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Revista Brasileira de Educação Médica

versión impresa ISSN 0100-5502versión On-line ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.44 no.4 Rio de Janeiro  2020  Epub 07-Oct-2020

https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.4-editorial 

Editorial

A Pandemia pela Covid-19 e a Publicação em Educação Médica

The Pandemia for Covid-19 and Publication in Medical Education

IUniversidade de Fortaleza, Fortaleza, Ceará, Brasil.

IIEditora-chefe da Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, Distrito Federal, Brasil.


Desde o final de 2019, o mundo assistiu ao nascimento de uma doença causada por um novo coronavírus (severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 - Sars-CoV-2) que rapidamente extrapolou as fronteiras da China, onde foi diagnosticado o primeiro caso em 12 de dezembro1. A doença pelo coronavírus, denominada Covid-19, alastrou-se rapidamente por todos os continentes, sendo caracterizada como pandemia pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março de 20202. A chegada ao Brasil, no final de fevereiro de 2020, coincidiu com o Carnaval, período de grande aglomeração e deslocamento de pessoas. Foram desencadeadas várias ações para contenção da disseminação do vírus por meio da redução do contato interpessoal, levando a medidas sanitárias de restrição de circulação de pessoas, o que culminou em março com o fechamento das instituições de ensino em todo o território nacional por um período prolongado e a determinação de isolamento social na maioria dos estados. Até o momento não se tem a real dimensão do impacto das medidas implantadas para garantir segurança nas atividades de ensino-aprendizagem, em especial nos cenários de prática dos serviços de saúde.

Em 17 de março de 2020, o Ministério da Educação autorizou a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, mediante a Portaria nº 343, prorrogada até 31 de dezembro de 2020 pela Portaria nº 544, de 16 de junho de 20203.

A Medida Provisória nº 934, publicada em 1º de abril de 2020, estabeleceu normas excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e do ensino superior em decorrência da pandemia4, transformada na Lei nº 14.040, de 14 de agosto de 20205.

Se um estudante de ensino médio em 2020 se tornasse médico daqui a dez anos e indagasse um professor acerca de como foi a sua experiência na época da Covid, uma resposta plausível seria a que segue.

Por um tempo, quase tudo parou. Apenas os serviços essenciais e principalmente os serviços de saúde continuaram funcionando. Nos hospitais, os atendimentos eletivos foram suspensos, abrindo espaço para receber um número crescente de pessoas contaminadas pelo novo coronavírus, com graus variados de acometimento. Doença nova, sem série histórica para guiar diagnóstico e tratamento, com prognóstico desconhecido. Doença com espectro de acometimento amplo e desconhecido, variando do assintomático ao óbito em poucas horas, em que a cada dia a curva de aprendizagem era deslocada quase de forma exponencial, da mesma forma que o cômputo do crescente número de casos. Doença com testes diagnósticos pouco específicos e sensíveis e sem um tratamento comprovadamente eficiente para combate ao vírus. Muita especulação científica (e até contraditória), com inúmeros artigos publicados a cada dia e necessidade de retratação pública de duas grandes e renomadas revistas por publicações de resultados de tratamentos promissores com conclusões precipitadas, que depois foram refutados.

Foi um tempo de suspensão das atividades de ensino presenciais, em todo o país, da educação infantil à pós-graduação, cedendo espaço para o ensino a distância. Foi um tempo de medo e de coragem, com poucas evidências e muitas dúvidas, suposições e hipóteses. De informações aceleradas, num volume acima da capacidade humana de análise criteriosa, cuidadosa e com a necessária prudência. Os fatos muito novos, sem a comprovação científica que apenas o tempo traz, dia a dia surgiam, numa velocidade espantosa, cedendo espaço a inferências superficiais e pouco científicas e gerando grandes debates e embates. Foi um tempo de muitas perguntas e poucas respostas, de reforçar o cuidar e ser cuidado, observando o outro e aprendendo novas formas de se comunicar à distância, com sorriso pelo olhar, pois a boca estava coberta por máscara. Foi um tempo das telas e do distanciamento, estávamos cada um no seu espaço, confinados em casa ou na linha de frente de atendimento aos doentes. Foi um tempo de diversidade e adversidade, e de superação de obstáculos, em que realidades distintas e muito distantes conviveram, trazendo novos desafios para a assistência e o ensino. Num país de extensão continental, a Covid-19 deixou marcas em todos os lugares, de formas diferentes, com impactos muito diversos, dependendo do grau de planejamento, preparação e enfrentamento da pandemia nos diversos setores. A reorganização e a retomada fora, ao mesmo tempo, rápidas e lentas. Aprendemos a conviver com o novo normal. E vivenciamos o mundo VUCA - acrônimo de volatility, uncertainty, complexity e ambiguity - na sua real acepção: volátil, incerto, complexo e ambíguo.

Produziu-se material em redes sociais, sites e plataformas virtuais em um volume e com uma velocidade como nunca havia sido experimentado. A adaptação aos ambientes virtuais mostrou o quão versáteis os indivíduos e as instituições conseguem ser. E trouxe a reflexão do quanto estamos preparados para tal realidade.

A pandemia mostrou, com o isolamento social e a suspensão das atividades didáticas presenciais, a diversidade de condições para a manutenção de ensino a distância nas escolas médicas brasileiras. Home office e home schooling se tornaram palavras comuns no vocabulário das famílias. Treinamento docente, plataformas digitais e acesso à internet foram alguns fatores limitantes na continuidade das atividades de ensino nos cursos de Medicina pelo país afora e mostraram desigualdades entre as escolas que tinham seus ambientes virtuais de aprendizagem consolidados e em plena utilização e aquelas que necessitaram definir plataformas e metodologias, com imposição de dificuldades e limitações. Professores e estudantes precisaram conviver com o desafio de conciliar o trabalho ou estudo virtual com a rotina doméstica, que desnudou realidades tão diversas e expôs fragilidades e o imenso abismo social vivenciado em nosso país.

Muitos docentes, estudantes e pesquisadores em educação médica aproveitaram o tempo em confinamento domiciliar para produção de artigos científicos, tornando públicos seus estudos e suas experiências de ensino-aprendizagem. A demanda de submissões foi crescendo à medida que a Covid-19 se perpetuava.

Em 2020, a Revista Brasileira de Educação Médica (RBEM) iniciou a publicação de artigos em fluxo contínuo (rolling pass), com periodicidade trimestral, exclusivamente on-line. A revista tem acesso aberto e gratuito (free open access). Houve crescimento no número de submissões para a RBEM, com 399 manuscritos até 23 de agosto de 2020, representando um aumento de 34,8% em relação ao mesmo período de 2019, quando 296 manuscritos haviam entrado no fluxo editorial. A maioria é composta de artigos originais (68%), seguidos por relatos de experiência (13,5%).

Um desafio encontrado foi lidar com a demanda de trabalho em linhas de frente de enfrentamento da pandemia, a concomitância de atividades de ensino a distância síncrono e assíncrono em suas instituições de ensino, home office, adoecimento (próprio, de familiares e amigos) e demandas individuais e particulares surgidas com o isolamento, o que aumentou sobremaneira a carga de trabalho para o administrativo, os editores e revisores da RBEM. Mesmo com toda a adversidade, o fluxo editorial seguiu de forma usual e foi possível dar celeridade ao processo de editoração e revisão por pares, reduzindo para 50 dias o tempo médio entre a submissão e a decisão final de um manuscrito (em 2019 eram, em média, 65 dias).

A pandemia foi um tempo de rever a forma como fazemos a RBEM. Com o aumento da utilização das plataformas de encontros virtuais, realizamos reuniões periódicas com o Conselho Editorial, trabalhamos na revisão e atualização das instruções aos autores, tornando-as mais claras e objetivas. Uma reunião entre editores e revisores foi realizada, com amplo alcance, havendo aproximação e maior diálogo, com troca de experiências da atividade editorial na pandemia e análise do fluxo de trabalho. Utilizaram-se também as plataformas digitais para treinamento de novos editores associados. Houve ampla divulgação da revista nas mídias sociais.

Um dos objetivos de 2020 foi alavancado: melhorar a qualidade editorial para qualificar cada vez mais a revista. Diversas ações foram fomentadas, como o incentivo à tradução para o inglês dos artigos aceitos para proporcionar maior alcance e visibilidade internacional. Aproveitamos os momentos de isolamento para estreitar a aproximação e o diálogo com a Scientific Electronic Library Online (SciELO), contando com a orientação de expert em editoração científica nos processos da revista, com objetivo de aprimorar o fluxo editorial.

Há um longo caminho sendo trilhado pela RBEM. Hoje a revista está indexada em bases de dados nacionais e internacionais (Biblioteca Virtual de Educação em Ciências da Saúde, Sumários de Revistas Brasileiras, Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde - Lilacs, Índice de Revistas Latinoamericanas en Ciencias - Periodica, Índice de Revistas de Educación Superior e Investigación Educativa - Iresie, Directory of Open Access Journals - Doaj, Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal - Latindex), além do Google Scholar. A indexação em grandes bases de dados internacionais está sendo cuidadosamente preparada, com o rigor exigido ao processo.

A RBEM recebe um volume expressivo de submissões. O Conselho Editorial trabalha, comprometido com a ética, seriedade e imparcialidade, para manter o escopo editorial da revista e aumentar a qualidade das publicações, colaborando para a missão da RBEM de ser um periódico proeminente no campo da educação médica, publicando material de alta qualidade sobre temas e perspectivas relevantes nesse campo. Hoje o processo de revisão por pares da RBEM é duplo-cego (o revisor desconhece o autor e o autor desconhece os revisores do seu artigo), com dois revisores independentes por manuscrito. A plataforma utilizada pela RBEM, o ScholarOne, trabalha com o método de avaliação duplo-cego (double blind) ou cego para os autores (single blind), em que os avaliadores conhecem a identidade dos autores.

O período da pandemia trouxe reflexões interessantes acerca do tempo. Alguns acreditavam que o tempo demorava a passar, outros inferiam que a velocidade estava acelerada. O tempo é relativo. Para um autor que espera um parecer da avaliação do manuscrito, o tempo parece estar parado. O editor depende da decisão de aceitar ou declinar a revisão do manuscrito enviado ao revisor, o que nem sempre é célere. O revisor considera, muitas vezes, curto o prazo solicitado pela RBEM. Como conciliar as agendas? Como definir qual tempo é o razoável, necessário e adequado a uma revisão profunda e qualificada de um artigo científico? Quais aspectos impactarão o tempo demandado para a revisão? Certamente são questionamentos frequentes e pertinentes de editores, revisores e autores e que na pandemia adquiriram conotação diversa ante as adversidades individuais que cada membro da RBEM enfrentou.

A qualidade do material a ser publicado deve responder a algumas questões:

  • A quem interessa o tema?

  • O que será publicado é relevante, inovador ou trará novas perspectivas para a área?

  • Os métodos da pesquisa tiveram rigor científico?

  • A informação trazida no manuscrito é precisa, confiável e objetiva, permitindo a divulgação do conteúdo?

  • O título é atrativo ao leitor e comunica adequadamente o que está sendo divulgado?

A pandemia acelerou algumas discussões no campo da editoração científica. Os preprints (versão preliminar do manuscrito em plataformas abertas e externas à do periódico) estão se consolidando como uma forma preliminar de divulgação de resultados dos estudos, com as fortalezas e ameaças que essa forma de publicação de dados traz consigo. Perspectivas relacionadas à ciência aberta, tanto na avaliação aberta por pares - avaliação não cega, com transparência das identidades de autores e pareceristas - quanto na publicação de preprints, tiveram um debate preliminar entre os membros do Conselho Editorial da RBEM e no momento aparecem como estratégias a serem consideradas no futuro, pois atualmente se comportam como desafios que necessitam de amplo debate e avaliação de impacto, de acordo com o estabelecimento de cenários favoráveis e oportunidades para a RBEM.

E, finalmente, a pandemia da Covid-19 trouxe consigo reflexões acerca da educação nas profissões da saúde que podem se tornar potenciais questões de pesquisas. Abre-se um leque para explorar os diversos aspectos, sob diferentes olhares acerca dos últimos seis meses. Adaptação para o ambiente virtual de metodologias e ferramentas, com aplicação de experiências inovadoras de ensino-aprendizagem; revisão e adaptação curricular na graduação e pós-graduação; avaliação em ambiente virtual; desenvolvimento docente; integração ensino-serviço em situações adversas; acesso a recursos para aprendizagem; responsabilidade socioambiental da escola médica são algumas das temáticas a serem exploradas, trazendo novos conhecimentos para a educação médica brasileira.

Esperamos que tenhamos aprendido, como sociedade, instituições e indivíduos, sobre vulnerabilidade, o quanto a realidade pode mudar em um curto espaço de tempo e que é necessário aprender continuamente, desconstruindo conceitos e paradigmas e reaprendendo cada vez que somos surpreendidos pelo novo. Como disse Paulo Freire, na página 30 da obra Pedagogia da Autonomia6: “Só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes, pense errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas”.

REFERÊNCIAS

1. Zhu N, Zhang D, Wang W, Li X, Yang B, Song J, et al. A novel coronavirus from patients with pneumonia in China, 2019. N Engl J Med. 2020;382:727-33. doi: 10.1056/NEJMoa2001017. [ Links ]

2. World Health Organization. Novel Coronavirus (2019-nCoV) Situation Report - 51. 2020 [acesso em 23 set 2020]. Disponível em:Disponível em:https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200311-sitrep-51-covid-19.pdf?sfvrsn=1ba62e57_10 . [ Links ]

3. Brasil. Portaria nº 343, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, enquanto durar a situação de pandemia do novo coronavírus - Covid-19, e revoga as Portarias MEC nº 343, de 17 de março de 2020, nº 345, de 19 d em Pedagogia da Autononiae março de 2020, e nº 473, de 12 de maio de 2020 [acesso em 23 set 2020]. Disponível em: Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-544-de-16-de-junho-de-2020-261924872 . [ Links ]

4. Brasil. Estabelece normas excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e do ensino superior decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de emergência de saúde pública de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 [acesso em 23 set 2020]. Disponível em: Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-934-de-1-de-abril-de-2020-250710591 . [ Links ]

5. Brasil. Estabelece normas educacionais excepcionais a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020; e altera a Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009 [acesso em 23 set 2020]. Disponível em: Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2020/lei-14040-18-agosto-2020-790546-veto-161319 . [ Links ]

6. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 1996. [ Links ]

Recebido: 23 de Setembro de 2020; Aceito: 23 de Setembro de 2020

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Associação Brasileira de Educação Médica. SCN Quadra 2, Bloco D, salas 1021 e 1023, Asa Norte, Brasília, DF, Brasil. CEP: 70712-903. E-mail: danic2305@gmail.com

CONFLITO DE INTERESSES

A autora declara não haver conflito de interesses neste editorial.

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