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Revista Brasileira de Educação Médica

Print version ISSN 0100-5502On-line version ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.45 no.1 Rio de Janeiro  2021  Epub Jan 21, 2021

https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.1-20190310 

Artigo Original

Ensinar competências não técnicas para atendimentos de emergência: percepções de professores médicos

Teaching non-technical skills for emergency care: perceptions of professors of Medicine

Ruan Romualdo Rey1 
http://orcid.org/0000-0003-4311-1694

Anna Cinthia Tobias Pereira1 
http://orcid.org/0000-0003-3033-0855

Kamila Rangel Rosa1 
http://orcid.org/0000-0002-1350-7228

Mayara De Abreu Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0003-4181-7036

Silvana Maria Coelho Leite Fava1 
http://orcid.org/0000-0003-3186-9596

Rogério Silva Lima1 
http://orcid.org/0000-0002-1751-2913

1 Universidade Federal de Alfenas, Alfenas, Minas Gerais, Brasil.


Resumo:

Introdução:

As situações de emergência requerem ações e decisões rápidas por parte do médico, que deve articular competências técnicas, como o conhecimento e as habilidades clínicas, para o diagnóstico, e não técnicas, como a liderança e o trabalho em equipe, para proporcionar a assistência segura.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo conhecer as percepções dos professores médicos sobre o ensino das competências não técnicas para o atendimento de situações de emergência, no contexto de um curso de graduação em Medicina.

Método:

Trata-se de pesquisa de abordagem qualitativa, exploratória e descritiva, desenvolvida com 24 professores médicos de um curso de Medicina em fase de implantação. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas, com uso de roteiro semiestruturado, gravadas em áudio, com o consentimento dos participantes. Para análise dos dados, utilizou-se análise temática.

Resultados:

A análise das entrevistas possibilitou a construção de dois temas: “Ensinar urgência e emergência: uma reprodução de procedimentos” e “A transição de racionalidades no ensino das competências não técnicas para atendimentos de emergência”, com os subtemas, “Competência não técnica: por mais que eu ensine você não vai aprender” e “É possível desenvolver as competências não técnicas”.

Conclusões:

No grupo estudado, sobressai a visão tecnicista, em que se enfatiza o ensino técnico-procedimental para assistência às situações de emergência. Entretanto, coexistem diferentes concepções de ensinar e aprender, indicando uma transição de racionalidades que perpassa o entendimento dos professores. Ressalta-se a necessidade de propostas de desenvolvimento permanente do corpo docente que possibilitem repensar criticamente as concepções de aprendizagem no campo das emergências, sobretudo no âmbito dos novos cursos de graduação em Medicina.

Palavras-chave: Medicina de Emergência; Educação de Graduação em Medicina; Docentes Médicos; Habilidades Sociais; Pesquisa Qualitativa

Abstract:

Introduction:

Emergency situations require rapid response and decisions by the physician, who must articulate technical skills, such as knowledge and clinical skills for the diagnosis, and non-technical skills, such as leadership and teamwork, to provide safe care.

Objective:

To know the medical faculty’s perceptions on the teaching of non-technical skills for emergency care in the context of an undergraduate medical course.

Method:

Qualitative, exploratory and descriptive study developed with 24 medical teachers of a medical course in the implementation phase. Data collection was performed through interviews, using a semi-structured script, recorded in audio, with the participants’ consent. Thematic analysis was used for the data analysis.

Results:

the analysis of the interviews allowed the construction of two themes: “Teaching urgency and emergency: a reproduction of procedures” and “The transition of rationalities in teaching non-technical skills for emergency care”, with the subthemes, “Non-technical skills: however much I teach you, you will not learn” and “It is possible to develop non-technical skills”.

Conclusions:

In the studied group, a technicist vision stands out, emphasizing technical and procedural teaching to assist emergency situations. However, different conceptions of teaching and learning coexist, indicating a transition of rationalities that permeates the teachers’ understanding. The need for proposals for the continuing development of the faculty is emphasized, allowing critically rethinking the conceptions of learning in the field of emergencies, especially in the context of new undergraduate medical courses.

Keywords: Emergency Medicine; Undergraduate Medical Education; Medical Professors; Social Skills; Qualitative Research

INTRODUÇÃO

As situações de emergência exigem grande habilidade dos profissionais envolvidos, visto que o setor é, comumente, caracterizado pelo trabalho sob pressão durante a maior parte do tempo e requer ações e decisões rápidas e acertadas por parte da equipe de saúde1),(2.

Nesse cenário, o médico possui um papel crítico. Ele deve articular competências técnicas, como o conhecimento e as habilidades clínicas, para o diagnóstico e também precisa possuir um conjunto de competências não técnicas para proporcionar a assistência necessária nessas situações de alto risco à vida, tais como capacidade para o trabalho em equipe, liderança, comunicação, resolução de problemas3, entre outras previstas nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Graduação em Medicina4),(5.

As competências não técnicas podem ser entendidas como os componentes sociais e cognitivos que estão implícitos durante o desempenho de alguma atividade e que influenciam na qualidade dela. Outros exemplos dessas competências incluem: delegação de funções, comportamento assertivo, consciência situacional, tomada de decisões e gestão de adversidades6.

Nos setores de cuidado agudo, como os serviços de emergência, as unidades de trauma e as unidades de terapia intensiva (UTI), as competências não técnicas, aliadas ao manejo adequado dos recursos disponíveis, são fundamentais para a avaliação do paciente, a conduta terapêutica em tempo hábil e a segurança da assistência, haja vista a complexidade assistencial que implica a necessidade de decisões pautadas em nenhuma ou pouca informação disponível7),(8.

Nessa direção, estudos apontam que o desempenho ineficaz em termos de competências não técnicas é um importante fator predisponente de erros médicos, ao passo que seu adequado domínio pode evitar o erro ou mitigar seus efeitos9),(10. Apesar de sua importância, algumas dessas competências são, por vezes, secundarizadas no currículo médico e seu desenvolvimento pode ser entendido como processo que resulta apenas de tentativas e erros11.

Dada a importância das competências não técnicas no contexto do atendimento emergencial, é necessário que se reflita a respeito do espaço que tem sido destinado para seu ensino e aprendizagem no processo de formação do médico generalista, com vistas à inserção de metodologias que propiciem a sua discussão e a aprendizagem11 Essa reflexão se faz necessária sobretudo quando se consideram o recente movimento de ampliação dos cursos de graduação em Medicina que ocorreu no país e as reformas educacionais, então propostas, que almejam transformações sociais12.

Ressalta-se que há escassez de estudos que explorem as percepções e experiências dos professores médicos na formação do estudante13, particularmente no âmbito das emergências.

Esses fatores evidenciam a necessidade de conhecer, no contexto da graduação, a perspectiva dos docentes médicos sobre o processo de ensino e aprendizagem das competências não técnicas para o atendimento das emergências. Isso é fundamental porque os professores são agentes imprescindíveis para a operacionalização de mudanças nas políticas e agendas educacionais que visem às aprendizagens capazes de provocar transformações na atenção ao paciente com agravo emergencial.

Do cenário delineado, este estudo tem como objetivo conhecer, no contexto de um curso de graduação em Medicina, as percepções dos professores médicos sobre o ensino das competências não técnicas para o atendimento de situações de emergência.

MÉTODO

Trata-se de pesquisa de abordagem qualitativa, exploratória e descritiva, desenvolvida com os professores médicos de um curso de Medicina em fase de implantação, em uma universidade federal do sul de Minas Gerais. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética sob Parecer nº 1.365.998 - Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 51082615.6.0000.5142. Os participantes concederam anuência assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

O curso de Medicina começou a ser ministrado em 2014, com oferta de 60 vagas para entrada anual por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) do Ministério da Educação (MEC). O projeto pedagógico do curso (PPC) baseia-se na educação na comunidade e na integração das unidades curriculares. Conta com corpo docente médico predominantemente da região, com atuação em regime de 20 horas na universidade, ao passo que mantém as atividades clínico-assistenciais de sua especialidade em unidades de saúde, consultórios particulares e hospitais.

Esse grupo de professores é responsável pelas disciplinas dos ciclos educacionais que oportunizam as bases da prática médica e da atenção integral à saúde, supervisiona as atividades do internato e proporciona atividades teórico-práticas com inserção nos serviços de saúde, de acordo com a especialidade e com o nível de complexidade.

Participaram do estudo 24 professores médicos selecionados por conveniência, que contemplavam os seguintes critérios: ser médico e docente do curso em questão, ter experiência na área de atuação e ter vivenciado, ao longo da carreira profissional, situações de emergência. Optou-se por inserir todos os professores médicos, independentemente da especialidade, por se entender que a emergência é um eixo longitudinal do curso e seu ensino perpassa as diversas áreas clínicas. Foram excluídos os professores sem graduação em Medicina, independentemente de atuarem no ciclo clínico do curso.

Por ocasião da coleta de dados, o curso contava com 35 professores médicos, uma vez que ainda ocorriam concursos para preenchimento das vagas. Todos foram convidados a participar por meio de contato pessoal ou por e-mail. Dos professores elegíveis, um se recusou a integrar o estudo, alegando não possuir experiência na área de emergência, e dez não corresponderam ao contato eletrônico ou ao agendamento da entrevista, por incompatibilidade de horários.

Destaca-se que os entrevistadores, à época, eram estudantes do referido curso, o que favoreceu o contato com os participantes.

A coleta de dados ocorreu em salas da própria universidade, de acordo com a disponibilidade dos professores. Foi realizada uma entrevista com cada participante, pelos pesquisadores principais, por meio de gravação em áudio com o auxílio de gravadores digitais, com o consentimento dos participantes.

Para proporcionar um espaço de diálogo, utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturado com uma parte destinada à caracterização sociodemográfica dos participantes e outra composta pelas seguintes questões:

  • Além da capacidade de realizar os procedimentos e utilizar saberes para os diagnósticos, na sua opinião, o médico deve ter outras competências para atender em situações de emergência? Quais?

  • Quais são as estratégias que podem favorecer o ensino dessas competências na formação do médico, durante a graduação? Quais fatores podem dificultar?

Foi realizado um estudo-piloto com dois professores que atendiam aos critérios de inclusão com vistas ao preparo dos entrevistadores e à averiguação da pertinência do roteiro de entrevistas. Observou-se que o roteiro semiestruturado atendia aos propósitos do estudo, e os dados resultantes das duas entrevistas foram integrados ao corpus de análise.

O tempo total de duração das entrevistas foi de aproximadamente 4,4 horas, com variação de dois a 63 minutos. A variação do tempo relacionou-se à singularidade do participante na expressão de suas percepções, o que não implicou diferenças significativas no tocante aos objetivos da investigação. Ressalta-se que, em função da homogeneidade do grupo estudado, o número e a extensão das entrevistas foram suficientes para a elaboração e interpretação dos temas.

Os depoimentos foram transcritos na íntegra, totalizando 102 páginas.

Para organização e análise dos dados, utilizou-se a análise temática (AT), um método para identificar, analisar e reportar padrões dentro dos dados qualitativos. Considerou-se a AT como recurso para reportar as experiências e os significados da realidade dos participantes numa ótica que leva em conta a relação entre a experiência e a linguagem14. No entanto, não se abdicou de uma visão crítica sobre as concepções de ensino e aprendizagem que alicerçavam as visões de mundo manifestas nas entrevistas.

No desenvolvimento da AT, adotaram-se as seguintes fases: familiarização com os dados; geração dos códigos, processo realizado de modo indutivo; busca pelos temas; revisão dos temas; nomeação dos temas; e produção do relatório de pesquisa14. A análise foi realizada pelos pesquisadores principais em sessões conjuntas com o orientador da investigação, com experiência no uso do método. A revisão, nomeação e discussão dos temas contaram com a colaboração dos demais autores.

A produção do relatório atendeu aos critérios do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ) (15.

Para garantia do anonimato, atribuiu-se como código a cada participante a letra M seguida de numeral arábico.

RESULTADOS

A caracterização dos participantes está descrita na Tabela 1.

Tabela 1 Caracterização dos professores médicos participantes do estudo - 2017 

Variáveis n (%)
Sexo
Masculino 10 (42)
Feminino 14 (58)
Média de idade 42,69 anos (DP = 8,86)
Tempo de experiência como médico 17,39 anos (DP = 7,61)
Tempo de experiência como docente 8,75 anos (DP = 7,79)
Possuem título de mestre 3 docentes (12,5)
Possuem título de doutor 7 docentes (29,1)
Possuem título de especialista 14 docentes (58,4)

Fonte: Elaborada pelos autores.

A análise das entrevistas possibilitou a construção de dois temas, um dos quais com dois subtemas, conforme apresentado no Quadro 1.

Quadro 1 Percepção dos professores médicos sobre o ensino de competências não técnicas para atendimentos de emergência, 2017 

Temas Subtemas
1. Ensinar urgência e emergência: uma reprodução de procedimentos.
2. A transição de racionalidades no ensino das competências não técnicas para atendimentos de emergência. 2.1. Competência não técnica: por mais que eu ensine você não vai aprender.
2.2. É possível desenvolver as competências não técnicas.

Fonte: Elaborado pelos autores.

O primeiro tema, intitulado “Ensinar urgência e emergência: uma reprodução de procedimentos”, demonstra a ênfase que muitos docentes atribuem às competências técnicas no ensino de urgência e emergência. Observou-se que o aspecto técnico-procedimental é privilegiado no decorrer da formação:

[...] é isso mesmo que o médico tem que estar preparado para uma emergência e urgência [...] que é intubação, as drogas vasoativas, reanimação, é isso que pede uma emergência e urgência (M2).

Eu acho que o médico é fundamental ter um treinamento técnico. [...] Se você treinar, der esse treinamento técnico para qualquer pessoa, a pessoa vai conseguir fazer e vai salvar a vida do doente (M15).

Em face disso, os docentes sinalizaram como dificuldades apenas aquelas que impossibilitavam a reprodução dos procedimentos, sobretudo as condições materiais do processo de ensino das técnicas em emergência.

Nessa direção, um ambiente tumultuado é considerado uma barreira para o aprendizado, por interferir na explicação adequada dos procedimentos, em razão da necessidade do rápido atendimento, da existência de interrupções constantes ou do grande número de pessoas no mesmo local: “a questão do próprio ambiente de trabalho, às vezes é um lugar que tem muito doente, tem muita confusão, não dá para parar, para explicar, para ver...” (M4).

O tempo reduzido de práticas no ambiente hospitalar, as carências na estrutura do curso e o elevado número de alunos são vistos como empecilhos, pois, para os docentes, trata-se de fatores que diminuem a chance de o estudante observar o atendimento e realizar procedimentos em situações reais:

[...] estar pouco tempo dentro do hospital. Ter pouco procedimento. Acho que o tempo de você estar dentro do hospital, mesmo que você não esteja fazendo a princípio nada, ele é fundamental (M4).

Se você não tem um curso de Medicina estruturado, se você não tem esse material, você vai aprender isso onde? Em um posto de saúde? Você não vai aprender! (M18).

Eu acho que um grande número de alunos por docente, em um laboratório de habilidades ou de simulação dificulta bastante, porque você tem que ter a certeza de que cada aluno conseguiu executar aquele procedimento que você está propondo (M5).

Nessa perspectiva, os professores reiteraram os aspectos que favorecem o ensino de competências técnicas, a exemplo do laboratório de habilidades: “Ter um laboratório de habilidades que favoreça esses treinamentos, eu acho que isso é fantástico, porque, assim, você não fica totalmente perdido. Quando você vai começar mesmo, já fazer em um paciente, você já teve uma vivência” (M14).

No entanto, alguns docentes mantinham a percepção de que apenas no campo prático dos serviços é possível aprender os aspectos procedimentais das situações de emergência:

[...] o aluno deve vivenciar essa experiência, não apenas no conhecimento teórico, nos livros, deve vivenciar in loco, na prática, ver o paciente ao vivo, na sala de emergência, no pronto-socorro, esse primeiro atendimento, então, eu acho fundamental o aluno vivenciar na prática, pôr a mão, mas sempre com a presença de um tutor [...] (M8).

O segundo tema, nomeado “A transição de racionalidades no ensino das competências não técnicas para atendimentos de emergência”, evidencia as percepções que denotam a existência entre o corpo docente de um movimento de mudanças de concepções. Dessa forma, alguns participantes citaram exemplos de diversas competências não técnicas e consideraram possível o seu desenvolvimento durante a graduação; outros, no entanto, acreditam que tais competências são inerentes ao sujeito, e nada ou muito pouco pode ser feito pelo discente que não as possui.

O autocontrole despontou como uma competência não técnica valorizada pelos docentes.

[...] além do conhecimento técnico [...] tem a questão do autocontrole. [...] se o aluno ou o profissional não tiver um equilíbrio [...] tudo fica mais difícil, porque o desespero faz com que você esqueça muitas coisas, muitos protocolos [...]. Se você não está naquele equilíbrio, naquela harmonia, e na tranquilidade de enfrentar aquela situação, você pode saber tudo, ter todo o conhecimento técnico, mas você não sabe liderar a equipe, você não tem estabilidade emocional para isso, e aí toda a equipe fica desestabilizada; e aí o paciente não é bem assistido (M11).

Outras competências também foram mencionadas, como a capacidade de trabalhar em equipe, a liderança, a empatia e a habilidade de comunicação, tanto com a equipe quanto com a família do paciente, como características que precisam ser desenvolvidas para conduzir o atendimento de urgência e emergência.

Saber trabalhar em equipe seria uma das coisas mais importantes. Dificilmente você em uma situação de emergência dá conta de fazer um procedimento sozinho (M7).

[...] geralmente, em uma situação dessa, o médico é o coordenador dessa equipe. Então você tem que ter habilidades e competências de liderança, para poder determinar qual o papel de cada um, o que cada um vai fazer (M13).

[...] ele tem que ter uma boa comunicação com as pessoas dentro da sala de emergência... (M21).

Depois desses procedimentos todos, você vai ter que conversar com a família, por exemplo. Então, isso é importante: comunicação [...] (M7).

[...] ele tem que ter empatia pelo paciente, ele tem que se colocar no lugar e ver, imaginar pelo menos o que o paciente está sentindo, porque isso favorece inclusive, em minha opinião, a tomada de decisão rápida e o desejo de resolver rapidamente aquilo (M10).

Desse entendimento, os docentes reportaram elementos que, na visão deles, facilitam ou dificultam o ensino dessas competências não técnicas:

[...] o professor ou o tutor viabilizar esse tipo de treinamento, inclusive com simulações realísticas, técnicas de metodologia ativa, mini-OSCE [Objective Structured Clinical Examination] por exemplo, isso favorece muito tanto o preparo técnico quanto o preparo emocional do aluno (M10).

Trabalhar com simulação. Que vai simular um ambiente real, você vai pôr as pessoas para trabalhar em equipe, e aí você consegue começar a desenvolver. Então, dentro da graduação, a simulação é o melhor meio para estar conseguindo trabalhar isso (M5).

As estratégias de integração interdisciplinar e multiprofissional também foram apontadas como um aspecto importante para o desenvolvimento da capacidade de trabalhar em equipe.

Essa onipotência do médico é uma coisa que é muito danosa, e que o professor, durante a graduação, tem que procurar passar para o estudante essa necessidade de ele conviver bem com outras áreas, e que, na verdade, trabalho em equipe significa que nenhum é mais importante do que o outro [...] trabalhar junto com fisioterapeutas, trabalhar junto com o pessoal da enfermagem... Então, por exemplo, aulas interdisciplinares, cursos interdisciplinares é sempre muito bom (M7).

Um participante mencionou que a disciplina de ética pode favorecer o aprendizado de competências não técnicas, enquanto outro reportou que compreende esse processo como de caráter longitudinal:

Existem disciplinas dentro da faculdade que acho que vocês têm que é de ética. Ética, acho, porque assim, como a gente aborda o paciente... com emergência, a gente tira a roupa do paciente. Então, tem toda a questão da autonomia do paciente, [...] tem a questão da família [...] que está lá fora, preocupada com o doente. [...] eu acho que as próprias disciplinas vão tentar mostrar que realmente isso é importante [...] (M17).

[...] dentro da disciplina de graduação é difícil pensar em uma outra coisa que tenha um nome, uma matéria específica. Mas, no dia a dia de todas as matérias relacionadas à clínica cirúrgica, clínica médica, acho que a habilidade do professor em demonstrar para o aluno, a própria demonstração, aulas a respeito de relação médico-paciente, e a própria prática, quando o aluno vai e é colocado nos internatos para atuar [...] ele aprende a ter a tranquilidade (M22).

Não obstante isso, observou-se a coexistência de fatores que, na visão dos participantes, são barreiras para o ensino que se proponha a ir além do aspecto técnico-procedimental. Percebe-se que há docentes que não se consideram capacitados para o ensino das competências não técnicas e para introdução de novas metodologias.

[...] eu acredito que a maioria não está capacitada para ensinar competência e consequentemente para avaliar competência; competência não técnica, eu me refiro a isso (M1).

[...] eu acho que outra coisa é a dificuldade que a gente ainda tem dos docentes de utilizarem metodologias ativas. [...] Porque dar uma aula expositiva não vai fazer a gente desenvolver as habilidades que a gente falou, de liderança, de trabalho em equipe! (M5).

A gente vem de uma metodologia tradicional, onde o aluno está acostumado a assistir à aula, e o professor, a dar a aula. Então ele é o ouvinte e o professor é o que realmente vai passar a informação. Quando a gente pensa na metodologia ativa, isso tem que ser quebrado [...] uma dificuldade grande seria essa, a quebra do modelo tradicional para um modelo mais ativo [...] (M11).

A prática dissonante do que se ensina no campo teórico, na opinião de um dos participantes, pode dificultar o ensino das competências:

Ele ter uma teoria e depois ter uma prática que contradiz essa teoria. [...] é que às vezes as condições de atendimento são tão adversas, são tão caóticas, são tão deficitárias, que mesmo o profissional que está muito bem-intencionado, ele não consegue usar de maneira adequada aquilo que foi aprendido (M3).

O subtema intitulado “Competência não técnica: por mais que eu ensine você não vai aprender” materializa o entendimento de alguns professores médicos de que não é possível desenvolver as competências não técnicas no contexto da graduação. Concebem-se as competências não técnicas como atributos inatos, elementos da personalidade, que determinam o aprendizado do discente no contexto da emergência.

[...] tem coisas que são índole, que é índole, por mais que eu ensine você não vai aprender porque já tá no teu sangue ser de má índole (M17).

[...] acho que o perfil do médico que atende na área de emergência, assim como toda especialidade, a gente vê que determinados tipos de personalidade e até de perfil profissional se encaixam melhor em determinadas especialidades (M21).

Eu acho que ele tem que ser capaz tecnicamente, ele tem que ter o espírito, assim, ele tem que gostar de atender urgência e emergência, porque às vezes a pessoa sabe tudo aquilo, mas não tem... a gente chama de feeling, né?! (M20).

Paradoxalmente, parte dos participantes acredita que as competências não técnicas possam ser desenvolvidas, opiniões que foram agrupadas no subtema intitulado “É possível desenvolver as competências não técnicas”.

Então, essa capacidade de liderança, ela tem que ser desenvolvida, o médico que atende essa situação de emergência, ele já deve ter essa capacidade. E os alunos da graduação têm que desenvolver essa capacidade de liderança! Isso tem que ser desenvolvido nos alunos também! (M8).

Uma graduação bem-feita é aquela que leva o médico além do conhecimento científico! Além do conhecimento técnico bastante adequado, essa percepção do médico como agente social, de um médico que atende numa equipe multidisciplinar, de um médico sabendo dos aspectos emocionais do paciente, psicológicos [...] um médico eticamente bem formado! (M7).

DISCUSSÃO

Os participantes do estudo priorizam o ensino das competências técnicas e enfatizam o aspecto procedimental na área de emergência. Sobressai, portanto, uma visão tecnicista das competências requeridas para a assistência nesse campo de trabalho.

Embora grande parte dos professores médicos integrantes da pesquisa seja iniciante na carreira acadêmica, a formação deles ocorreu em um cenário no qual o ensino médico era predominantemente hospitalocêntrico, focado na doença e não no doente, reducionista, segmentando o ser humano em órgãos e sistemas, fundamentado em especialidades ou disciplinas desintegradas e na prática de procedimentos em pacientes reais. Esse modelo tradicional exerce importante influência na estruturação do ensino médico na contemporaneidade16)-(20) e, consequentemente, se desdobra também no modo como se organiza o pensamento de alguns professores, como percebido nos depoimentos.

Não obstante o fato de as recentes DCN preconizarem o aprendizado por competências, grande parte dos docentes médicos podem não ter recebido uma formação inicial que comungasse da perspectiva desse novo paradigma, o que justifica a necessidade de ampliar a discussão do papel do professor médico nos programas de formação permanente21),(22.

É importante destacar que os resultados desta investigação evidenciaram a coexistência de dois paradigmas de ensino médico no curso estudado, o que possivelmente indica um movimento de transição de racionalidades no universo simbólico dos professores, no contexto de um curso em implantação.

O primeiro deles, tradicional, fundado no modelo clínico/biológico/flexneriano, volta-se à transmissão de conhecimentos pelo professor e à reprodução de conteúdos pelo aluno, que deve armazená-los na memória e replicá-los de forma mecânica. Trata-se de um processo educacional centrado no professor, em que o aluno aprende de forma passiva17),(19),(22)-(24.

O segundo paradigma, por sua vez, pauta-se pelo ensino por competências, procura, portanto, novas metodologias para os objetivos de aprendizagem e contempla a formação crítica, ética e reflexiva de um médico generalista, com visão social e humanista, que considera a pessoa como um todo e não como um ser fragmentado. Centra-se no estudante e alicerça-se no trabalhar em equipe, no oferecimento de um atendimento de qualidade e na assistência integral, com foco na prevenção, promoção, reabilitação e recuperação da saúde4),(5),(20),(23.

Essa dualidade de paradigmas se materializa nas percepções dos médicos quanto à possibilidade de ensinarem ou não as competências não técnicas no contexto das emergências. Observa-se que alguns participantes acreditam que as competências não técnicas, como são atributos inatos ao sujeito, não possam ser ensinadas. Paradoxalmente, alguns afirmam que o ensino dessas competências é plausível, e, por isso, elas podem ser potencializadas na trajetória de formação do aluno, entendimento corroborado por estudos que documentaram que o uso de diferentes metodologias pode contribuir para o desenvolvimento dessas competências25),(26.

Nessa direção, se, por um lado, os docentes enfatizaram os aspectos procedimentais dos atendimentos de emergência como objetos centrais do ensino, notaram-se, por outro, também novos olhares sobre as estratégias que podem ser empregadas para consecução dos objetivos de aprendizagem. Por exemplo, a simulação, uma estratégia metodológica considerada atinente aos novos modelos de ensino, foi citada como recurso para reprodução de procedimentos, ou seja, na ótica de um paradigma tradicional. No entanto, alguns professores reportaram que têm se apropriado dessa metodologia para favorecer o desenvolvimento de competências não técnicas, uma vez que reconhecem que, para além dos procedimentos, a simulação também oportuniza a avaliação de aspectos comportamentais do discente diante de um cenário de urgência e emergência, em consonância com o que a literatura aponta18.

É sabido que a simulação favorece o ensino de procedimentos complexos, que não ocorrem frequentemente na prática clínica, e permite a reprodução de cenários da vida real em ambiente seguro, sem colocar em risco a segurança dos pacientes, reduzindo a possibilidade de erros27. Todavia, pode ser também um recurso para trabalhar componentes não técnicos importantes na formação do médico, tais como o gerenciamento de recursos em eventos críticos, o relacionamento entre equipes, a liderança e o relacionamento com a família do paciente18),(27)-(30.

Nessa lógica, o modo como a estratégia é operacionalizada tem relação com as concepções que direcionam as escolhas dos objetos de ensino, ou seja, a simulação pode ser apenas um recurso para reprodução de procedimentos ou proporcionar elementos para a aprendizagem conjunta de competências não técnicas, a depender do modo como o professor organiza a atividade.

Ao assumirem o pressuposto de que as competências não técnicas podem ser ensinadas para formação dos alunos na área de emergência, os professores empreendem a busca por estratégias para seu ensino e mencionam que as atividades pedagógicas baseadas na simulação, as aulas sobre ética, o uso de OSCE e aulas interdisciplinares podem contribuir para isso.

Em contrapartida, o fato de alguns docentes alegarem que as competências não técnicas não podem ser ensinadas pode representar um entrave para a busca por novos olhares para o ensino e a aprendizagem delas na área de emergência. Isso é corroborado por autores que afirmam que os docentes médicos por vezes não consideram necessário o seu desenvolvimento em metodologias ativas, porque acreditam que os seus conhecimentos técnicos são suficientes para o exercício satisfatório da docência31.

Neste estudo, as percepções dos participantes denotam a importância de propostas para desenvolvimento dos professores médicos que lhes possibilitem repensar criticamente suas concepções, dificuldades e necessidades na condução do processo de ensino31, sobretudo no contexto dos novos cursos de graduação em Medicina, que se inserem no movimento que visa à transformação dos saberes e práticas relacionados à formação médica.

Isso coloca em perspectiva a necessidade de oportunizar espaços para a formação permanente dos professores, no sentido de fomentar o desenvolvimento de um ensino que não seja pautado exclusivamente na reprodução dos modelos que foram vivenciados por eles quando eram alunos17.

O fato de as entrevistas terem sido realizadas por alunos do próprio curso é um limite da pesquisa. No entanto, como a produção de conhecimento, nesta pesquisa, é assumida como intersubjetiva32, e a subjetividade e a reflexividade são consideradas recursos para essa construção33, a explicitação dos procedimentos metodológicos, a apresentação das falas dos participantes, bem como a análise crítica e colaborativa entre os autores, corroborada pela literatura, asseguraram a credibilidade, a transferibilidade, a dependabilidade e a confirmabilidade34.

CONCLUSÃO

Por meio deste estudo, foi possível conhecer as percepções dos médicos docentes sobre o ensino das competências não técnicas para o atendimento de situações de emergência em um curso de graduação em Medicina.

Observou-se a hegemonia de uma visão tecnicista, entretanto percebe-se a coexistência de diferentes concepções de ensinar e aprender. O processo de ensino que visa proporcionar a formação aos estudantes para prestação de atendimentos emergenciais de qualidade ora é tomado como atividade reprodutora de informações e procedimentos, ora como instrumento para desenvolvimento de competências, inclusive as não técnicas. Sinaliza, portanto, um movimento de transição de racionalidades no âmbito da formação do médico, no curso em que ocorreu o estudo.

Sugerem-se outros estudos que elucidem quais estratégias de formação permanente do corpo docente médico pode potencializar a estruturação de modelos de ensinar emergência que se voltem a uma concepção ampliada de competências, para além da reprodução de aspectos técnico-procedimentais.

REFERÊNCIAS

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1Editora-chefe: Daniela Chiesa Editora associada: Daniela Chiesa

2Avaliado pelo processo de double blind review.

FINANCIAMENTO Declaramos que não houve financiamento para a realização desta pesquisa.

Recebido: 18 de Novembro de 2019; Aceito: 24 de Novembro de 2020

ruanrrey@yahoo.com.br annatobiasidc@gmail.com kamilarangelr@gmail.com mayara.maoliveira95@gmail.com silvanalf2005@yahoo.com.br rogerio.lima@unifal-mg.edu.br

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Ruan Romualdo Rey e Anna Cinthia Tobias Pereira participaram da coleta, análise, interpretação e discussão dos dados e da redação do artigo. Kamila Rangel Rosa, Mayara De Abreu Oliveira e Silvana Maria Coelho Leite Fava participaram da análise e interpretação dos resultados e da redação do artigo. Rogério Silva Lima participou da concepção e do desenho do estudo, da análise e interpretação dos dados, e da redação do artigo.

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses neste estudo.

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