Introdução
O saber não nos torna melhores nem mais felizes. Mas a educação pode ajudar a nos tornarmos melhores, se não mais felizes, e nos ensinar a assumir a parte prosaica e viver a parte poética de nossas vidas (Morin, 2003, p. 11).
No Brasil, no âmbito da divulgação científica na Área das Ciências Humanas, não é incomum a divisão entre a pesquisa, a publicação e a formação humana, como se esses três momentos da vida científica e social fossem independentes e individualizados. Essa forma de conceber essas atividades decorre do fato de elas serem compreendidas como se fossem fins em si mesmas.
Dessa forma compartimentalizada de conceber tais atividades decorre que, no Brasil, o professor universitário é, geralmente, identificado como pesquisador (Machado, 2002; Severino, 2002), especialmente nas universidades públicas, e que poucos se vinculam às atividades de editoração e de publicação de periódicos especializados. Outro entendimento é que o professor universitário não teria ligação e responsabilidade com a educação básica, uma vez que a sua atuação ocorre em outros níveis de ensino. Aos editores, por seu turno, caberia a editoração de periódicos, o acompanhamento dos avaliadores, o zelo pelas boas práticas de conduta ética na divulgação da ciência e o atendimento às normas técnicas, de modo a assegurar a atualidade, a pontualidade e o rigor na publicação dos conhecimentos produzidos por meio de estudos e pesquisas. Ao professor da educação básica, caberia apropriar-se da ciência produzida por pesquisadores e divulgada por periódicos especializados, para que esse novo saber pudesse promover a formação intelectual e moral do seu aluno1.
É certo que cada um desses personagens realiza ações distintas no processo pelo qual a ciência é divulgada, conservada e objetivada em bens materiais ou imateriais que se fazem presentes nas conquistas da humanidade, em geral, e na vida de cada um, em particular. Ao menos essa parece ser a visão que se transforma em ‘senso comum’, ou seja, naquilo que pertence a todos os que fazem parte da sociedade (Arendt, 2016). Como cidadãos, aqueles que não estão diretamente envolvidos com essas três atividades, almejam que as instituições, nas figuras do professor universitário/pesquisador, do editor e do professor da educação básica, desempenhem suas funções de tal feito que resultem em bem social.
As ações específicas desses personagens não se reduzem em si mesmas quando cada um tem consciência do que representam as ações particulares no conjunto da atividade científica e que as desempenhe como um momento de uma prática coletiva (Leontiev, 2004) que se constitui por diferentes ações, porém todas interligadas por um motivo comum. O professor universitário, tomado aqui como produtor de ciência, embora pareça distante da educação básica, envolve-se com esse nível de ensino, tanto analisando políticas públicas, como refletindo sobre processos de desenvolvimento e de aprendizagem ou produzindo conhecimentos das diferentes áreas que se transformam em conteúdo escolar. Ao mesmo tempo, esse professor/pesquisador atua no processo editorial, quer seja como avaliador de submissões, quer seja como membro de conselho editorial ou como editor de periódicos, de modo que compartilham a responsabilidade com o conhecimento que se torna público. O editor e o futuro editor necessitam ter consciência que os resultados de pesquisas divulgadas em seu periódico, quando são publicados, deixam de ser propriedade dos seus respectivos autores e dos editores, para se tornar um conhecimento vulgar, no sentido de ser um conhecimento disseminado para todos indistintamente. O professor da educação básica, por seu turno, pode ter o ensino proferido por ele influenciado pela pesquisa e por ações realizadas pelos dois sujeitos mencionados anteriormente, portanto, a sua prática pedagógica não é alheia à produção científica existente e circulante. O aluno da educação básica, do ensino superior e da pós-graduação, mesmo que não saibam das imbricadas redes dos componentes curriculares que eles apreendem como conteúdos disciplinares (Silva, 1999; Araujo, 2028), indubitavelmente, têm as pesquisas divulgadas em periódicos científicos como partícipes da sua formação como discente e como sujeito histórico de uma dada sociedade (Lewis, 2017). Assim, todos estão interligados e, ainda que sujeitos singulares, são partes do conjunto comum da sociedade.
Em virtude dessa forma de compreender o fazer ciência, a divulgação científica e, particularmente, a formação humana, neste artigo, objetivamos refletir acerca da relação entre a atuação do professor/pesquisador e do editor e a formação de pós-graduandos nos processos de produção e disseminação das pesquisas no âmbito das humanidades, visando à formação de pessoas comprometidas com a profissionalização e a divulgação de periódicos científicos segundo princípios éticos.
Para a consecução do nosso objetivo, organizamos este artigo em duas seções. A primeira é dedicada à reflexão sobre princípios éticos que mapeiam ou que deveriam mapear a formação do pós-graduando em atividades editoriais, bem como à discussão da formação do sujeito como editor. Na segunda parte, apresentamos um estudo que explicita a atuação de pós-graduandos em atividades editoriais em um periódico científico da Área da Educação.
O fio que tece nossa reflexão incide na relevância da inserção de acadêmicos da pós-graduação em processos de editoração de periódicos científicos na Área da Educação para a formação desses acadêmicos. Essa integração é fundamental e parte constitutiva da formação desses sujeitos sob, ao menos, três aspectos: social, ético e técnico. Sobre o aspecto social, parte-se da ideia da formação dos acadêmicos como sujeitos que ocuparão um lugar e uma função na sociedade, dando continuidade a ela (Arendt, 2009). O segundo aspecto diz respeito a um processo de aprendizagem que envolve ações éticas em relação ao outro (Aristóteles, 1985) e a si. O terceiro refere-se à própria prática de editoração de periódicos científicos (Hermann, 2019) e sua relação com os dois aspectos anteriores. Vale destacar que a formação remete à Paideia, a um ideal de educação em que a apropriação da cultura no seu sentido amplo (formas de ser, pensar e agir) concorre para a constituição de indivíduos capazes de orientar-se eticamente pelo seu próprio pensamento, portanto não se trata de um desempenho acadêmico cuja qualidade é atestada por notas ou conceitos, tampouco que se reduz ao fazer sem a consciência do seu significado social.
Princípios éticos na formação do jovem editor
Falar em princípios éticos na formação do jovem remete à consciência que cada sujeito tem da sua própria constituição. Sobre essa questão, vale destacar a reflexão de Hannah Arendt, na obra A condição humana, segundo a qual “É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano, e essa inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato simples do nosso aparecimento físico original” (Arendt, 2020, p. 219). Dando continuidade ao seu pensamento, nessa mesma obra, a autora observa que “A ação e o discurso são tão intimamente relacionados porque o ato primordial e especificamente humano deve conter, ao mesmo tempo, resposta à pergunta que se faz a todo recém-chegado: ‘Quem és?’” (Arendt, 2020, p. 221).
A perspectiva assumida pela autora leva-nos a considerar que a formação do ser humano não pode prescindir do entendimento da pessoa em seu sentido total, dito de outro modo, não é possível separar a formação corpórea do desenvolvimento intelectivo e são, pois, essas duas naturezas distintas, mas indivisíveis, que constituem a pessoa.
Ao considerarmos o indivíduo como um ser ‘total’, não podemos descurar do fato de que ele não existe só, ao contrário, somente se constitui como humano conforme as relações que trava com os seus pares. Sobre esse aspecto da formação, Arendt argumenta:
Como esse desvelamento do sujeito é parte integrante do todo, até mesmo da mais ‘objetiva’ interação, o espaço-entre físico e mundano, juntamente com os seus interesses, é recoberto e, por assim dizer, sobrelevado por outro espaço-entre inteiramente diferente, constituído de atos e palavras, cuja origem se deve unicamente ao agir e ao falar dos homens diretamente uns com os outros. Esse segundo espaço-entre subjetivo não é tangível, pois não há objetos tangíveis nos quais ele possa se solidificar: o processo de agir e falar não pode deixar atrás de si tais resultados e produtos finais. Mas, a despeito de toda a sua intangibilidade, o espaço-entre é tão real quanto o mundo das coisas que visivelmente quanto o mundo das coisas que visivelmente temos em comum. Damos a essa realidade o nome de ‘teia’ de relações humanas, indicando pela metáfora sua qualidade de certo modo intangível (Arendt, 2020, p. 226-227, destaques da autora).
A ideia central apresentada pela autora, e com a qual concordamos, incide no fato de que o existir da pessoa depende da teia social na qual ela está inserida. Com efeito, o ser que fala e age depende do ‘outro’ para existir, ainda que esta dependência não possa ser vista de modo material, ela é real e objetiva, pois sem ela não há vida humanizada.
Essa reflexão não é original em Arendt. Aristóteles (1985), em Política, especialmente no livro I, evidencia que o homem é um animal político, portanto, necessita do outro para existir. Em Ética a Nicômaco, livro II, ao tratar da natureza humana, o autor observa que o intelecto humano está no homem na condição de potência pode ser desenvolvido, logo, materializado, segundo duas vias: a) pelo desenvolvimento moral e ético, oriundo do convívio, primeiro na família e depois na comunidade; b) pela instrução, advinda do ensino oriundo da ação e do discurso do professor.
Respaldados por Aristóteles (1985) e por Arendt (2020), ao nos voltarmos à formação do pós-graduando em atividade de editoração, entendemos que o seu processo formativo não se desvincula da sua condição de humanidade - um ser que age, discursa e se constitui em pessoa intelectiva. Assim, cabe ao professor orientador da pesquisa e ao editor do periódico atuar para formar pessoas que possam ter consciência da sua condição humana e do seu papel na vida em sociedade.
O pós-graduando, ao receber dos seus professores e orientadores conhecimentos de todas as áreas e também seus exemplos de ser humano, estão constituindo sua subjetividade. Assim, se a formação possibilitar a reflexão sobre o próprio conhecimento e sobre a própria formação na sua relação com as condições objetivas, no momento em que, profissionalmente, atuarem na sociedade, poderão agir com autonomia constituída a partir da autoridade do professor, do orientador e do editor de periódicos, sem que isso signifique adesão cega à autoridade, mas a consciência de uma atuação voltada para o bem comum. Portanto, a responsabilidade que o professor exerce no processo de formação das novas gerações de editores não é pequena. O modo como ele exerce a função de pesquisador, a forma com que se relaciona com aqueles que submetem seus textos ao periódico, a responsabilidade com que produz e divulga conhecimentos, dentre outros aspectos envolvidos no processo de produção e divulgação do conhecimento reverberam na formação em geral e na formação dos futuros orientadores e editores de periódicos, ou seja, daqueles que darão continuidade ao mundo, como diz Arendt (2020).
A formação do futuro editor precisa, então, estar entrelaçada na ‘teia’ social em que todos estão juntos e convivem uns com os outros. Ainda que o ‘fim’ do trabalho do editor em periódico seja a publicação de artigos, ele, na verdade, é o meio. O artigo editado é a disseminação de uma pesquisa científica que, ao se tornar pública, pode influenciar as ações na comunidade, especialmente, por meio do ensino dado por um professor, na educação básica, no ensino superior e na pós-graduação, pois o sujeito que recebe esse conhecimento, por seu turno, pertence à ‘teia’ da comunidade2.
Acerca da formação do pós-graduando na esfera editorial, além de ele se conscientizar da sua condição de ser humano detentor do poder da linguagem, da ação e partícipe da teia social que é a comunidade à qual pertence, é preciso também que pense na concepção de ciência que, sob essa perspectiva de homem integral, não pode ser fragmentado.
Para Morin (2003), um dos maiores problemas a serem enfrentados no nosso tempo, fim do século XX e início do século XXI, incide na intensa fragmentação de tudo, particularmente da ciência, ao que ele define como “hiperespecialização”.
Ora, os problemas essenciais nunca são parceláveis, e os problemas globais são cada vez mais essenciais. Além disso, todos os problemas particulares só podem ser posicionados e pensados corretamente em seus contextos; e o próprio contexto desses problemas deve ser posicionado, cada vez mais, no contexto planetário (Morin, 2003, p. 13).
A fragmentação das atividades é, conforme o autor, um impeditivo para que os seres humanos busquem soluções para os seus problemas emergenciais e gerais, pois cada ciência, desenvolvida em sua área e campo específico, não tem condições, muitas vezes, de encontrar a raiz de seus obstáculos, já que eles podem estar fora da sua especificidade. Desse modo, sem o conhecimento mais amplo do objeto/problema investigado, dificilmente o cientista encontrará solução para a indagação posta à sua investigação.
A crítica feita à fragmentação instituída na ciência também está presente nos conteúdos das disciplinas curriculares. De acordo com Morin (2003, p. 14), “[...] o retalhamento das disciplinas impossibilita apreender ”o que é tecido junto”, isto é, o complexo, segundo o sentido original do termo”. O excesso de divisão nos conduz a perder a consciência do saber como algo amplo e complexo. Ainda segundo o referido autor, o fracionamento da ciência e o fracionamento do ensino “não só produziram o conhecimento e a elucidação, mas também a ignorância e a cegueira” (Morin, 2003, p. 15). Ele tornou-se, também, a nosso ver, impeditivo para a compreensão de que os problemas sociais, políticos, econômicos e educacionais não são particulares ao nosso microespaço, às ações isoladas de indivíduos singulares, mas estão imbricados em situações transnacionais. Em virtude dessa complexidade da ciência e, por conseguinte, das relações sociais, a função do pesquisador, do editor, do orientador e do professor da educação básica não pode restringir ao universo da pesquisa, da editoração técnica e do ensino escolar, uma vez que são funções exercidas por pessoas vinculadas à ‘teia’ da sociedade, ou seja, cidadãos pertencentes à humanidade, para a qual não há fronteiras geográficas. Sob esta perspectiva, na formação dos pós-graduandos, em atividades de editoração, precisamos zelar para estimular a formação de pessoas, futuros editores, com a percepção de ser humano e de ciência, tendo como fundamento a visão universalista.
Observa-se, portanto, que as ações desses três atores do universo da produção científica se entrelaçam e são fundamentais para a humanidade, pois é a percepção da existência do ‘outro’ e do conhecimento científico complexo e universal que, efetivamente, assegura a ação ética do editor, do avaliador e do autor. A ética, portanto, pressupõe a formação do sujeito que age e discursa conforme os princípios voltados para o bem comum. Com efeito, as regras que regulamentam as boas condutas de editoração e de produção científica têm aderência na comunidade científica quando as pessoas são, antes, sujeitos éticos.
Ainda sobre a formação do sujeito como editor, vale destacar que, ao considerarmos a perspectiva de que, ao nascer, cada sujeito ingressa num mundo já existente (Arendt, 2016), dando continuidade a ele, não estamos entendendo que a formação é meramente um processo de adaptação às condições existentes. O processo de formação, mediante a incorporação da cultura, é também de resistência, diante de condições que impossibilitam a dignidade a todos, apesar de todo o conhecimento já produzido e dos meios técnicos que possibilitam a sua circulação.
Esse entendimento nos leva a buscar outros elementos na reflexão que Arendt (2016), na década de 1950, fez acerca da crise na educação. Embora seu foco esteja na educação estadunidense, uma das questões que ela apresenta como constitutiva da crise na educação pode ser tomada, aqui, para pensarmos a formação em geral e a formação do sujeito como editor, em particular. Arendt (2016) destaca o fato de a escola ter agido no sentido de destituir o professor da sua autoridade e de o ensino escolar atribuir à própria criança a condução da sua aprendizagem, de sorte que os métodos de ensino ganharam a centralidade da prática pedagógica, em detrimento dos conteúdos das diferentes áreas do conhecimento. Nesses termos, em que pese o fato de Arendt (2016) se referir à universidade como o espaço para a especialização, se estamos tratando da formação do pós-graduando como editor, a “autoridade” do professor/editor e do conhecimento é fundamental nesse processo, autoridade entendida no sentido daquele que atua no processo de transmissão da cultura, diferentemente de autoritarismo, mas necessária para a formação de pessoas com consciência e discernimento das implicações das suas ações na continuidade do mundo.
A crítica de Arendt (2016) à educação em que o fazer se sobrepõe à matéria de conhecimento do professor, leva-nos a pensar que também na educação superior, especialmente em situações que envolvem a formação de futuros editores, os pós-graduandos não podem ter o aprendizado substituído pelo simples fazer, pela prática em si, atividade que dispensa o pensamento e a reflexão. A esfera do simples fazer, mesmo que em situações acadêmicas e de editoração, limita-se à vivência, conceito que Benjamin contrapõe à experiência (Erfahrung), entendida como “[...] matéria da tradição, tanto na vida privada quanto na coletiva” (Benjamin,1987, p. 105). Ainda segundo Benjamin, a vivência (Erlebnis) “forma-se menos com dados isolados e rigorosamente fixados na memória, do que com dados acumulados, e com frequência inconscientes, que afluem à memória” (Benjamin,1987, p. 105).
Nesses termos, quando o pós-graduando participa do processo de editoração de um periódico especializado, essa participação tanto pode ser para eles uma vivência, porque é transitória, sem deixar marcas na sua formação, ou pode ser uma experiência, em que a autoridade do professor/orientador é incorporada e modificada, transformando-se em experiência do sujeito singular e do grupo. Essa experiência tem movimento e, nesse sentido, a experiência em situação de editoração também se altera e não se limita aos aspectos técnicos, não se reduz à instrumentalização, ao fazer.
Embora sejam necessários e fundamentais, o domínio de formas atualizadas de submissão, o conhecimento sobre a funcionalidade de sistema de publicações on-line, a familiaridade com o fluxo da submissão à publicação de um texto dentre outras atividades, não são suficientes para a formação que se pauta pela experiência, que é duradoura e tem na tradição, na transmissão da cultura, o seu conteúdo.
Essa questão, tomada sob a perspectiva de Arendt (2016), nos leva a pensar que a atuação no processo de editoração há que ser um trabalho, em vez de labor, já que o trabalho, de acordo com Arendt (2016), diz respeito à produção daquilo que permanece no mundo, que dá continuidade, enquanto o labor refere-se à produção de algo para a sobrevivência, não duradouro, para ser consumido. Considerando-se que o contexto atual é um terreno fértil para a prevalência da descartabilidade, que possamos formar pessoas capazes de refletir sobre as circunstâncias dessa condição e das implicações éticas das suas ações no mundo - ao que Arendt (2020) chama de pensamento, entendendo que a sua atuação como editor faz parte do processo de perpetuação do resultado do trabalho coletivo que deve ser desenvolvido de forma responsável, com vistas a que a garantia de vida digna para todos seja a base do senso comum.
A formação do jovem pesquisador como editor: um estudo de caso
Com as transformações recentes nos meios de comunicação, os avanços no sistema eletrônico de periódicos, a automatização de atividades de editoração e o crescente número de periódicos, como pode ser observado, por exemplo, no Qualis periódicos, a publicização tornou-se uma atividade delicada, principalmente ao considerar os indicadores de qualidade e a credibilidade das publicações científicas. Entende-se que toda pesquisa precisa ser divulgada, pois só se confirma a sua existência quando é analisada pelos pares. Essa avaliação ocorre no processo de publicação do artigo em um periódico científico, que se constitui em veículo de difusão do conhecimento produzido em instituições responsáveis pelo desenvolvimento de pesquisas. De acordo com Barbalho (2005), é necessário compreender os elementos e critérios que regem, validam e qualificam uma publicação científica, tendo em vista a infinidade de informações circulantes no mundo de hoje. Assim, surgem questões tais como: onde publicar? Como ocorre o processo de publicação de um artigo? Quais são os critérios considerados na avaliação de uma submissão? É neste contexto que se põem a necessidade e a importância da aproximação e participação de acadêmicos de pós-graduação ao trabalho de editoria científica. Segundo Carvalho, Coeli e Lima (2017, p. 1), “[...] poucas são as iniciativas voltadas para a formação de alunos de pós-graduação para atuarem na editoria científica. A grande maioria dos pesquisadores adquire essa expertise somente após assumir a posição de editor-chefe ou executivo. Trata-se, portanto, de um aprender fazendo“.
As autoras destacam como exemplo um estágio em editoria destinado a alunos de doutorado da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). Elas descrevem a promoção de atividades de formação relacionadas à editoria, à escrita e à publicação científica com os alunos de pós-graduação e a sistematização de questões essenciais de um periódico, confirmando que obtiveram experiências exitosas com esse estágio. A experiência relatada pelas autoras aponta para a necessidade do conhecimento aprofundado acerca dos processos editoriais por alunos de pós-graduação, pois este processo formativo possibilita a criação de uma base científica, racional e ética nos jovens pesquisadores, que estão entre aqueles que darão continuidade a periódicos, por meio do trabalho que produz algo duradouro.
Se estamos tratando da formação do pós-graduando, faz-se necessário tomarmos o marco regulatório da Pós-Graduação, Parecer Sucupira de 1965, que confere a esse nível de ensino um novo horizonte formativo, que não se restringe ao ensino, mas que inclui a pesquisa. No Brasil, esse aspecto vem se desenvolvendo e se consolidando, culminando com a inclusão no Plano Nacional de Pós-Graduação 2024-2028 do seguinte objetivo: “promover um ambiente de pesquisa que contemple os distintos processos de produção e compartilhamento do conhecimento” (Brasil, 2024, p. 103). De acordo com Severino (2018), na estrutura de formação do pós-graduando, percebe-se que a pós-graduação vem trilhando seu caminho em direção ao Plano Nacional de Pós-Graduação 2024-2028, o que envolve a formação de novos pesquisadores e de intelectuais orgânicos, a qualificação docente para o ensino superior, a relevância social dos temas estudados, a sensibilidade política e a legitimidade ética (Severino, 2024). Nesse sentido, a ética constitui o epicentro da dimensão formativa do pesquisador iniciante, de modo que pesquisas indicam diferentes espaços para que tal dimensão seja desenvolvida no pesquisador, como os grupos de pesquisa (Mercado; Rego, 2023) e as atividades de orientação (Siquelli, 2023). Destaca-se, nesta exposição, a existência de outros espaços e subsídios para o desenvolvimento dessa dimensão, a exemplo da atuação como ‘aprendiz’ na atividade de editoração de periódicos.
A atuação em periódicos como lócus formativo da dimensão ética de pesquisadores iniciantes pode ocorrer porque eles se aproximam e atuam em uma atividade na qual a ética deve ser a espinha dorsal de todas as fases do processo. Segundo Oliveira (2023), a dimensão ética na veiculação de artigos científicos visa a evitar que ocorram produções contendo plágio, autoplágio, falsificação de dados e disseminação de editoras predatórias. Nessa direção, as “reflexões sobre ética estão vinculadas à formação docente” (Oliveira, 2023, p. 16).
Ao se observar a finalidade da pós-graduação conforme o Plano Nacional de Pós-Graduação 2024-2028 (Brasil, 2024), que visa à estruturação de um espaço múltiplo para a construção e a veiculação do conhecimento, e sabendo-se que a ética é um preceito desse espaço múltiplo, aproximando-se da concepção de que a ética é uma das dimensões a serem desenvolvidas no pesquisador iniciante, justifica-se a concepção segundo a qual a atuação em periódicos se constitui em espaço formativo. Dessa forma, é necessário um olhar aguçado às gerações de jovens pesquisadores, bons alunos de doutorado e recém-doutores, para compartilhar com eles as responsabilidades e os desafios envolvidos no trabalho de editoração de um periódico. Em suma, é importante oportunizar a esses novos pesquisadores experiências e conhecimentos acerca dos critérios para a avaliação dos artigos, das diretrizes de publicação, do desenvolvimento de um olhar crítico, da rigidez dos instrumentos de avaliação da imparcialidade dos processos de seleção de trabalhos para publicação, bem como dos fatores que influenciam a aceitação ou a rejeição de artigos para publicação em um periódico científico.
Passamos, aqui, a tratar da nossa experiência com editoração de periódicos, que inclui um grupo de bolsistas de doutorado convidados a compor a Equipe Técnica. Esses doutorandos bolsistas atuam no processo de identificação e seleção de avaliadores com conhecimentos correspondentes ao tema do texto do artigo para a submissão à avaliação, o monitoramento dos prazos de avaliação e, se necessário, a submissão a um terceiro avaliador para a apreciação do artigo. Apesar de ser um prazo curto, em que o doutorando bolsista atua na equipe técnica do periódico até finalizar o doutorado, atividades como essas, que abarcam os processos editoriais de periódicos, reitera a relevância que a atuação no processo de editoração exerce na formação de acadêmicos da pós-graduação.
O trabalho de análise e de verificação da qualidade dos pareceres dos artigos não é feito pela equipe técnica. O editor chefe é responsável pela conferência e análise da qualidade dos pareceres recebidos. A presença do professor orientador no processo editorial e o compartilhamento de experiências são perpassados pela dimensão ética, já que se trata de experiências que envolvem a produção do conhecimento pelo professor como pesquisador. Também confere à equipe técnica (discentes de pós-graduação) acesso a conhecimentos de ordem prática relativos ao funcionamento de periódicos científicos, englobando a pré-análise, a avaliação por pares e a aprovação final pelo editor-chefe, aspectos que nem sempre estão acessíveis em situações de formais de ensino, mas fundamentais para a aprendizagem prática referente à dimensão da legitimidade ética (Severino, 2018). A dimensão formativa do pesquisador iniciante pode, ainda, contemplar a atuação em periódicos, haja vista que esse é um dos principais meios de disseminação do conhecimento produzido atualmente, além de ser um dos locais de atuação do docente da pós-graduação, conferindo-lhe uma expertise no contexto da sua dimensão da legitimidade ética.
O exemplo aqui apresentado diz respeito à experiência de uma das autoras no gerenciamento de um grupo de pós-graduandos, em nível de doutorado, no processo de editoração em um periódico. Atualmente, essa revista conta com 19 doutorandos, sendo 16 bolsistas e três não bolsistas, compondo a sua Equipe Técnica, sendo que cada pós-graduando é responsável, em média, por acompanhar o processo avaliativo de três artigos científicos. A função dessa equipe é a de manter os artigos recebidos e aprovados na apreciação inicial em constante avaliação até que recebam dois pareceres convergentes, quer seja para a aprovação, quer seja, a rejeição. Atuando dessa forma, os 19 membros da Equipe Técnica têm contato com os processos de editoração de maneira direta, conhecendo os processos que os permeiam.
Assim como é destacado por Barbalho (2005), os doutorandos, ao atuarem na Equipe Técnica deste periódico, entram em contato com elementos e critérios que regem, validam e qualificam uma publicação periódica, acompanhando como os pareceristas realizam suas avaliações, os motivos que levam a um parecer favorável ou desfavorável, que definem se um determinado artigo deve ser aceito para publicação ou não. Eles também mantêm contato com diversos pareceres de diversos artigos e com todo o processo que rege a publicização de um artigo em um periódico, construindo uma expertise sobre as boas práticas na divulgação científica e no atendimento às normas técnicas do periódico.
Essa atuação, segundo Carvalho, Coeli e Lima (2017), permite a aprendizagem acerca da editoração científica porque os pós-graduandos assumem uma posição de editor-chefe e, também, porque significa uma formação estruturada, sob observação e orientação de um editor sênior, que norteia todo o processo de aprendizagem sobre este processo.
Outro aspecto vivenciado são as noções éticas, quando ingressam na Equipe Técnica, os doutorandos recebem orientações sobre a necessidade de não atuarem em artigos de autores próximos/conhecidos, mantendo a idoneidade necessária, assim como manterem todo o contato de forma estritamente profissional, via sistema de gerenciamento da revista e buscando pareceristas que não sejam, por exemplo, autores ou coautores do próprio artigo, além de respeitarem os prazos inerentes ao processo de avaliação.
Portanto, observa-se que a experiência na Equipe Técnica, sob constante orientação, proporciona uma formação integral acerca dos caminhos de avaliação e publicação de artigos em periódicos, considerando seus diversos vieses, principalmente aqueles de característica ética, evitando a veiculação de produções com plágio, autoplágio, falsificação de dados, inclusive reconhecendo processos editoriais predatórios, haja visto que possuem conhecimento acerca dos processos editoriais em periódicos de qualidade.
Considerações finais
Quando nos referimos à formação do sujeito/pessoa, observamos que os acadêmicos de pós-graduação lato e stricto sensu são pessoas em fase de formação e, nesse momento, seus professores e orientadores são autoridades (Arendt, 2009). A participação em uma equipe editorial, seja como estagiário, seja como profissional de tecnologia da informação, seja como revisor ou normalizador, requer a aprendizagem de todas as fases da editoração, desde o momento da submissão em uma plataforma de construção e gestão de periódicos eletrônicos (como o Open Journal System, OJS) até a publicação do artigo que, em última instância, é o meio pelo qual a sociedade tem acesso aos resultados de uma pesquisa científica.
Essas etapas exigem lisura da equipe editorial, portanto demandam que os acadêmicos de pós-graduação ajam com responsabilidade e ética, destacando que, inclusive, essa forma de agir implica diretamente na credibilidade do periódico como veículo de divulgação científica.
O segundo aspecto intrinsecamente imbricado na editoração diz respeito ao processo de avaliação do manuscrito submetido, pois, independentemente de a avaliação ser às cegas ou aberta, as ações a serem realizadas, tanto por pareceristas como pelos autores, envolvem, dentre outros, orientações, esclarecimentos e cumprimento de prazos e de compromissos assumidos. Essa fase do processo editorial é crucial para definir a seriedade científica do periódico, o que requer da equipe editorial sintonia com as boas práticas de conduta ética.
O terceiro ponto de nossa reflexão vincula-se ao estágio final da revisão das provas e da publicação do artigo. Essa fase é o momento de publicização da pesquisa, portanto, da disseminação da ciência. Dito de outro modo, é quando o estudo se torna um bem social, trazendo benefícios para todos. Aqui nos deparamos com o significado social de um periódico: contribuir para a disseminação do conhecimento. Justamente por isso, a etapa final da editoração é também um dos momentos da formação dos acadêmicos que atuam nesse processo. Nesse sentido, nos três momentos da formação dos acadêmicos faz-se necessária a figura de um editor que, geralmente, é também um professor e um pesquisador que se põe na condição de ‘mestre’ para formar pessoas, seja como editor, seja como professor e como pesquisador, logo, o seu comportamento e ensinamentos participam da formação de todos que estão envolvidos no processo. Com efeito, ele se torna o responsável pela e para a formação de uma nova geração de profissionais de periódicos que estão, por seu turno, comprometidos com a divulgação de pesquisas científicas que tanto geram novas investigações.
A inclusão de acadêmicos em formação no processo editorial é uma ação de mão dupla: ao mesmo tempo que forma novos editores e para a vida em comunidade, o editor e a equipe são exemplos nos âmbitos profissionais, da responsabilidade e da conduta ética, pois a equipe editorial, sob a coordenação do editor-chefe, é responsável pela difusão da ciência, por meio do periódico, portanto, parte constitutiva do que deveria ser o ‘bem comum’ da sociedade.