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Revista Brasileira de Educação Médica

versão impressa ISSN 0100-5502versão On-line ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.45 no.1 Rio de Janeiro  2021  Epub 29-Jan-2021

https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.1-20200394.ing 

ARTIGO ORIGINAL

Sintomas de ansiedade e depressão entre estudantes de medicina: estudo de prevalência e fatores associados

Bartira Oliveira Sacramento1 
http://orcid.org/0000-0002-2931-9897

Tassiana Lima dos Anjos1 
http://orcid.org/0000-0003-2826-2996

Ana Gabriela Lopes Barbosa1 
http://orcid.org/0000-0002-7627-496X

Camila Fagundes Tavares1 
http://orcid.org/0000-0002-7062-8771

Juarez Pereira Dias1 
http://orcid.org/0000-0002-5012-5499

1 Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Salvador, Bahia, Brasil.


Resumo:

Introdução:

Os transtornos mentais comuns (TMC) implicam sofrimento psíquico e interferem nas atividades diárias, nos relacionamentos interpessoais e na qualidade de vida. Estima-se que os TMC atinjam de 9% a 12% da população mundial e de 12% a 15% da brasileira em todas as faixas etárias. Dentre os diferentes grupos sociais, os estudantes universitários possuem maior vulnerabilidade para desenvolver transtornos de ansiedade e depressão.

Objetivo:

Diante disso, este estudo se propôs a estimar a prevalência e os fatores associados a sintomas de ansiedade e depressão em estudantes de Medicina de uma capital do Nordeste brasileiro.

Métodos:

Trata-se de um estudo de prevalência, com uma amostra probabilística dos 1.339 alunos que frequentavam regularmente os 12 semestres do curso de Medicina em janeiro de 2018. Os dados foram coletados por meio da aplicação de questionário socioeconômico, comportamental e demográfico e dos Inventários de Ansiedade e de Depressão de Beck. Utilizou-se o teste de qui-quadrado para verificação de diferenças entre sintomas de ansiedade e depressão e variáveis socioeconômicas e comportamentais e as prevalências (total e por nível de gravidade) e a razão de prevalência (RP) bruta e ajustada como medida de associação. A análise de tendência linear foi empregada para verificar a existência de relação entre sintomas de ansiedade e depressão e semestres do curso. As variáveis que apresentaram RP bruta com p < 0,20 foram incorporadas na análise multivaridada, no modelo de regressão de Poisson robusto, para determinação da RP ajustada.

Resultados:

Quanto à prevalência de sintomas, constatou-se o seguinte: 30,8% para ansiedade e 36,0% para depressão. A RP bruta e ajustada para sintomas de ansiedade teve associação estatisticamente significante para sexo, idade e orientação sexual. A RP bruta e ajustada para sintomas de depressão teve associação estatisticamente significante para sexo, raça/cor da pele e orientação sexual. As análises de correlação entre os semestres do curso e a presença de sintomas de ansiedade e depressão indicaram fraco coeficiente de determinação, caráter descendente e sem significância estatística.

Conclusões:

Por se tratar de um estudo de prevalência, esta investigação não possibilita conclusões sobre causalidade. Estudos de acompanhamento adicionais são necessários para elucidar o curso da ansiedade e depressão ao longo dos semestres letivos.

Palavras-chave: Ansiedade; Depressão; Estudantes de Medicina; Ensino Médico

Abstract:

Introduction:

Common Mental Disorders (CMDs) imply psychological distress, interfering with daily activities, interpersonal relationships and quality of life. It is estimated that CMDs affect 9% to 12% of the world’s population and 12% to 15% of the Brazilian population in all age groups. Among different social groups, university students are more vulnerable to the development of anxiety and depression disorders.

Objective:

Therefore, this study proposed to estimate the prevalence rates and factors associated with symptoms of anxiety and depression in medical students in a capital city of northeast Brazil.

Methods:

This is a prevalence study, with a probabilistic sample of 1,339 students who regularly attended the 12 semesters of medical school in January 2018. Data were collected by applying a socioeconomic, behavioral and demographic survey and Beck Anxiety and Depression Inventories. The chi-square test was used to check for differences between anxiety and depression symptoms and socioeconomic and behavioral variables. The prevalence rates (total and by level of severity) and the crude and adjusted prevalence ratio (PR) were used as an association measure. Linear trend analysis was used to verify the existence of an association between anxiety and depression symptoms and semesters of the medical school. The variables that showed a crude PR with p <0.20 were incorporated into the multivariate analysis, using the robust Poisson regression model, to determine the adjusted PR.

Results:

The prevalence of symptoms of anxiety was 30.8%, whereas depression was 36.0%. The crude and adjusted PR for anxiety symptoms showed a statistically significant association with gender, age and sexual orientation. The crude and adjusted PR for symptoms of depression showed a statistically significant association with gender, ethnicity/skin color and sexual orientation. The correlation analyses between the semesters of the course and the presence of anxiety and depression symptoms indicated a weak coefficient of determination, with a descending characteristic and without statistical significance.

Conclusions:

As this is a prevalence study, this investigation does not allow conclusions on causality. Additional follow-up studies are needed to elucidate the course of anxiety and depression throughout the school semesters.

Keywords: Anxiety; Depression; Medical Students; Medical Education

INTRODUÇÃO

Os transtornos mentais comuns (TMC) correspondem a quadros clínicos em que o indivíduo apresenta sintomatologia de ansiedade, depressão, tristeza, fadiga, insônia, estresse, irritabilidade, e queixas somáticas, como anorexia, falta de ar, cefaleia, ente outras1)-(3. Todavia, essas manifestações não preenchem critérios suficientes para diagnóstico psíquico formal de depressão e/ou ansiedade segundo as classificações da quinta edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5 e da Classificação Internacional de Doenças (CID-11)4),(5, embora apresentem intensidade e frequência capazes de implicar sofrimento psíquico para os indivíduos, de modo a interferir nas atividades diárias deles, nos relacionamentos interpessoais e na qualidade de vida1),(2),(6),(7.

Estima-se que os TMC atinjam de 9% a 12% da população mundial e de 12% a 15% da brasileira em todas as faixas etárias8. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), esse quantitativo vem aumentando em todo mundo, principalmente em países de baixa renda, em indivíduos do sexo feminino, mais pobres e desempregados, justamente aqueles nos quais os sintomas de ansiedade e depressão são mais frequentes9)-(11. No Brasil, a prevalência de TMC, segundo diversos autores, varia de 19,7% a 43,7%, o que representa uma parcela significativa da população que pode requer atendimento especializado12),(13.

Dentre os diferentes grupos sociais, os estudantes universitários possuem maior vulnerabilidade para desenvolver transtornos de ansiedade e depressão, e já existem estudos que utilizam diferentes instrumentos, tais como o Self Reporting Questionnaire (SRQ-20)14, Beck Anxiety Inventory (BAI)15 e Beck Depression Inventory (BDI)16, que demonstram alta prevalência desses transtornos, sobretudo em estudantes de Medicina de vários continentes16),(17. Em países em desenvolvimento econômico, como o Egito, um estudo realizado com 700 estudantes de Medicina no ano de 2017 reportou uma alta prevalência de ansiedade (73%) e depressão (65%)18. Na Turquia, constataram-se os seguintes resultados: 35,8% para sintomas de ansiedade média e moderada e 30,5% para depressão média e moderada e 8,5% para grave19.

Por sua vez, no Brasil em 2015, estudos realizados com universitários de Medicina de Santa Catarina revelaram prevalências de 35,5% e 32,8%, respectivamente para ansiedade e depressão20. Já na Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), em 2014, a prevalência foi de 19,7% para ansiedade e 5,6% para depressão21.

Diante desse cenário de alta frequência de TMC em estudantes universitários, o objetivo deste estudo foi estimar a prevalência e os fatores associados a sintomas de ansiedade e depressão em estudantes de Medicina de uma capital do Nordeste brasileiro em 2018.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo de prevalência, com uma amostra probabilística dos 1.339 alunos que frequentavam regularmente todos os 12 semestres do curso de Medicina em janeiro de 2018 e que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido/Termo de Assentimento. Para o cálculo amostral, consideraram-se como parâmetros a prevalência média esperada de sintomas de ansiedade e depressão em estudantes universitários de 35%20),(22),(23, o erro alfa aceitável de 5% (α = 5%), o efeito do desenho de 1,5 e o nível de confiança de 95%. Foi estimado em 417 o número de alunos que, acrescidos de 10% de perdas e recusas, totalizou 457, divididos proporcionalmente, o que resultou em uma média de 35 discentes por semestre, os quais foram selecionados mediante sorteio aleatório simples.

Os dados foram coletados por meio da aplicação dos seguintes instrumentos: 1. questionário estruturado para registro de informações sociodemográficas, econômicas e comportamentais; 2. Inventário de Ansiedade de Beck (BAI) desenvolvido por Beck et al.15) e traduzido para o português e validado no Brasil em estudantes universitários por Quintão et al.24 e 3. Inventário de Depressão de Beck (BDI) também elaborado por Beck et al.16 e validado na língua portuguesa, no Brasil, por Andrade et al.25) e Gomes-Oliveira et al.26. Segundo os pontos de corte estabelecidos pelo BAI, considerou-se a seguinte pontuação: < 10 para ausência ou sintomas de ansiedade mínima, 11-19 para leve, 20-30 para moderada e 30-63 para severa. No caso do BDI, considerou-se a seguintes pontuação para depressão: < 10 para ausente ou mínima, 10-18 para leve, 19-29 para moderada e 30-63 para severa. Para esse estudo, considerou-se como presença de sintomas de ansiedade e depressão a pontuação > 10.

Realizaram-se análises descritivas mediante distribuição das frequências absolutas (n) e relativas (%) dos estratos das variáveis de interesse. Para verificação de possíveis diferenças entre sintomas de ansiedade e depressão e variáveis sociais, econômicas e comportamentais, foi utilizado o teste de qui-quadrado (χ2) de Pearson. E como medida de associação, utilizaram-se as prevalências (total e por nível de gravidade) e a razão de prevalência (RP) bruta e ajustada (Aju). Para verificação de diferença entre as prevalências, adotou-se o teste Kruskal-Wallis, assumindo como significância estatística p < 0,05.

As variáveis que apresentaram RP bruta com p < 0,20 foram incorporadas na análise multivaridada, no modelo de regressão de Poisson robusto, para determinação da RP Aju. Os dados foram processados e analisados nos softwares SPSS versão 22 e Stata versão 15.1. O projeto desta pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP), sob os nºs. 2.519.431 de 28 de fevereiro de 2018 e nº 2.572.959 de 1º de abril de 2018.

RESULTADOS

Dos 458 universitários de Medicina (34,2% do total) incluídos no estudo, 62,7% eram do sexo feminino e 60,0% tinham menos de 22 anos de idade. A mediana de idade para ambos os sexos foi de 22,0 anos. Os participantes se autodeclararam heterossexuais (92,6%) e brancos (56,7%), mencionaram ter namorado(a) fixo(a) (60,3%) e afirmaram ser católicos (48,1%). Em relação à renda familiar mensal, 50,1% referiram menos de R$ 8.000,00. Quanto à procedência, 94,3% eram do estado, sendo a grande maioria da capital (61,3%). Moravam com familiares 81,1% (Tabela 1). Do total de alunos da amostra 11,1% cursavam o primeiro e décimo semestres do curso. A prevalência de sintomas de ansiedade foi de 30,8%: leve (91 = 19,9%), moderada (39 = 8,5%) e severa (11 = 2,4%). Sintomas mínimos foram identificados em 289 discentes (63,1%) e ausentes em 28 (6,1%). Quanto à depressão, a prevalência foi de 36,0%: leve (132 = 28,8%), moderada (27 = 5,9%) e severa (6 =1,3%). Em 259 (56,6%), os sintomas eram mínimos, e, em 34 (7,4%), estavam ausentes (Gráfico 1).

Tabela 1 Prevalência de sintomas de ansiedade e depressão em estudantes de Medicina segundo variáveis demográficas, sociais, econômica e comportamentais - Salvador-BA, 2018 

Variável Ansiedade Depressão
Sim Não Sim Não
n % n % n % n %
Sexo
Feminino 107 37,3 180 62,7 0,000* 123 42,9 164 57,1 0,000*
Masculino 34 19,9 137 80,1 42 24,6 129 75,4
Idade (anos)
< 22 97 35,4 178 64,6 0,011* 100 36,5 174 63,5 0,798
> 22 44 24,0 139 76,0 65 35,3 118 64,7
Orientação sexual
Homo/bissexual 20 60,6 13 39,4 0,000* 21 63,6 12 36,4 0,001*
heterossexual 121 28,5 303 71,5 144 34,0 280 66,0
Raça/cor da pele
Outras 58 29,4 139 70,6 0,592 82 41,6 115 58,4 0,030*
Branca 82 31,8 176 68,2 82 31,8 176 68,2
Situação afetiva
Com companhia fixa 78 28,4 197 71,6 0,182 96 34,9 179 65,1 0,533
Sem companhia fixa 62 34,3 119 65,7 68 37,8 112 62,2
Religião
Católicos 62 28,3 157 71,7 0,274 70 32,0 149 68,0 0,081
Outros 78 33,1 158 66,9 94 39,8 142 60,2
Renda familiar (R$)
< 12.000,00 60 34,1 116 65,9 0,111 74 42,0 102 58,0 0,016*
> 12.000,00 46 26,3 129 73,7 52 29,7 123 70,3
Procedência
Outros 54 30,5 123 69,5 0,963 67 37,9 110 62,1 0,486
Salvador 86 30,7 194 69,3 97 34,6 183 65,4
Com quem reside
Outros 25 29,1 61 70,9 0,680 41 47,7 45 52,3 0,012*
Familiares 116 31,4 254 68,6 123 33,2 247 66,8

*Estatisticamente significante.

Gráfico 1 Prevalência de sintomas de ansiedade e depressão em estudantes de Medicina - Salvador-BA, 2018 

A RP bruta da associação dos sintomas de ansiedade e sexo feminino, idade < 22 anos e homo/bissexuais e a RP bruta da associação dos sintomas de depressão e sexo feminino, homo/bissexuais, raça/cor da pele outra (preta/parda), renda familiar (< R$ 8.000,00) e residir com outros (colegas/amigo, hotel/pensionato/república) e sozinho mostraram valor p < 0,005. No modelo de Poisson robusto, a RP ajustada para sintomas de ansiedade manteve a associação estatisticamente significante para sexo (RP Aju = 1,31 IC95% [1,17-1,47]), idade (RP Aju = 1,15 IC95% [1,02-1,29]) e orientação sexual RP Aju = 1,90 IC95% [1,26-2,86] (Tabela 2). A RP ajustada para sintomas de depressão manteve-se estatisticamente significante para sexo (RP Aju = 1,36 IC95% [1,20-1,55]), raça/cor da pele (RP Aju = 1,96 IC95% [1,29-3,04]) e orientação sexual (RP Aju = 1,19 IC95% [1,03-1,36]) (Tabela 3). As prevalências de sintomas de ansiedade e depressão entre os ciclos básico, intermediário e internato não apresentaram diferença estatisticamente significante, respectivamente, p = 0,101 e p = 0,601.

Tabela 2 Prevalência, razão de prevalência e intervalo de confiança cru e ajustado de sintomas de ansiedade em estudantes de Medicina segundo variáveis demográficas, sociais, econômica e comportamentais - Salvador-Bahia, 2018 

Variável Odds ratio cru Intervalo de confiança Odds ratio ajustado Intervalo de confiança
Sexo: Feminino 2,39 1,53-3,74 2,99 1,76-5,10
Idade: < 22 anos 1,72 1,13-2,62 1,74 1,06-2,85
Orientação sexual: homo/bissexual 3,85 1,86-7,99 3,94 1,74-8,91
Situação afetiva 0,76 0,51-1,14 - -
Renda familiar 1,45 0,92-2,29 - -

Tabela 3 Prevalência, razão de prevalência e intervalo de confiança cru e ajustado de sintomas de depressão em estudantes de Medicina segundo variáveis demográficas, sociais, econômica e comportamentais - Salvador-Bahia, 2018 

Variável Odds ratio cru Intervalo de confiança Odds ratio ajustado Intervalo de confiança
Sexo: feminino 2,30 1,51-3,50 2,86 1,82-4,51
Orientação sexual: homo/bissexual 3,40 1,63-7,11 5,08 2,30-11,22
Raça/cor da pele: branca 1,53 1,04-2,25 1,58 1,05-2,37
Religião 0,71 0,48-1,04 - -
Renda familiar 1,72 1,10-2,67 - -
Com quem mora: familiares 1,83 1,14-2,94 1,94 1,17-3,21

DISCUSSÃO

A prevalência de sintomas de ansiedade entre estudantes de Medicina observada no presente estudo (30,8%) foi inferior às encontradas por alguns autores - Ribeiro et al.27, Moutinho et al.28, Tabalipa et al.20, Ediz et al.19 e Costa et al.23 -, as quais variaram de 33,8% a 41,4%. No entanto, esses mesmos autores apontaram para prevalências de sintomas de depressão entre 8,2% e 34,6%, portanto inferiores à da presente investigação (36,0%). Já se encontra estabelecido que sintomas de ansiedade e depressão estão presentes na vida cotidiana de milhões de pessoas no mundo, afetando tanto a saúde física como a mental, em especial estudantes universitários e aqueles da área da saúde.

As discordâncias nas prevalências encontradas na literatura podem ter ocorrido por conta das diferenças regionais e culturais da população de estudantes, das metodologias empregadas e dos tipos de questionário utilizados para obtenção dos dados. Entretanto, é consenso que o curso de Medicina é visto como um dos mais difíceis e que exige do aluno esforço concentrado na dedicação aos estudos e que há alta competitividade entre os estudantes29. A trajetória acadêmica do aluno de Medicina implica uma longa e cansativa jornada diária de atividades, o que envolve deslocamentos exaustivos que ocupam, inclusive, o seu tempo para atividades sociais e de lazer e até as horas de sono30),(31. Outro fator extremamente importante é o contato com o sofrimento, a dor e até a morte do paciente, eventos que também causam tensão e estresse para os estudantes de Medicina. Toda essa situação de exaustão física e emocional dificulta o cuidado com a sua própria saúde, seja por falta de tempo ou por negligência do estudante e da faculdade, e torna elevado o risco de sintomas ansiosos/depressivos e de desenvolvimento da síndrome de burnout32),(33.

A maior prevalência de ansiedade e depressão no sexo feminino foi semelhante ao encontrado em outros estudos20),(21),(34 e consistente com o Mental Health Information, segundo o qual as desordens de ansiedade estiveram presentes no sexo feminino em 23,4% e 14,3% no masculino35, assim como com a declaração da OMS de que, mundialmente, a depressão é mais prevalente nas mulheres (5,1%) do que nos homens (3,6%)1. Tais diferenças, segundo a OMS, são consequência direta de violência de gênero, desvantagem socioeconômica, desigualdade de renda, status social baixo ou subordinado, cobranças sociais e responsabilidade pelo cuidado de outras pessoas, como a prole36. Também outros fatores podem explicar, em parte, essa maior prevalência a exemplo de influências hormonais, já que a testosterona pode ter benefícios protetores contra a ansiedade e a depressão37.

A orientação sexual homo/bissexual apresentou maior prevalência de sintomas ansiosos e depressivos em relação à orientação heterossexual, que também está associada a esses desfechos. A angústia, negação, dúvida e até mesmo rejeição, por vezes da própria família, são problemas que esse grupo enfrenta desde a descoberta e aceitação da sua orientação sexual. Desse modo, há um aumento da insegurança e dos problemas psicossociais, e uma redução da autoestima, acarretando maior vulnerabilidade a problemas psicossociais, como uso de drogas, depressão e tentativas de suicídio38),(39. Igualmente, maiores prevalências de sintomas depressivos ocorreram nos estudantes que se declararam da raça/cor da pele não branca (pardos e pretos), o que corrobora o resultado obtido por um estudo realizado com estudantes universitários da cidade do Rio de Janeiro40. Pesquisas apontam que fatores históricos como a falta de oportunidades, tanto educacionais como socioeconômicas, além dos estresses ligados aos papéis sociais e às experiências, como racismo e discriminação, são considerados importantes na maior prevalência entre pessoas negras do que entre as brancas41),(42.

Os achados de Tabalipa et al.20, Baldassin et al.43 e Bastos et al.40, de frequência mais elevada de sintomas de ansiedade nos alunos do primeiro ao terceiro ano do curso de Medicina, justamente os mais jovens, foram similares aos de nosso estudo, o que é explicado pela melhor adaptação do aluno ao curso e pelo fortalecimento das relações interpessoais com colegas da turma, formando grupos que compartilham atividades afins, como estudo, lazer, viagens etc.

Apesar de não ter sido encontrada associação entre a sintomatologia de ansiedade e depressão e o fato de os discentes residirem com familiares, o apoio dos pais é uma fonte de força para os estudantes de Medicina enfrentarem dificuldades durante seus estudos e, ao mesmo tempo, também fortalece a autoconfiança deles17),(33),(44.

Consistentes com a literatura, sintomas ansiosos e depressivos foram mais frequentes nos alunos do terceiro, quinto e nono semestres do curso. Considerando os ciclos do curso, o básico apresentou prevalência maior do que os outros ciclos, dado semelhante ao encontrado por Costa et al.23. Ao ingressar na universidade, o aluno se depara com um ambiente completamente diferente do que vinha vivenciando nos anos anteriores de estudo45),(46. Nos primeiros anos da faculdade, no período do curso básico, há a necessidade premente da integração com novos colegas e adaptação à nova metodologia de ensino, com excessiva quantidade de conteúdos teóricos, provas, seminários e outras demandas pedagógicas, que terminam estressando os alunos, resultando em exacerbação de sintomas ansiosos e depressivos44. Essa nova modalidade de ensino exige que o acadêmico desenvolva capacidades cognitivas e emocionais capazes de atender a essa nova demanda, o que repercute sobremaneira na qualidade de vida, sendo a escassez de tempo livre e o cansaço referidos pelos estudantes como os principais comprometedores da qualidade de vida47),(48. Neste estudo, as prevalências, tanto de ansiedade como de depressão, apresentam também valores elevados no último ciclo, o internato. Acredita-se que o contato mais próximo com o paciente, muitas vezes incorporando as angústias, os medos, as ansiedades e a depressão dele, faz do próprio discente um prolongamento do paciente. Além disso, a expectativa pela finalização do curso, as provas de residência médica e a entrada no mercado de trabalho contribuem para o aumento dos sintomas de ansiedade e depressão48.

CONCLUSÃO

Vale referir que deve ser adotada alguma cautela na interpretação de alguns resultados deste estudo, pois algumas questões envolviam aspectos relacionados a “foro íntimo”, como preferência sexual e renda familiar. Esses aspectos podem ter influenciado na veracidade das respostas dos estudantes. Por tratar-se de um estudo de prevalência, esta investigação não possibilita conclusões sobre causalidade, já que os resultados representam um panorama da magnitude dos sintomas de ansiedade e depressão e sua associação com fatores demográficos, sociais, econômicos e comportamentais. Estudos de acompanhamento adicionais são necessários para elucidar o curso da ansiedade e depressão nesse grupo populacional ao longo dos semestres letivos, visando apresentar uma melhor compreensão dos fatores que influenciam a saúde mental desses alunos e auxiliar no planejamento de intervenções para ajudá-los a lidar com os desafios enfrentados.

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7Avaliado pelo processo de double blind review.

FINANCIAMENTO Declaramos que não houve financiamento para a realização desta pesquisa.

Recebido: 04 de Setembro de 2020; Aceito: 06 de Dezembro de 2020

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Bartira Oliveira Sacramento e Tassiana Lima dos Anjos participaram do planejamento do estudo, da coleta, análise e interpretação dos dados, e da redação e revisão final do artigo. Ana Gabriela Lopes Barbosa e Camila Fagundes Tavares participaram do planejamento do estudo e da coleta e análise dos dados. Juarez Pereira Dias participou do planejamento do estudo, da análise e interpretação dos dados, e da redação e revisão final do artigo.

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Editora-chefe: Daniela Chiesa Editor associado: Roberto Zonato Esteves

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses neste estudo.

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