Introdução
Na formação acadêmica, encontramos docentes que orientam seus alunos não só para adentrar no mercado de trabalho, mas também para a vida, colaborando com esse ser humano em transformação. Todos nós preservamos na memória cenas inesquecíveis da vida escolar, em diferentes momentos. De alguns professores nos lembramos com carinho e respeito, porque souberam estimular em nós, alunos, a capacidade de aprender o conteúdo apresentado e o desejo de querer mais conhecimento.
A universidade exerce papel fundamental na vida dos estudantes: os professores apresentam as ciências aos alunos e os preparam para uma profissão e para a vida. Ser professor pode ser algo que se constituiu como um objeto desejante na mente desse indivíduo, entretanto, ao deparar com a experiência real do cotidiano da sala de aula, os desafios podem ser de inúmeras ordens, visto que a existência de fatores plurais influencia o exercício da profissão. Espera-se do educador, na sociedade contemporânea, estar aberto ao novo, estimular em seus alunos a capacidade de aprender a pensar, despertar a autocrítica, possibilitando, assim, a capacidade do discente em ser um sujeito ativo, expondo suas opiniões diante das situações vivenciadas na universidade e na vida. Assim, o ser professor está inserido no âmbito das questões sociais, culturais e, também, subjetivas.
O desejo de conhecer um pouco mais sobre o fenômeno que ocorre na relação professor-aluno, considerando a constituição da subjetividade docente, que é individual, mas, também, social, é o cerne deste artigo. As formas de ministrar uma aula, os recursos pedagógicos aplicados são elementos imprescindíveis ao trabalho de um docente. Esses aspectos externos, entretanto, são relevantes na transmissão/apropriação do saber, mas não são suficientes; a proposta aqui é compreender além da intelectualidade, além dos processos formativos, algo muito específico: o que estimula o professor para ir ao encontro do aluno. Ou seja, quais os recursos o professor mobiliza para promover a aprendizagem e o desenvolvimento do discente, de modo que ambos sejam sujeitos no processo de ensino e de aprendizagem.
Em levantamento realizado sobre o estado do conhecimento dessa temática, usando os termos de busca: Subjetividade AND Docência AND Ensino superior, no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, foram encontrados na busca realizada em 2022, usando, como filtro, os últimos cinco anos (2017 a 2021), 24 produções, entre teses e dissertações. Abordam aspectos diversos ligados à docência no ensino superior, como o trabalho docente e subjetividade em tempos de expansão do neoliberalismo e de reconfiguração do trabalho, incluindo a questão do adoecimento de professores; trabalhos ligados a programas específicos na formação de professores para a educação básica, como o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) e a sua interferência na constituição da identidade docente; produções que tratam de representações sociais de professores e de alunos acerca da docência. Dentre eles, identificamos, após a leitura dos resumos, que seis relacionam-se mais diretamente com o estudo desenvolvido, que pretendíamos desenvolver, buscando estabelecer interfaces entre subjetividade e docência. Usando os mesmos termos de busca, no Banco Digital de Teses e Dissertações - BDTD/IBICT, no mesmo período, deparamo-nos com 65 produções, das quais foram selecionadas apenas quatro.
Essas produções selecionadas indicam que a questão da subjetividade do professor do ensino superior está presente nas pesquisas, perpassando várias áreas de conhecimento: psicologia, educação, letras, administração, educação em ciências e matemática., destacando a importância da relação professor-aluno, do afeto, das emoções, do cuidado, nos processos de subjetivação de alunos e de professores. Uma das pesquisas, a de Juliana Freitas da Silveira, intitulada “Psicanálise e docência no ensino superior: desejo e discurso”, uma dissertação defendida na Universidade Federal de Santa Maria, em 2019, busca o enlace entre a educação e a psicanálise, o que também se pretendia na pesquisa que gerou este artigo, mais especificamente a questão dos vínculos na constituição da subjetividade do docente, pouco explorada nas pesquisas consultadas.
Por várias questões, mas sobretudo por representar algo maior, o professor - profissional do saber - necessita ter a clareza de que se tornar docente é transformar uma predisposição numa disposição pessoal. Precisamos de espaços e de tempos que permitam um trabalho de autoconhecimento, de autoconstrução, visto que a existência de fatores plurais influencia no exercício da profissão (Nóvoa, 2017).
A formação docente, incluindo processos de formação continuada, a qual possibilita aos professores adquirir ou aperfeiçoar seus conhecimentos, habilidades e disposições para exercer sua profissão, são importantes; porém, faz-se necessário o olhar para as constituições subjetivas desse ser docente.
O modo singular de cada indivíduo se desenvolve pela apreensão de signos e significados; é o processo básico que possibilita a ordem do simbólico e a construção do psiquismo. É no processo de simbolização que se origina a curiosidade epistemofílica, ou seja, que nasce o impulso para querer conhecer. Sistema complexo e dinâmico, cujo sujeito que ensina é o mesmo que aprende, constituído na inter-relação tensa e contraditória entre a subjetividade individual e a subjetividade social. (Pereira da Silva, 1994).
Como em toda construção, a relação construída por aluno e professor é repleta de emoções. O fio condutor das reflexões desse trabalho refere-se à compreensão dos sentidos do ser docente no curso de Psicologia, na construção de um espaço relacional de ensino-aprendizagem, que ultrapasse o saber técnico.
Neste artigo, trazemos parte de uma pesquisa desenvolvida em um programa de mestrado em educação. Na primeira parte, tratamos de alguns pontos do referencial teórico, com base na Teoria da Subjetividade de González Rey e em autores da Psicanálise contemporânea: a importância dos sentidos na relação professor-aluno; o processo simbólico na aprendizagem; os vínculos de amor e de ódio, de conhecimento e reconhecimento. Em seguida, apresentamos os aspectos metodológicos e, na última parte, o núcleo de significação: A constituição da subjetividade nas vinculações afetivas no exercício da docência no curso de Psicologia, que foi construído a partir das falas dos docentes entrevistados.
A relevância dos sentidos para a construção da relação aluno-professor
Os sentidos subjetivos do ser docente desenvolvidos por alguns professores criam um espaço relacional no ensino-aprendizagem que considera a unidade entre o afetivo e a identidade. Nesta pesquisa, adotamos o conceito de “sentido subjetivo” de González Rey:
A nossa definição da categoria sentido subjetivo orienta-se a apresentar o sentido como momento constituinte e constituído da subjetividade, como aspecto definidor dessa, enquanto é capaz de integrar formas diferentes de registro (social, biológico, ecológico, semiótico, etc.) numa organização subjetiva que se define pela articulação complexa de emoções, processos simbólicos e significados, que toma formas variáveis e que é suscetível de aparecer em cada momento com uma determinada forma de organização dominante (González Rey, 2000, apud González Rey, 2007, p. 171, grifo nosso).
Tendo como premissa que o ser humano é um ser relacional, a teoria da subjetividade e a psicanálise se aproximam na constituição do sujeito. Para a psicanálise, os fatores emocionais interferem na constituição psíquica e no desenvolvimento do pensamento, nos quais têm papel fundamental o processo de produção simbólica, como explicam Martínez e Álvarez (2014, p. 16), ao considerar a subjetividade:
[...] como resultado de um processo complexo de constituição psíquica, entrelaçado desde o início com o trabalho de simbolização. Esse trabalho de simbolização abrange formas de pensamento que não são lógicas nem racionais, mas que tem uma função crucial na produtividade de conhecimentos tanto individuais quanto sociais. Consideramos que a constituição psíquica e o processo de produção simbólica se constroem em um entrelaçamento que constitui o suporte do desejo e das modalidades de elaboração de sentido que operam como recursos para qualquer aprendizagem.
Segundo Pereira da Silva (1994, p. 58), “em toda a escolha profissional há a marca das primeiras relações com os pais. Por identificação1 com esses ou pela busca oposta, de alguma forma, a história das relações mais primitivas marca a escolha profissional”. Os processos de identificação têm papel central na construção do psiquismo; é o meio pelo qual vai sendo estruturado o mundo interno, que vai se constituindo junto com a realidade externa.
Pelo processo da identificação, o docente é colocado pelo aluno no conhecido lugar de modelo que sustenta a relação pedagógica. Esse projeta no professor aspectos de seus ideais, buscando o saber e o conhecimento para desenvolver sua curiosidade investigativa. Os sentimentos como confiança, respeito e pertencimento são fundamentais para a construção da relação docente-discente, em que a criação de vínculos se faz essencial ao processo relacional. (Pereira da Silva, 1994).
Conforme Gudsdorf (1987, p. 30), “os melhores métodos não salvam o professor que não saiba fazer reconhecer sua autoridade; enquanto os métodos mais arcaicos e grosseiros fazem maravilhas se aplicados por um professor aceito e estimado por seus alunos”. Ou seja, a relação docente-discente e, consequentemente a aprendizagem, vão além dos métodos e estratégias de ensino.
A universidade, como campo social e como contexto sociorrelacional, evidencia-se como espaço de novas subjetividades, como espaço de oportunidades criadoras e como espaço de crescimento potencial. Tem como papel fundamental a função de ensinar, de produzir conhecimentos, de realizar pesquisa, de promover a extensão das técnicas e das referências para a sociedade, assim como formar profissionais e transmitir o acervo acumulado de conhecimentos para a manutenção e expansão da cultura. É um meio social constituído por relações sociais, o qual instiga o debate entre o ensino e as ciências específicas da formação, espaço em que se constituem diálogos de forma a contribuir com a formação dos futuros profissionais, baseada em ciências multidisciplinares. Ser professor do ensino superior é conviver com os desafios e os impasses vivenciados no intercâmbio entre docentes e alunos.
O docente é muito mais que um técnico que aplica o conteúdo programado; é também um agente social cuja atividade é determinada por forças ou mecanismos sociológicos; é um sujeito constituído do seu próprio mundo emocional, sua consciência e sua capacidade de percepção psíquica.
Porém, uma das múltiplas funções do docente que se destaca, fazendo a diferença no ensino aos alunos, é permitir, é ficar atento à observação do que ocorre consigo mesmo e com seu aluno e a consequente percepção do novo que emerge frente à sua inter-relação com o conteúdo ministrado e a forma como é apropriado pelos discentes em sala de aula. Essa ampliação das percepções favorece a aproximação do sujeito com o outro, permitindo o estabelecimento de novos vínculos, símbolos e relações, o que é também consequência da ampliação da função docente, considerando o maior domínio dos recursos, das próprias experiências e habilidades do profissional; possibilitando um espaço propício para o aluno desenvolver a capacidade de pensar e de assimilar o conteúdo de forma criativa.
Pereira da Silva (1994) ressalta que a docência se define como atividade extremamente relacional, na qual estão presentes as emoções, saberes de diferentes ordens que envolvem o campo individual e, ao mesmo tempo, o coletivo. Pode-se considerar que o entrelace entre o saber e o afeto tem funções estruturantes na constituição da subjetividade, conduzindo a educação como algo promissor de transformação social. E a subjetividade social como forma integrativa, promovendo sentidos subjetivos e configurações de diferentes espaços sociais.
Na Teoria da Subjetividade, González Rey (2017, p. 63), embasado em teorias histórico-culturais, compreende o conceito de sentido como, “[...] sentidos subjetivos são unidades simbólico-emocionais, nas quais o simbólico se torna emocional desde a sua própria gênese, assim como as emoções vêm a ser simbólicas, em um processo que define uma nova qualidade dessa integração”. Nesta definição do autor, evidencia-se uma relação dialética entre o emocional e o simbólico. Já, para a Psicanálise, o sentido e o significado unem-se por meio das representações inerentes às funções sintáticas. O termo “sentido” é tomado como a direção conferida às representações do desejo. Nessa abordagem, o desejo é, antes de mais nada, o desejo inconsciente. Em outras palavras, é no sonho que reside a definição freudiana do desejo: o sonho é a realização de um desejo recalcado, e a fantasia é a realização alucinatória do desejo em si. “[...] se o sonho é, de fato, um ato psíquico carregado de sentido, é preciso, para demonstrar isso, ir além do seu conteúdo manifesto, de modo a atingir seu conteúdo latente”. (Roudinesco; Plon, 1998, p. 395).
Freud (1891) evidencia que a palavra é uma representação complexa, composta das imagens combinadas pela agregação de estímulos captados pela percepção, ou seja, a palavra corresponde a um intricado processo de associação que os elementos presentes de origem visual, acústica e sinestésica estabelecem entre si, suscitando vários sentidos e significados. Segundo Zimerman (2012), a importância conferida ao termo palavra se deve à pluralidade de significados que esse vocábulo permite, empregados conforme as respectivas circunstâncias.
A vastidão dos campos que compreende a forma como o sujeito atribui sentido e significado às diversas percepções no mundo interno e externo é um labor contínuo. Entretanto, é coerente e, muitas vezes, necessário buscar o entendimento da forma com que o sentido se articula às significações que emergem dos discursos dentro da sala de aula, da comunicação que permeia o social. Abranger o sentido nas relações subjetivas e nos vínculos constitutivos na dupla aluno-professor poderá ser um caminho promissor de associação ao desenvolvimento pessoal e profissional, ao exercício do carácter de compreender desejos do saber e da transmissão dos saberes.
Em relação ao espaço educacional, a subjetividade social nas instituições não está dada, assim como nenhuma forma de subjetivação social, mas, sim, pelas configurações sociais e individuais que a integram e pela maneira pela qual o discurso, a comunicação, os valores e outras produções sociais emergem nessas configurações. A educação, em seu sentido amplo, pode contribuir como um processo de transformação social.
O valor da Teoria da Subjetividade reside na sua capacidade de gerar inteligibilidade sobre a complexidade do funcionamento humano, nas condições da cultura. Na relação aluno-professor, a experiência presente é ponto de encontro, colisão e contradição dos mundos vividos pelos protagonistas, ocorrendo as configurações subjetivas singulares em que essa experiência presente é vivenciada.
O arcabouço teórico da Teoria da Subjetividade são conceitos vivos, em movimento, que se desenvolvem e se desdobram de formas diferentes no decorrer das pesquisas desenvolvidas. Os conceitos não representam significados a priori, mas condições de pensar que nos facilitam novas construções em face de novos desafios, proporcionando novas produções teóricas.
Os vínculos e a docência
A família estrutura-se por meio de intercâmbios e retroalimentações, permeadas por experiências emocionais vivenciadas. Assim, vão sendo construídos os valores e as regras próprias, dentro dos quais os seus membros funcionam, e são esses elementos que norteiam a conduta de cada sujeito inserido nessa família, ancorados pela classe social e cultural.
Portanto, a transmissão da cultura familiar, de uma geração para outra, com todos os elementos inseridos no contexto familiar, identificados como padrões, costumes, hábitos, crenças, mitos, segredos, valores e problemas que determinam o sistema funcional pessoal e familiar pode ser conceituada como uma abordagem intergeracional. Pode-se dizer que os padrões vinculares em determinada geração proporcionam modelos implícitos para o funcionamento pessoal e familiar nas gerações futuras. De geração a geração, cada família decide o que vai ser, ou não, revelado, o que ficará indizível na transmissão familiar.
Segundo Zimerman (2010), os padrões vinculares construídos podem ser de natureza intersubjetiva - entre duas ou mais pessoas; intrassubjetiva - as diferentes partes de uma mesma pessoa; ou transubjetiva - o vínculo atravessa fronteiras e adquire uma dimensão ampla. É importante registrar que a qualidade dos vínculos em todas as situações de relacionamentos é que determinará a qualidade de vida de cada sujeito.
Para a compreensão do psiquismo, faz-se necessário considerar a historicidade do sujeito e a história de suas relações como fator primordial do seu desenvolvimento.
Segundo Pereira da Silva (2004, p. 157),
[...] a transmissão transgeracional refere-se a um material psíquico inconsciente, que atravessa diversas gerações sem ter podido ser transformado e simbolizado, promovendo lacunas e vazios na transmissão e impedindo uma integração psíquica. A transmissão intergeracional, por sua vez, engloba tudo o que é transmitido de uma geração para a outra, acompanhada de algumas modificações ou transformações.
O sujeito, inserido na família, vive uma dupla marca: o que já foi visto, vivenciado e o que ele constrói a partir da rede social atual na qual está inserido. Os registros impressos pela cultura do tempo presente, tendo em vista o legado familiar, é a subjetividade, nesta perspectiva.
Para a psicanálise, o processo de subjetivação fica indiscutivelmente ligado ao universo da intersubjetividade e da transubjetividade, com suas dimensões complexas e contraditórias.
Na vida psíquica do indivíduo considerado isoladamente, o outro intervém regularmente como modelo, objeto, suporte e adversário; por esse fato, a psicologia individual é desde o início e simultaneamente uma psicologia social num sentido ampliado, mas perfeitamente justificado (Freud, 2019, p. 91).
O texto acima não deixa dúvidas sobre a incidência da cultura e do outro na subjetividade e na construção dos vínculos. A cultura impõe, entre as exigências do social, o fortalecimento do intelecto e a repressão da agressividade, com tudo que acarreta de ganho e perdas.
Mezan (2019, p. 473) ressalta: “[...] Freud nos lembra que existe uma dialética entre o lado obscuro do ser humano - paixões, violência, sexualidade, agressividade, ódio pelo seu semelhante - e aquilo que possibilita não sermos determinados apenas por essas características. E as implicações dessas emoções, sentimentos conscientes e inconscientes “[...] não se limitam à vida pessoal: como o alvo das pulsões é invariavelmente o outro (ou os outros), a vida em sociedade também depende da forma como cada um é capaz de controlá-las”.
Por sermos sujeitos sociais, o contexto histórico delimita o modo de pensar e de ser de cada indivíduo e, também, de como foi constituída a rede vincular, com emoções e sentimentos conscientes e inconscientes. Cada expressão, cada fala individual é polifônica, ou seja, apresenta múltiplos sons, vozes que nela coabitam. Vozes determinadas pela classe social, pela cultura, por um momento histórico e pelo grupo familiar. Pertencer a um determinado contexto social, político e econômico propicia as escolhas de vida e a inclusão de diferentes redes vinculares. É na convivência com os grupos, primeiro, o grupo familiar; depois, em um ritmo progressivo, a criança (e ao longo do seu crescimento cronológico) convive com grupos escolares, ocupando certos lugares, desempenhando funções. Ela é sempre influenciada pelas expectativas provindas dos pais e educadores. É assim que a construção dos vínculos se forma.
As configurações vinculares são configurações típicas de inter-relacionamentos. Bion (2004), com base na teoria das pulsões de Freud, evidenciou, em seus estudos, três importantes vínculos: o vínculo de amor, o vínculo de ódio e o vínculo de conhecimento. O quarto vínculo, o de reconhecimento, foi proposto por Zimerman (2010), ressaltando que todos eles são provindos de todos os participantes no relacionamento; entrecruzam-se e se complementam de forma sadia ou patológica, com uma alta possibilidade de diferentes combinações. A importância da compreensão dos vínculos (sendo a base dos relacionamentos humanos) tem como intuito compreender as relações aluno-professor, pois essas são permeadas de várias emoções e sentimentos.
Há uma variedade de componentes emocionais vivenciados pelos grupos e pelas duplas dentro de uma instituição educativa. As configurações vinculares são dinâmicas e podem sofrer profundas e sucessivas transformações, perpassando múltiplas formas e possibilidades, podendo ser sadias ou patológicas.
O olhar do professor que autoriza, acredita e confia no seu aluno cala fundo nesse, pois há uma série de componentes emocionais do aluno que são depositados no professor. Tomar conhecimento de possíveis ligações do mundo emocional com a aprendizagem pode ser um potencial inspirador em uma educação que se fundamenta na ideia do educando como sujeito desejante e criativo. A relevância de um reconhecimento autêntico e afetivo na dupla aluno-professor pode promover uma transformação na autoestima, no sentimento de identidade e no desenvolvimento da personalidade. Configura também uma prática pedagógica em que se pensa, nesse contexto, o planejamento, as estratégias de ensino e a avaliação da aprendizagem.
O aluno, no seu desenvolvimento, na formação de sua personalidade, estabelece um sentimento de admiração para com o professor, pois esse se torna inconscientemente, naquele momento, um modelo de identificação. E, na dinâmica da transferência positiva, pode emergir uma relação construtiva, feita de ternura e amor, que possibilita a evolução do ato educativo, proporcionando a emersão da pulsão do saber na sua forma mais livre, produtiva e criativa. Por sua vez, na transferência negativa, há uma relação com sentimentos hostis e agressivos, dificultando o processo da construção de uma personalidade mais integrada, podendo repercutir no ensino-aprendizagem, devido à capacidade destrutiva do vínculo.
As experiências emocionais só podem ser acessíveis se o professor tiver acesso e tolerância às próprias vivências emocionais. Podemos pensar em um professor que procure ministrar o conteúdo da disciplina de forma a não compreender a dificuldade do aluno e, com palavras e atitudes, acredita que está contribuindo com o processo dele de forma assertiva. Mas, ao desconsiderar o desenvolvimento e a existência de outra forma de funcionamento da mente, pode levar o discente ao desespero ou até mesmo ao abandono da escola.
O conflito, muitas vezes desperta o ódio, pois surge a diferença em algum momento, até mesmo, uma luta de poder pelo prestígio, interesses pessoais e valores ideológicos. Na realidade, o conflito evidencia a diferença. O professor necessita ter a predominância da capacidade amorosa, do vínculo de amor para poder lidar com o ódio, para transformar as emoções em um pensamento que possa ser criativo e possibilitar ao outro o entendimento do conteúdo. Com esse processo, pode haver uma internalização do conhecimento e o aluno iniciar a capacidade do pensar, com possibilidades de gerar uma nova ideia, desenvolvendo o pensar criativo. A criatividade é lidar com o conflito de amor e de ódio para gerar o conhecimento. De modo geral, quando o vínculo do amor nesse processo prevalece, produz-se o conhecimento, que gera o reconhecimento.
As profundas e complexas relações existentes nas instituições perfazem as histórias de vida e são marcadas por várias experiências que constituem as subjetividades individuais e sociais. Trata-se do caráter participativo e ativo do indivíduo que aprende e, ao mesmo tempo ensina, enfatizando a sala de aula como espaço privilegiado para o desenvolvimento de novas configurações subjetivas que estão associadas não só às atividades desenvolvidas nesse espaço social, mas ao desenvolvimento integral da pessoa.
Conviver com o outro dentro de uma instituição, sendo esse outro o seu par, requer, além do arcabouço teórico e da demanda das instituições, a condição de estar disponível para os vínculos existentes, para o inesperado, o incompreensível, o paradoxal.
Conforme González Rey (2017), nos termos da Teoria da Subjetividade, a experiência presente é um ponto de encontro, colisão e contradição dos mundos vividos pelos seus protagonistas, que aparecem nas configurações subjetivas singulares em que essa experiência presente é vivida, sendo que, toda experiência presente em uma instituição é vivida como produção subjetiva pelas configurações subjetivas que emergem no curso das histórias de seus componentes.
Metodologia
A pesquisa realizada tem uma abordagem qualitativa na perspectiva de González Rey e Martínez (2017), que se baseia na dimensão teórico-metodológica do Materialismo Histórico-Dialético. Esse tem na sua gênese um modelo capaz de gerar núcleos de sentido a partir da noção de contradição, que não contrapõem indivíduo-sociedade, mas prevê suas mediações constitucionais.
Segundo González Rey e Martínez (2017), os princípios nos quais a Epistemologia Qualitativa se apoia são: resgate do sujeito como categoria epistemológica no processo de produção do conhecimento; ênfase no caráter construtivo-interpretativo e compreensão da pesquisa como processo de comunicação dialógica. Na pesquisa qualitativa, a ênfase é na: “[...] reflexão aberta e sem âncoras apriorísticas em relação às exigências e às necessidades de produzir conhecimento” (p. 5).
Como procedimento de construção dos dados, usou-se a entrevista, que contém a característica de envolver uma relação pessoal entre as duas partes - o entrevistador e o entrevistado, o que possibilita uma conversa ativa, que abrange reflexões e emoções sobre os temas surgidos, mesmo sendo uma entrevista semiestruturada. Nesse sistema conversacional, evidencia-se a qualidade da informação obtida, fator relevante para a pesquisa, na perspectiva de uma escuta analítica.
A escuta analítica contempla o processo temático que aponta na direção do diálogo entre a prática do exercício profissional e a reflexão que a sustenta e interroga. Esse instrumento influiu no clima e na experiência das entrevistas, embora a proposta não tivesse caráter terapêutico. Com base nesta proposta, as perguntas abordavam as seguintes dimensões: como o professor se vê, seus saberes e sua formação; como ele vê seus pares no exercício da profissão; como ele vê a instituição onde trabalha e como ele imagina ser visto.
Foram selecionados seis professores do curso de psicologia, de diferentes instituições de ensino da rede particular e da federal, situadas na região do Triângulo Mineiro, do estado de Minas Gerais, e no Noroeste do estado de São Paulo. Docentes com mais de dez anos de atividades em sala de aula e que foram homenageados pelos ex-alunos e indicados por colegas, devido à trajetória de trabalho realizada. Essa escolha partiu da hipótese de que esses professores marcaram os seus alunos e, portanto, tem algo a nos dizer, pois estamos interessados nos vínculos criados e naquilo que está além dos saberes técnicos, embora saibamos que essas escolhas podem incluir critérios que extrapolam a atuação do docente e que não podemos detectar. Considerando os critérios de inclusão estabelecidos, a natureza da pesquisa e o tempo disponível para a sua realização, estabelecemos, inicialmente, que um número entre 6 e 10 entrevistas seria suficiente. Foi possível contactar e ter o consentimento e a disponibilidade de seis.
As entrevistas tiveram a duração de, aproximadamente, 60 a 70 minutos e poderiam ser presencial ou on-line, deixando o professor fazer a escolha. Devido à pandemia, cinco participantes optaram pelo procedimento via on-line e um decidiu pela entrevista de forma presencial. Todas foram gravadas e depois transcritas.
Quanto aos procedimentos éticos de pesquisa com seres humanos, o projeto foi apresentado ao Comitê de Ética. Os participantes foram devidamente esclarecidos e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo garantida a eles a sua não identificação. Assim, foram nomeados pela letra E, seguida de um número para distingui-los.
A análise de dados construída foi baseada no procedimento teórico-metodológico denominado Núcleos de Significação (Aguiar; Ozella, 2006, 2013), visando contribuir no processo de abstração dos dados de modo a apreender a materialidade histórica e dialética dos sentidos e significações que os docentes atribuíram no decorrer da entrevista realizada. Os autores afirmam que somente: “[...] por meio de um trabalho de análise e interpretação, pode-se caminhar para as zonas mais instáveis, fluidas e profundas, ou seja, para as zonas de sentido”. (Aguiar; Ozella, 2013, p. 304).
A constituição dos Núcleos de Significação se faz por um movimento ascendente que inclui: leitura flutuante do material transcrito, leitura com o objetivo de categorizar, identificação de pré-indicadores (trechos das falas), produção dos indicadores e, finalmente, a identificação dos Núcleos, pelo agrupamento dos indicadores. Inclui, ainda, um movimento descendente que consiste em partir dos Núcleos e voltar ao material coletado.
Foram construídos 14 descritores, que foram agrupados em quatro Núcleos de Significação.
Quadro 1 Indicadores e a construção dos núcleos de significação
Nº | INDICADORES | NÚCLEOS DE SIGNIFICAÇÃO |
---|---|---|
1 | O desejo de ensinar tem origem na relação com os professores ao longo da vida. | O despertar para a docência tem raízes diversas, mas o desejo de ensinar, como experiência humana, está construído por diversos elementos de sentido. |
2 | A identificação (modelo) com professores na própria formação normativa. | |
3 | O incentivo ou não dos familiares quanto à carreira. | |
4 | A influência de alguém que marca o percurso. | |
5 | Saberes docentes na construção da subjetividade pessoal e institucional. | Os saberes docentes: conhecimentos para uma possível construção da subjetividade do docente. |
6 | O “novo” saber contextual - gerador de novas configurações subjetivas. | |
7 | Reflexão da função docente: valores e consciência quanto à responsabilidade na formação do ser. | |
8 | Conhecimento como transformação de vida. | |
9 | A importância do diálogo e da linguagem | A constituição da subjetividade nas vinculações afetivas - ‘educação é uma história de amor e ódio’ movida a desejo |
10 | Construção de vínculos. | |
11 | Construção da subjetividade pessoal e social - a singularidade surge da internalização do social | |
12 | Instituição: desafios pelo olhar do docente. | Subjetividade social - o olhar do participante para as instituições de ensino |
13 | Instituição: autonomia na constituição da subjetividade social e individual. | |
14 | O Ser professor. |
Fonte: Elaborada pelos autores (2024).
Neste artigo, será apresentado um deles, “A constituição da subjetividade nas vinculações afetivas no exercício da docência no curso de Psicologia”, devido aos limites de espaço.
A constituição da subjetividade nas vinculações afetivas no exercício da docência no curso de Psicologia
Este Núcleo de Significação é fruto de três descritores, definidos a partir dos pré-indicadores, identificados nas falas dos participantes. São descritores deste núcleo: a importância do diálogo e da linguagem; construção de vínculos: ‘educação é uma história de amor e ódio’ movida a desejo; construção da Subjetividade pessoal e social - a singularidade surge da internalização do social.
Em relação ao descritor “A importância do diálogo e da linguagem”, seguem alguns trechos das falas dos entrevistados:
[...] Mesmo em grandes conflitos, o diálogo sempre permeou, […] outra coisa é essa questão do acolhimento mesmo; eu gosto muito de gente. Então todos os alunos, para mim, eram pessoas extremamente importantes. (E1)
[...] as afinidades, os interesses em comum, acho que... os nossos encontros que, de alguma maneira os afetaram, levaram-nos a pensar em algumas coisas., [...] aprender com prazer, aprender vivendo, e a gente contribui para esse mesmo prazer de aprender com os alunos. (E2)
[...]. Quando você está ensinando ou ministrando aula, trabalhando um tema, é ... essa linguagem é ... vamos dizer assim, não verbal ... ela lhe dá muitas dicas, né, é ... de como que aquilo que você está dizendo está sendo é ... assimilado, interpretado. Essa ... a pausa, ela faz com que eu tenha um feedback e, não, não é só um feedback. Para ele me dar feedback, ele precisa fazer o fechamento do seu raciocínio, do que ele viu até agora, né, do que ele percebeu e, para isso, induz ele a prestar atenção. Então eu acho que esse olhar empático, uma linguagem não verbal, uma escuta é parcial. (E4)
É sabido que a comunicação constrói um espaço privilegiado em que o indivíduo se inspira em suas diferentes formas de expressão simbólica. A linguagem é uma produção humana, podendo ser verbal ou não verbal, pois carrega toda a carga emocional da trama viva da relação com o outro.
É por meio da linguagem que o outro se envolve em suas reflexões e emoções, constituindo um espaço para o encontro. Essa linguagem não é necessariamente verbal, como afirmam E1 e E4, porém, a linguagem foge às intenções da fala ou da escrita, surgindo em organizações não conscientes, de acordo com González Rey (2017, p. 110).
A linguagem é trabalhada pela sua qualidade, forma de organização do relato, experiências associadas com os que aparecem como protagonistas, cronologia de aparição dos eventos etc., os quais são atributos que identificam o sujeito ou agente da fala e que estão além da intenção da fala ou da escrita, mas que aparecem na organização não consciente dessas na qualidade do processo de construção em que essas expressões faladas, escritas ou simplesmente sentidas se manifestam.
Nesse sentido, Gudsdorf (1987, p. 30) ressalta que: “[...] o discurso educativo do professor situa-se no contexto global de suas relações com a classe, as quais influem tanto na palavra pronunciada como na acolhida pelo aluno”.
Esse movimento não é linear, ela não é sem conflitos, para todos os envolvidos:
[...], mas eu sempre ouvi aquele aluno que era mais complicado, né, porque tem de ter acessibilidade na comunicação, tem de ter acessibilidade na docência ... porque, senão, você não aprende ... você tem de entender o que eu estou falando. (E3)
No recorte: “[...]porque tem de ter acessibilidade na comunicação” (E3), percebemos a linguagem como elemento mediador da construção de sentidos, de vínculos. Em outro recorte: “[...]essa ... a pausa, ela faz ...” (E4) registra a importância da linguagem não verbal e como o professor expressa seu comportamento peculiar dentro da sala de aula.
O diálogo configura-se subjetivamente como um novo espaço relacional, em que a palavra, a emoção, o silêncio e o gesto têm significados, promovem sentidos. É importante ressaltar que a linguagem emocional, vivenciada em alguns momentos intensos, pode sofrer uma transformação (emoção no seu estado bruto para o refinado), para que possa ser comunicada aos demais. Aqui referendamos a ampliação da competência da escuta analítica interpretativa para os sofrimentos, para as dificuldades em compreender o conteúdo e a disponibilidade para estar com o outro.
O diálogo baseado na linguagem é um processo ativo e define que duas ou mais partes tenham interesse no assunto para a conversa fluir, com possibilidades de construção significativas para todos. Na fala, as emoções, os sentimentos ocorrem de forma espontânea, e os sujeitos inseridos no diálogo exercem o respeito, a paciência e o interesse. Caso não aconteçam esses elementos, a conversa não flui, não se desenvolve um sistema conversacional para uma qualidade relacional. Assim, podemos pensar que as dificuldades para a conversação se devem a muitos elementos distintos, entre eles, o medo da pessoa em entrar em zonas dolorosas ou mesmo de ser confrontada em seus valores mais caros. Ou também à própria interpretação da linguagem devido à compreensão do que foi dito.
No Núcleo de Significação em análise, o outro descritor que o gerou é o que foi denominado de “Construção de vínculos: ‘educação é uma história de amor e ódio’ movida a desejo”, construído a partir de falas dos participantes, cujos excertos estão a seguir:
[...] sem vínculo você não ensina nada; uma professora completamente de relações, muito próxima dos alunos, acreditando nesse vínculo. [...] Então, eu vejo assim que ter ... a clareza da minha história, das escolhas que eu fiz, isso me dá uma tranquilidade para investigar a história do meu aluno, entender com ele a história dele, falar para ele: olha, não desiste não, porque dá certo, que os caminhos são difíceis mesmo, mas dá certo ... porque educação é uma história de amor e ódio. Nós não temos como fugir disso. O aluno ama a gente, mas tem muitos momentos que ele odeia a gente, e a gente precisa suportar isso, né! Então, é uma relação, ali, de aprendizagem movida a desejo, [...] não aprender só comigo, mas aprender com a história do outro. [...] eu também suporto o aluno me odiar ... (E6).
[...] os alunos terminam a colação, eles convidam você para entrar numa sala, você e mais alguns professores, porque eles querem agradecer... [...] obrigada por ter acreditado. Eu acredito que eu sou inspiração, bem como é ... também sei que não são ... não é para todos, tá? Então, eu já tive algumas é ... situações que alguns alunos me rejeitam… ele não concordava com a minha maneira (E4)
A presença do desejo e dos vínculos permeia o fazer docente e eles são contraditórios. Não existem como coisas antagônicas, mas como unidade dos contrários, que fazem parte do estar juntos na atividade de ensino e aprendizagem. A importância da compreensão dos vínculos (sendo a base dos relacionamentos humanos) tem como intuito compreender as relações aluno-professor, pois essas são permeadas de várias emoções e sentimentos, de amor e ódio, de coisa que pode fazer bem, mas que pode fazer mal.
[...] O conhecimento, então, como falei antes, ele se dá numa relação afetiva. É uma coisa tão dialética e tão profunda, é ... que é isso mesmo que a gente discute, né, a necessidade é ... de que haja condições suficientemente boas de vida, de relação, é ... dentro de uma sala de aula, para que haja essa construção do conhecimento. Você pode estar numa relação em que você pode reconhecer a alteridade de cada um, as dificuldades, saber que sim, são diferentes, há muitas dificuldades, outros têm muitas potencialidades, e você ser um instrumento que ajuda isso a ser ... trabalhado, ressignificado. Os encontros na vida da gente, com quem que a gente se encontra, né, fazem toda diferença, tanto para o bem quanto para o mal (risos). Bons encontros são... é ... riquezas de vida, são riquezas de vida. Sempre acreditei muito neles, sempre incentivei muito. Então, essa é uma coisa que também... que eles falam o quanto que eu fui importante para eles. E a mediação de conflito, né, de lidar com os conflitos de uma forma serena por compreender que conflito faz parte da relação humana, não tem como não existir. [...] é a gente pode entender que o desafio não é para você, pessoa, é um desafio simbólico, da autoridade, de tudo que eles têm de engolir…, mas desse mestre que o acolhe e traz para si ... eu aprendo e eu ensino na relação, ora isso, ora aquilo. (E1)
As relações humanas perpassam pela compreensão da emocionalidade, que está envolvida nas diversas formas de convivência. Os processos humanos de ensinar-aprender são complexos, quando analisamos o entrelace de sentimentos, dos vínculos possíveis para a apreensão da realidade.
Os vários vínculos construídos, observados e descritos constituem um movimento dinâmico, parcialmente imaterializado, como movimento, e materializado em seu efeito final. “[...] vínculos denotam ... de fatos observáveis, de expressões fenomênicas de emoções básicas ou equivalentes de instintos: ódio, amor e processos de conhecer”. (Sandler, 2021, p. 1233).
A relação que se estabelece na dupla aluno-professor é carregada de emoções e expressões que provocam e registram formas diferentes de subjetividade, “[...] o emprego da palavra é uma expressão simbólica, que além de mostrar um ou vários sistemas discursivos, significa também a história única de quem fala, o que diferencia as emoções associadas do emprego das palavras, dando lugar ao sentido” (González Rey, 2003, p. 213). Isso remete a pensar que não basta ao professor ter o domínio do conhecimento específico da disciplina a ser ministrada, mas, sim, o domínio de diversos saberes inerentes à profissão, e perceber que a subjetividade individual se entrelaça à subjetividade social em um espaço institucional.
[...]...eu me apaixonei também pelo trabalho porque ele tem uma ... uma dimensão clínica e uma dimensão educacional. ...as afinidades, os interesses em comum, acho que... os nossos encontros que, de alguma maneira os afetaram, levaram-nos a pensar em algumas coisas. (E2)
[...] eu era uma pesquisadora nata, então, para mim, fazer aquilo ali era muito fácil, muito simples. Ensinava com prazer a fazer aquilo… Por mais dura que eu fosse, tinha uma ternura, né, ... eu acho, né, ..., a minha percepção, eu acho, né, ..., que eu sempre fui acolhedora ... do meu jeito, né!... (E3)
[...] Então assim ... é acolhê-los na agonia deles e, ao mesmo tempo, explicitar que eu também não sou um poço de ... certeza, deixar-se operar pelo desejo que ali se coloca, porque é uma transmissão e não é uma ensina-ação; não é uma coisa de ensinar, mas é uma coisa de tornar o outro tocado pelo desejo de que ali há alguma coisa, que essa é uma pretensão ousada, mas isso está na base do ato de ensinar. (E5)
A subjetividade individual é constituída pelas fantasias, angústias e defesas (intrapsíquico) das relações (interpsíquico) e das questões sociais e culturais (transgeracionais). Esse conjunto de elementos possibilita desenvolver uma identidade que promova a qualidade do vínculo, relembrando que: vínculos são elos emocionais e relacionais - podendo ser predominantemente mais agressivos ou mais amorosos. A qualidade da relação vincular com o outro depende das próprias marcas registradas no sujeito, suas experiências vivenciadas na trajetória de sua vida. (Zimerman, 2010). No momento em que há uma ligação, o vínculo se manifesta, e a produção que ocorre dessa ligação pode, ou não, produzir algo como, por exemplo, o conhecimento.
Em relação a esses docentes, podemos inferir que se foi constituindo uma subjetividade, e nas relações foi predominando aspectos dos vínculos amorosos que produziram: identificação, conhecimento e reconhecimento. É importante ressaltar que, no vínculo do ódio, não é possível gerar conhecimento. Os recortes apontados nos apresentam a forma como a qualidade das relações e os vínculos criados permeiam o espaço de ensino-aprendizagem.
Podemos verificar que existe uma relação amorosa e libidinal entre esses professores e seus alunos: na inspiração, na empatia, no prazer, no sofrimento, na relação consigo mesmo e na relação que estabelecem com os alunos. Nos relatos das histórias de vida dos entrevistados, pudemos encontrar sofrimentos psíquicos paralelamente aos aspectos de vitalidade. Parece que as perdas e o desamparo familiar contribuíram para que a mente desses profissionais buscasse no mundo intelectual uma resposta para suas angústias.
A necessidade e a dependência na dupla aluno-professor são percebidas de forma consciente por todos os profissionais entrevistados. Os docentes atentam para verificar se os alunos foram afetados de alguma forma; se estão interessados e se são interessantes enquanto professores. Esse professor é atencioso, observador, no sentido de buscar compreender os alunos, de buscar a aceitação de suas ideias e dúvidas e de procurar atendê-las, sem descartar os conflitos que estão presentes.
O terceiro descritor do Núcleo de Significação em análise é a “Construção da Subjetividade pessoal e social - a singularidade surge da internalização do social”, originado das falas dos entrevistados.
[...] a gente se singulariza da forma como a gente internaliza o social, né! Então é uma coisa dialética, que a gente aprende, a gente se transforma, quando a gente se transforma, transforma fora. Professor contribui para a construção da subjetividade dos alunos, porque é na relação que isso se dá, né!..., na relação com o mundo, a visão de mundo, é ..., como eu enxergo as pessoas, como eu me enxergo. Então a subjetividade é uma coisa importante, porque ela é única. Ela é única no sentido ... eu falava sempre para os alunos: todos vocês estão me ouvindo, e eu estou falando a mesma coisa, mas, como isso vai ser internalizado e associado, é de cada um. (E1)
Na fala de E1, fica claro que há uma reorganização interna daquilo que ocorre no social, há uma atribuição de sentidos, que é singular:
[...] o sentido subjetivo que surge dentro de uma experiência não é expressão direta da interação entre sujeito e experiência, mas um resultado que aparece a partir de uma reorganização orientada pelo sujeito que integra dialeticamente o interno e o externo, numa nova dimensão subjetiva que também é ou se converte em social. (Scoz, Tacca, Castanho, 2012 p. 136).
A abrangência de como cada indivíduo compreende e internaliza os conteúdos propostos dentro da sala de aula está diretamente relacionada a sua história de vida, às experiências vivenciadas: “a gente se singulariza da forma como a gente internaliza o social”. (E1).
O aprendizado depende de vários elementos, tanto na esfera social (externa) quanto na estrutura psíquica do sujeito (interna). São múltiplas as possibilidades e condições para que o conhecimento aconteça. A relação que se estabelece na dupla aluno-professor é carregada de emoções e expressões que provocam e registram formas diferentes de subjetividade.
[...] quanto menos você sabe da sua história, mais medo você tem do aluno, mais medo você tem da ameaça que vem do aluno. [...] “Aí, gente, quando eu saio da minha casa, eu tenho certeza de que não vou voltar igual”. E isso é pura poesia; [...] eu tento fazer poesia. E eu acho que esse é o desafio da educação; vamos inventar gente! Instrumento, não é? Vamos inventar! (E6)
No relato “[...] quanto menos você sabe da sua história, mais medo você tem do aluno, mais medo você tem da ameaça que vem do aluno”, (E6) nos leva a refletir sobre a coragem, a capacidade desse professor em se colocar à disposição para a compreensão e escuta do aluno, compreendendo que as experiências vivenciadas na trajetória do discente refletem diretamente no seu comportamento e na sua aprendizagem dentro da sala de aula.
[...] que eu sempre acreditei que o bem-estar pessoal passa pelo social, então, não se submeter a um nem a outro isoladamente, mas conseguir esse equilíbrio das duas coisas, né!..., e, aí, se você não está bem-resolvido com as suas questões individuais, dificilmente você consegue fazer parte desse todo, dificilmente você consegue fazer parte dessa coletividade. (E3)
[...] é a essência de uma teoria que busca compreender, reconhecendo, compreendendo o humano, reconhecendo o valor da história e da cultura, possibilitando olhar o indivíduo, sujeito em seus processos singulares. É um fenômeno ontológico, específico e subjetivo, uma unidade inseparável do simbólico e do emocional em que a subjetividade individual e a subjetividade social são indissociáveis. (E4)
[...] Mas, na graduação, eu ... eu vejo dessa forma, porque é uma galera de 20 anos, é uma galera de 21 anos e que ... tem muito medo da angústia, tem muito medo do sofrimento, [...] querem consertar tudo sem ver o que estão fazendo e que medidas estão tomando, então, assim ..., é acolhê-los na agonia deles e, ao mesmo tempo, explicitar que eu também não sou um poço de ... certeza, é mais ou menos isso ... quer dizer apenas que eu sou isso que está em permanente estado de reflexão e de compreensão da vida e que ... e que bom que eu posso continuar aprendendo, que bom que eu posso ... que eu não me fechei a aprender … e ,no dia que eu me fechar, não vou mais dar aula. (E5)
As profundas e complexas relações existentes nas instituições perfazem as histórias de vida e são marcadas por várias experiências que constituem as subjetividades individuais e sociais. Trata-se do caráter participativo e ativo do indivíduo que aprende e, ao mesmo tempo ensina, enfatizando a sala de aula como espaço privilegiado para o desenvolvimento de novas configurações subjetivas que estão associadas não só às atividades desenvolvidas nesse espaço social, mas ao desenvolvimento integral da pessoa.
O professor busca sempre formas de contracenar com a teoria, mas sua essência também se faz presente. Podemos pensar em alguns elementos que perpassam essa esfera de trabalho: a prática educativa, os espaços de poder, as normas a serem cumpridas, os valores, as ideologias, “[...] Então eu tenho adotado diversas estratégias pequenas de sobrevivência ... que eu confronto o que eu estou sentindo” (E4). Esse é um registro de construções subjetivas decorrentes de eventos ocorridos e do quanto as contradições estão presentes nessa resposta.
Compreendemos que a separação de alguns indicadores se dá por uma questão didática, pois eles são indissociáveis uns dos outros; as tramas das relações são imbricadas, os processos de simbolização, os saberes docentes, as constituições vinculares, a importância da linguagem, o caráter singular dos processos de aprendizagem, a partir da singularidade das histórias de vida, a singularidade dos processos relacionais dos espaços da aprendizagem e a construção das subjetividades individuais e sociais, todos são entrelaçados, ligados a construção do ser humano.
Considerações finais
A pesquisa nos leva a pensar sobre a identidade profissional desses docentes, pois o professor é, antes de tudo, uma pessoa, com sua história, seus anseios, suas aspirações e intencionalidades. Em seu caminho, a docência ocorre e, por uma ou outra razão, consciente ou inconsciente, o docente desenvolve sua forma de estar na vida, com a profissão de ensinar e se coloca no papel de aprender continuamente. Os docentes entrevistados, escolhidos por terem marcado os seus alunos durante o processo de formação, não apontam para relações harmoniosas, mas para relações muitas vezes conflituosas, de amor e ódio.
A competência desses docentes pode ser percebida ao desenvolverem uma multiplicidade de atitudes que ultrapassam a previsibilidade; ao vivenciarem situações com o inesperado, com os conflitos inerentes à condição humana, ultrapassando os limites das instituições de ensino superior, reconhecendo o Outro como um ser de possibilidades e investindo suas habilidades para que esse Outro se desenvolva e se constitua como um ser integrado.
O docente que percebeu a capacidade de vinculação e conseguiu fazer o aluno criar um laço emocional forte em relação a ele, na função que ele exerce, ou seja, em aprender a reconhecer e a utilizar esse laço emocional que se desenvolveu, naturalmente, com as colocações, a forma de apresentar o conteúdo, ministrando as aulas com afetividade, consegue despertar a curiosidade e pode acessar o desejo no aluno de obter o conhecimento de forma eficiente. Registra o sentimento construtivo do encontro com o outro.
A instituição é um organismo vivo em contínua metamorfose, considerando as relações, o que nos permite falar, apoiados em González Rey, que há uma subjetividade social em estreita relação dialética com a subjetividade individual. O professor, ao construir os sentidos subjetivos ligados à docência, aposta no aluno, acredita, não desiste. Podemos pensar que esses docentes são sujeitos da própria história, pois fazem seu caminhar de forma transformadora. O ensinar, além do fazer técnico, é envolver-se, é vincular-se de forma a ver o aluno como um ser em pleno desenvolvimento.