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Revista Brasileira de Educação Médica

versão impressa ISSN 0100-5502versão On-line ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.44 no.4 Rio de Janeiro  2020  Epub 25-Ago-2020

https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.4-20190254.ing 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

De Médico de Família a Preceptor de Estudantes no Sistema Único de Saúde: Relato de Experiência

Daniel Almeida de OliveiraI 
http://orcid.org/0000-0001-5550-6007

Eder Viana de SouzaI 
http://orcid.org/0000-0001-7012-1383

IUniversidade Municipal de São Caetano do Sul, São Caetano do Sul, São Paulo, Brasil.


Resumo:

Introdução:

Neste artigo, é relatada a experiência de um médico especialista em Medicina de Família e Comunidade, que trabalha em uma unidade básica de saúde da região sul do município de São Paulo, na atenção primária à saúde do Sistema Único de Saúde, ao se tornar preceptor de estudantes de Medicina da Universidade São Caetano do Sul.

Método:

Os estudantes conheceram a estrutura típica de uma unidade básica de saúde e treinaram a confecção da entrevista médica, sob supervisão, e do exame físico, à medida que adquiriam as competências necessárias. Treinaram ainda o pedido de exames complementares. Com isso aprenderam na prática a aplicar o método clínico. Os estudantes também treinaram a competência de aplicar o método clínico em ambientes não controlados por meio da visita domiciliar, o que lhes permitiu também conhecer a realidade do paciente in loco. Por meio do acompanhamento de famílias e de casos-índice realizado durante alguns anos, os estudantes puderam conhecer os diferentes ciclos de atendimento da Estratégia Saúde da Família, inclusive a questão da morte, que se inicia no contexto sociofamiliar. Os discentes também atuaram em grupos de orientação e transmissão de conhecimento para a comunidade e puderam treinar a comunicação e a adaptação referentes à população atendida. Participaram de reuniões de equipe, nas quais vivenciaram o planejamento semanal das atividades, a discussão interdisciplinar de casos mais complexos e as estratégias criadas.

Resultados:

Obtiveram-se resultados promissores com o uso das metodologias ativas que se baseiam na autonomia do estudante ante o processo de aprendizagem. Essas metodologias são aplicadas ao ensino da Medicina em ambientes de prática clínica, pois o contato com a realidade melhora o aprendizado, desafia o aluno a pesquisar com autonomia a fim de entender com clareza o que fazer com os objetivos de aprendizagem estabelecidos, ensina a usar experiências pregressas para inter-relacionar novos conhecimentos com os conhecimentos prévios, por meio da Medicina Baseada em Evidências, e refletir sobre a prática médica.

Conclusão:

De acordo com as Diretrizes Nacionais Curriculares, a inserção do estudante de Medicina no âmbito do Sistema Único de Saúde é imprescindível para que ele possa adquirir os conhecimentos necessários para atuar sobretudo na atenção primária à saúde.

Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde; Aprendizagem; Medicina; Saúde da Família

Abstract:

Introduction:

This article reports the experience of a physician, specialist in Family and Community Medicine, who works in a Basic Health Unit in the southern region of the city of São Paulo, in the Primary Health Care of the Unified Health System, when he became a Preceptor of Medical students at Universidade São Caetano do Sul.

Method:

The students learned about the typical structure of a Basic Health Unit. They learned how to acquire the medical history during anamnesis, under supervision, and the physical examination, as they acquired the necessary skills. They also learned how to request complementary examinations. With this training, they learned how to apply the clinical method during practice. The students also learned the competence to apply the clinical method in uncontrolled environments through the home visit, which also made it possible to know the reality of the patient in loco. The follow-up of families and the index cases for a few years gave the students the opportunity to experience the different care cycles of the Family Health Strategy, including the question of death, which started in the socio-family context. They also participated and carried out assistance and knowledge transmission groups for the community, in which students were able to train communication and adaptation at the population level. They met and participated in the team meetings, which allowed showing the weekly planning of activities, the interdisciplinary discussion of more complex cases and the created strategies.

Results:

The promising results of the Active Methodologies based on student autonomy, in relation to the learning process, are applied to the teaching of Medicine in clinical practice environments, since the contact with reality improves learning, challenges the students to research and reflect with autonomy to think about what they must do with the established learning goals and teaches them to use previous experiences to interrelate new knowledge with previous information through Evidence-Based Medicine and reflect on medical practice.

Conclusion:

Comments are also made on the National Curricular Guidelines, which request the inclusion of the medical student within the scope of the Unified Health System, aimed mainly at Primary Health Care learning.

Keywords: Primary Health Care; Learning; Medicine; Family Health

INTRODUÇÃO

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) deixam clara a inserção do estudante de Medicina no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) para aprendizado principalmente na atenção primária à saúde (APS) e tornam flexíveis os currículos, o que permitirá que os discentes se adaptem ao conhecimento científico atual1)-(7.

Com o intuito de oferecer ao estudante maior autonomia ante o processo de aprendizagem, as metodologias ativas propõem os seguintes objetivos: levar o discente a “aprender a aprender”5),(8)-(12, desafiá-lo a realizar de forma autônoma pesquisas para que possa entender com clareza o que fazer com os objetivos de aprendizagem estabelecidos, ensiná-lo a usar experiências pregressas para inter-relacionar novos conhecimentos com os conhecimentos prévios, despertar a curiosidade e incentivá-lo a sugerir procedimentos novos que não foram considerados nas aulas e pelo professor1),(5),(8),(9),(12. O aprendizado deveria estar centrado no estudante e na pessoa, o que levaria o discente a um maior interesse por aprender sobre a pessoa, e não somente sobre a doença1),(3),(5),(8),(9),(11),(12. Incrementaria a relação do aluno com os outros estudantes, os professores e as pessoas envolvidas. O currículo deveria ser integrado sem a divisória entre ciclo básico e profissionalizante (o estudante idealmente tem contato com a prática desde o primeiro ano, preferencialmente no SUS, em que aprende não só o método clínico, mas também o funcionamento do sistema)1)-(9),(12. Isso aumentaria a resolubilidade clínica ao fazer o estudante lidar com condições e problemas complexos e singulares de saúde de forma contínua e longitudinal5)-(7, por meio da Medicina Baseada em Evidências9)-(12. Didaticamente, foi comprovado que o contato com a realidade melhora o aprendizado, a despeito do estudo da mera teoria3.

MATERIAIS E MÉTODOS

Trata-se de relato de experiência pessoal de transição de um médico de família e comunidade a preceptor de estudantes de Medicina inseridos no contexto da APS no SUS.

RESULTADOS

Em 2016, fui convidado pela Associação Saúde da Família para ser preceptor dos estudantes da Universidade São Caetano do Sul.

No início, foi um trabalho árduo, pois desconhecia o método ativo da universidade. Aos poucos, por meio de um curso e de estudos autônomos, pude conhecer a metodologia ativa.

Os estagiários são estudantes de Medicina de uma universidade pública municipal que pagam mensalidade. A maioria dos estudantes é de classe mais abastada e nunca utilizou o SUS. Tal realidade é uma grande chance de mostrar realmente a função do SUS e retirar de vez estigmas, como o fato de o SUS ser um serviço para pobres.

Primeiramente, os estudantes conheceram a estrutura típica de uma unidade básica de saúde e permaneceram algum tempo na recepção, sala de vacinas, sala de curativos, sala de acolhimento, sala de saúde da mulher e colheita de exame preventivo do câncer de colo uterino, farmácia etc.

A unidade básica de saúde, na Estratégia Saúde da Família, funciona como porta de entrada do SUS e deveria funcionar também como a gestora das redes de atenção à saúde13.

Aos poucos, os estudantes começaram a fazer a entrevista médica sob supervisão. Eu os direcionava e completava com perguntas pertinentes quando saíam do objetivo principal e faltava-lhes o conhecimento.

Quanto ao exame físico, à medida que adquiriam as competências necessárias, foi sendo feito por eles e revisado por mim.

Em relação aos exames complementares, muitas vezes os estudantes sugeriam alguns, e eu acrescentava e explicava o porquê de cada exame.

Com isso, o método clínico de formulação de hipóteses diagnósticas, análise da probabilidade de cada hipótese, solicitação de exames complementares e retorno do paciente, com nova entrevista médica e exame físico, muitas vezes após tratamento em relação ao diagnóstico de maior probabilidade baseado em evidências, era testado. As probabilidades eram ajustadas segundo a eficácia do tratamento e os exames complementares.

A reflexão da prática médica se mostra um importante fator para melhorar e aprofundar o aprendizado dos estudantes. A reflexão envolve pensamento crítico, exploração das experiências emocionais e pessoais, e exame do impacto das ações14. O pensamento crítico é despertado no ensino do método clínico baseado em evidências, na confecção de um projeto terapêutico singular e na adaptação e avaliação desse projeto na evolução do caso. A exploração das experiências emocionais e pessoais é obtido por meio de discussão com o estudante, para que ele possa verbalizar tais experiências e para que tome consciência disso. O exame do impacto das ações é feito tanto no aprendizado e conhecimento do aluno quanto na melhora da saúde do indivíduo acompanhado.

A visita domiciliar, procedimento singular da Estratégia Saúde da Família, é um momento em que podemos testar o método clínico na realidade do paciente. A visita domiciliar, além de gerar um “choque de realidade” nos estudantes (muitos nunca haviam ido a uma comunidade - “favela” - e visto condições tão precárias de habitação), proporcionou a competência de aplicar o método clínico em ambientes não controlados.

Cada aluno acompanhava uma família durante o estágio. As famílias eram diversificadas, e havia pessoas nos diferentes ciclos de vida: gestantes, crianças pequenas, jovens e adultos, idosos, de ambos os sexos. O acompanhamento de famílias e de casos-índice realizado durante alguns anos permitiu que os estudantes conhecessem os diferentes ciclos de atendimento da Estratégia Saúde da Família. Por exemplo, mostrou-lhes mulheres em idade fértil que engravidaram, passaram pelo puerpério e pela puericultura; pacientes com fatores de risco como diabetes e hipertensão arterial que evoluíram para insuficiência renal, acabando em hemodiálise; infartados que tiveram de ser aposentados e um caso de óbito por infarto. A morte, no método tradicional da medicina, tem sua iniciação no contato com o cadáver para a dissecação. Na metodologia ativa, inicia-se no contexto sociofamiliar, mostrando não somente um “cadáver frio”, mas também uma pessoa de quem os parentes e amigos sentem falta e que demonstram seus sentimentos. É um aspecto mais humano de ver a morte, evento inevitável na medicina.

Os grupos de orientação e transmissão de conhecimento para a comunidade foram um espaço rico para a ação dos estudantes, que puderam treinar a comunicação, tornando-a acessível à população, sanando dúvidas e resolvendo pequenos problemas, sob supervisão.

O papel do preceptor em relação à perspectiva do docente está associado à prática médica em situações reais, sob supervisão, mas com autonomia. Ao lidarem com a realidade da prática médica em espaços não controlados como uma unidade básica de saúde de Estratégia Saúde da Família, o estudante exercita a teoria aprendida na prática e adquire as competências necessárias para ser um médico generalista.

A participação dos estudantes na reunião de equipe possibilitou mostrar o planejamento semanal das atividades, a discussão interprofissional de casos mais complexos, as estratégias criadas por meio do diálogo dos muitos saberes dos diversos profissionais da saúde que participaram, como o enfermeiro e os agentes comunitários de saúde.

CONCLUSÃO

O estágio na APS proporcionou aos estudantes autonomia e conhecimento ligado à realidade. Para mim, que sou preceptor, foi uma experiência frutífera, gratificante e de muita aprendizagem, pois, quando se ensina, aprende-se mais.

AGRADECIMENTO

À Associação Saúde da Família, por apoiar nas UBS a Preceptoria.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 09 de Setembro de 2019; Aceito: 23 de Julho de 2020

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Daniel Almeida de Oliveira. Rua Treze de Maio, 681, Bela Vista, São Paulo, SP, Brasil. CEP: 01327-000. E-mail: 4477dao@gmail.com

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Daniel Almeida de Oliveira foi o autor principal e Eder Viana de Souza foi o coautor e orientador.

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses neste estudo.

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