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vol.44 número2Apreensão e Compreensão do Conceito de Necessidades de Saúde para Estudantes de um Currículo AtivoERRATA EM: Revista Brasileira de Educação Médica, volume 36, número 1, Janeiro-Março 2012 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
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Revista Brasileira de Educação Médica

versão impressa ISSN 0100-5502versão On-line ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.44 no.2 Rio de Janeiro  2020  Epub 25-Maio-2020

https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.2-20190309.ing 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Identidade, Cuidado e Direitos: a Experiência das Rodas de Conversa sobre a Saúde dos Povos Indígenas

Willian Fernandes LunaI 
http://orcid.org/0000-0003-2314-128X

Cecília MalvezziI 
http://orcid.org/0000-0003-1343-4417

Karla Caroline TeixeiraI 
http://orcid.org/0000-0002-2400-4706

Dayane Teixeira AlmeidaI 
http://orcid.org/0000-0003-3510-3483

Vandicley Pereira BezerraI 
http://orcid.org/0000-0002-6641-8915

1Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brazil.


Resumo:

Introdução:

Há uma fragilidade histórica na formação dos profissionais da atenção à saúde indígena no Brasil e reconhece-se o despertar da sensibilidade para situações de diálogo entre diferentes culturas como essencial nesse contexto. Assim, surge em 2016 o projeto de extensão “Rodas de Conversa sobre a Saúde dos Povos Indígenas”, criado numa parceria entre professores de Medicina e estudantes indígenas do Programa de Educação Tutorial Indígena - Ações em Saúde, da Universidade Federal de São Carlos.

Método:

Este é um relato sobre os três anos dessa experiência, tendo sido construído a partir de uma análise documental de abordagem qualitativa. Os objetivos foram resgatar os temas e conteúdos desenvolvidos e discutir as vivências, as perspectivas e os diálogos desse espaço de encontro. Ao longo do texto há descrição das atividades realizadas e reconhecimento de suas potencialidades e seus limites.

Resultados:

Com base nos círculos de cultura e instrumentos de metodologias ativas de ensino-aprendizagem, os encontros trataram de temas relacionados à saúde indígena, aqui agrupados em três categorias: identidade, cuidado e direitos indígenas. O formato em rodas de conversa possibilitou a construção de saberes no campo da saúde indígena relacionados às diferentes culturas, às políticas de saúde específicas e às concepções do processo saúde-doença, propiciando aproximação inicial com o contexto de saúde indígena no Brasil. Adicionalmente, proporcionou um espaço com protagonismo indígena que ousou apontar para olhares inovadores sobre questões identitárias e compreensões de saúde, doença e processos de cura, levantando inclusive epistemologias intrínsecas a essas populações.

Conclusões:

A partir do diálogo entre diferentes atores, foi possível despertar o interesse dos participantes para especificidades étnico-culturais e dar visibilidade à presença dos indígenas na universidade. Além disso, pode ser um primeiro passo para a construção de disciplinas interdisciplinares optativas e a inserção da temática nos currículos de graduação na área da saúde.

Palavras-chave: Saúde Indígena; Educação em Saúde; Aprendizagem Ativa; Ensino; Estudantes Indígenas; Extensão Comunitária; Roda de Conversa

Abstract:

Introduction:

There is a historical fragility regarding the training of health care professionals working with the Indigenous Health System in Brazil and the awakening of the growing sensitivity for the promotion of intercultural dialogue is recognized as essential in this context. Thus, the project “Talking Circles about the Indigenous People’s Health” in the university emerged in 2016, developed in a partnership between medical school professors and indigenous students from the Indigenous Tutorial Education Program - PET Indígena - Health Actions, UFSCar.

Method:

This report is based on the qualitative documental analyses, aiming to present and discuss the experiences, perspectives and dialogues carried out during those meetings, the construction of diversity, the description of the activities performed and the exposure of their potentialities and limits.

Results:

Based on both Paulo Freire’s Culture Circles and active teaching-learning methodology tools, those meetings dealt with topics related to Indigenous People’s Health, the results of which were here grouped into three categories: Identity; Care; and Indigenous Rights. The Talking Circles format fostered the construction of new knowledge in indigenous health’s field related to different cultures, specific health policies, concepts of health-disease process, providing an initial approach on the indigenous health context in Brazil. Additionally, they provided a space with indigenous leadership that dared to indicate innovative perspectives on identity issues and health understandings, disease and healing processes, as well as raising the epistemology inherent to these populations.

Conclusions:

Based on the dialogue between different actors, it was possible to arouse interest of the health professionals regarding ethnic and cultural issues and give visibility to the indigenous people at the University. Moreover, it can be a first step towards the construction of optional interdisciplinary disciplines and the insertion of the topic in undergraduate school curricula in the health area.

Keywords: Indigenous Peoples Health; Health Education; Problem-Based Learning; Indigenous People Health Professionals Training; Indigenous Population; Community-Institutional Relations; Talking Circles

INTRODUÇÃO

A atenção à saúde oferecida às populações indígenas no Brasil tem trajetória marcada por ações esporádicas e abrangência irregular no território brasileiro. Iniciada por intermédio dos missionários, seguida pela criação do Serviço de Proteção ao Índio, em 1910, e a partir de 1967 pela Fundação Nacional do Índio (Funai), teve majoritariamente um perfil campanhista e integracionista1,2. Desde a Primeira Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio, realizada em Brasília em 1986, foi identificada a necessidade da criação de um subsistema específico de saúde indígena com agência própria para esse fim, que garantisse aos povos indígenas o direito universal à saúde, como estava sendo pleiteado para toda a população brasileira(3, 4). No entanto, somente em 1999 são instituídas as diretrizes para a assistência à saúde dos povos indígenas, definidas na Lei nº 9.836/99 - conhecida como Lei Arouca. A lei instituiu o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, com a criação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei)4,5, sendo integrado ao Sistema Único de Saúde (SUS) em 2010.

Atualmente, as atividades desenvolvidas no âmbito da saúde indígena são orientadas pela Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (Pnaspi), lançada em 2002, reconhecendo as especificidades étnicas e culturais desses povos, bem como o direito a seu território1. O modelo de atenção à saúde dos povos indígenas tem como base os Dsei, que se constituem como um modelo diferenciado de organização de serviços, voltados para a proteção, promoção e recuperação da saúde, caracterizando-se como organizações locorregionais do sistema de saúde. Os Dsei têm uma rede de serviços de atenção básica instalada dentro das terras indígenas, que deve ser integrada, hierarquizada e articulada com a rede do SUS2,5,6. Nas terras indígenas, a atenção básica se dá por meio das equipes multidisciplinares compostas por médicos, enfermeiros, odontólogos, auxiliares de enfermagem e agentes indígenas de saúde e de saneamento, além de outros profissionais que fazem apoio matricial2,5.

São poucos os estudos e as investigações sobre o perfil desses profissionais, mas esse modelo está caracterizado por alta rotatividade dos profissionais e descontinuidade das ações. Há dificuldades na adaptação ao cotidiano do trabalho, necessidades de formação e precarização dos vínculos trabalhistas; pode-se afirmar que a maioria dos profissionais é recém-formada e busca novos desafios e inserção profissional, com pouco perfil para lidar com complexidades nas relações interculturais7,8. Além da pouca qualificação para atuarem nas comunidades, os profissionais geralmente ignoram os sistemas de representações, valores e práticas relativos ao adoecer e desconhecem os sistemas de cura tradicionais conduzidos por especialistas indígenas, como pajés, curandeiros e benzedeiros, muitas vezes generalizando o “indígena” ou até mesmo atuando de forma preconceituosa, o que prejudica a assistência1,3,9,10. Para o alcance do propósito da Pnaspi, de garantir ao povos indígenas o acesso à atenção integral à saúde, uma das diretrizes estabelecida foi a formação dos profissionais para atuarem no contexto entre diferentes culturas, reconhecendo o direito desses povos à sua cultura, bem como a eficácia de suas práticas medicinais, contribuindo para superar os fatores que tornam essa população mais vulnerável aos agravos à saúde1,8. Todavia, a frequente rotatividade dos membros das equipes, somada à ausência de capacitação adequada, seja formação anterior ou processo de educação permanente, resulta numa fragilidade por parte dos profissionais para o trabalho em contextos étnicos específicos11.

Na área da saúde, as graduações pouco contribuem para a atuação em contextos interétnicos. Raramente, elas promovem experiências nas quais ocorre a inserção precoce de estudantes em terras indígenas ou propiciam espaço teórico que aborde a saúde dos povos originários e os contextos interculturais7. Aproximações ao universo indígena mediante a imersão na cultura local, como em experiências de extensão universitária, poderiam ajudar os estudantes da área da saúde a superar o imaginário romântico e levá-los a compreender processos históricos de exclusão das políticas públicas de saúde, além do desenvolvimento de respeito e valorização dos saberes tradicionais12. Nesse contexto, a construção de competências para o cuidado em saúde indígena poderia ser inicialmente desenvolvida, no entanto poucos são os estudantes que têm essa oportunidade de vivência extramuros13.

Para além da formação dos estudantes, as experiências de extensão na saúde indígena podem assumir outros compromissos que impactam o desenvolvimento das comunidades, como a produção científica e o desenvolvimento de ações de saúde numa aproximação entre os campos da saúde, da educação e das ciências humanas e sociais14. Nessa mesma direção, atividades nas universidades que possibilitem aproximações com populações e comunidades tradicionais, mesmo que não especificamente indígenas, podem favorecer o desenvolvimento de habilidades para atuação em diferentes culturas, bem como sensibilizar para necessidades de outras realidades socioculturais10,15. Entretanto, essas experiências são difusas e pouco frequentes nas instituições de ensino, que mantêm os estudantes distantes desses contextos.

As atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Medicina, publicadas em 2014, fazem breves avanços nessa direção. Apesar de não trazerem de forma explícita a necessidade de desenvolvimento de competências em saúde indígena, indicam que os cursos devem oportunizar aprendizados sobre o respeito ao pluralismo de concepções de saúde-doença e a diversidade cultural, além do reconhecimento do universo de diferenças étnico-raciais16. A consolidação do SUS e do Subsistema de Saúde Indígena (SasiSUS) e, consequentemente, a formação em saúde direcionada à saúde pública no país podem levar a um projeto de sociedade que amplia os limites do exercício da cidadania, reforçando o papel do Estado em garantir a saúde como direito de todos, inclusive das populações indígenas, que somam hoje mais de 800 mil brasileiros17. Contudo, os desafios de concretizar a universalidade do acesso, a equidade e a integralidade das ações esbarram, em parte, no perfil de formação dos profissionais da saúde, com excessiva especialização e distanciamento das necessidades da população, com destaque para os povos tradicionais.

A necessidade da inclusão de disciplinas ou discussões sobre saúde indígena nos currículos dos cursos da área da saúde foi identificada já na 4ª Conferência Nacional de Saúde Indígena, em 20065, bem como a criação de programas de residências médicas e multiprofissionais e cursos de pós-graduação em saúde indígena, e a oferta de formação a distância, mas ainda pouco se avançou nessas construções. Além daqueles que atuam diretamente na saúde indígena, identificou-se a necessidade de formação em conhecimentos antropológicos e culturais para os profissionais de saúde dos hospitais públicos, visando qualificar a interação entre as equipes e os indígenas, de modo a levar esses profissionais a compreender e respeitar as práticas tradicionais e as diferenças culturais7. Dessa forma, ainda há muitos caminhos a serem trilhados na busca por uma formação de profissionais de saúde mais competentes para trabalhar com as necessidades dos povos indígenas e que valorizem mais os aspectos subjetivos da saúde em toda a sua complexidade.

O vestibular indígena na Universidade Federal de São Carlos e o Programa de Educação Tutorial Indígena - Ações em Saúde

Nesse contexto de encontro entre diferentes culturas, historicamente há pouco acesso para que os indígenas adentrem o ensino superior como universitários, não possibilitando a formação de profissionais de saúde que sejam dessas comunidades. Nos últimos anos, algumas estratégias foram sendo criadas local e nacionalmente para que o direito de acesso ao ensino superior fosse garantido aos indígenas, como programas de inclusão e ações afirmativas. A concepção das ações afirmativas como política implica o trabalho pela desconstrução de assimetrias históricas na universidade pública, principalmente para acesso de pessoas de baixa renda, negros e indígenas18.

No Brasil, com base no Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os brancos representam 48% da população, e, a partir da análise dos dados do Questionário Socioeconômico do Exame Nacional de Desempenho dos Estudante (Enade) realizado por Ristoff19, constatou-se que o câmpus brasileiro ainda era cerca de 20% mais branco que a sociedade brasileira, mesmo após uma série de políticas públicas que buscaram transformar esse cenário. A partir das políticas de ações afirmativas implantadas na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em 2008, uma vaga passou a ser reservada em cada curso de graduação para estudante indígena. Atualmente, um vestibular específico acontece de forma descentralizada em diferentes cidades brasileiras com oferta de vagas nos 64 cursos de graduação da UFSCar, inclusive em todos os cursos da saúde18, somando 242 indígenas de 42 diferentes povos em 2019.

No processo de inclusão de indígenas nas universidades surge, em 2010, a expansão do Programa de Educação Tutorial (PET). Por meio de uma portaria do Ministério da Educação, novos grupos PET foram vinculados a áreas prioritárias e a políticas públicas e de desenvolvimento20. Nesse contexto, a elaboração de propostas voltadas à população indígena foi considerada como prioritária, tendo em vista que, naquele momento, a UFSCar já oferecia 57 vagas nos cursos de graduação para estudantes indígenas.

Todo esse processo culminou com a criação de um Grupo PET orientado a universitários indígenas, com foco em atividades na área da saúde, nomeado PET Indígena - Ações em Saúde, que é desenvolvido desde então. Esse grupo busca a formação de agentes capazes de colaborar na melhoria das condições da saúde indígena, nas comunidades populares e na valorização das práticas tradicionais de saúde indígena. Naquele ano, 12 indígenas estavam regularmente matriculados nos cursos da área da saúde da UFSCar. Recém-egressos de suas aldeias e trazendo consigo fortes traços culturais, eles vinham enfrentando desafios nessa nova realidade sociocultural, dificuldades de ordem econômica e, sobretudo, de adaptação ao modelo pedagógico de ensino20. Ao longo do tempo, várias foram as construções realizadas por esse grupo, como o projeto de extensão “Rodas de Conversa sobre a Saúde dos Povos Indígenas” (Rodas de Saúde Indígena) em parceria com os professores do curso de Medicina. Este artigo tem como objetivos relatar e discutir as atividades e as metodologias utilizadas nas Rodas de Saúde Indígena, de modo a reconhecer os limites e as potencialidades desse projeto que poderá servir de inspiração para outras construções em diferentes instituições.

ESTRATÉGIA METODOLÓGICA

Elaborou-se o relato de experiência apresentado aqui com base em uma análise documental com abordagem qualitativa. Os materiais foram produzidos no período de março de 2016 a julho de 2019, no âmbito das Rodas de Saúde Indígena. A abordagem qualitativa foi escolhida por ser a mais adequada para discutir experiências, perspectivas e diálogos vivenciados nesse espaço de encontro e construção de diversidades21,22.

A construção deste manuscrito coube aos dois docentes e três extensionistas envolvidos na coordenação das rodas de conversa. Na elaboração deste estudo, adotaram-se os seguintes procedimentos:

  • Resgate dos relatórios de todas as atividades do projeto de extensão.

  • Leitura dos materiais e organização das temáticas em três categorias. Para construção das categorias, fez-se o ordenamento do material que proporcionou o agrupamento de temas com características em comum ou ligadas à mesma ideia23, de modo a favorecer a visualização do que foi trabalhado com os participantes.

  • Análise das avaliações realizadas pelos participantes durante as Rodas de Saúde Indígena.

  • Síntese dos achados, com elaboração da descrição e discussão da experiência.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFSCar, com Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 20177619.9.0000.5504.

RELATO DA EXPERIÊNCIA

No período do estudo, as Rodas de Saúde Indígena estiveram sob a coordenação de dois docentes, médicos de família e comunidade com experiência de atuação em áreas indígenas, e três estudantes indígenas, sendo uma da Psicologia e dois da Medicina, respectivamente dos povos Tariano, Pankararu e Atikum-Umã. Uma das atividades contou com a colaboração de uma antropóloga. Realizaram-se 17 encontros no espaço físico do Departamento de Medicina, com duração de três horas cada.

O projeto de extensão surgiu a partir da identificação da lacuna do desenvolvimento de competências relacionadas à saúde das populações indígenas na graduação de profissionais de saúde, reconhecendo como essencial o despertar da sensibilidade para acolher a diversidade e lidar com situações de diálogo entre culturas.

Construíram-se as Rodas de Saúde Indígena com base no princípio dos círculos de cultura de Paulo Freire24, com os seguintes propósitos: promover uma relação horizontal no encontro entre educadores e educandos, em contraposição a uma visão elitista da educação, valorizar a tradição oral e legitimar a diversidade cultural e de saberes. Tal concepção se dá com base em três princípios metodológicos: o respeito, a autonomia e a dialogicidade24. Houve a elaboração artesanal de cada um dos encontros, de modo a reconhecer a importância da (re)invenção das práticas educacionais e construir novos significados para a própria experiência de elaboração de uma atividade de ensino. Tornou-se um espaço de aprendizado coletivo, sendo necessário repensar a linguagem, os recursos, os métodos em uso, no vislumbre de ver brotar o diálogo realmente fundante das/nas relações entre iguais em suas diferenças25. Cada uma das Rodas de Saúde Indígena teve uma provocação central no formato de uma pergunta que nomeou o encontro e estimulou os participantes a problematizar em torno daquela temática.

Utilizaram-se estratégias e instrumentos de diversas metodologias ativas de ensino-aprendizagem, com inspirações na problematização26, na espiral construtivista27 e na aprendizagem baseada em problemas28, conforme detalhamento ao longo deste artigo. Os encontros tiveram a seguinte estrutura padrão:

  • Em grande grupo: acolhimento dos participantes com uma fala inicial de boas-vindas, exposição da provocação central, apresentações individuais dos participantes que explicitaram suas expectativas e atividade disparadora da temática.

  • Em pequenos grupos: análise do tema em que se relacionaram experiências pessoais e materiais disponibilizados.

  • Em grande grupo: apresentação das discussões dos pequenos grupos e síntese coletiva.

Entre os diversos disparadores da temática, foram utilizados filmes, documentários, depoimentos e entrevistas. O uso de depoimentos gravados de maneira artesanal se apresentou como um interessante disparador ao trazerem opiniões a respeito da provocação central da roda de conversa. Esses pequenos vídeos foram enviados por estudantes indígenas de diversas universidades brasileiras, profissionais de saúde que atuam ou atuaram na saúde indígena e lideranças indígenas, políticas e espirituais. A exibição desses depoimentos permitiu a ampliação do debate para as pessoas em diversas realidades de saúde indígena no Brasil, aproximando os participantes de uma maior variedade de vivências.

O trabalho em pequenos grupos foi uma importante estratégia pedagógica utilizada. Consistia na divisão de grupos de mais ou menos oito pessoas, sempre privilegiando a diversidade entre elas, com o objetivo de melhorar a interação e a confiança mútua. Em cada pequeno grupo, analisava-se a questão disparadora, permitindo que cada pessoa trouxesse suas vivências e reflexões apoiadas na leitura de pequenos trechos de textos científicos ou situações-problema relacionados ao tema central. As situações-problema28 foram o disparador utilizado em alguns dos encontros e se constituíram de casos ou histórias simuladas construídas a partir da vivência real dos coordenadores da atividade, com o objetivo de motivar a discussão dos participantes. Os pequenos grupos possibilitaram rupturas com a forma tradicional de ensinar e aprender, estimulando a gestão participativa dos protagonistas da experiência e a reorganização da relação teoria e experiências pessoais27. A síntese da discussão em pequenos grupos era registrada em cartolinas, papel A4 ou tarjetas.

No segundo momento de grande grupo, todos os participantes retornavam em plenária e compartilhavam suas análises, possibilitando novas elaborações e reflexões por meio dessa nova síntese coletiva, no movimento da espiral construtivista27.

Um instrumento recorrente, principalmente no grande grupo, foram as tarjetas - cartões de papel menores que uma folha A4. Com base na técnica de visualização móvel, as tarjetas eram distribuídas entre os participantes para que registrassem suas ideias com pincéis atômicos e, em seguida, fixadas em um painel, ficando visíveis durante todo o debate e podendo ser reorganizadas em núcleos de ideias de forma coletiva29. A visualização móvel permitiu o ordenamento das ideias individuais dos participantes, de modo a valorizar as singularidades e ampliar as compreensões e as negociações coletivas, sem perder o foco das questões centrais.

Ainda no grande grupo, uma estratégia adotada foi a construção de um varal de ideias, que também utiliza tarjetas, mas que são dispostas em um varal, e não em um painel, construindo um conjunto de ideias ou interesses em comum sobre uma dada questão30. Enquanto um coordenador conduzia a discussão, os outros mediadores escreviam, em tarjetas, demandas e motivações dos participantes para que fossem desenvolvidas nos próximos encontros. As tarjetas foram colocadas em um varal e posteriormente organizadas por grupos de afinidades. A partir desse levantamento de ideias, foi construído o planejamento de uma série de temas e discussões para as próximas rodas de conversa.

As Rodas de Saúde Indígena contaram com a participação de profissionais de saúde, cientistas sociais, pedagogos, professores, estudantes dos ensinos fundamental e médio do município, graduandos dos cursos de saúde e de outras áreas, indígenas e não indígenas, que tinham interesse em aprender sobre a saúde desses povos.

Além dos encontros presenciais, foi criado um blog31 em que, a cada encontro, foram disponibilizados conteúdos complementares, compostos de livros, artigos, filmes e entrevistas, que propiciaram aos participantes um maior aprofundamento a respeito da temática discutida. No blog havia um campo chamado de “Diário da Atividade”, em que os participantes poderiam postar uma síntese individual reflexiva buscando responder à provocação central, registrando o que se aprendeu durante a atividade presencial. Em relação a essas atividades a distância, a participação foi menor do que o esperado pelos organizadores. Quando se identificou essa fragilidade, procurou-se estimular os participantes a fazer a reflexão logo após o encontro presencial, ofertando a possibilidade de preenchimento dos formulários em papel impresso nos encontros presenciais subsequentes, além do envio de mensagens eletrônicas aos participantes estimulando o preenchimento das atividades. Mesmo assim, outras estratégias poderiam ser consideradas, uma vez que a reflexão posterior ao encontro, feita de maneira individual e apoiada por leitura da bibliografia recomendada, teria impacto no aprofundamento do aprendizado. Para os participantes que estiveram presentes em 75% dos encontros no ano e que realizaram as atividades a distância, foi conferido um certificado de participação como curso introdutório.

O que foi discutido nas Rodas de Saúde Indígena?

Nas atividades desenvolvidas, considerou-se o universo de diferentes comunidades indígenas no Brasil, com distintos processos históricos e construções culturais. Para facilitar a visualização na escrita deste artigo, as temáticas problematizadas nos encontros foram agrupadas em categorias temáticas, com citação de exemplos de estratégias educacionais utilizadas. As três categorias foram: questões identitárias, cuidado em saúde indígena e direitos indígenas. O Quadro 1 apresenta o conjunto de provocações, temas e conteúdos.

Quadro 1 Conjunto de provocações centrais, temas e conteúdos desenvolvidos nas Rodas de Saúde Indígena, 2016-2019 

Grupos temáticos Provocações centrais Principais conceitos e conteúdos trabalhados
Questões identitárias O que é ser indígena?* Identidade indígena; Identidade brasileira; Processo histórico de colonização brasileira; Indígena na contemporaneidade.
Quais são as diversidades entre os povos indígenas? Conceito de etnia e povo; Diversidade linguística; Povos ameríndios.
Indígenas na cidade: que preconceitos eu tenho? Preconceito e intolerância; Desconstrução da ideia de “aculturação”; Políticas de ações afirmativas.
Cuidado em saúde indígena Quais são as relações entre saúde e cultura? Conceito de saúde; Conceito de cultura; Construção sociocultural da doença.
Educação em saúde com os indígenas: dá para fazer? Educação Popular em Saúde; Abordagem comunitária; Etnocentrismo.
Ensinar ou aprender no contexto da saúde indígena? Conflito cultural; Aprendizado a partir da diferença; Diálogo intercultural.
Quais são as especificidades da saúde da mulher indígena? Autocuidado da mulher indígena; Mulher indígena e comunidade; Gênero e geração.
Como é o encontro entre a biomedicina e os indígenas? Experiência de adoecimento (illness); Respeito às práticas tradicionais; Especificidades culturais.
O que ensinar para o trabalho na saúde indígena? Respeito e tolerância; Atenção diferenciada à saúde; Competência cultural.
Quais são as aproximações entre cosmologia e saúde indígena? Cosmologia e visão complexa planetária; Perspectivismo ameríndio; Relações entre cosmologia e saúde.
Direitos indígenas Indígena tutelado ou cidadão? Cidadania; Processo histórico de conquista de direitos; Constituição de 1988.
Os direitos dos indígenas são os mesmos dos não indígenas? Equidades e desigualdades; Processo histórico de colonização; Militância e preservação de direitos sobre terra, educação e saúde.
Por que um subsistema de saúde para os indígenas? Subsistema de Saúde Indígena (SasiSUS); Princípios da Política Nacional de Saúde Indígena.
Saúde indígena como direito: é necessário? Atenção diferenciada à saúde; Estrutura básica da rede de saúde indígena; Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei).
Municipalização da saúde: uma morte prematura? Processo histórico de criação do SasiSUS; Relação do SasiSUS e redes municipais; Desafios do SasiSUS.
Por que indígenas na universidade? Ações afirmativas e diversidades; Relações étnico-raciais no ensino superior; Diretrizes da política local de ações afirmativas.

*Provocação desenvolvida em dois encontros. Fonte: Elaborado pelos autores.

Na primeira categoria de temáticas desenvolvidas, foram discutidos aspectos relacionados à constituição identitária do indígena, aproximando olhares de pessoas que não possuíam qualquer experiência com populações originárias, profissionais de saúde com atuação na saúde nas aldeias e indígenas que vivenciavam os contextos urbanos e das comunidades. Dialogar sobre diversidades, diferenças e igualdades apresentou os desafios do compartilhamento de perspectivas e estranhamentos, e o próprio processo de reconhecer a si e o outro.

Nesse contexto, foi possível discutir sobre os processos históricos no encontro de indígenas e não indígenas no Brasil e os preconceitos contra essa população. Além disso, abordaram-se aspectos relacionados aos indígenas na atualidade e considerou-se a situação contemporânea daqueles que vivem nas aldeias ou na cidade, de modo a superar a compreensão desses povos apresentada nos livros didáticos em grande parte das vezes32. Discutiram-se as diferenças entre os termos indígena, índio, silvícola e nativo, a fim de desconstruir o conceito de indígena genérico33 e possibilitar que os participantes questionassem os habituais julgamentos da sociedade não indígena que consideram os saberes indígenas atrasados, primitivos ou menos evoluídos.

Nesse âmbito, umas das provocações centrais foi: “Indígenas na cidade: que preconceitos eu tenho?”. Nesse encontro, utilizou-se uma estratégia potente: solicitar depoimentos em vídeo de indígenas de várias regiões do Brasil para que pudessem contar sobre os preconceitos sofridos quando na cidade. Esses diversos vídeos foram apresentados ao grupo de participantes, que puderam trocar também suas experiências sobre a vivência indígena em aldeias e cidades, com destaque para o ambiente universitário, em diferentes regiões geográficas do Brasil, o que permitiu ampliar os olhares dos participantes para as diversidades.

A segunda categoria de provocações esteve centrada no cuidado em saúde indígena que demandou direcionar as discussões em vários sentidos, com foco significativo nas relações entre saúde e cultura. Refletiu-se sobre os conceitos de saúde, doença e processos de cura, bem como sobre a presença (ou ausência) de cuidados tradicionais. Assim, o encontro entre a biomedicina e os sistemas de cura indígenas também foi problematizado, sendo levantados os desafios da elaboração de um cuidado partilhado entre diferentes visões de mundo. Nesse âmbito, valorizou-se o debate sobre o relativizar de valores e as diferenças entre a experiência de saúde e de doença para cada pessoa34.

Complementarmente, buscou-se a compreensão sobre a construção sociocultural da doença, de modo a relacioná-la à comunidade e às suas histórias e crenças e superar a visão apenas biomédica e muitas vezes etnocêntrica considerada na formação e atuação de profissionais de saúde11. Desse modo, insistiu-se na compreensão da cultura como dinâmica e não como estática35 em meio a relações dialógicas entre pessoas de diferentes saberes24.

Outro aspecto central nesse conjunto de encontros foi o conceito de competência cultural, compreendida como um conjunto de habilidades que os profissionais de saúde devem ter para trabalhar com grupos populacionais que possuem costumes e tradições diferentes das suas, o que colabora para uma atuação em saúde com melhor comunicação e mais qualificada com respeito às diferenças36 ou ainda um conjunto de políticas, valores, comportamentos e atitudes em um sistema ou entre profissionais que possibilite o trabalho efetivamente transcultural10.

Para desenvolvimento da provocação “Quais são as aproximações entre cosmologia e saúde indígena?”, os pequenos grupos utilizaram recortes de trechos de artigos sobre a cosmovisão de alguns povos indígenas (Yanomami, Baniwa, Kamaiurá, Wari e Tukano). Cada grupo leu e discutiu o texto sobre um povo, dialogando inclusive com as visões dos indígenas presentes. Na sequência, em grande grupo, apresentaram-se todas essas histórias, as quais foram analisadas com o propósito de identificar aproximações e distanciamentos entre elas. Dessa forma, a discussão sobre os cuidados em saúde indígena nas Rodas de Saúde Indígena procurou trabalhar com temas transversais e não tecnicistas, reconhecendo as especificidades da saúde nesse contexto.

Na última categoria de temáticas, destacaram-se as provocações relacionadas aos direitos indígenas, tanto os específicos para a saúde como aqueles para as áreas correlatas. Para os povos indígenas, a saúde é compreendida de forma mais ampla, não restrita à saúde do corpo, mas integrada ao planeta. Assim, o direito à terra e à educação e a manutenção de sua diversidade cultural estão intimamente relacionados à promoção da saúde. Com foco na discussão dos direitos dos povos indígenas no Brasil, partiu-se da trajetória da criação das políticas de saúde indígena, antes e depois da Constituição de 1988, no sentido de entender os significados de uma atenção diferenciada a partir do subsistema1. Adicionalmente, pôde-se ampliar a discussão sobre outros povos originários ameríndios, principalmente no tocante à superação da tutela e ao fortalecimento da pessoa indígena como cidadã37.

Uma dinâmica interessante foi realizada para a discussão da provocação: “Indígena tutelado ou cidadão?”. A partir do filme Índio cidadão?, cada participante foi convidado a escrever em tarjetas aspectos que achavam relevantes sobre a trajetória e a continuidade da luta para obtenção dos direitos indígenas. Após o filme, o grupo reuniu-se ao redor de uma grande mesa onde foram dispostas as tarjetas e organizadas em núcleos de sentidos em meio à discussão coletiva. Ao final, realizou-se uma leitura relacionando todas as tarjetas e sintetizando a construção do grupo sobre a luta indígena pelos direitos à terra, à saúde e à educação, reconhecendo as conquistas e os retrocessos.

Avaliação dos participantes e estudantes coordenadores

Durante os três anos do projeto, em diversos momentos foram realizadas avaliações do processo com os participantes, no entanto o conteúdo destas não foi registrado. Na busca por resgatar esses materiais, foi possível localizar as avaliações do ano de 2017, realizadas no último encontro desse ano. Utilizou-se um questionário impresso, não identificado, com perguntas abertas, que foi distribuído aos participantes. Buscou-se levantar os principais aprendizados construídos nesse espaço, seus aspectos positivos e suas fragilidades. Como aprendizados destacados pelo grupo, foram citados o compartilhamento de ideias e novas perspectivas entre indígenas e não indígenas; o resgate de narrativas identitárias e a reafirmação dos conhecimentos tradicionais; a identificação da situação contemporânea de povos de várias regiões do Brasil; a construção de saberes em meio às diversidades; a quebra de estereótipos sobre o indígena genérico; o desenvolvimento da tolerância, do respeito e de uma visão mais ampla sobre as pessoas; e o favorecimento da militância e resistência indígenas.

De acordo com os participantes, o aspecto mais positivo do projeto foi a identificação do espaço das Rodas de Saúde Indígena como oportunidade de ouvir, falar e trocar saberes, conhecimentos e opiniões, num encontro entre indígenas e não indígenas, estudantes e profissionais de diversas cursos e áreas do saber, com uma interação rica entre todos. Reforçou-se a ideia de que o espaço era sempre protegido e as pessoas podiam se posicionar sem ter medo das opiniões diferentes. Adicionalmente, constatou-se que se tratava de um espaço de acolhimento e de despertar para diferentes formas de entender a ciência e a saúde, tanto para estudantes da área da saúde como para os de outras áreas, como educação e engenharias.

Quanto às fragilidades, os participantes identificaram as seguintes: pouca participação de docentes e de pessoas externas à universidade, divulgação frágil e término dos encontros estendido para além do horário planejado. Houve também sugestões para continuidade do projeto de extensão e manutenção das estratégias metodológicas que favoreceram a participação de todos os presentes.

Os três estudantes indígenas que foram coordenadores da atividade ressaltaram outro aspecto: reconhecimento do espaço do projeto como possibilidade de autoria dos próprios estudantes indígenas, tanto por ter um formato com troca de saberes como pelo fato de eles serem também coordenadores da atividade. Outro aprendizado apontado referiu-se à compreensão sobre estratégias pedagógicas, capacidade de registro, planejamento e avaliação de atividades, o que possibilitou inclusive a escrita de manuscritos científicos e participação em eventos.

DISCUSSÕES

As Rodas de Saúde Indígena foram espaços de reflexão, discussão e diálogos entre diferentes atores, com troca de conhecimentos e vivências pessoais. Os encontros propiciaram a construção de saberes, como proposto pelos círculos de cultura24, o que reforça que a roda de conversa é mais que a disposição circular de cadeiras, mas deve haver compromisso crítico de pensar a sociedade e dar voz aos divergentes25.

O uso de estratégias e instrumentos inspirados em metodologias ativas26,27,28) buscou a integração entre os participantes, favorecendo uma construção a partir das experiências anteriores e lacunas individuais, além de suscitar a colaboração dos que participavam menos.

O aprimoramento das atividades foi sendo realizado de forma progressiva ao longo dos anos, com avaliações e planejamentos permanentes, tentando avançar de acordo com as necessidades do grupo. Essa estratégia de construção compartilhada, semelhante ao descrito em outras experiências, possibilitou que os participantes reconhecessem aquele espaço como próprio, gerador de vínculo e valorizador das subjetividades25,30.

Ademais, aprendizados semelhantes aos construídos nessa experiência foram relatados por outros projetos de extensão com saúde indígena, com destaque para a superação dos estereótipos sobre as pessoas indígenas, o reconhecimento do saber do outro como elaborado, o respeito a distintas cosmologias e o compromisso social para superação das iniquidades10,12,13. Uma característica diferente de outros projetos é que as Rodas de Saúde Indígena foram desenvolvidas na universidade, em espaço aberto a qualquer interessado, o que potencializa os efeitos multiplicadores dessa experiência. Todavia, não houve vivência de imersão nas realidades dessas comunidades, o que limita alguns aprendizados quando comparados aos descritos em outros estudos.

Outra singularidade dessa experiência é o fato de a construção acontecer com protagonismo dos indígenas, apontando para olhares inovadores sobre as compreensões de saúde, doença e processos de cura, levantando inclusive a possibilidade de repensar o papel dos espaços de construção do conhecimento e da universidade. Nesse sentido, houve abordagem sobre as perspectivas indígenas sobre o mundo, numa busca de superar os olhares preconceituosos e eurocêntricos, como são frequentemente desenvolvidos nos espaços de ensino10,33.

Por esse ângulo, avistam-se possibilidades de construir estratégias mais adequadas para a atenção à saúde indígena a partir de indígenas que sejam estudantes ou profissionais de saúde. Porém, para que isso aconteça, é preciso espaço para que seus conhecimentos tradicionais emerjam, pois as graduações em saúde pouco oportunizam saberes para além dos convencionais biomédicos, com dificuldades em incluir outras questões que dizem respeito à recuperação da saúde individual e coletiva7.

Nas Rodas de Saúde Indígena, as temáticas inicialmente mais restritas à saúde foram sendo ampliadas e tomaram um corpo mais amplo e abrangente, a partir da própria percepção do grupo de que para discutir saúde e cuidado era necessário ampliar a compreensão em relação a temas como identidade, cosmologia e sensibilidade cultural. O acesso à terra, o direito a um sistema de saúde diferenciado e os programas de ações afirmativas para a inserção do indígena na universidade também surgiram a partir do grupo como elementos essenciais para a obtenção da saúde dessa população.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Realizar um projeto de extensão interdisciplinar dentro da universidade e com participação da comunidade externa foi uma oportunidade singular e fundamental, o que reforça o compromisso com as problemáticas sociais quando se constroem canais compartilhados. Nas atividades das Rodas de Saúde Indígena, buscou-se construir um espaço para conhecer a complexidade da saúde das comunidades indígenas e refletir sobre ela, num diálogo, com as diferentes culturas, sobre as políticas de saúde específicas e as concepções do processo saúde-doença, de modo a propiciar a aproximação inicial com o contexto de saúde indígena no Brasil.

Discutir a temática da saúde indígena colabora para a qualificação dos futuros e dos atuais profissionais de saúde, a fim de despertá-los para a sensibilidade sobre as especificidades étnico-culturais ou até para o trabalho em equipes de saúde indígena. Esse diálogo aponta ainda para possibilidades de elaboração de disciplinas interdisciplinares optativas e inserção da temática da saúde indígena nas matrizes curriculares dos diferentes cursos de graduação na área da saúde, o que pode favorecer o desenvolvimento de competência cultural para o futuro profissional de saúde, independentemente de seu cenário de atuação.

Para além da construção de novos saberes interdisciplinares, essas atividades deram visibilidade à própria presença de indígenas na universidade, em um movimento de torná-la plural e mais representativa da diversidade da população brasileira.

Após esse período de desenvolvimento das Rodas de Saúde Indígena, questiona-se o que ainda precisa avançar nas construções e compreensões sobre a saúde dos povos indígenas. Estar nesse espaço de encontro entre tantas diversidades afeta todos a cada movimento. E isso torna os participantes cada vez mais sensíveis à importância de ser oportunizada a formação, tanto para a atuação no contexto indígena como a formação dos próprios indígenas, para que possam utilizar outras epistemologias, intrínsecas a essa população, que respondam às necessidades legítimas sobre a doença, o corpo e a saúde em sua complexidade. Mas essas são questões para as próximas rodas de conversa.

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Recebido: 16 de Fevereiro de 2020; Aceito: 17 de Março de 2020

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Willian Fernandes Luna. Departamento de Medicina da UFSCar. Rodovia Washington Luís, km 235 - SP-310, São Carlos, SP, Brasil. CEP 13565-905 E-mail: willianluna@gmail.com; willianluna@ufscar.br

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Willian Fernandes Luna e Cecília Malvezzi foram responsáveis pelo planejamento metodológico da pesquisa. Todos os autores participaram das demais etapas do estudo.

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses neste estudo.

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