SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44 número3Tratamento Psíquico Prévio ao Ingresso na Universidade: Experiência de um Serviço de Apoio ao EstudanteA Empatia em Acadêmicos de Medicina em Relação ao Paciente Pediátrico: Estudo Transversal Unicêntrico, 2019 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista Brasileira de Educação Médica

versão impressa ISSN 0100-5502versão On-line ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.44 no.3 Rio de Janeiro  2020  Epub 18-Jun-2020

https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.3-20200068.ing 

ARTIGO ORIGINAL

Qualidade de Vida e Graduação em Medicina

Isabela Maria Melo MirandaI 
http://orcid.org/0000-0002-9878-8996

Helen Hana Fernandes TavaresI 
http://orcid.org/0000-0003-1749-5508

Heloísa Rodrigues Soares da SilvaI 
http://orcid.org/0000-0001-6429-5424

Monise Santana BragaI 
http://orcid.org/0000-0002-6444-1521

Raquel de Oliveira SantosI 
http://orcid.org/0000-0002-1466-7338

Heloísa Silva GuerraI 
http://orcid.org/0000-0002-0617-8112

IUniversidade de Rio Verde, Aparecida de Goiânia, Goiás, Brazil.


Resumo:

Introdução:

Nos últimos anos, tem-se questionado sobre a qualidade de vida dos estudantes de Medicina dado o contexto em que estão inseridos. O estresse como resultado do somatório de carga horária extensa, dificuldade de conciliar a vida acadêmica com a pessoal e exposição a situações de dor e sofrimento tem-se mostrado como o principal fator para a queda da qualidade de vida desses acadêmicos. O objetivo deste estudo foi avaliar a qualidade de vida de acadêmicos de Medicina e seus fatores associados.

Método:

Trata-se de um estudo transversal realizado com 419 acadêmicos do curso de Medicina de uma fundação pública de Goiás. Foram incluídos alunos a partir de 18 anos e matriculados no curso do segundo ao oitavo período, de 2017 a 2018. Utilizaram-se os questionários sociodemográfico e de hábitos de vida e o World Health Organization Questionnaire for Quality of Life - Brief Form (WHOQOL-bref).

Resultados:

Os fatores relacionados com a baixa qualidade de vida foram: sexo feminino, utilizar estimulantes, pensar em desistir do curso e possuir comorbidade. Os relacionados com melhor qualidade de vida foram consumir frutas e hortaliças, praticar atividade física, mais tempo de sono e gestão do estresse.

Conclusão:

Este estudo encontrou um conjunto de fatores capazes de interferir na qualidade de vida desses estudantes, sugerindo a necessidade de intervenções direcionadas ao apoio pedagógico e psicológico.

Palavras-chave: Qualidade de Vida; Estudantes de Medicina; Saúde Mental

Abstract:

Introduction:

In recent years, the quality of life of medical students has been questioned, given the context in which they are inserted. Stress as a result of the number of long hours, difficulty in reconciling academic and personal life, exposure to situations of pain and suffering, have been shown to be the main factors for the decrease in quality of life of these students. The aim of this study was to assess the quality of life of medical students and its associated factors.

Method:

Cross-sectional study with 419 medical students from a public institution in Goiás. The study was carried out with students over 18 years old and enrolled in the second to the eighth semester of medical school, between 2017 and 2018. Sociodemographic and lifestyle questionnaires and the World Health Organization Questionnaire for Quality of Life - Brief Form (WHOQOL-BREF) were used.

Results:

The factors related to low quality of life were: female gender, the use of stimulants, thinking about giving up medical school and having comorbidities. Those related to a better quality of life were consuming fruits and vegetables, practicing physical activity, more sleeping time and stress management.

Conclusion:

This study found a set of factors capable of interfering with the quality of life of these students, suggesting the need for interventions aimed at pedagogical and psychological support.

Keywords: Quality of Life; Medical Students; Mental Health

INTRODUÇÃO

Qualidade de vida (QV), segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), é um conceito amplo compreendido pela saúde física, pelo estado psicológico, pelo nível de independência, pelas relações sociais, pelas crenças e pelos relacionamentos. Definida como a percepção dos indivíduos com relação à posição deles na vida, no contexto cultural e em seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações1.

Nos últimos anos, tem-se questionado sobre a QV dos estudantes de Medicina (EM) dado o contexto em que estão inseridos. O estresse como resultado do somatório de carga horária extensa, dificuldade de conciliar a vida acadêmica com a pessoal, exposição a situações de dor e sofrimento, tempo reduzido para lazer e um ambiente de competitividade tem-se mostrado como o principal fator para a queda da QV desses acadêmicos2.

Os EM aprendem a promover cuidados de saúde em pacientes, contudo é frequente que eles negligenciem os seus próprios cuidados, o que se reflete na QV. Nesse cenário paradoxal, por vezes, eles associam os cuidados de saúde à vulnerabilidade de um enfermo, negando a si mesmos a necessidade de autocuidado para manter seu bem-estar físico e mental. O próprio ambiente de aprendizagem médica pode, muitas vezes, trazer sentimentos de autossuficiência, levando os futuros médicos a se considerar fortes o suficiente para suportar rotinas exaustivas e situações de extrema exigência emocional, sem procurar ajuda3.

Esses fatores estressantes do curso de Medicina podem afetar a QV e influenciar a saúde física e mental do estudante. Com o intuito de compreender as possíveis interposições no processo de formação acadêmica, este estudo teve como objetivos avaliar a QV de EM e contribuir com informações que poderão subsidiar intervenções que ajudem tanto na QV desses estudantes quanto no processo de formação profissional.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo transversal realizado com estudantes do segundo ao oitavo período do curso de graduação em Medicina, no período de 2017 a 2018, de uma fundação pública do interior do estado de Goiás. Os critérios de inclusão foram ter idade igual ou superior a 18 anos e estar devidamente matriculado no curso.

Para coleta de dados, utilizaram-se dois instrumentos: um sociodemográfico e de hábitos de vida e o World Health Organization Questionnaire for Quality of Life - Bref Form (WHOQOL-bref).

O WHOQOL-bref é instrumento desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e validado no Brasil1-4. Trata-se de uma versão abreviada do World Health Organization Questionnaire for Quality of Life-100 (WHOQOL-100), sendo constituído por 24 perguntas representantes de cada uma das 24 partes que compõem o instrumento original, divididas em quatro domínios que têm por objetivo verificar a capacidade física (sete questões), o bem-estar psicológico (seis questões), as relações sociais (três questões) e o meio ambiente em que o indivíduo está inserido (oito questões), e ainda duas questões gerais de QV. A versão em português do WHOQOL-bref foi considerada com boa consistência interna, satisfatória em relação à validade discriminante, concorrente e de conteúdo, e teste-reteste fidedigno4.

Os dados foram analisados no programa Stata, versão 14.0 (StataCorp, 2015). Realizou-se o teste de Kolmogorov-Smirnov com correção de Lilliefors para verificação da normalidade das variáveis quantitativas do estudo. As variáveis qualitativas foram apresentadas descritivamente como frequência absoluta (n) e relativa (%); e as quantitativas, como média e desvio padrão (DP), mínimo e máximo. Para as dimensões do instrumento de QV, apresentaram-se ainda mediana, IC 95% da média e intervalo interquartil (IIQ).

Para a análise da confiabilidade e consistência interna do WHOQOL-bref, utilizaram-se o coeficiente alfa de Cronbach para consistência interna e o coeficiente de correlação intraclasse (CCI).

Para verificar os fatores associados aos domínios de QV, realizaram-se as análises bivariadas e múltiplas. Na análise bivariada, utilizaram-se os testes t de Student para amostras independentes ou a análise de variância (ANOVA) para comparar os escores médios dos domínios de QV entre as variáveis nominais e ordinais, respectivamente. A seguir, foi realizada análise de regressão linear múltipla tendo como variáveis dependentes os domínios de QV. Incluíram-se, nos modelos de regressão, variáveis com p-valor < 0,20 e sexo e idade como potenciais variáveis confundidoras. Em todas as análises, valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significantes.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação do Ensino Superior de Rio Verde (Fesurv) - Universidade de Rio Verde - por meio do Parecer nº 2.288.371, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 69111317.0.0000.5077, em 21 de setembro de 2017.

RESULTADOS

A população de referência foi constituída por 419 estudantes matriculados do segundo ao oitavo período do curso de Medicina. A maioria dos participantes da pesquisa foi do sexo feminino (64,7%), com idade média de 22,1 (DP ± 4,3) anos e solteiros (96,2%) (Tabela 1). Cerca de 25,1% relataram usar substâncias estimulantes às vezes, e 9,3%, sempre. Um total de 28,6% pensou em desistir do curso e 32,5% relataram que apenas às vezes se sentem capazes de gerir o estresse.

Tabela 1 Distribuição das características dos EM de uma instituição do Centro-Oeste brasileiro. Aparecida de Goiânia, GO, Brasil, 2018 

Variáveis n %
Sexo
Masculino 148 35,3
Feminino 271 64,7
Estado civil
Solteiro 403 96,2
Casado 16 3,8
Atividades extracurriculares
Não 172 41,1
Sim 247 58,9
Uso de estimulantes
Nunca 275 65,6
Às vezes 105 25,1
Sempre 39 9,3
Pensa em desistir do curso
Não 299 71,4
Sim 120 28,6
Dorme bem
Sempre 11 2,6
Quase sempre 211 50,4
Às vezes 142 33,9
Quase nunca 44 10,5
Nunca 11 2,6
Variáveis n %
Sente-se capaz de gerir o estresse
Sempre 30 7,2
Quase sempre 223 53,2
Às vezes 136 32,5
Quase nunca 25 6,0
Nunca 5 1,2
Consumo recomendado de frutas/verduras
Não 257 61,3
Sim 162 38,7
Consumo de alimentos hipercalóricos
Não 250 59,7
Sim 169 40,3
Exercícios regulares
Não 169 40,3
Sim 250 59,7
Tabagismo
Nunca 401 95,7
Ex-fumante 9 2,1
Fumante 9 2,1
Comorbidades
Não 346 82,6
Sim 73 17,4
Uso de álcool
Não 157 37,5
Sim 262 62,5
Total 419 100

Fonte: Elaborada pelas autoras.

No tocante aos hábitos de vida, 61,3% não consomem frutas e verduras de acordo com o recomendado; 40,3% consomem alimentos hipercalóricos; 59,7% praticam exercícios físicos de forma regular; 95,7% nunca fumaram; 62,5% fazem uso de álcool; e 17,4% relataram possuir alguma comorbidade.

A Tabela 2 apresenta a análise descritiva dos domínios de QV dos EM, assim como testes de consistência interna. Verificou-se que o maior escore de QV foi no domínio ambiental (68,8) e o menor no domínio psicológico (62,3).

Tabela 2 Análise dos domínios do QV em EM de uma instituição do Centro-Oeste brasileiro. Aparecida de Goiânia, GO, Brasil, 2018 

Domínios Média (DP) IC95% Mediana IIQ Valor Alfa de Cronbach CCI p-valor*
Mín. Máx.
Físico 63,2 (14,7) 61,8-64,6 64,3 45,6-75,0 21,4-100,0 0,764 0,758 < 0,001
Psicológico 62,3 (15,0) 60,9-63,7 65,0 55,0-75,0 20,0-95,0 0,688 0,683 < 0,001
Social 68,6 (19,6) 66,7-70,4 75,0 58,3-75,0 8,3-100,0 0,711 0,701 < 0,001
Ambiental 68,8 (13,3) 67,6-70,1 68,7 59,4-78,1 31,2-100,0 0,754 0,752 < 0,001
Geral 67,9 (19,3) 66,1-69,8 75,0 50,0-75,0 0,0-100,0 0,674 0,669 < 0,001

DP: desvio padrão; IC 95%: intervalo de confiança de 95%; IIQ: intervalo interquartil; Mín.: mínimo; Máx.: máximo; CCI: coeficiente de correlação intraclasse; *teste F. Fonte: Elaborada pelas autoras.

Na análise bivariada dos fatores associados aos domínios da QV, verificou-se que os escores de QV foram menores nas mulheres do que nos homens, nos domínios físico (p-valor < 0,001), psicológico (p-valor < 0,001) e ambiental (p-valor = 0,001).

Os estudantes que relataram pensar em desistir do curso apresentaram escores menores de QV do que aqueles que não reportaram essa característica em todos os domínios (p-valor <0,001).

Ainda, aqueles que relataram o uso de estimulantes sempre ou às vezes apresentaram escores menores de QV nos domínios físico (p-valor < 0,001), psicológico (p < 0,001), social (p-valor < 0,005) e geral (p-valor < 0,002). Os discentes que relataram ter comorbidades apresentaram escores menores de QV no domínio físico (p-valor <0,021) e os que reportaram consumo recomendado de frutas ou verduras apresentaram maiores escores de QV nos domínios físico (p-valor = 0,032) e geral (p-valor < 0,001).

Os estudantes que relataram prática regular de atividade física apresentaram maiores escores de QV em quase todos os domínios (p-valor < 0,05), exceto no domínio social. Os fumantes apresentaram menores escores de QV no domínio geral (p-valor = 0,045).

Com relação às variáveis quantitativas, observou-se que quanto maiores são as horas de sono, maior é a QV em todos os domínios (p-valor < 0,05). Observou-se ainda quanto melhor é a gestão do estresse, melhor é a QV em todos os domínios (p-valor < 0,001).

A tabela 3 apresenta os fatores associados aos domínios de QV obtidos na análise de regressão múltipla.

Tabela 3 Fatores associados aos domínios de QV, obtidos na análise de regressão múltipla, dos EM de uma instituição do Centro-Oeste brasileiro. Aparecida de Goiânia, Goiás, Brasil, 2018 

Domínios β IC 95% p-valor
Físico
Idade (anos) -0,016 -0,275; 0,243 0,903
Sexo
Masculino (R)
Feminino -3,239 -5,686; -0,793 0,010
Uso de estimulantes
Nunca (R)
Às vezes -3,221 -5,853; -0,589 0,017
Sempre -9,702 -13,704; -5,700 < 0,001
Pensa em desistir do curso
Não (R)
Sim -6,713 -9,257; -4,169 < 0,001
Consumo frutas/verduras
Não (R)
Sim -0,364 -2,771; 2,042 0,766
Consumo de alimentos hipercalóricos
Não (R)
Sim -0,546 -2,839; 1,747 0,640
Exercícios regulares
Não (R)
Sim 3,899 1,584; 6,213 0,001
Comorbidades
Não (R)
Sim -3,122 -6,183; -0,065 < 0,001
Tabagismo
Nunca (R)
Ex-fumante -2,137 -9,995; 5,719 0,593
Fumante -3,322 -10,961; 4,315 0,393
Horas de sono 1,278 0,130; 2,425 0,029
Gestão do estresse 3,852 2,275; 5,429 < 0,001
Valor de F (p-valor): 23,57 (< 0,001) R2: 0,431 R2 ajustado: 0,412 VIF: 1,14
Psicológico β IC 95% p-valor
Idade (anos) -0,111 -0,395; 0,172 0,440
Sexo
Masculino (R)
Feminino -1,679 -4,228; 0,879 0,196
Uso de estimulantes
Nunca (R)
Às vezes -3,949 -6,757; -1,140 0,006
Sempre -7,955 -12,221; -2,689 < 0,001
Pensa em desistir do curso
Não (R)
Sim -10,051 -12,792; -7,311 < 0,001
Comorbidades
Não (R)
Sim -0,708 -3,923; 2,507 0,665
Consumo de alimentos hipercalóricos
Não (R)
Sim -1,506 -3,976; 0,964 0,231
Exercícios regulares
Não (R)
Sim 3,024 0,559; 5,488 0,016
Período do curso 0,166 -0,419; 0,750 0,577
Horas de sono 1,636 0,448; 2,823 0,007
Gestão do estresse 5,651 3,998; 7,305 < 0,001
Valor de F (p-valor): 21,91 (< 0,001) R2: 0,349 R2 ajustado: 0,333 VIF: 1,08
Social β IC 95% p-valor
Idade (anos) -0,207 -0,623; 0,208 0,327
Sexo
Masculino (R)
Feminino 1,717 -2,134; 5,569 0,382
Uso de estimulantes
Nunca (R)
Às vezes 0,354 -3,827; 4,537 0,868
Sempre -4,709 -11,049; 1,630 0,145
Pensa em desistir do curso
Não (R)
Sim -10,159 -14,217; -6,102 < 0,001
Consumo frutas/verduras
Não (R)
Sim 0,134 -3,724; 3,993 0,946
Consumo de alimentos hipercalóricos
Não (R)
Sim -3,177 -6,870; 0,515 0,091
Exercícios regulares
Não (R)
Sim 2,813 -0,915; 6,541 0,139
Horas de sono 0,917 -0,843; 2,677 0,306
Gestão do estresse 5,367 2,922; 7,811 < 0,001
Valor de F (p-valor): 7,48 (< 0,001) R2: 0,155 R2 ajustado: 0,134 VIF: 1,10
Ambiental β IC 95% p-valor
Idade (anos) -0,341 -0,620; -0,061 0,017
Sexo
Masculino (R)
Feminino -2,600 -5,178; -0,023 0,048
Pensa em desistir do curso
Não (R)
Sim -5,013 -7,708; -2,329 < 0,001
Consumo frutas/verduras
Não (R)
Sim 1,298 -1,287; 3,883 0,324
Consumo de alimentos hipercalóricos
Não (R)
Sim -1,206 -3,678; 1,266 0,338
Exercícios regulares
Não (R)
Sim 3,655 1,110; 6,160 0,004
Horas de sono 1,368 0,183; 2,552 0,024
Gestão do estresse 3,278 1,658; 4,909 < 0,001
Valor de F (p-valor): 10,15 (< 0,001) R2: 0,165 R2 ajustado: 0,149 VIF: 1,09
Geral β IC 95% p-valor
Idade (anos) -0,449 -0,845; -0,052 0,027
Sexo
Masculino (R)
Feminino -0,447 -4117; 3,222 0,811
Pensa em desistir do curso
Não (R)
Sim -5,920 -9,722; -2,119 0,002
Uso de estimulantes
Nunca (R)
Às vezes -1,087 -5,029; 2,857 0,588
Sempre -5,494 -11,493; 0,504 0,072
Consumo frutas/verduras
Não (R)
Sim 3,731 0,132; 7,329 0,042
Consumo de alimentos hipercalóricos
Não (R)
Sim -0,351 -3,788; 3,086 0,841
Exercícios regulares
Não (R)
Sim 8,971 5,500; 12,442 < 0,001
Tabagismo
Nunca (R)
Ex-fumante 1,661 -10,117; 13,441 0,782
Fumante -12,797 -24,208; -1,387 0,028
Período -0,530 -1,339; 0,278 0,198
Horas de sono 3,067 1,413; 4,720 < 0,001
Gestão do estresse 5,081 2,792; 7,370 < 0,001
Valor de F (p-valor): 10,60 (< 0,001) R2: 0,254 R2 ajustado: 0,230 VIF: 1,11

IC 95%: intervalo de confiança de 95%; R: categoria de referência; β: coeficiente de regressão; VIF: teste indica presença ou ausência de colinearidade (a presença de um VIF > 0,4 indica presença de colinearidade); R2 e R2 ajustado: coeficiente de determinação (indica o poder explicativo do modelo). Fonte: Elaborada pelas autoras.

Verificou-se que sexo feminino foi associado negativamente aos domínios físico (β = -3,239; p-valor = 0,010) e ambiental (β = -2,600; p-valor = 0,048). Isso sugere que as mulheres apresentam menor nível de QV desses domínios em relação ao nível obtido pelos homens.

Uso de estimulantes “às vezes” e “sempre” associou-se negativamente com os domínios físico e psicológico de QV, sugerindo que o uso dessas substâncias diminui a QV dos EM.

Ser fumante associou-se negativamente com a QV no domínio geral (β = -12,797; p-valor < 0,028). Pensar em desistir do curso foi associado negativamente aos domínios físico (β = -6,713; p-valor < 0,001), psicológico (β = -10,051; p-valor < 0,001), social (β = -10,159; p-valor < 0,001), ambiental (β = -5,013; p-valor < 0,001) e geral (β =-5,920; p-valor = 0,002), indicando que os EM com essa característica apresentam diminuição da QV de todos os domínios quando comparados àqueles que não pensam em desistir do curso de graduação.

Consumo recomendado de frutas ou hortaliças foi associado positivamente à QV geral (β = 3,731; p-valor = 0,042). A prática regular de atividade física associou-se positivamente à QV nos domínios físico (β = 3,899; p-valor = 0,001), psicológico (β = 3,024; p-valor = 0,016), ambiental (β = 3,655; p-valor = 0,004) e geral (β = 8,971; p-valor < 0,001), sugerindo aumento da QV com a prática de exercícios físicos.

Relato de alguma comorbidade associou-se negativamente à QV no domínio físico (β = -3,122; p-valor < 0,001), sugerindo que comorbidades diminuem a QV dos EM.

Verificou-se que, a cada aumento da hora de sono do estudante, os escores de QV aumentaram para os domínios físico (β = 1,278; p-valor = 0,029), psicológico (β = 1,636; p-valor = 0,007), ambiental (β = 1,368; p-valor = 0,024) e geral (β = 3,067; p-valor < 0,001).

Por fim, o fator gestão do estresse foi associado positivamente a todos os domínios de QV. Isso sugere que o aumento da percepção positiva de que é possível gerir o estresse elevou a QV em todos os domínios.

DISCUSSÃO

O perfil dos estudantes avaliados neste estudo foi semelhante aos presentes na literatura, sendo a maioria do sexo feminino5), (6, solteiros e com idade média de 22 anos7)-(10. Foi encontrado um resultado diferente em um estudo realizado em uma universidade pública no Sul do Brasil, em que predominaram estudantes do sexo masculino11.

Em relação à QV, alguns fatores foram relacionados negativamente: ser do sexo feminino, fazer uso de estimulantes às vezes e sempre, pensar em desistir do curso e possuir comorbidades. Os fatores relacionados com melhor QV foram consumo de frutas e hortaliças, prática de atividade física, mais tempo de sono e gestão do estresse.

Quando se analisou a variável gênero, este estudo constatou que ser do sexo feminino foi relacionado com uma pior QV nos domínios físico e ambiental. Esse resultado foi semelhante aos de outros autores. Um estudo que avaliou a QV e fatores associados ao menor escore de QV de EM demonstrou que os alunos do sexo masculino apresentaram maiores escores nos domínios físico, psicológico, nível de independência e QV e no escore global, quando comparados ao feminino7), (12. Outros estudos relacionaram piores escores de QV entre as estudantes do sexo feminino nos domínios uso do tempo, físico e psicológico13), (14. Esse resultado pode ser justificado pelas modificações físicas e emocionais pelas quais passa o organismo feminino, interferindo no ciclo sono-vigília por meio das variações do estrógeno e da progesterona15.

No presente estudo, o consumo de frutas e hortaliças foi associado com uma melhor QV geral dos estudantes. Há um déficit de artigos na literatura que relacionam a QV do EM com a sua alimentação. Porém, sabe-se que a nutrição é um fator negligenciado pelos estudantes, que ingerem mais açúcar, sal e comidas gordurosas, por causa dos hábitos alimentares práticos e rápidos, tal como a preferência por produtos industrializados, baixa ingesta de frutas, hortaliças, leguminosas e omissão de refeições16), (17.

De acordo com os resultados deste estudo e a literatura, percebe-se que o EM tem uma alimentação precária, o que, associado ao estresse, aumenta os fatores de risco para desenvolvimento de comorbidades. Como estas têm comprovada relação negativa com a QV, esses fatores funcionam como um ciclo vicioso de prejuízo da QV. Essa condição contribui desfavoravelmente para o desenvolvimento das habilidades e das competências da atuação médica e do relacionamento com o paciente do futuro profissional18.

Considerando a influência da prática de atividade física na QV, o presente trabalho observou que houve uma associação positiva nos domínios físico, psicológico e ambiental. A prática de atividades esportivas causa impacto relevante na QV dos alunos, e aqueles que praticam exercícios três ou mais vezes por semana, por pelo menos 30 minutos, apresentam índices de QV superiores nos domínios físico, psicológico e ambiental8), (12.

A presença de comorbidades interferiu negativamente na QV do acadêmico de medicina, no tocante ao domínio físico. Tal relação corrobora outros estudos que também observaram escores mais baixos nos domínios físico, psicológico, social e ambiental em estudantes com comorbidades, em especial os distúrbios psiquiátricos, como ansiedade, pânico e depressão8), (10), (19. Apesar de ser frequente a presença de distúrbios psiquiátricos entre os acadêmicos de Medicina, o número de alunos que procuram tratamento é muito pequeno. Possivelmente esse resultado se associa ao estigma que essas doenças carregam, o que impede que os discentes procurem ajuda e tratamento. Dessa forma, os alunos resistem a admitir a presença desses distúrbios mesmo quando têm suporte20), (21.

Este estudo observou ainda que uma adequada gestão do estresse relacionou-se positivamente a todos os domínios da QV dos estudantes. Esses dados se correlacionam com o estudo de Oliveira22 que apontou que há uma piora da QV em 6,2 vezes quando o estresse é percebido.

No aspecto horas de sono, foi observado que, a cada hora a mais de sono, o estudante demonstra um aumento na QV para os domínios físico, psicológico, ambiental e geral. Os EM apresentam pior QV quando comparados à população geral nos domínios da saúde psicológica e das relações sociais, e isso é afetado grandemente por burnout e dificuldade no sono. Além disso, as dificuldades do sono afetam o trabalho cotidiano e aumentam a sensibilidade às experiências estressantes da aprendizagem médica3), (23.

Pesquisa realizada com EM no extremo Sul do Brasil apontou elevada prevalência (52,3%) do uso de psicoestimulantes entre os acadêmicos. Os motivos de maior importância para tal uso foram a compensação da privação de sono (47,4%) e melhora do raciocínio, da atenção e/ou da memória (31,6%). Com relação aos efeitos, mostrou uma associação entre o uso de psicoestimulantes e o aumento dos níveis de estresse. Esses achados reforçam os dados percebidos no presente estudo, que apontam que tanto o uso de estimulantes quanto a motivação para usá-los (privação de sono) se relacionam com efeitos negativos na QV do estudante24.

Quando se analisou o pensamento de desistência do curso, observou-se uma relação negativa com a QV em todos os seus domínios, como sugere outro estudo18. O pensamento de desistir do curso surge em um momento de concentração de estresse, cobrança e falta de realização pessoal, repercutindo em todos os aspectos da QV, o que prejudica não só o desempenho acadêmico, mas também o convívio familiar e social, além de refletir de forma negativa no futuro profissional. Nesse sentido, é importante incentivar os alunos a ter estratégias de enfrentamento para lidar com situações adversas, a fim de evitar que se chegue ao acúmulo de estresse psicológico e de desistência do curso18.

Este estudo apresentou algumas limitações, como uma amostra restrita a uma única instituição de ensino, além de ser um estudo transversal, ou seja, as associações encontradas são apenas de caráter exploratório, não significando que as variáveis associadas sejam fatores causadores de baixa QV. Outra limitação foi a utilização de questionário com questões fechadas, por não permitir que os alunos demonstrassem a impressão deles sobre a QV e a relação desta com a saúde e a formação acadêmica.

CONCLUSÕES

O presente estudo encontrou um conjunto de fatores capazes de interferir na QV dos EM, sugerindo a necessidade de intervenções direcionadas ao apoio pedagógico e psicológico, com o objetivo de orientar os acadêmicos sobre suas dificuldades e inseguranças. É necessário que ações voltadas para o bem-estar desses estudantes sejam criadas, bem como estratégias a fim de prevenir o estresse nesse grupo. Aprimorar o ambiente escolar, disponibilizar profissionais de assistência psicossocial e incentivar o convívio familiar se torna fundamental nesse contexto.

Entre as estratégias evidenciadas por melhorarem a QV, destaca-se a formação de grupos para prática de atividade física e conversa sobre alimentação saudável e grupo de estudo. Além disso, a disponibilidade de profissionais especializados, como psicólogos, assistentes sociais, entre outros, é de fundamental importância25.

Estudos como este objetivam promover a reflexão acerca da QV dos futuros médicos, pois quanto mais precocemente esse profissional refletir sobre a própria vida e a qualidade dela, melhor condição poderá ter para auxiliar na QV dos seus pacientes, desenvolvendo assim uma prática médica mais humanizada e empática.

Os resultados obtidos podem contribuir para pesquisas posteriores sobre o tema, e sugere-se que novos estudos de caráter longitudinal sejam realizados a fim de explorar ainda mais os fatores causadores de baixa QV entre os acadêmicos do curso de Medicina, sua prevenção e seu manejo adequado.

REFERÊNCIAS

1. World Health Organization. Development of the World Health Organization WHOQOL-bref quality of life assessment. Psychol. med. 1998;28(3):551-8. [ Links ]

2. Moreira SNT, Vasconcellos RLSS, Heath N. Estresse na formação médica: como lidar com essa realidade. Rev. bras. educ. med. 2015;39(4):558-64. [ Links ]

3. Pagnin D, Queiroz V. Influence of burnout and sleep difficulties on the quality of life among medical students. Springerplus. 2015;676(4):2-7. [ Links ]

4. Fleck MPA, Louzada S, Xavier M, Chachamovic E, Vieira G, Santos V, et al. Aplicação da versão em português do instrumento abreviado de avaliação da qualidade de vida “WHOQOL-Bref”. Rev. saúde pública. 2000;34(2):178-83. [ Links ]

5. Medeiros MRB, Camargo JF, Barbosa LAR, Caldeira AP. Saúde mental de ingressantes no curso médico: uma abordagem segundo o sexo. Rev. bras. educ. med . 2018;43(3):214-221. [ Links ]

6. Langame AP, Chehuen Neto JA, Melo LNB, Castelano ML, Cunha M, Ferreira RE. Qualidade de vida do estudante universitário e o rendimento acadêmico. Rev. bras. promoç. saúde. 2016;29(3):313-25. [ Links ]

7. Cunha DHF, Moraes MA, Benjamin MR, Santos AMN. Percepção da qualidade de vida e fatores associados aos escores de qualidade de vida de alunos de uma escola de medicina. J. bras. psiquiatr. 2017;66(4):189-96. [ Links ]

8. Serinolli MI, Olivia MPM, El-Mafarjeh E. Antecedente de ansiedade, síndrome do pânico ou depressão e análise do impacto na qualidade de vida em estudantes de medicina. Rev. gest. sist. saúde. 2015;4(2):627-33. [ Links ]

9. Aguiar RLB, Aguiar MCM, Merces MC. Síndrome de burnout em estudantes de medicina de universidade da Bahia. Rev Psi Divers Saúde. 2018;7(2):267-6. [ Links ]

10. Chazan ACS, Campos MR, Portugal FB. Qualidade de vida de estudantes de medicina da UERJ por meio do Whoqol-bref: uma abordagem multivariada. Ciênc. Saúde Colet. 2015;20(2):547-56. [ Links ]

11. Ferreira CMG, Kluthcovsky ACGC, Dornelles CF, Stumpf MAM, Cordeiro TMG. Qualidade do sono em estudantes de medicina de uma universidade do Sul do Brasil. Conexão Ci. 2017;12(1):78-85. [ Links ]

12. Irribarra T, Mery I, Lira S, Jesús M, Campos D, González L, et al. Cómo es la calidad de vida reportada por los estudiantes de Medicina? Rev. méd. Chile. 2018;146(11)1294-303. [ Links ]

13. Paro HBMS, Perotta B, Enns SC, Gannam S, Giaxa RRB, Costa FMA, et al. Qualidade de vida do estudante de medicina: o ambiente educacional importa? Rev. med. (São Paulo). 2019; 98(2):140-7. [ Links ]

14. Santos LS, Ribeiro IJS, Boery EN, Boery RNSO. Qualidade de vida e transtornos mentais comuns em estudantes de medicina. Cogitare enferm. 2017;(22)4. [ Links ]

15. Sbroggio Junior AL, Sanchez HM, Arantes Filho WM, Sanchez EG de M, Arantes BM, Guarienti WD, et al. Engagement e qualidade do sono e mais conexões do burnout acadêmico. Rev. Educ. Saúde. 2018;6(2):89-97. [ Links ]

16. Tassini CC, Val GR, Candido SSC, Bachur CKB. Avaliação do estilo de vida em discentes universitários da área da saúde através do Questionário Fantástico. Int. j. cardiovasc. sci. 2017;30(2):117-22. [ Links ]

17. Bührer BE, Tomiyoshi AC, Furtado MD, Nishida FS. Análise da qualidade e estilo de vida entre acadêmicos de Medicina de uma instituição do norte do Paraná. Rev. bras. educ. med . 2019;42(1):39-46. [ Links ]

18. Pereira FEL, Ribeiro CR, Oliveira LMS, Araujo Filho JL, Tabosa MNR, Gouveia Filho PS, et al. Correlatos da qualidade de vida com características de saúde e demográficas de estudantes de medicina. Rev. bras. qual. vida. 2017;9(3):247-60. [ Links ]

19. Serra RD, Mattos SL, Caseiro DMM. Prevalência de sintomas depressivos e ansiosos em alunos de medicina na cidade de Santos. J. bras. psiquiatr . 2015;64(3):213-20. [ Links ]

20. Vasconcelos TC, Dias BRT, Andrade LR, Melo GF, Barbosa L, Souza E. Prevalência de sintomas de ansiedade e depressão em estudantes de Medicina. Rev. bras. educ. med . 2015;39(1):135-42. [ Links ]

21. Conceição LS, Batista CB, Dâmaso JGB, Pereira BS, Carniele RC, Pereira GS. Saúde mental dos estudantes de medicina brasileiros: uma revisão sistemática da literatura. Avaliação. 2019;24(3):785-802. [ Links ]

22. Oliveira ABD. Estresse, síndrome de burnout e qualidade de vida em estudantes de medicina que utilizam metodologia ativa de ensino-aprendizagem: um estudo transversal [dissertação]. Sergipe: Centro de Ciências Biológicas e da Saúde; 2018. [ Links ]

23. Amorim BB, Moraes L, Sá ICG, Silva BBG, Camara Filho JWS. Saúde mental do estudante de medicina: psicopatologia, estresse, sono e qualidade de vida. Rev Psi Divers Saúde . 2018;7(2):245-54. [ Links ]

24. Morgan HL, Petry AF, Licks PAK, Bellester AO, Teixeira KN, Dumith SC. Consumo de estimulantes cerebrais por estudantes de Medicina de uma universidade do Extremo Sul do Brasil: prevalência, motivação e efeitos percebidos. Rev. bras. educ. med . 2017;41(1):102-9. [ Links ]

25. Moura IH, Nobre RS, Cortez RMA, Campelo V, Macedo SF, Silva ARV. Qualidade de vida de estudantes de graduação em enfermagem. Rev. gaúch. enferm. 2016;37(2):1-7. [ Links ]

FONTES DE FINANCIAMENTO Trabalho contemplado com incentivo financeiro Bolsa Pesquisador (Chamada 02/2018) e Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) (Edital 2018-2019), pela Universidade de Rio Verde (UniRV).

Recebido: 24 de Abril de 2020; Aceito: 02 de Maio de 2020

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Heloísa Silva Guerra. Alameda Pedro de Sá, s/n, CHC, lt 21E, Jardim dos Buritis, Aparecida de Goiânia, GO, Brasil. CEP: 74923-250. E-mail: heloisasguerra@gmail.com

CONTRIBUIÇÃO DAS AUTORAS

Helen Hana Fernandes Tavares, Isabela Maria Melo Miranda, Heloísa Rodrigues Soares da Silva, Monise Santana Braga e Raquel de Oliveira Santos participaram do delineamento da pesquisa, da coleta de dados, da análise dos dados e da redação do artigo. Heloísa Silva Guerra participou do delineamento da pesquisa, da coleta de dados, da análise dos dados, da redação do artigo e da revisão da versão final.

CONFLITO DE INTERESSES

As autoras declaram não haver conflito de interesses neste estudo.

Creative Commons License This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License