SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45 número1Projeto de ensino como apoio ao telemonitoramento dos casos de Covid-19Estudantes de Medicina no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil: reflexões éticas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista Brasileira de Educação Médica

versão impressa ISSN 0100-5502versão On-line ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.45 no.1 Rio de Janeiro  2021  Epub 20-Jan-2021

https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.1-20200311 

Ensaio

Desafios bioéticos na formação médica: uma perspectiva teleológica e axiológica

Bioethical challenges in medical schools: a teleological and axiological perspective

Adriana Ubirajara Silva Petry1 
http://orcid.org/0000-0002-7756-4328

Luís Fernando Biasoli2 
http://orcid.org/0000-0001-7357-7079

1 Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

2 Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil.


Resumo:

Introdução:

Os valores humanos e as virtudes éticas que norteiam a ação médica na sociedade contemporânea são um tema deveras importante, contudo pouco tematizado e enfatizado no processo de formação dos futuros médicos.

Objetivo:

Dada a suma complexidade do assunto para a formação profissional integral, haja vista a medicina ser uma ciência sobretudo humana que alia técnica e conhecimento ao bem-estar das pessoas, faz-se necessário problematizar quais os principais desafios bioéticos na formação médica sob uma perspectiva teleológica e axiológica.

Métodos:

Por meio de um artigo de reflexão, far-se-á uma análise sistemático-crítica conceitual das principais virtudes e dos principais valores debatidos e refletidos na tradição ética ocidental mediante cotejamento bibliográfico à luz do atual estado da arte do processo formativo médico.

Resultado:

A preocupação didático-pedagógica com valores e virtudes ético-morais, tais como caráter, amor, liberdade, respeito, responsabilidade, compaixão, paciência, humildade, fortaleza, prudência, justiça e coragem, entre outros, não está sendo privilegiada no ensino médico. Há um déficit nessa dimensão, dificultando o amadurecimento e a aprendizagem de práticas ético-morais indispensáveis em nosso tempo.

Conclusão:

O atual estágio do exercício da profissão médica, imersa num paradigma tecnicista, requer, cada vez mais, profissionais com uma formação humanista e não apenas tecnopragmática. Os desafios advindos de uma sociedade multifacetada, em constante evolução, exigem que as universidades e faculdades médicas enfoquem, precipuamente, as dimensões axiológicas e ético-morais na formação.

Palavras-chave: Valores; Virtudes; Bioética; Medicina; Paciente

Abstract:

Introduction:

Although the human values and ethical virtues that guide medical action in contemporary society constitute a very important theme, they are given little emphasis in medical training.

Objective:

Given the complexity of this issue in relation to comprehensive professional training, and since medicine is - an above all human - science, that combines technique and knowledge with people’s well-being, it is necessary to question the main bioethical challenges in medical training from a teleological and axiological perspective.

Methods:

In a reflection paper, a systematic-critical conceptual analysis of the main virtues and values debated and reflected in the Western ethical tradition is conducted by means of bibliographic comparison in light of the current state of the art of the medical training process.

Results:

A didactic-pedagogical concern with ethical-moral values and virtues such as character, love, freedom, respect, responsibility, compassion, patience, humility, fortitude, prudence, justice and courage, is not being prioritised in medical education. There is a deficit in this dimension, making it difficult for students to mature and learn the ethical-moral practices that are indispensable in our time.

Conclusion:

The current stage in the exercise of the medical profession immersed in a technicalist paradigm increasingly requires professionals with a humanist and not just techno-pragmatic background. The challenges that emerge from a constantly changing and multifaceted society require universities and medical faculties to focus, above all, on the axiological and ethical-moral dimensions of training.

Keywords: Values; Virtues; Bioethics; Medicine; Patient

INTRODUÇÃO

Os valores e as virtudes do médico na sociedade contemporânea são temas amplamente debatidos, mas que carecem de uma maior análise, pois são de vital importância na formação do futuro profissional da medicina. Estando, cotidianamente, diante da fragilidade e da vulnerabilidade provocadas pela doença e pelo sofrimento humano1, a vivência médica encontra problemas que não se resolvem apenas com a técnica2. Além da competência tecnocientífica, sempre fundamental e necessária, a prática da medicina passa pelo exercício da vivência ético-moral.

As duas competências - a que deriva da ciência e a que brota do humanismo ético - não são contrapostas, mas complementares1. Sabe-se que no curso de Medicina, durante o processo de formação acadêmica, ocorre a construção social do médico por meio do estudo de conteúdos técnicos, atitudes e comportamentos. Em contrapartida, os valores humanos e as virtudes da profissão, em geral, não são tratados em uma disciplina formal com conhecimentos estruturados, sendo ensinados, usualmente, por meio do convívio docente-discente3.

Debater sobre a formação axiológica (o ensino de valores humanos) e sobre práticas teleológicas (virtudes éticas), em qualquer área da formação universitária, sempre engendra desafios e dificuldades que transcendem o campo didático-pedagógico e a legislação educacional em vigor no país. No âmbito da formação de futuros médicos - profissionais que lidam, eminentemente, com a vida das pessoas nas situações mais extremas -, esses desafios se potencializam, pois o fazer do médico é cuidar das pessoas embasando-se nos clássicos princípios da bioética: autonomia, justiça, beneficência, não maleficência.

Existem dificuldades para encontrar bibliografia que enfoque a dimensão axiológica e teleológica na formação do futuro médico, ou seja, que procure responder ao questionamento:

  • Como desenvolver os valores humanos e as virtudes esperadas pela sociedade em um profissional médico?

Ou ainda:

  • Como transpor esses valores e virtudes para o relacionamento do profissional com seus pacientes e colegas?

Quando se examina a grade curricular de diversos cursos de Medicina no Brasil, constata-se que as disciplinas que propiciam, sobremaneira, uma reflexão sistemático-crítica sobre o atuar médico - por vezes, designadas genericamente como “humanidades” - ocupam um lugar bastante singelo e limitado na formação. De modo geral, a abordagem acerca de valores humanos e virtudes se encontra diluída nas disciplinas de Deontologia Médica, Ética Médica e Bioética. Dessa forma, o enfoque axiológico-deontológico se dá de forma transversal ao longo do curso; mas, invariavelmente, com uma abordagem superficial e generalista que não analisa o futuro médico como uma pessoa em formação, com sentimentos e princípios ético-morais que devem ser aflorados e/ou trabalhados; parte-se de um paradigma antropológico no qual o aluno é sujeito portador de emoções negativas e maléficas que devem ser reprimidas, a fim de não comprometer a capacidade técnica do futuro profissional.

Outro problema intrínseco à abordagem de valores e virtudes no exercício da medicina é o receio acadêmico e institucional de inserir, no currículo de graduação, temas ético-morais e axiológicos que, se analisados de forma breve e superficial, podem descaracterizar o rigor científico pela ausência de bases epistemológicas mais seguras. O objetivo precípuo do debate médico-pedagógico pode ser facilmente desvirtuado, uma vez que, ao redor desses temas, gravitam questões com forte interface político-religiosa. Inclusive, algumas delas parecem, à primeira vista, essencialmente moralistas ou dogmáticas, de cunho estritamente religioso, visto que a sociedade democrática, pluralista e multicultural em que vivemos não dispõe de valores em torno dos quais haja consenso absoluto4.

Consequentemente, o tratamento dispensado à formação e ao desenvolvimento de valores humanos e à prática das virtudes, no contexto da educação médica, tem denotado antes menosprezo que apreço à temática. No entanto, é inegável a relevância dessa questão diante das graves implicações que o déficit de humanidade do médico pode acarretar ao trato com os pacientes. Pensar no outro e em si mesmo tem se tornado objeto de atenção, e um currículo de graduação que forma médicos voltados unicamente para a técnica não é mais viável e desejável no século XXI.

Partindo das definições de valores humanos e virtudes, este trabalho tem como objetivo analisar a possibilidade de inserção desses temas na formação da identidade profissional do médico a partir da relação médico-paciente. Não é pretensão deste artigo exaurir todos os aspectos ético-filosóficos da discussão, nem fornecer uma resposta definitiva sobre como a abordagem dos valores e das virtudes deve ser realizada no processo de formação médica. O intuito é promover uma reflexão sobre os significados conceituais dos valores e das virtudes e questionar a sua inserção no processo formativo dos futuros médicos nas faculdades.

MÉTODO

Far-se-á uma análise sistemático-crítica conceitual das principais virtudes e valores debatidos e refletidos na tradição ética ocidental mediante cotejamento bibliográfico com teorias éticas relevantes na história da filosofia, à luz do atual estado da arte do processo formativo médico, buscando acentuar a importância do ensino e da prática de valores e virtudes.

A análise desses conceitos é fundamental para se alcançar o objetivo proposto - artigo de reflexão sobre a formação e o desenvolvimento de valores humanos (preocupação axiológica) e virtudes (debate teleológico) -, inserindo-os no contexto da prática e da vivência dos acadêmicos em Medicina.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Segundo Goergen4, “não há um só, mas muitos sentidos para o termo valor” (p. 986). De forma sintética, pode-se dizer que tudo o que nos é necessário, útil ou agradável é um valor. Assim, existem vários tipos de valores: materiais, tais como a moradia, o dinheiro; estéticos, que se traduzem na arte em geral; cívicos, representados pelo patriotismo; e os morais, como o caráter, o amor, a justiça, a responsabilidade. Necessário é ressaltar que toda conduta humana é orientada por determinados valores5. Os valores humanos são imprescindíveis, pois não se vive sem valorar ou estimar as coisas: valorar é uma condição da essência humana6. O médico, em sua atuação profissional, atribui a cada situação um determinado valor, uma importância7. Por isso, as tomadas de decisão na medicina devem levar em conta os valores, já que estes sempre interferem naquelas6.

O debate quanto aos valores humanos, à sua essência e ontologia e, ainda, à sua hierarquização ganhou destaque, nos dois últimos séculos, no pensamento sistemático-crítico sobre ética e moral. A efetividade e a importância desse forte ressurgimento da problemática ético-moral deram origem a um estudo específico sobre o tema, a axiologia (axios = valor, em grego), que tem na obra do alemão Max Scheler (1874-1928) um de seus principais e influentes pensadores.

A essência dos valores não está sujeita às vicissitudes do tempo e às contingências da História, e os valores são o objetivo e o fundamento da ética8. A importância de uma axiologia verdadeira, ou seja, de uma escala de valores a qual possibilite priorizar aquilo que tem importância no agir e no viver da pessoa, torna-se a chave para se construir uma sociedade com um rosto mais humanizado. À medida que se atribui um valor a algo, esse não nos é mais indiferente, mobilizando nossas forças e energias para alcançá-lo e vivê-lo.

Por sua vez, a virtude (aretê, em grego) pode ser definida como um “hábito bom”, praticado segundo os princípios morais, favorável ao desenvolvimento harmonioso e pleno da natureza humana9. O hábito é uma ação que se faz com tanta facilidade que parece ser automática7, ou seja, uma forma de atividade quase automatizada pela prática constante. Sua aquisição depende da influência do meio ambiente, bem como da repetição frequente dos mesmos atos, sendo uma caraterística adquirida ao longo da vida. Logo, a virtude, na condição de hábito, precisa ser exercitada para se desenvolver por completo10.

A virtude é um traço do caráter socialmente valorizado, e virtude moral é aquele aspecto moralmente valorizado, consistindo na disposição ou no hábito de agir de acordo com princípios, normas ou ideais morais. Virtude é, pois, uma qualidade ou excelência moral importante para distinguir um profissional com atributos de caráter tidos como indispensáveis para uma adequada atuação, especialmente aqueles que se dedicam a servir na área da saúde, como é o caso dos médicos6.

Portanto, é recomendável que o estudante de Medicina desenvolva as virtudes de maneira geral, para que esteja capacitado a julgar situações imprevistas durante sua vida profissional. Cabe, pois, aos docentes e discentes de Medicina cultivar hábitos que promovam qualidades ou excelências morais indispensáveis; valores e virtudes ético-morais, tais como caráter, amor, liberdade, respeito, responsabilidade, compaixão, paciência, humildade, fortaleza, prudência, temperança, justiça e coragem, entre um vasto rol de virtudes que poderiam ser elencadas. O ramo da filosofia que trata desse tema é a ética, e, a seguir, discorrer-se-á sobre algumas notas quanto à essência da ética que serão úteis para os propósitos do presente artigo.

I - Ética

A ética ou filosofia prática é considerada a ciência do comportamento moral humano, uma reflexão que busca justificar qual a coisa certa a se fazer. A moral tem sua origem etimológica em mores (costumes, em latim) e seu foco é a prática dos costumes aceitos em determinado tempo e cultura específicos, ao passo que a ética, pelo seu caráter científico, busca justificar a moral ou o costume, a fim de que este possa ser universalizado. Sua essência epistemológica está na fundamentação de um agir ou de juízos sobre as ações humanas que transcendam os particularismos, as vicissitudes e as circunstancialidades espaciotemporais.

A reflexão ética, em bases propriamente científicas, surge por volta do século V a.C. na Grécia antiga. O pensamento sistemático-crítico sobre o agir humano - por intermédio da filosofia, prioritariamente - buscou se afastar das respostas advindas da mitologia e das religiões, que tinham sua justificação numa revelação divina transcendente à razão humana. Portanto, como ciência sobre o agir moral humano, a ética tem, aproximadamente, uma caminhada de 2.500 anos. Nesse período, surgiram muitas doutrinas e correntes éticas que almejavam equacionar o problema ético. Dado que o ser humano está sujeito, inexoravelmente, ao devir histórico, as bases científicas da ética também precisam se atualizar para dar conta dos novos e, por vezes, inesperados desafios e dilemas.

Uma corrente ética das mais importantes e clássicas, surgida na aurora do pensamento da filosofia prática, é a corrente da ética das virtudes, que tem em Aristóteles (Estagira, 384 a.C.-322 a.C.) seu grande expoente. Na Ética a Nicômaco, escrita em torno de 380 a.C., o filósofo estagirita preconiza a realização ético-moral do ser humano pela efetivação de suas potencialidades, ou seja, o bem último das coisas e do ser humano é realizar a sua finalidade (télos, em grego). Por isso, as doutrinas éticas originadas dessa concepção ético-moral são conhecidas como teleológicas. Para efetivar a sua finalidade última, que no ser humano é a vida boa, ou a vida que vale a pena ser vivida, ou a felicidade (eudamonia, em grego), as pessoas devem viver uma vida de equilíbrio, meio-termo ou mediania no seu agir e viver11.

Desse modo, a vida eudaimônica, para o pensador peripatético, não estava na direta proporção do acúmulo de poder, riquezas e prazer, como o senso comum acredita, mas numa vida equilibrada, sem excessos, fugindo do comportamento e das decisões extremadas, caracterizadas como vícios ou hábitos repetitivos que degeneram. A virtude ou excelência moral resulta na efetivação do propósito do indivíduo por meio de deliberações corretas; a prática da justiça - a rainha das virtudes - acarreta uma vida eudaimônica. Isso significa que a vida plena, feliz, acontece enquanto se é virtuoso. Segundo a ética das virtudes, proposta por Aristóteles, a realização ética do médico se dá no cuidado com o paciente ao amenizar a dor, o sofrimento e salvar vidas. Dessa forma, o médico atinge a vida plena eticamente.

A partir do legado dos estudos éticos de Aristóteles, a ética - entendida como estudo e prática das virtudes morais por meio da prudência (phronêsis, em grego) ou sabedoria moral para tomar as decisões corretas ou agir bem - ficou imortalizada nos debates da história das ideias, influenciando fortemente a moral cristã, a qual dominou inconteste o Ocidente até o advento das teorias éticas de base eminentemente antropológico-racional, como as correntes éticas do Iluminismo.

O iluminista alemão Immanuel Kant (1724-1804), com sua ética deontológica (do grego déon, dever, obrigação; e logos, estudo, saber), buscou uma fundamentação ético-moral imanentista, que brota do interior do ser humano ou, no vocabulário kantiano, da boa vontade. Para ser ético, o agir deve ser movido pela boa vontade, pela intenção pura e pelo critério da universalidade12. Conforme a ética deontológica de Kant, o médico, em seu dever de agir movido pela boa vontade, precisa atuar de acordo com a beneficência e a não maleficência.

Vê-se, portanto, que no âmbito profissional a ética significa a adoção de princípios filosóficos mediante uma escala de valores ou virtudes. Esta, adotada por uma categoria profissional, orienta a prática cotidiana tendo em vista a opção de agir pelo bem comum. O caráter profissional do médico apresenta forte conteúdo ético-moral, uma vez que se baseia em regras, costumes e normas que regem o seu agir: deve se comprometer com altos padrões de conduta ética, não bastando a competência técnica per se13. A técnica e a ética em medicina são irmãs siamesas: a ética sem a técnica torna-se inconsequente, e a técnica sem a ética é cega6.

Assim, o estudo e a vivência da ética na graduação têm o potencial de despertar o futuro médico para os valores humanos, a fim de que ele não se torne completamente imune e indiferente à dor alheia, o que sacrificaria a sua capacidade de empatia. Durante a Faculdade de Medicina, os alunos precisam ser expostos a diferentes situações envolvendo problemas éticos, seja no estudo de dilemas clínicos com discussões em grupo, seja por meio do compartilhamento das experiências por parte dos docentes. Valores e virtudes devem ser ensinados e debatidos para que possam ser exercidos. Não há uma escala de valores adotada, oficialmente, na prática da medicina, mas uma das mais importantes atribuições da profissão é o saber colocar-se no lugar do outro, o tratar o paciente como o próprio médico gostaria de ser tratado. A seguir, abordar-se-ão cada uma das principais virtudes e seus principais aspectos para a realização ético-moral do futuro médico.

II - Caráter

Se há uma palavra do léxico da filosofia prática que está ligada, umbilicalmente, à ética, é a palavra caráter. Na língua grega, o vocábulo êthos (ἦθος) significa caráter, índole, e dele também se origina o termo ética - visto haver, na língua de Homero, o vocábulo éthos (ἔθος), que significa uso, costumes, tradições. Vê-se que as duas palavras, com suas especificidades semânticas, estão conectadas com o que a ciência ética tenta dar conta hoje em dia.

O caráter é o conjunto de disposições de um ser humano que lhe determina a personalidade, sua expressão exterior, seu comportamento7. Ele é a marca moral positiva ou negativa de uma pessoa: tem bom caráter quem costuma cumprir a palavra dada, esforça-se por ser verdadeiro, honesto, sincero, justo ou procura viver de acordo com suas convicções morais, mesmo nos momentos difíceis. Sabe-se que ter bom caráter não confere total imunidade contra vícios, nem transforma o ser humano numa figura angelical e santa; outrossim, uma pessoa de mau caráter também pode, circunstancialmente, fazer o bem. A diferença entre bom e mau caráter é que um costuma praticar o bem e outro costuma praticar o mal, ou seja, a frequência com que os atos são feitos é a variável que diferencia o caráter das pessoas.

No entanto, o caráter tem uma natureza dinâmica, ou seja, é passível de transformações e mudanças e pode ser moldado pela prática das virtudes. Quanto mais virtudes se adquire, mais forte é a vontade, e, assim, melhor será o caráter. A formação do caráter deve ser uma conquista diária e da vida inteira5. O médico de bom caráter possui moralidade e ética, age de acordo com convicções pessoais e uma consciência social, trata todos com respeito, não age com arrogância ou prepotência, não mente, não se deixa corromper, mesmo se pressionado, e está comprometido com a causa do paciente.

III - Amor

O amor é um sentimento que conecta as pessoas entre si e é uma expressão do absoluto, do todo que transcende os particularismos. Sabe-se que a palavra amor, no léxico português, é plurissignificativa, apresentando, até mesmo, sentidos opostos. Isso não ocorre no grego, que possui palavras diferentes e precisas para expressar esse substantivo. Para os gregos, o amor paixão, atração física, desejo sexual era designado como Éros (ἔρως); o amor parental, desapaixonado pelas pessoas próximas ou próprio das boas amizades era expressado por Filía (φιλία); e Ágape (ἀγάπη) seria o amor incondicional, de autossacrifício para com todos os seres humanos, uma força propulsora para fazer o bem independentemente da pessoa.

Assim, o amor-ágape é o maior de todos os valores e garante ao homem a possibilidade de atingir, plenamente, a sua autorrealização. Representa uma vitória sobre o egoísmo, pois quem ama deseja, desinteressadamente, o bem do outro7. Esse é, basicamente, ação objetiva em benefício do outro, sendo materializado em atos concretos de caridade6. Ele não é, então, apenas sentimento, mas também razão, visto não ser apenas sentido, mas aprendido e, sobretudo, cultivado e vivenciado.

O amor-ágape consiste em saber doar-se altruisticamente, usando seu tempo, sua energia, sua atenção em função do bem do outro7. Num tempo histórico como o nosso, marcado pelo forte narcisismo, pelo culto ao individualismo e por uma cultura hedonista, na qual cada pessoa busca ser o centro do universo, abrir-se para a perspectiva do outro por meio do amor-ágape torna-se, mais do que nunca, um imperativo ético-moral para a construção de uma sociedade mais humanizada e com laços sociais mais sadios.

Nesse contexto, para o médico, amar o seu paciente significa “fazer o bem” espontaneamente, com atenção e cuidado, atuando sempre em benefício do paciente15. O amor-ágape pode se expressar na generosidade, uma qualidade ético-moral que deve ser inata ao médico, o qual, intrinsecamente, possui uma vocação para a solidariedade, para a prática do bonum facere, que significa cuidar do outro, promover a saúde e a cura dos seus males, físicos ou psíquicos. A generosidade é a essência da prática médica6.

IV - Liberdade

A liberdade é tema de diversos estudos e controvérsias sobre sua essência, podendo apresentar muitos sentidos filosoficamente; contudo, esse debate foge ao escopo deste artigo. Aqui, a análise limitar-se-á ao núcleo duro de seu sentido e sua implicação na reflexão ética. Sem a liberdade, não haveria o problema ou o desafio do pensar ético-moral; ela é condição sine qua non para debater qual a coisa certa a se fazer, ou seja, está na gênese dos dilemas da filosofia prática. Pode-se afirmar que a força da vivência ética, ontologicamente, transforma-nos em humanos, ou seja, ou se é ético, ou vive-se desumanizadamente.

A importância da liberdade para o nosso bem é proporcional ao uso que fazemos dela, já que ela pode ser definida como o poder, baseado na razão e na vontade, de agir ou não agir, de fazer isto ou aquilo; portanto, de praticar atos deliberados. A liberdade torna o homem responsável por seus atos, na medida em que forem voluntários, e constitui uma força de crescimento e amadurecimento na verdade e na bondade, pois não há verdadeira liberdade senão a serviço do bem e da justiça: quanto mais pratica o bem, mais a pessoa se torna livre17. No entanto, o direito à liberdade não implica o direito de dizer e fazer tudo, pois corre-se o risco de cair na libertinagem, uma aparência efêmera e falaciosa do estatuto ontológico da liberdade.

O progresso na virtude, o conhecimento do bem e o autocontrole aumentam o domínio da vontade sobre seus atos17. Assim, o ser humano ético é aquele que demonstra verdadeiramente, entre suas características, a liberdade, a autonomia, o livre-arbítrio. O médico, na sua práxis, tem liberdade de agir e decidir, podendo intervir em uma realidade de saúde de modo independente e, até, por vezes, contrariando interesses, sejam eles de natureza institucional, legal, política ou governamental6. Contudo, o médico não pode interferir no direito à liberdade do paciente quanto ao tipo de tratamento ao qual este deseja se submeter após ser devidamente informado com relação aos prós e contras de cada uma das alternativas possíveis. O princípio bioético da autonomia é sábio quando avoca esse direito do paciente.

V - Respeito

O respeito pode ser definido como o “tratamento com profunda reverência ou consideração por uma pessoa ou por alguma coisa”, bem como “deferência considerável”18. Os seres humanos devem ser respeitados porquanto são seres humanos, e não porque compartilham dos mesmos valores ou crenças6. Assim, o respeito pode ser interpretado como tolerância, que nada mais é do que reconhecer e respeitar as diferenças. O médico haverá de conviver com situações conflituosas e, por vezes, antagônicas, nas quais deverá agir com o máximo de isenção possível, tendo como meta o respeito às diferenças entre as pessoas, à dignidade, à dor, ao sofrimento dos pacientes e à integridade do ser humano6),(19.

Na relação médico-paciente, o respeito se manifesta, igualmente, quando o médico valoriza o princípio da autonomia, dando liberdade para que o paciente tome decisões sobre o seu tratamento após prévios esclarecimentos. O respeito envolve, ainda, a obtenção de consentimento livre e esclarecido antes de realizar algum procedimento ou tratamento em situações que não envolvam emergência e/ou urgência médica. Ademais, entre os deveres dos médicos, ressaltam-se o respeito a ser observado entre os colegas de profissão, a condenação às críticas e à disputa por paciente entre colegas, bem como a manutenção de divergência entre os pares fora do conhecimento público6.

VI - Responsabilidade

A responsabilidade decorre da liberdade, da capacidade de escolher entre o bem e o mal, e implica assumir as consequências de nossos atos, honrar nossos compromissos e ressarcir algo quando se causa prejuízo aos outros16. Vale lembrar que o próprio conhecimento impõe deveres: há uma responsabilidade inerente ao saber, que consiste em administrá-lo prudentemente, acrescentá-lo diligentemente e difundi-lo amistosamente2. Nesse contexto, o ato médico sempre será marcado por grandes responsabilidades, tendo a ética a função de fortalecer a responsabilidade profissional do médico.

A medicina exige de seus artífices uma postura de permanente zelo, não descurando um momento sequer da saúde e da vida do paciente6. Entre tantas situações com as quais os médicos se deparam e que exigem enorme responsabilidade, destacam-se a notificação compulsória de inúmeras patologias e os casos de violência doméstica e outras agressões, mesmo quando autoinfligidas19. A responsabilidade se manifesta, ainda, na manutenção do segredo médico, que consiste na não revelação daquilo que o médico tenha conhecido, percebido ou deduzido por ocasião da íntima relação pactuada com seu paciente6. O não cumprimento desses preceitos ético-morais implica responsabilização civil e criminal à luz da legislação brasileira, com graves penas e sanções além da esfera do direito administrativo. A responsabilidade médica também engloba a seguinte obrigação: os médicos têm de reparar as consequências de seus atos (por omissões ou erros voluntários e involuntários, dentro dos limites estabelecidos em lei), quando estes resultarem em prejuízos ao paciente19. Desse modo, percebe-se que a prática médica, por acarretar grandes responsabilidades, pode ser judicializada, com graves prejuízos morais e financeiros ao profissional da medicina.

VII - Compaixão

A palavra compaixão, de origem latina (com: junto; paixão: sofrer), é sinônimo do vocábulo grego “simpatia” (sim: ao lado; e pathos: doença), ou seja, é a postura ativa de quem vai ao encontro do sofrimento alheio a fim compreendê-lo e ajudá-lo, minimizando a dor e a angústia6. Portanto, é uma virtude essencial àqueles que pretendem seguir a arte médica, envolvendo a solidária participação do médico nos sentimentos de seu paciente e a compreensão de sua dor, física ou psíquica (ou ambas). Não se trata apenas da consciência de uma situação dolorosa, mas do compartilhamento do sofrimento do outro para compreender, de fato, sua necessidade de atenção e de afeto6; envolve empatia, e, para isso, é preciso, sobretudo, gostar da raça humana, das pessoas. A compaixão também pode ser vista como uma forma de solidariedade, virtude de quem se preocupa com os outros nas dificuldades e se alegra com eles nos sucessos5. Boa parte das alegrias da profissão médica consiste em fazer contatos pessoais e em amenizar as mazelas dos semelhantes. Imaginar-se no lugar de seus pacientes pode fazer do médico um profissional mais solidário, humano e capaz de oferecer apoio, além da técnica, quando necessário19.

VIII - Paciência

Ter paciência significa manter a calma diante dos problemas e das dificuldades; é suportar e saber resistir ao desacordo e à ambiguidade20. Denota a constância interior de quem, apesar dos pesares, mantém-se inabalável. Lidar com fortes sentimentos, muitos deles negativos, é algo que está presente na maior parte das especialidades médicas. Nos ambientes de pronto-socorro, por exemplo, as emoções estão à flor da pele: os pacientes de urgências e emergências têm dores, incertezas e medos; muitos estão descontrolados, bem como seus acompanhantes, desesperados por verem um ente querido entre a vida e a morte.

No exercício profissional da medicina, a paciência também é necessária quando circunstâncias de densa conotação emocional - tais como demora nos atendimentos de urgência, perda de um ente querido ou insatisfação por um tratamento malsucedido, resultando em consequências indesejáveis - ocasionam incompreensões e ações infundadas de pacientes ou de seus familiares, desabonando a imagem do médico e colocando em suspeição a sua honra. Nessas ocasiões, é imperativo manter a calma, visto que o controle da situação caótica compete, primordialmente, ao médico. Desde a faculdade, passando pelo período de residência médica, o estudante de Medicina deve exercitar a difícil arte do equilíbrio de suas emoções e procurar não participar de contendas.

Além disso, é importante pensar antes de falar, pois palavras mal-empregadas podem agravar a situação. O profissional necessita reafirmar a sua personalidade fortemente altruísta, a fim de compreender os fatos, distinguir o emocional do racional e dialogar com a parte beligerante no sentido de sanar a querela. A construção da personalidade e da maturidade emocional19) do médico inclui, em seu alicerce, o autocontrole, num gradativo e persistente exercício de desprendimento pessoal6.

IX - Humildade

A humildade é o fundamento de todas as virtudes e consiste em ter conceito apropriado de si ao reconhecer as próprias misérias, faltas, impotências e fraquezas6, tendo consciência sobre o limite de suas qualidades5 sem aumentar, nem diminuir seus valores pessoais10. Esse autoconhecimento nem sempre é agradável, mas nem por isso é menos verdadeiro. Reconhecer de maneira franca, transparente e realista os próprios defeitos e imperfeições é, muitas vezes, um exercício doloroso de crescimento pessoal - mas, igualmente, um caminho profundamente libertador21, uma vez que hão de cair máscaras e autoenganos. É inevitável que, durante a trajetória profissional, o médico sofra derrotas ou insucessos; esses maus momentos são propícios e didáticos, e, por conta disso, ele deve lembrar-se sempre de que não tem o controle total das situações e de que é necessário ter a humildade de aceitar o que não pode ser mudado19. Daí a necessidade de se cultivar a humildade profissional, como reconhecimento permanente de sua ignorância, e a disposição contínua para buscar mais conhecimentos6. A humildade envolve, ainda, consultar a opinião de um colega quando houver alguma dúvida diagnóstica que extrapole sua capacidade técnica.

X - Fortaleza

A fortaleza é a virtude que nos torna fortes e corajosos na luta da vida, sendo considerada a virtude dos heróis. Ela nos dá ânimo para agir corretamente mesmo diante das grandes dificuldades. É a capacidade de resistência, podendo esta ser física, mental e/ou moral, e está intrinsecamente relacionada à força de caráter19: quem não se esforça para resolver seus problemas, quem desanima diante dos primeiros obstáculos jamais adquirirá a têmpera da fortaleza5. Essa virtude leva a pessoa a ultrapassar os limites de suas atribuições na tentativa de promover o19

No campo da medicina, a fortaleza significa a disposição sempre renovada do médico em continuar exercendo o seu ofício, embasado nas suas convicções ético-morais e no seu conhecimento técnico, em benefício do paciente. A fortaleza pode ser continuadamente revigorada pelo estudo e pela atualização permanentes da técnica profissional, associados à reflexão sobre os princípios filosóficos6. A fortaleza também está imbuída de resiliência, que é a capacidade de lidar com problemas e desafios de ordem moral sem se abalar, sem ceder, sem perder a compostura. Trata-se de fazer o que deve ser feito ainda que outros não o façam, resistindo à pressão do grupo, à pressão da sociedade ou à covardia moral, para buscar, acima de tudo, o que é certo para o paciente22. No entanto, há que sobrepesar a justa medida, a fim de que o excesso de resiliência não se traduza em falta de empatia na relação médico-paciente.

XI - Prudência

Ser prudente significa ser sensato, cauteloso, precavido, agindo com bom senso6. O prudente não costuma agir com precipitação, pensando muito nos prós e contras antes de tomar uma decisão5. Garrigou-Lagrange ensina que a humildade e a paciência colaboram para que atitudes prudentes sejam tomadas. Agir com prudência significa usar a inteligência com o intuito de colocar em ordem as vontades23. Os gregos deram o nome de phrónesis a essa virtude.

Aristóteles, na Ética a Nicômaco, eternizou o debate sobre a prudência, entendida como a verdadeira sabedoria prática11. Se há uma virtude que deve presidir o exercício de qualquer arte e, por fim, impregnar a identidade profissional, é a2. Na prática profissional médica, ela traduz-se pela observação persistente, atenta e vigilante do paciente; o esperado zelo profissional envolve, também, ter consciência a respeito dos limites da profissão, ao perceber que nem tudo aquilo que é tecnicamente possível de se realizar resulta necessário e legítimo6.

No mundo médico, a prudência abrange usar do bom senso e do pensamento crítico; não esbanjar recursos materiais; acumular conhecimento científico; não fazer inimizades; dosar a quantidade de trabalho e de lazer; tomar decisões tecnicamente embasadas e pouco influenciadas por sentimentalismos; pedir auxílio para um colega com mais proficiência em determinada situação, quando não formos capazes de tratar uma determinada patologia19.

A prudência deve ocorrer, ainda, no contato com os pacientes. Sempre que pedir para um paciente se despir, por exemplo, é prudente que o médico seja acompanhado, durante o exame, por uma enfermeira ou secretária. Além disso, é conveniente que os pacientes que necessitem de mais atenção tenham facilidade de encontrar o seu médico. É prudente fornecer um número telefônico com a recomendação de que este seja acionado diante de qualquer imprevisto19.

A prática médica exige, pois, além de técnica, equilíbrio e reflexão antes de qualquer tomada de decisão. Isso decorrerá de atualização profissional continuada e de reflexão permanente sobre os valores humanos e sociais, para desenvolver a consciência dos limites pessoais e profissionais6.

XII - Temperança

A temperança é a virtude da sobriedade6 e diz respeito à moderação na fruição dos prazeres. Significa ter autodisciplina, vivendo sem a inconsequente submissão às paixões - que poderiam se caracterizar como vícios ou desregramentos. É a arte do autocontrole, de evitar excessos ou faltas, de viver de forma inteligente22. A virtude da temperança recomenda usufruir de forma moderada os prazeres sensíveis, abstendo-se de toda espécie de excesso (abuso da comida, do álcool, do fumo e de medicamentos).

No seu cotidiano, o médico deve evitar vícios que podem destruir a carreira e prejudicar a capacidade de beneficiar o paciente. Isso inclui obviedades, desde evitar embriagar-se na véspera de um plantão no centro cirúrgico até o exercício da modéstia cautelosa em grandes cirurgias plásticas, nas quais alguns pacientes podem nutrir expectativas irreais22. Em suma, a temperança requer não se deixar escravizar pelos vícios, a fim de não pôr em risco a segurança alheia e a própria17. Há que se exercitar a coerência entre o discurso e a prática, e a sobriedade na vida pessoal certamente refletirá nas condutas profissionais6.

XIII - Justiça

Aristóteles defendia que a justiça é a síntese de todas as outras virtudes11. Ela consiste em dar a cada um aquilo a que tem direito. É a base da vida em sociedade: sem justiça, o relacionamento entre as pessoas torna-se insuportável5. Não há justiça quando se nega, sem justificativa, um benefício a uma pessoa que o merece ou quando se lhe impõe um ônus indevido6.

Justiça implica não fazer acepção de pessoas ao interagir com os pacientes, evitando parcialidades. A justiça impele os médicos a contribuir ativamente para a eliminação das inúmeras práticas de discriminação do ser humano nos sistemas de saúde, principalmente no que diz respeito às questões de gênero, situação socioeconômica, etnia ou prática religiosa6. Além disso, a justiça compromete o médico com a sociedade e concorre para a formação de um profissional preparado para contribuir para a melhoria da qualidade de saúde do seu povo, laborando pela equidade. Esta, como virtude professada pelo médico, deve se traduzir na igualdade de oportunidades6 - por exemplo, na situação em que o médico dispõe de uma quantidade limitada de medicamentos e/ou equipamentos e precisa fazer alocação de recursos escolhendo quais pacientes terão acesso ao tratamento.

XIV - Coragem

A coragem consiste numa persistente disposição para o enfrentamento das frequentes dificuldades que o exercício da medicina enseja. Coragem não é a ausência de medos, mas a disposição de superá-los; no caso da profissão médica, a coragem sempre será em defesa de um interesse mais social que pessoal. Como virtude, encontra-se entre a covardia e a temeridade. Está no cume, como diz Aristóteles11, entre dois abismos, dois excessos que se caracterizam como vícios: de um lado, a submissão ao medo, à inação e à acomodação, e, de outro, a despreocupação com as consequências6. Corajoso é aquele que, diante de uma ameaça à sua integridade física, resiste ao impulso de fugir da situação e se entregar. O médico é corajoso, por exemplo, quando enfrenta guerras e condições inóspitas para ajudar o próximo, quando auxilia pessoas com doenças infecciosas e mortais, expondo-se ao risco de contágio, e quando opera pacientes com doenças transmissíveis pelo sangue, colocando sua vida em risco em prol do bem alheio22.

CONCLUSÃO

Dadas as análises apresentadas, percebe-se a necessidade constante de aprimoramento nos processos de formação médica, a fim de contemplar e fomentar, cada vez mais, a discussão e a vivência de valores humanos e virtudes ético-morais inerentes à profissão. Os currículos de graduação em Medicina, hodiernamente, enfatizam a aquisição de habilidades e conhecimentos técnicos em detrimento dos valores ético-morais.

A partir deste estudo, crê-se ser imprescindível que os professores/tutores das escolas médicas assumam a missão de educar o futuro profissional da medicina em todas as dimensões da existência, promovendo o cultivo das virtudes essenciais ao ser humano, principalmente a honestidade e a integridade ético-moral. Mais do que transmitir sua experiência profissional, os educadores em Medicina devem ensinar não só por palavras, mas, sobremaneira, por meio do testemunho pessoal no que tange aos aspectos ético-morais da profissão. O docente médico deve esforçar-se para ser um exemplo aos seus discípulos não só na arte médica, mas, sobretudo, no agir ético em sociedade.

É fundamental que o processo de construção da identidade profissional médica (que já se inicia nos primeiros anos de formação nas faculdades e universidades) propicie mais atenção à dimensão axiológica da vivência humana, despertando, paulatinamente, para a prática das virtudes fundamentais tratadas neste artigo. Somente assim será possível o resgate ou fortalecimento da humanidade própria do médico - a qual, contemporaneamente, pode facilmente ser secundada ou marginalizada por vários fatores. Entre estes, destacam-se: a falta de estímulo no período universitário para a prática de valores e virtudes; a pressão socioeconômica advinda de uma sociedade em que o valor do trabalho está cada vez mais depreciado, obrigando os profissionais da saúde a aumentar suas jornadas de trabalho exaustivamente a fim de auferir um salário que lhes possibilite uma vida digna; ou, ainda, a submissão à lógica comercial de grandes operadoras de saúde, que mercantilizam os serviços médicos e dificultam discernir o que é mais importante - os valores econômicos ou os valores ético-morais.

Torna-se, hoje, muito tênue a linha que separa os interesses humanitários dos interesses econômicos, gerando certo ceticismo no primado da ética sobre o capital na questão da saúde. Os valores e as virtudes, como viu-se, traduzem-se na prática profissional na busca da humanização do atendimento médico, a qual se expressa em respeito, cuidado, carinho, amor e empatia, acolhimento, diálogo e tolerância, aceitando as diferenças e abrindo-se para a alteridade. Humanização inclui a capacidade de colocar-se no lugar do outro e auxiliá-lo nos momentos mais delicados. É fundamental que o médico se sensibilize com as mazelas das pessoas que o circundam e aprenda, da mesma forma, com a vida e com a prática, dado que o ser humano está em constante devir. O exercício dos valores humanos e das virtudes nos leva à alegria, à paz e à felicidade, “coroas da mente” para quem faz da profissão uma verdadeira vocação. Sendo assim, o convívio com boas e saudáveis companhias, o hábito da leitura, a reflexão séria e sistemática e a pertinaz vontade de melhorar e sempre aprender tendem a aperfeiçoar os valores e as virtudes de quem escolheu a medicina como meio de ajudar o próximo.

REFERÊNCIAS

1. Pessini L. Notas de impressão. In: Drummond JGF. O “ethos” médico: a velha e a nova moral médica. Montes Claros: Unimontes; 2005. p. XXXIII-XXXIV. [ Links ]

2. Stepke L. Sobre o “ethos” da medicina. In: Drummond JG F. O “ethos” médico: a velha e a nova moral médica . Montes Claros: Unimontes ; 2005. p. XXXVII-XLVI. [ Links ]

3. Sassi AP, Seminotti EP, Paredes EAP, Vieira MB. O ideal profissional na formação médica. Rev Bras Educ Med. 2020; 44(1):1-9. [ Links ]

4. Goergen P. Educação e valores no mundo contemporâneo. Educ Soc. 2005; 26(92):983-1011. [ Links ]

5. Correa AA. Educação moral e cívica São Paulo: Ática; 1989. [ Links ]

6. Drumond JGF. O “ethos” médico: a velha e a nova moral médica. Montes Claros: Unimontes ; 2005. [ Links ]

7. Bortoli L. Educação moral e cívica: adaptado aos objetivos profissionalizantes. São Paulo: Companhia Editora Nacional; 1978. [ Links ]

8. Scheler M. A posição do homem no cosmos. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2003. [ Links ]

9. Undset S. Catarina de Siena: biografia de uma santa. Dois Irmãos: Minha Biblioteca Católica; 2019. [ Links ]

10. Ligório SAM. Glórias de Maria. Tradução V. I. Anagnostopoulos. Dois Irmãos: Minha Biblioteca Católica ; 2018. [ Links ]

11. Aristóteles. Ética a Nicômaco. Tradução L. Vallandro e G. Bornheim. 4a ed. São Paulo: Nova Cultural; 1973. (Os pensadores). [ Links ]

12. Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução G. A. Almeida. São Paulo: Barcarolla; 2009. [ Links ]

13. Drane J. Paho y bioética. Una relación accidental o un compromiso profundo? Diálogo y Cooperación en Salud. Diez años de la bioética en la OPS. Santiago, Chile: Unidad de Bioética OPS/OMS; 2004. [ Links ]

14. Batista NA, Silva SHS. O professor de medicina. São Paulo: Loyola; 1998. [ Links ]

15. Zajdsznajder L. Ser ético no Brasil Rio de Janeiro: Griyphus; 1994. [ Links ]

16. Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola ; 2000. [ Links ]

17. Michaelis dicionário brasileiro da língua portuguesa. Respeito [acesso em 6 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/respeito . [ Links ]

18. Leão CM. O médico em 52 talentos. E-books Kindle; 2019. [ Links ]

19. Meeroff M. Ética médica. 2a ed. Buenos Aires: Libreria Akadia Editorial; 1993. [ Links ]

20. Azevedo Júnior PRA. Humildade e vida espiritual. 2018 [acesso em 6 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: https://padrepauloricardo.org/episodios/humildade-e-vida-espiritual . [ Links ]

21. Angotti Neto H. Fortitude, a coragem moral. Academia Médica; [acesso em 31 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: https://academiamedica.com.br/blog/virtudes-medico-fortitude-coragem-moral.Links ]

22. Lagrange G. As três idades da vida interior. São Paulo: Cultor de Livros; 2018. [ Links ]

23. Garcia MAA, Ferreira, Ferronato FA>. Experiências de humanização por estudantes de medicina. Trab Educ Saúde. 2012;10(1):87-106. [ Links ]

Editora-chefe: Daniela Chiesa Editor associada: Roberto Zonato Esteves

2Avaliado pelo processo de double blind review.

FINANCIAMENTO Declaramos que não houve financiamento para a realização desta pesquisa.

Recebido: 03 de Agosto de 2020; Aceito: 25 de Novembro de 2020

adrianasp@ufcspa.edu.br luisbiasoli@hotmail.com

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Adriana Ubirajara Silva Petry participou da revisão bibliográfica, da escrita do texto e da submissão do artigo. Luís Fernando Biasoli participou da revisão bibliográfica e da escrita do texto.

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses neste estudo.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons