan.

Aqui, reforçamos então dois motivos importantes para a escolha de Ivan Illich como uma de nossas referências principais. Primeiro, os diálogos entre ele e Paulo Freire acerca da educação e a influência da práxis freiriana nas suas ideias. Segundo, a notoriedade e a projeção dessas ideias em diversos países do mundo, principalmente por meio da obra “Sociedade sem escolas”, que traz grandes contribuições às reflexões propostas neste artigo (observando que essa ordem não hierarquiza os motivos, colocando-os como mais ou menos importantes).

Em “Sociedade sem escolas”, Illich (1985) expõe o seu ponto de vista sobre a escola pública nos Estados Unidos. De acordo com Foster (2013), a educação pública surgiu nos Estados Unidos no início do século XIX, mas o sistema educacional conhecido hoje só surgiu no fim do mesmo século e início do século XX. Isso significa que o desenvolvimento desse sistema educacional moderno coincide com o surgimento do capitalismo monopolista, destaca o autor.

O capitalismo monopolista se caracteriza por uma economia dominada por grandes corporações, nas quais o trabalho é extremamente fragmentado e o controle administrativo é feito de cima para baixo. Devido a isso, o comando do processo é totalmente retirado das mãos dos trabalhadores, tornando-se monopólio da administração. Esse sistema ficou conhecido como administração científica ou “Taylorismo” (Foster, 2013).

A introdução da administração científica nas indústrias fez com que o mercado de trabalho demandasse um número relativamente pequeno de profissionais altamente qualificados(as) e grandes massas de trabalhadores e trabalhadoras não qualificados(as). Consequentemente, o sistema de educação passou a ter que “produzir” trabalhadores e trabalhadoras adequados(as) para estes diferentes segmentos. E mais do que isso: a própria gestão das escolas passou a seguir o modelo da administração científica (Foster, 2013).

Como um intelectual situado no contexto histórico de crítica radical à ordem capitalista e suas instituições sociais, Illich (1985) vai se posicionar veementemente contra a instituição escolar formal. Na sua concepção, ela estaria entre as instituições manipulativas que dominam e caracterizam o mundo contemporâneo, quase definindo-o. Estas instituições manipulativas transformam necessidades não materiais, como a educação, em mercadorias que resultam da prestação de determinados serviços.

Segundo Illich (1985, p. 18), isso leva à institucionalização dos valores. Esse fenômeno faz com que a educação considerada boa seja somente aquela prestada pelas instituições formais de ensino, por exemplo. Todo o processo de ensino e aprendizagem que acontece fora dessas instituições é desvalorizado pela sociedade capitalista. Isso faz com que todos e todas procurem as instituições formais de ensino, na busca pelo sucesso no mercado de trabalho que os certificados e os diplomas conferidos por estas prometem.

Contudo, Illich (1985) afirma que o acesso às instituições formais de ensino e as possibilidades de permanência nelas não são as mesmas para indivíduos de diferentes classes sociais. Destaca que as próprias instituições oferecem tipos de educação diferentes para públicos diferentes. E enfatiza que, além dos certificados e dos diplomas, também estão em jogo o capital social e o capital cultural que os indivíduos trazem consigo.

O capital social diz respeito aos recursos ligados à posse de uma rede durável de relacionamentos mais ou menos institucionalizados de familiaridade e reconhecimento, isto é, o pertencimento a um grupo. Enquanto o capital cultural diz respeito aos ativos sociais ligados a uma pessoa, como educação, intelecto, estilo de fala e vestimentas, entre outros, capazes de promover mobilidade social em uma sociedade estratificada (Bourdieu; Passeron, 2014).

Isso faz com que as classes mais baixas busquem avidamente pela educação formal na esperança de que ela traga mais oportunidades no mercado de trabalho. Porém, mesmo que isso aconteça, provavelmente elas nunca alcançarão as mesmas colocações que as classes mais altas, que frequentam escolas que oferecem a educação como um produto voltado para esse público, além de carregarem consigo outros elementos que as distinguem socialmente. Por isso, Illich (1985) foi enfático ao dizer que a institucionalização de valores é a raiz da miséria global generalizada e que a obrigatoriedade de frequentar a escola tira da maioria das pessoas o direito de ensinar e aprender.

Illich (1985) criticou ainda elementos conservadores da instituição escolar formal, como: a hierarquia nas relações, a burocracia que engessa a criatividade, o instrucionismo pautado em currículos obrigatórios prontos e fragmentados, a distância entre os conteúdos e a realidade, as mensurações e as comparações por meio das notas, o autoritarismo dos(as) professores(as), entre outros. Além disso, dedicou-se a mostrar detalhadamente o quanto o sistema público de educação dos Estados Unidos custava cada vez mais caro, mas ainda estava longe de garantir a igualdade e a justiça.

Voltando um pouco ao contexto histórico do século XX, naquele momento um campo de disputas extremamente acirrado se formou, no qual educadores e educadoras, famílias e membros da comunidade se organizaram para fazer oposição aos avanços da escolarização capitalista. De acordo com Foster (2013, p. 94), uma série de movimentos educacionais progressistas emergiram das mudanças nas condições sociais, como “o movimento pela educação democrática e experimental, associado a John Dewey na década de 1920 e 1930; o movimento pela dessegregação escolar na Era dos Direitos Civis e o movimento pela escola livre na década de 1960 e 1970”.

Ivan Illich fez parte desse último movimento, levando adiante a proposta de Dewey de aprender a partir da própria vida e fazer com que as condições de vida possibilitem a todos e todas o aprender por meio do processo de viver. Nessa direção, propôs o que chamou de teia educacional, que, na sua visão, aumentaria “a oportunidade de cada um de transformar todo instante de sua vida num instante de aprendizado, de participação, de cuidado” (Illich, 1985, p. 14). Essa teia educacional se enquadraria no que ele chamou de instituições conviviais: modestas, discretas e precárias na sociedade, radicalmente opostas às instituições manipulativas e modelos para um futuro mais promissor.

Na concepção do autor, as redes ou teias educacionais permitiriam um novo tipo de relacionamento educacional entre os seres humanos e o seu meio ambiente. Ou seja, uma nova estrutura relacional capaz de levar homens e mulheres a definir-se a si próprios(as) pela aprendizagem e pela contribuição à aprendizagem dos outros. Elas levariam em conta três propósitos, considerados por Illich (1985, p. 86) como elementos fundamentais de um bom sistema educacional:

[...] dar a todos que queiram aprender acesso aos recursos disponíveis, em qualquer época de sua vida; capacitar a todos os que queiram partilhar o que sabem a encontrar os que queiram aprender algo deles e, finalmente, dar oportunidade a todos os que queiram tornar público um assunto a que tenham possibilidade de que seu desafio seja conhecido.

Pensando em como fazer com que as pessoas tivessem acesso a todo e qualquer recurso educacional, Illich (1985, p. 88-89) propôs quatro diferentes caminhos que poderiam ajudá-las a definir e alcançar suas próprias metas. O primeiro deles seria o “serviço de consultas a objetos educacionais”. Esses objetos poderiam ser totalmente reservados para esse fim e poderiam estar em bibliotecas, laboratórios, museus e demais espaços ou presentes no dia a dia de fábricas e empresas, mas à disposição das pessoas durante o trabalho ou nas horas vagas.

O segundo seria o “intercâmbio de habilidades”, por meio do qual as pessoas relacionariam suas aptidões, dariam as condições mediante as quais estariam dispostas a servir de modelo para outras que desejavam aprender essas aptidões e o endereço em que poderiam ser encontradas. O terceiro seria o “encontro de colegas” dentro de uma rede de comunicações, que possibilitasse às pessoas descreverem a atividade de aprendizagem em que desejariam se engajar, na esperança de encontrar um parceiro para essa pesquisa. O quarto e último seria o “serviço de consultas a educadores em geral”, por meio de uma lista de educadores e educadoras contendo seus contatos, sua autodescrição e as condições para ter acesso aos seus serviços.

A princípio, a proposta de Illich (1985) de acabar com as instituições formais de educação e, mais do que isso, desescolarizar a sociedade como um todo pode ser compreendida como bastante radical. Isso pode ser uma consequência da própria forma radical como Illich (1985) costumava se expressar, por isso tanto ele quanto suas ideias eram e continuam sendo polêmicos. Entretanto, um olhar mais cuidadoso nos leva a compreender que Illich era contra a escola como instituição dominadora, mas não contra a educação; era contra as instituições escolares formais, mas a favor de instituições conviviais, entre elas a teia educacional. Logo, podemos dizer que ele sustentava mais a superação das limitações da escola capitalista no que diz respeito ao atendimento dos objetivos de humanização e formação de sujeitos críticos e livres do que a sua supressão radical.

Paulo Freire, sua denúncia da educação bancária e seu anúncio da educação libertadora por meio dos círculos de cultura

Paulo Freire não poderia deixar de estar entre os autores de referência deste artigo, ante as reflexões propostas nele. Um dos maiores educadores do Brasil, ficou conhecido mundo afora pela práxis de uma pedagogia crítica e libertadora, que consequentemente supõe a queda dos muros das escolas ou até mesmo prescinde do espaço escolar conservador. Sendo assim, é essencial compreendermos a teoria e a prática socio-político-pedagógica de Freire.

Paulo Freire nasceu em 1921 em Recife, capital do estado de Pernambuco, no Brasil. Ali, levava uma vida simples com seus pais e seus irmãos e desfrutava de um quintal com árvores típicas da região. Foi à sombra de duas mangueiras, usando o chão como quadro-negro e os gravetos como giz que aprendeu a ler e a escrever com seu pai e sua mãe a partir das palavras de sua infância, experiência que marcou sua práxis educativa (FREIRE, 2020).

A crise econômica de 1929 obrigou a família a se mudar para Jaboatão dos Guararapes em 1931 e nessa pequena cidade experimentaram a fome e a pobreza:

Nascidos, assim, numa família de classe média que sofrera o impacto da crise econômica de 1929, éramos ‘meninos conectivos’. Participando do mundo dos que comiam, mesmo que comêssemos pouco, participávamos também do mundo dos que não comiam, mesmo que comêssemos mais do que eles (FREIRE, 2019, p. 50).

Já adolescente, Freire passou a estudar no Colégio Oswaldo Cruz, em Recife, em troca de seus serviços como auxiliar da disciplina de Língua Portuguesa. Neste período, começou a ler muitos livros e a ter contato com pensadores e pensadoras que o ajudaram a refletir cada vez mais profundamente sobre a sua realidade local, a realidade de seu país e do mundo. Pensadores e pensadoras que embasaram suas teorias e práticas mais tarde.

Em seus relatos pessoais, Freire (2019) fala que as dificuldades enfrentadas por ele na infância e na adolescência poderiam ter o levado a assumir uma postura acomodada perante a realidade. Primeiro, por uma carência que poderia ter o conduzido ao fatalismo. Segundo, pela formação cristã que recebeu e que poderia ter o levado a aceitar a situação como sendo um desejo de Deus. Contudo, elas o dispuseram para uma abertura curiosa e esperançosa diante do mundo.

A partir dessa abertura, Freire (1999) desenvolveu a compreensão de que as relações especificamente humanas apresentam aspectos como a pluralidade, a criticidade, a transcendência e a temporalidade. Isso as diferencia das relações puras e simples de contato típicas da esfera dos demais animais. O fato de os humanos serem seres de relações e não apenas de contato faz com que não estejam simplesmente no mundo, mas sim com o mundo, isto é, abertos à realidade.

Segundo o educador, a pluralidade das relações humanas com o mundo está tanto na variedade de desafios que nascem nos mais diversos contextos de vida quanto na multiplicidade de formas de se responder a esses desafios. A visão mágica e acrítica da realidade faz com que eles sejam encarados de forma fatalista: as coisas são assim mesmo e não há nada que possa ser feito para mudá-las. Porém, a visão crítica dessa mesma realidade permite que os desafios sejam percebidos com clareza e faz com que as pessoas se organizem, escolham aquela que julgam a melhor resposta, testem, ajam e realizem o que Freire (2018) nomeou de inédito viável.

Logo, “a captação que faz dos dados objetivos de sua realidade, como dos laços que prendem um dado a outro, ou um fato a outro, é naturalmente crítica, por isso reflexiva e não reflexa, como seria na esfera dos contatos” (Freire, 1999, p. 48). Essa criticidade reflexiva abre caminho para a transcendência presente nas relações especificamente humanas. Esta transcendência está na qualidade espiritual dos homens e das mulheres. Está na transitividade de suas consciências, que permite que se auto-objetivem e sejam capazes de distinguir um “eu” de um “não eu”. Está, ainda, na consciência que têm de sua finitude e dos seres inacabados que são.

Também é na capacidade de perceber e entender a si mesmo(a), ao outro e ao mundo com clareza que está a raiz da descoberta dos seres humanos de sua temporalidade, de sua finitude e de seu inacabamento. “O homem existe - existere - no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se” (Freire, 1999, p. 49). Assim, existir ultrapassa o simples viver por ser mais do que estar no mundo: é estar nele e com ele.

Quando os seres humanos estabelecem relações de acordo com a perspectiva freiriana, fundamentadas sobretudo no diálogo e na amorosidade, realizam sua vocação ontológica de “ser mais”. Isto é, existem no mundo como seres livres e de relações que se descobrem e, ao escolher a si mesmos(as), escolhem a todos e a todas. Assim, à medida que homens e mulheres herdam as experiências passadas de geração em geração, se integram aos seus contextos, respondem aos seus desafios, se objetivam, discernem, transcendem, criam e recriam, se lançam nos domínios da história e da cultura (Freire, 1999).

Entretanto, Paulo Freire nasceu e cresceu em um país marcado por uma colonização violenta e por uma desigualdade histórica. Conviveu com a pobreza e com a falta de humanidade. A partir disso, também compreendeu, desde muito cedo, que a vocação ontológica dos seres humanos para o “ser mais” pode ser brutalmente sufocada por relações de dominação e opressão que conduzem ao que ele chama de “ser menos”, ou seja, à desumanização.

Quando a liberdade de uma pessoa é suprimida, suas potencialidades são minimizadas, suas reflexões e ações são cerceadas e, assim, ela se torna ajustada e acomodada diante da realidade. Isso significa que sua capacidade criadora também é imediatamente suprimida, assim como a sua possibilidade de fazer história e de fazer cultura. Segundo Freire (1999, p. 52), o “único modo pelo qual o homem realizará sua vocação natural de integrar-se, superando a atitude do simples ajustamento ou acomodação, apreendendo temas e tarefas de sua época” é assumindo uma atitude crítica permanente. Essa atitude crítica permanente nasce da conscientização proporcionada somente por uma educação crítica e libertadora.

Seguindo o materialismo histórico-dialético que guiou suas análises da realidade, Paulo Freire teceu uma crítica à educação brasileira de seu tempo e a colocou em oposição à educação crítica e libertadora pensada e praticada por ele e demais educadores e educadoras. Freire (2014) chamou essa educação de bancária, porque na sua visão professores e professoras autoritários(as) depositavam os conteúdos em alunos e alunas passivos(as), sem levar seus saberes em consideração, como quem realizava o ato bancário de depositar dinheiro em uma conta vazia.

Denunciou as relações verticais estabelecidas pela hierarquia e pela gestão burocrática presentes neste modelo de educação. Na sua visão, essas relações eram antidialógicas, desprovidas de amorosidade, que levavam a extensos monólogos de um lado e ao mutismo de outro. Considerava que as palavras proferidas nestes discursos entediantes se tornavam ocas e vazias, transformando-os no que denominou “verbosidade alienada e alienante” (FREIRE, 2014, p. 80).

Chamou a atenção para a transmissão de conteúdos prontos e acabados, distantes da realidade concreta dos alunos e alunas, compreendida por ele como uma das questões mais preocupantes da educação bancária. Na sua concepção, isso matava o interesse, a curiosidade, a criatividade dos e das estudantes, tornando-os(as) cada vez mais passivos(as) e alheios(as) aos seus próprios processos de ensino e aprendizagem. O que cabia a eles e a elas era somente memorizar o que estava sendo narrado e replicar isso nos exercícios e nas provas, atingindo a nota necessária para seguir adiante.

Em oposição, Freire (2014) propôs uma pedagogia crítica e libertadora baseada sobretudo no diálogo e na amorosidade. Para o autor, o diálogo autêntico acontece por meio de uma relação horizontal de A com B e de B com A, nutrida pelo amor ao mundo e às pessoas, pela crença em si e nos outros, pela humildade, pela tolerância, pelo respeito, pela esperança, pela confiança, pela criticidade e, sobretudo, pelo amor. O amor é muito dialético (Freire; Horton, 2011). Ele é a base do diálogo verdadeiro, aquele que se estabelece entre homens e mulheres que acreditam em suas reflexões e ações na busca do “ser mais” e que não é vazio, estéril, burocrático e entediante.

Freire (2014) entendia que os conteúdos a serem apreendidos, as curiosidades a serem investigadas e os saberes a serem construídos coletivamente deveriam partir da própria realidade dos educandos e educandas. Isto é, suas relações no mundo e com o mundo e seus interesses deveriam ser o ponto de partida e de chegada do processo de ensino e aprendizagem. Nesse contexto, o educador e a educadora assumem o papel de condutores do processo, visto que são especialistas em educação, mas entendem que, ao mesmo tempo que ensinam, aprendem. Do mesmo modo, os educandos e educandas compreendem que, ao mesmo tempo que aprendem, ensinam, porque carregam consigo saberes valiosos e são sujeitos ativos que intervêm na realidade.

É importante destacar que Freire propôs uma alternativa à sala de aula: os círculos de cultura. Era neles que a pedagogia que pensava e praticava acontecia. Dessa forma, derrubou os muros das escolas e derrubou, talvez, a própria escola. Contudo, sua práxis ético-política-pedagógica vai muito além. O que ela coloca em xeque, de fato, são os limites de uma educação bancária praticada em escolas conservadoras que estão a serviço do capital. Freire não parecia estar preocupado com o lugar físico onde sua pedagogia seria praticada. Seu interesse era que ela simplesmente fosse praticada no lugar de uma educação bancária que reproduz a sociedade de classes. Por isso, defendeu uma educação crítica e emancipadora na direção da liberdade de todos e todas.

José Pacheco, sua indignação com a escola conservadora e suas pontes para as comunidades de aprendizagem

Por fim, mas não menos importante, as ideias e práticas do educador português José Pacheco também contribuem sobremaneira para as reflexões propostas neste artigo. Pacheco nasceu no dia 10 de maio de 1951 na cidade do Porto, em Portugal. Como um aluno da periferia, suas experiências na escola foram marcadas pelo preconceito, pela exclusão e pela violência. Quando jovem, fez o magistério e se tornou professor da Escola da Ponte, uma instituição pública portuguesa.

Com base em suas experiências de vida, em um vasto ancoradouro teórico2 e movido muito mais por perguntas do que por respostas, Pacheco refletiu e idealizou um projeto de educação assentado em valores como o amor, a autonomia, a solidariedade, a responsabilidade e defendeu uma escola sem séries, sem turmas, sem ciclos, sem provas e exames, sem reprovações, sem campainhas, entre outros elementos conservadores.

No início, poucos educadores e educadoras se uniram a Pacheco para colocá-lo em prática na Escola da Ponte. Contudo, conforme a transformação se efetivava, mais educadores e educadoras se engajavam no projeto de transformação educacional que logo ficou mundialmente conhecido. Pacheco é especialista em leitura e escrita e mestre em Ciências da Educação pela Universidade do Porto. Vive no Brasil desde 2005 e busca incentivar e apoiar a criação e o desenvolvimento de comunidades de aprendizagem no país, em Portugal e no mundo (Duarte, 2016; Dias, 2017; Lobato, 2017).

Na conceção de Pacheco (2003), as escolas conservadoras são instituições inúteis e perversas que foram sendo instaladas em diversas sociedades do mundo e, assim, estenderam seus tentáculos e se fossilizaram. Por meio do desenvolvimento de estratégias para contornar os obstáculos e resistir às crises impostas pela história, estas instituições se legitimaram e se fossilizaram, se beneficiando de roupagens que mudam sua aparência, mas não sua essência.

Tratam-se, portanto, de escolas ultrapassadas que não se interrogam, que não se dão conta ou ignoram o fato de que as perguntas mudaram e continuam a dar respostas prontas e acabadas que já não fazem mais sentido. Escolas conservadoras sustentadas pelo institucionalismo, pela burocracia e pelo imobilismo, que levam a uma aversão completa à mudança. Recusam que tudo se transforma e assume diferentes contornos (Pacheco, 2009b).

Isso leva Pacheco (2018, p. 21) a se questionar sobre as razões que sustentam a reprodução de uma escola do século XVI completamente distante da realidade do século XXI. Logo, uma escola que obtém cada vez menos sucesso a cada ano que passa, consequência da exclusão, do desinteresse, da repetência, da evasão, entre outros fatores. Estudantes do século XXI dão cada vez mais demonstrações de que não querem mais escolas e educadores e educadoras retrógrados.

Constata que a escola conservadora vive uma crise de legitimidade provocada pelas intensas mudanças causadas pelos avanços tecnológicos em nossa maneira de sentir, em nosso modo de viver e, particularmente, em nossa maneira de aprender. Essas transformações têm deixado claro que a escola não é e nunca foi o lugar exclusivo da produção de conhecimento (Pacheco, 2009b).

Apesar de apontar para a falência do modelo de educação “tradicional”, Pacheco (2003) não defende seu total abandono. Metaforicamente, diz que não se deve jogar o bebê fora junto com a água do banho. Compreende que nada pode ser construído no vazio, sem sustentação. Acredita que há coisas boas no ensino “tradicional”, mas que precisam ser repensadas, ressignificadas e praticadas de outras maneiras. Na sua compreensão, a tradição e a inovação precisam dialogar e chegar a um terceiro lugar.

Nessa direção, Pacheco (2018, 2009b) afirma que não é possível melhorar o ensino e a aprendizagem sem que novas construções sociais sejam estabelecidas a fim de que as práticas escolares conservadoras sejam reconfiguradas. Enfatiza que “os projetos humanos contemporâneos carecem de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar e conviver” (Pacheco, 2012, p. 54).

Define que o requisito mínimo para superar a escola conservadora é a autonomia das escolas diante dos mecanismos de poder vertical e de controle do sistema educacional. Uma autonomia que traga liberdade para organizar o trabalho pedagógico de acordo com determinados valores e princípios e conforme as necessidades da comunidade.

Por acreditar que a escola conservadora não é o único modelo de educação, afirma que ela deve ser pensada para além desta instituição, considerando todas as dimensões educativas existentes na sociedade e que os projetos educativos devem se tornar uma construção coletiva: verdadeiras comunidades de aprendizagem.

Influenciado pela concepção de “comunidades de aprendizagem” que aparece, pela primeira vez, na obra de Lauro de Oliveira Lima, um importante pedagogo brasileiro, e que se manifestou no Brasil desde o início do século XX, Pacheco (2014) compreende que ensinar e aprender em comunidade significa praticar essas duas ações para além dos muros da escola.

Esta é uma educação pensada mais a partir da comunidade do que a partir da instituição escolar propriamente dita, porque seu objetivo é desempenhar um papel transformador na sociedade. Sendo assim, as comunidades de aprendizagem não se restringem apenas ao espaço físico das escolas. Ocupam e utilizam os espaços da comunidade de que fazem parte: suas construções, suas praças, suas ruas, entre tantos outros (Pacheco, 2014).

De acordo com Pacheco (2014, p. 94), “[...] aquilo que faz das pessoas uma comunidade são os valores, as necessidades e os sonhos que elas partilham”. Nessa perspectiva, as comunidades de aprendizagem nada mais são do que espaços de convívio compartilhados por crianças, jovens e adultos, em que os saberes populares se relacionam com os saberes eruditos, todos os membros da comunidade partilham seus conhecimentos e a reflexão e a ação levam à transformação da realidade (Pacheco, 2014).

Sendo assim, nas comunidades de aprendizagem a práxis pedagógica não está centrada nos professores e nas professoras ou nos alunos e nas alunas, como normalmente acontece na escola conservadora. Ela está baseada nas relações. E, também, não está centrada nas típicas relações autoritárias e verticalizadas da escola conservadora, e sim nas típicas relações dialógicas, amorosas e horizontais das comunidades de aprendizagem.

As comunidades de aprendizagem pressupõem um vínculo afetivo entre seus integrantes porque são feitas de pessoas que cuidam umas das outras e aprendem umas com as outras. Assim, cabe a todos e todas se envolverem em um esforço de participação, de produção conjunta de conhecimento, como uma “irmandade aprendente”. Isso faz com que desenvolvam um conhecimento profundo de suas realidades e estimula a comunidade a participar de decisões e a agir em busca do melhor modo para se viver (Pacheco, 2014, p. 28).

Elas devem ser, segundo o educador, comunidades sábias e felizes, que privilegiem um modelo autossustentável nos âmbitos social, ambiental, econômico e político; cujos integrantes saibam seus direitos, deveres e possibilidades; assim como a própria comunidade conheça seus pontos fortes e fracos, sendo capaz de promover soluções para seus problemas. Logo, um verdadeiro lugar de reparação dos males da deseducação.

Essa mudança de paradigma leva, entre outras coisas, a um rompimento com o currículo objetivo que dá sentido à escola conservadora. Um currículo pronto e acabado que pretende, na realidade, fazer com que todos os alunos e alunas adquiram os mesmos conhecimentos, interiorizem os mesmos valores e desenvolvam as mesmas competências, ao mesmo tempo, no mesmo ritmo e nas mesmas circunstâncias.

Na contramão desse currículo, Pacheco (2018, p. 18) propõe um “currículo subjetivo a par de um currículo universal (não ‘nacional’) adequado a um currículo global e comunitário”. Nesta concepção, o currículo é entendido como uma construção social, por meio da qual as pessoas envolvidas exercitam sua participação na sociedade. Assim, “enquanto reconstrução pessoal e social, o currículo está permanentemente imerso num ambiente de representações e símbolos, e é constituído pelas dimensões técnica, estética, ética e política” (Pacheco, 2014, p. 95).

Diferente do currículo objetivo, em que os conteúdos estão compartimentalizados em disciplinas, no currículo subjetivo o conhecimento está voltado para os projetos de vida dos e das estudantes3. Isso faz com que um ensino transmissivo dê lugar a um ensino e aprendizagem participativos e provas classificatórias e pontuais abram espaço para autoavaliações ao longo do processo.

Além disso, a partir do momento em que o currículo passa a ser considerado como uma construção social, ele deixa de distanciar os conteúdos da realidade e passa a articular os conhecimentos com o contexto em que a comunidade escolar está inserida. Aprender e ensinar em comunidade significa, conforme Pacheco (2014), superar abordagens de ensino fragmentadas por meio de abordagens educacionais integrativas.

Em suas reflexões e ações, Pacheco deixa claro o sonho de educar seres mais sábios e mais felizes. Demonstra o quanto acredita na possibilidade de o espaço de aprender não se restringir mais apenas à escola, mas se tornar todo o universo; e o tempo de aprender não ser mais apenas os tempos escolares, mas o tempo de uma vida toda.

E afirma que seus sonhos não são utopias no sentido de algo impossível de atingir, mas sim utopias na direção do inédito viável freiriano: algo necessário e realizável. Em suas palavras, “as utopias são pontes lançadas e percorridas sobre o abismo da impossibilidade” (Pacheco, 2009a, p. 20). Por meio dessas pontes, é possível regressar ao ponto de partida, mas também é possível seguir em frente e chegar a outros lugares, outras pontes.

Considerações finais

Partimos, então, da situação mais ampla da educação brasileira e dos impactos sofridos por ela, principalmente em decorrência de dois movimentos particulares: o do fechamento das escolas devido à pandemia de COVID-19; e do ensino domiciliar, que reavivaram a questão: seria possível e desejável desescolarizar a sociedade? Para refletir sobre ela, dentro desse contexto, recorremos particularmente às teorias e práticas de Ivan Illich, Paulo Freire e José Pacheco.

Ivan Illich fez uma crítica radical às instituições classificadas por ele como dominadoras, em especial às escolas, levando em consideração a realidade socio-político-econômica norte-americana da segunda metade do século XX. Entretanto, o que propôs como alternativa às instituições escolares formais foram instituições classificadas por ele como conviviais. Ou seja, em uma compreensão mais cuidadosa, o que ele sugere não é pura e simplesmente o fim das instituições escolares. Ele defende o fim das instituições escolares dominadoras, que seriam substituídas por instituições educativas conviviais.

Na concepção daquilo que chamou, então, de redes de convivialidade, Illich não nos parece ter defendido um ensino domiciliar. Primeiro porque este movimento conservador não estava em voga na época. Segundo porque falava que a educação deveria acontecer por meio do maior acesso possível às coisas e às pessoas que nos cercam, visto que os outros podem nos servir de modelo, podem nos desafiar a interrogar, a cooperar e compreender e podem nos confrontar de maneira crítica. Além disso, destacava a importância dos educadores e educadoras profissionais para o pleno funcionamento das redes de convivialidade, orientando e assistindo todos(as) os(as) envolvidos(as).

Paulo Freire, por sua vez, faz uma crítica contundente à educação que chama de bancária e propõe uma educação crítica e libertadora no seio da realidade socio-político-econômica do Brasil na segunda metade do século XX, trazendo ainda as heranças legadas dos períodos anteriores da história brasileira a este período. Por mais que suas reflexões e ações tenham se voltado à educação de adultos e adultas das classes populares no Brasil e em outros países do mundo, sua práxis socio-política-pedagógica vai muito além. Freire denuncia a opressão, a dominação, a educação bancária que as replicam e anuncia o diálogo e o amor, frutos da educação para a conscientização.

Com base em suas experiências de vida e nas teorias e práticas de pensadores e pensadoras consagrados(as) tanto na área da educação quanto em outras áreas do conhecimento, Pacheco também faz uma crítica incisiva à educação que chama de tradicional no sentido de conservadora. Faz isso sobretudo com base na realidade socio-político-econômica de Portugal na segunda metade do século XX e, mais recentemente, com base na realidade socio-político-brasileira do início do século XXI. Inspirado pelo educador brasileiro Lauro de Oliveira Lima, propõe comunidades de aprendizagem praticantes de uma educação fundada na alteridade, no amor, na autonomia, na honestidade e na responsabilidade.

Assim, por mais que tenham realizado suas reflexões e ações a partir de contextos diferentes e realidades educacionais diferentes, tanto Illich quanto Freire e Pacheco tecem críticas a instituições escolares conservadoras típicas de modelos de educação capitalistas. São verdadeiros indignados e inconformados que lutaram e ainda lutam, no caso de Pacheco, por uma educação não feita para, mas feita com a comunidade, interessada na conscientização crítica que promove ações de mudança na direção da liberdade e da igualdade.

Faz-se necessário, então, concluir este movimento hermenêutico do todo para as partes e das partes para o todo, retornando à situação mais ampla da educação explicitada no início deste artigo. Em meio aos avanços das TICs sobre a educação, a ameaça do ensino domiciliar e demais movimentos que suscitam novamente a pergunta se seria possível e desejável desescolarizar a sociedade, compreendemos que o mais importante é pensar em qual educação está sendo realizada e com quais objetivos.

É possível verificar na história a existência de sociedades sem escolas, mesmo hoje em dia. Estas experiências nos mostram que, independentemente de existirem instituições escolares ou não, a educação é inerente às sociedades humanas. Assim, as redes de convivialidade de Illich; a pedagogia crítica e libertadora de Freire, representada pelos círculos de cultura; e as comunidades de aprendizagem de Pacheco derrubam os muros das escolas tanto no sentido literal de promover uma educação que vai além dos espaços escolares formais, mas também no sentido metafórico de superar uma educação conservadora à serviço do capital. Porém, de nada adianta derrubar as escolas e seus muros se esta educação conservadora continuar a ser feita em outros espaços.

1Para ter uma ideia de quantos trabalhos já relacionaram os autores escolhidos como principais referências neste artigo, foi realizado um breve levantamento nos seguintes bancos de dados: Science Direct, Directory of Open Access Journals (DOAJ), Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), Brazil Scientific Electronic Library Online (Scielo) e Periódicos Capes. As buscas foram realizadas por meio da combinação dos seguintes operadores booleanos: “Paulo Freire” & “José Pacheco”; “Paulo Freire” & “Ivan Illich”; “Ivan Illich” & “José Pacheco”; e “Paulo Freire” & “Ivan Illich” & “José Pacheco”. A partir dos resultados das buscas, primeiro verificamos se os nomes dos autores estavam presentes no título e/ou no resumo dos trabalhos. Quando estavam, verificamos se eles realmente estavam sendo relacionados na pesquisa em questão e como. O Science Direct apresentou 36 pesquisas que relacionam Paulo Freire e Ivan Illich, mas nenhuma pesquisa relacionando os demais autores. O Directory of Open Access Journals (DOAJ) apresentou seis pesquisas que relacionam Paulo Freire e Ivan Illich, mas nenhuma pesquisa relacionando os demais autores. A Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) apresentou uma pesquisa relacionando Paulo Freire e José Pacheco, mas nenhuma pesquisa relacionando os demais autores. O Brazil Scientific Electronic Library Online (Scielo) não apresentou nenhuma pesquisa relacionando esses autores. E o Periódicos Capes apresentou 33 pesquisas relacionando Paulo Freire e Ivan Illich, mas nenhuma pesquisa relacionando os demais autores. Nenhum dos bancos de dados apresentou pesquisas relacionando os três autores.

2Pacheco afirma que suas teorias e práticas se baseiam sobretudo no trio que ele chama de “os 3 Fs”, a saber: Freinet (Célestin), Ferrière (Adolphe) e Freire (Paulo). Entretanto, as referências teóricas citadas em suas obras vão muito além dessas. Abrigam outros educadores e educadoras do movimento da Escola Nova, que surgiu na Europa no final do século XIX e ganhou força no século XX; e demais pensadores e pensadoras desta e de outras áreas do conhecimento, que elaboraram teorias críticas em relação a sociedade. Vale destacar que Pacheco demonstra particular interesse e admiração por pensadores e pensadoras brasileiros(as), como Anísio Teixeira, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Lauro de Oliveira Lima, Amanda Álvaro Alberto, Cecília Meireles, Nise da Silveira, entre outros(as).

3Aqui, julgamos essencial fazer uma distinção bem importante da reconfiguração curricular proposta por Pacheco daquela imposta pelo Novo Ensino Médio (NEM) no Brasil. Apenas à título de contextualização, o NEM é fruto da aprovação da Lei nº 13.415/2017, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e estabeleceu uma mudança na estrutura do Ensino Médio. Entre as principais mudanças exigidas pelo NEM está “uma nova organização curricular, mais flexível, que contemple uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a oferta de diferentes possibilidades de escolhas aos estudantes, os itinerários formativos, com foco nas áreas de conhecimento e na formação técnica e profissional” (Ministério da Educação, 2023). Assim, o aluno deve escolher entre quatro áreas do conhecimento (linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas); ou pela formação técnica e profissional; ou pelo itinerário formativo integrado, que combina mais de uma área e pode incluir a formação profissional. O discurso oficial diz que os objetivos do NEM são “garantir a oferta de educação de qualidade a todos os jovens brasileiros e de aproximar as escolas à realidade dos estudantes de hoje, considerando as novas demandas e complexidades do mundo do trabalho e da vida em sociedade” (Ministério da Educação, 2023). Diante disso, as principais críticas ao NEM são a retirada de disciplinas básicas do currículo, a não garantia da liberdade de escolha dos(as) estudantes e a forte presença dos interesses da iniciativa privada no projeto. O que Pacheco propõe é bem diferente disso. Ele sugere que os(as) estudantes desenvolvam, dia após dia, junto com seus tutores ou tutoras, seus planos de estudos com base em seus interesses e curiosidades. Os tutores e tutoras, especialistas em educação, são responsáveis por ajudar os(as) estudantes a refletir sobre que conteúdos precisarão estudar para cumprirem seus planos de estudo e evoluírem em seus processos de ensino e aprendizagem. Esses planos envolvem projetos, realizados tanto de forma individual quanto coletiva. Dessa forma, os(as) estudantes acabam cumprindo o currículo oficial, mas por meio de currículos subjetivos que não são impostos, e sim construídos com os(as) próprios(as) estudantes. Além disso, o objetivo desses currículos não é a formação para o mercado de trabalho, mas sim uma educação crítica e emancipadora. Atualmente, diferentes interesses tensionam o campo da educação. Parte da sociedade quer que o NEM continue sendo implementado, parte deseja que ele passe por alterações e parte exige que ele seja completamente revogado. Ante a isso, o Ministério da Educação abriu uma Consulta Pública para Avaliação e Reestruturação da Política Nacional de Ensino Médio no dia 24 de abril de 2023, com o objetivo de que todos(as) os(as) interessados(as) possam dar a sua opinião sobre o assunto.

Referências

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Recebido: 03 de Janeiro de 2023; Aceito: 16 de Junho de 2023

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