Introdução
A aprendizagem baseada em problemas (problem based learning - PBL) é uma abordagem centrada no estudante que busca estimular o raciocínio clínico e o pensamento crítico1. Embora a PBL já fosse utilizada em outras áreas, somente em 1969 ela passou a ser aplicada como uma estratégia de ensino-aprendizagem na Faculdade de Medicina da Universidade de McMaster, no Canadá2. Desde então, várias outras estratégias de ensino centradas no estudante passaram a ser utilizadas. A team-based learning (TBL), a resolução de quiz, o simulation-based learning (SBL) e o uso de dramatização são alguns exemplos de métodos inovadores utilizados como estratégias de ensino3-7. A busca de novas estratégias de ensino e de formas inovadoras de busca ativa de conhecimento passou a ser uma constante no novo modelo de ensino médico. Procura-se, assim, ultrapassar a divisão disciplinar clássica do conhecimento científico, puramente teórico, para trabalhar a interdisciplinaridade e a participação ativa do estudante5. Nesse contexto, a dramatização, também conhecida como técnica de role-play, foi descrita como uma estratégia que favorece o desenvolvimento do raciocínio clínico dos estudantes de Medicina nos cenários clínicos e estimula a interdisciplinaridade, a criatividade e as habilidades de comunicação7. O uso da arte tem sido expandido para domínios além do conhecimento técnico/científico, englobando também os domínios da humanização e da ética com o paciente8.
Na Universidade de Fortaleza (Unifor), desde a implantação do curso de Medicina, em 2006, utiliza-se um currículo baseado em metodologias ativas, tendo a PBL como ponto central do processo de ensino-aprendizagem. A busca por métodos inovadores que estimulem e facilitem a aprendizagem é uma constante entre os docentes que fazem parte do curso. Dessa forma, pensando na complexidade vinculada ao aprendizado de antibióticos, criou-se uma atividade denominada Teste de Sensibilidade artística aos Antimicrobianos (TSaA). Trata-se de uma dinâmica desenvolvida desde o segundo semestre de 2014 que busca, por meio da arte, estimular a aprendizagem sobre antimicrobianos e o raciocínio clínico envolvendo esse conteúdo. Ressalta-se que, desde então, o TSaA entra como forma complementar de ensino/aprendizagem, de caráter não obrigatório, com o propósito de estimular a criatividade nas apresentações, o trabalho em grupo e o pensamento crítico, características de extrema relevância no contexto do ensino médico.
Este estudo tem como objetivo geral avaliar a percepção dos alunos do quinto semestre do curso de Medicina da Unifor sobre a realização do TSaA, bem como analisá-lo como metodologia de ensino/aprendizagem sobre antimicrobianos, de modo a verificar os benefícios e as prováveis dificuldades geradas por essa atividade.
Descrição da atividade
No TSaA, os alunos foram divididos em oito grupos de 12 alunos. Cada grupo ficou responsável por apresentar conteúdos relacionados a uma classe de antimicrobiano previamente sorteada. As classes de antimicrobianos abordadas pelos grupos de alunos foram as seguintes: penicilina, cefalosporinas, aminoglicosídios, drogas antifólicas, quinolonas, carbapenêmicos, macrolídios e glicopeptídios. Os alunos receberam o desafio de utilizar a arte como ferramenta de comunicação para mostrar os seus conhecimentos sobre esses antimicrobianos. As formas de apresentação ficaram a critério dos alunos. A apresentação da atividade foi avaliada por dois docentes que utilizaram um instrumento de checklist elaborado para este fim. Avaliaram-se o conteúdo sobre antimicrobianos (mecanismo de ação, espectro de ação, mecanismo de resistência e efeitos adversos), a criatividade e a organização/o trabalho em equipe. Cada domínio dessa avaliação tinha pesos determinados: o conteúdo e a criatividade tinham peso 4, e a organização/o trabalho de equipe, peso 2. Essa atividade era opcional e acontecia após ao final do semestre, uma semana após todo o conteúdo de antimicrobianos ter sido dado em conferências.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo retrospectivo, transversal, de abordagem mista, qualitativa e quantitativa. A pesquisa foi desenvolvida no curso de Medicina da Unifor, com alunos do quinto semestre (período do curso em que se aborda o conteúdo sobre antimicrobianos). Incluíram-se alunos que cursaram o quinto semestre no segundo semestre de 2015.
Os alunos foram convidados a responder a um questionário logo após o término da atividade do TSaA. Nesse questionário, havia perguntas (objetivas e abertas) sobre a percepção dos alunos acerca da atividade, os seus benefícios no contexto da aprendizagem e as dificuldades identificadas (Figura 1).

Fonte: elaborada pelos autores.
Figura 1 Percepção dos alunos do quinto semestre do curso de Medicina da Unifor sobre o Teste de Sensibilidade artística aos Antimicrobianos (TSaA) - instrumento de coleta de dados
Na análise estatística, utilizou-se o programa SPSS 16.0, e calcularam-se as medidas de frequência, tendência central e análise de conteúdo para as variáveis subjetivas. A análise das questões abertas incluíram a categorização, identificação de frequências e seleção de exemplos de relatos mais ilustrativos das categorias.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unifor (Parecer nº 1.346.0440).
RESULTADOS
Dos 96 alunos matriculados no semestre, foram incluídos 92 alunos no estudo. A maioria era do sexo masculino (51%), e a média de idade, de 22,4 anos (+/- 3 anos). A maioria utilizou como fonte de estudo para a elaboração da atividade livros específicos sobre o assunto (67%). A minoria (9,9%) buscou periódicos científicos ou vídeos na internet. Apenas um grupo não conseguiu atingir o peso máximo na avaliação do conteúdo, tendo atingido peso 3.
As formas de apresentação mais escolhidas pelos alunos foram encenação e música. Alguns grupos utilizaram ainda formas mistas de apresentação (Gráfico 1).

Fonte: Elaborado pelos autores.
Gráfico 1 Forma de apresentação escolhida pelos alunos do quinto semestre do curso de Medicina da Unifor para a realização do Teste de Sensibilidade artística aos Antimicrobianos (TSaA)
Para 82% dos alunos, a metodologia adotada na atividade foi adequada. Quando perguntados se a participação na atividade facilitou o aprendizado sobre antimicrobianos, a maioria (51%) concordou totalmente e 44% concordou parcialmente. Apenas um aluno discordou. Uma pequena parcela dos alunos relatou que não conseguiu abordar totalmente o conteúdo exigido, embora tenha conseguido abordar a maioria dele (6,5%).
Vinte e cinco alunos (27,1%) responderam que encontraram alguma dificuldade na execução da atividade. As dificuldades relatadas pelos participantes foram relacionadas principalmente ao tempo para a elaboração da atividade e ao conteúdo. Para oito alunos (8,7%), o tempo para elaboração foi insuficiente para que fosse possível organizar e elaborar melhor a atividade. Sobre o conteúdo, 15 participantes (16,3%) relataram que tiveram dificuldade na apresentação do tema sorteado de forma lúdica. Eis duas respostas que ilustram bem essa percepção: “Difícil abordar de forma lúdica temas complexos” e “Adaptar conteúdo científico tão extenso à arte da encenação”.
Cinco alunos (5,4%) referiram ainda dificuldade em decorar as letras das músicas e/ou o texto das encenações e organizar o trabalho em equipe. Apesar de a dificuldade com a organização da equipe ter sido citada, quando perguntados se houve colaboração de todos os membros da equipe, 85 alunos (92,4%) responderam positivamente.
Quando questionados sobre os pontos fortes da atividade, os aspectos mais citados pelos alunos foram a facilitação/fixação do aprendizado (48,9%) e a associação de humor/diversão com o aprendizado (27,1%). Essas percepções ficaram bem ilustradas em algumas das respostas deles:
“De forma engraçada e leve conseguimos abordar um conteúdo tão denso nos seus pontos principais” e “O TSaA foi uma forma de facilitação de aprendizagem mas com um aprendizado divertido”.
Também foram mencionadas outras questões, como a união e integração do grupo e a metodologia ativa, como pontos marcantes da atividade. Para um aluno o ponto forte foi “A forma divertida de aprendizado com a valorização de todos que ajudaram”.
Alguns pontos fracos foram apontados por 31 alunos. Muitos mencionaram como fatores limitantes a falta de tempo suficiente para preparar a atividade (15,2%) e o cansaço (4,3%). Algumas das respostas ilustram bem essa percepção: “O cansaço do final do semestre e o pouco tempo para preparação” e “Pouco tempo para organizar a atividade porque ainda temos que estudar para a prova né...”.
Discussão e Conclusão
A facilitação da aprendizagem com o TSaA foi uma percepção comum para a maioria dos alunos, sendo inclusive citado por muitos como um dos pontos fortes da atividade. A maioria dos grupos optou pela dramatização como forma de comunicação do conteúdo. Dolev, Krohner e Braverman9, em estudo realizado na Faculdade de Medicina da Universidade de Yale, constataram que a utilização da arte como ferramenta de aprendizagem foi eficaz, melhorando a capacidade de diagnóstico clínico dos estudantes quando comparados a alunos do mesmo semestre que receberam apenas aulas teóricas e práticas habituais. A contribuição da aprendizagem por meio da arte para o estímulo/desenvolvimento do pensamento crítico também foi apontada por outros autores10. O uso da simulação por meio de dramatização, mesmo quando o aluno é apenas um observador, parece ser um método eficaz de aprendizado de conteúdo11,12. Ainda, alguns estudos demonstraram que o uso de dramatização como ferramenta de aprendizagem resultou em uma maior fixação de conteúdo quando comparado até mesmo com outros recursos audiovisuais, como vídeos13.
Apesar de a organização do trabalho de equipe ter sido citada por alguns como uma das dificuldades do TSaA, 92% dos alunos relataram uma participação plena dos componentes do grupo na realização da atividade, e muitos apontaram a integração e a união do grupo como um dos pontos fortes dessa metodologia. A utilização de atividades que estimulem o trabalho em equipe nem sempre foi uma preocupação na área da educação médica. O’Connell e Pascoe14 mostraram que, até o início dos anos 2000, a literatura científica sobre a importância do trabalho de equipe na formação médica era bastante escassa. As mudanças na prática médica e a necessidade cada vez maior de profissionais da saúde capazes de trabalhar de forma interdisciplinar estimularam o surgimento de novas estratégias na docência. Muitas dessas estratégias têm o trabalho de equipe, o estímulo à atividade colaborativa e à comunicação interpares como focos centrais15. Vale ressaltar ainda que, atualmente, a interconectividade é uma realidade entre os estudantes de Medicina, o que acaba por facilitar práticas que estimulem o trabalho colaborativo e de equipe16. Entretanto, vários são os tipos de conflito que podem ocorrer durante a elaboração/execução de trabalhos em equipe, como aqueles referentes à distribuição de tarefas, a processos ou relacionamentos. Na educação médica, os conflitos intragrupos devem ser trabalhados com cautela17. Nesse contexto, a utilização de estratégias que promovam o desenvolvimento de trabalho cooperativo, em detrimento de atividades que estimulem a competição interpares, torna-se essencial para que se possa garantir uma atmosfera de aprendizado individual e crescimento de grupo18.
O excesso de trabalho e o tempo exíguo para realização das atividades acadêmicas já foram apontados por alguns autores como fatores de estresse e desencadeadores de burnout em alguns estudantes de Medicina19. No presente estudo, uma das dificuldades mais citadas pelos participantes foi o pouco tempo para a organização da atividade. Esse resultado aponta para a necessidade de uma melhor programação do cronograma de realização da atividade para que possamos atingir o maior rendimento possível dos alunos, sem o ônus de estresse desnecessário.
Outra dificuldade relatada por seis alunos (6,5%) foi não conseguir abordar completamente o conteúdo exigido. Alguns relacionaram essa dificuldade à complexidade do assunto. Entendemos que essa dificuldade pode ser uma das limitações dessa metodologia. Entretanto, acreditamos que o baixo percentual de alunos com essa dificuldade e o fato de todos pertencerem ao mesmo grupo sugerem que qualquer obstáculo surgido teve uma importância menor no desenvolvimento da atividade de forma geral e que, possivelmente, estaria mais relacionado a uma dificuldade de organização pontual desse grupo específico.
Conclui-se que o TSaA teve um alto grau de aceitação entre os alunos e entra como forma complementar de ensino/aprendizagem, de modo a facilitar a fixação do conteúdo e incentivar a criatividade nas apresentações, o trabalho em grupo e o pensamento crítico, características fundamentais no ensino médico. Entretanto, faz-se necessário repensar o tempo disponibilizado para a elaboração da atividade para que o aproveitamento seja ainda maior.