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Revista Brasileira de Educação Médica

versão impressa ISSN 0100-5502versão On-line ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.45 no.2 Rio de Janeiro  2021  Epub 14-Abr-2021

https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.2-20200226.ing 

ARTIGO ORIGINAL

Experiência de estudantes com a literatura na formação médica

Marina Nahas Mega1 
http://orcid.org/0000-0002-4060-5034

Bárbara Cazula Bueno1 
http://orcid.org/0000-0003-3370-9748

Eduarda Campos Menegaço1 
http://orcid.org/0000-0002-1682-0930

Mariani Pereira Guilhen1 
http://orcid.org/0000-0002-7028-4593

Danielle Abdel Massih Pio1 
http://orcid.org/0000-0003-0738-4601

Juliana Ribeiro da Silva Vernasque1 
http://orcid.org/0000-0002-6003-1218

1 Faculdade de Medicina de Marília, Marília, São Paulo, Brasil.


Resumo:

Introdução:

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) de 2014 para o curso de Medicina trazem o ensino das humanidades, entre elas a literatura, como forma de superar o modelo biomédico. A literatura pode fortalecer a compaixão, com o olhar para a alteridade. Parte-se de um currículo organizado por metodologias ativas de ensino-aprendizagem.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo compreender as experiências dos estudantes de uma faculdade do interior paulista que tiveram contato com textos literários no início da graduação, elaborando um modelo representativo da experiência.

Método:

Trata-se de pesquisa qualitativa, orientada pela Teoria Fundamentada nos Dados (TFD). A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas semi-estruturadas, com estudantes, sorteados, de todas as séries do curso de Medicina, tendo como critério para inclusão a participação em grupos conduzidos por professora que fez uso de literatura como estratégia educacional. Houve realização de 12 entrevistas, transcritas e codificadas. A amostragem se deu por saturação teórica.

Resultados:

Foram geradas as seguintes categorias: 1. “Importância da literatura e das artes em geral na formação médica, visando ao rompimento do modelo biomédico e à potencialização tanto da empatia quanto da humanização do cuidado na relação médico-paciente”; 2. “Refletindo sobre o uso de ferramentas artísticas para o aprendizado de conteúdos técnicos/práticos da medicina, assim como para proporcionar a mudança de habilidades e conhecimentos psicossociais”; 3. “Refletindo acerca de uma possível sistematização curricular considerando as metodologias ativas e outras formas artísticas, e comparando grupos/séries da graduação que tiveram ou não contato com essas ferramentas”; 4. “Possibilitando a lembrança dos contos ou das discussões fomentados nos primeiros anos da graduação, associando ao interesse pessoal do estudante pela atividade e promovendo a integração dos conhecimentos adquiridos na prática médica”. A partir das categorias, foi possível elaborar o modelo representativo da experiência que remete à satisfação dos estudantes com a literatura na formação médica, potencializando a humanização do cuidado, porém sinaliza-se a necessidade de homogeneização curricular para organização da atividade e oportunidade da aprendizagem para outros estudantes.

Conclusões:

O modelo compreende a noção de que a literatura potencializa a humanização da atenção e é capaz de romper com o modelo biomédico. A potencialidade do estudo tem seu alcance na proposição de estratégias à comunidade e gestão acadêmica, para fortalecimento da humanização na perspectiva curricular da formação médica.

Palavras-chave: Ensino; Educação Médica; Literatura; Currículo; Aprendizagem Baseada em Problemas; Pesquisa Qualitativa

Abstract:

Introduction:

The National Curricular Guidelines (NCG) for medical school bring the teaching of Humanities, among them Literature, as a way to overcome the biomedical model. Literature can strengthen compassion directed to the ‘other’. It starts with a curriculum organized by active teaching-learning methodologies.

Objective: This study aims to understand the experiences of students from a Medical School in the interior of São Paulo who had contact with literary texts in the beginning of medical school, creating a representative model based on the experience.

Method:

This is a qualitative research guided by the Grounded Theory. The data collection was carried out through semi-structured interviews with undergraduate students who were randomly chosen from all years of the Medical School. The only inclusion criteria was the participation in groups coordinated by a teacher who had used literature as a teaching strategy. Twelve interviews were carried out, transcribed and codified. The sampling was performed by theoretical saturation.

Results:

The created categories were: 1. “Identifying the importance of the literature and Arts in Medical School, seeking a rupture from the biomedical model, while improving empathy and the humanization of care”; 2. “Reflecting on the use of artistic tools to learn practical contents in Medicine and to provide psychosocial knowledge”; 3. “Proposing a possible curricular systematization, considering active methodologies and other artistic forms”; 4. “Recalling the tales that are more often associated to the student’s personal interest, which can promote the integration with all the acquired knowledge”. Based on these categories, it was possible to create the representative model of the experience that relays the students’ satisfaction with literature in medical education, enhancing the humanization of care; however, there is a need for curriculum homogenization, aiming at organizing the activity and the learning opportunity for others students.

Conclusion:

The model comprises the idea that literature enhances the humanization of care and is able to establish a rupture from the biomedical model. The study potential lies in proposing strategies to the community and academic management, aiming to strengthen humanization in curricular perspective of medical training.

Keywords: Teaching; Education; Medical; Literature; Curriculum; Problem-Based Learning; Qualitative Research

INTRODUÇÃO

O conceito de saúde passou por diversas mudanças ao longo do tempo. A partir da Conferência de Alma-Ata em 19781, saúde deixou de ser apenas ausência de doença, como determinava o modelo biomédico, para ampliar-se a uma visão holística do indivíduo, considerando também seu contexto social e psicológico.

Seguindo a tendência mundial, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) - responsáveis pelos princípios, pelos fundamentos e pelas finalidades dos cursos de ensino superior - sofreram alterações significativas desde 2001, com acréscimos importantes no ano de 2014 para o curso de Medicina: estabeleceu-se um foco diferenciado no processo de ensino-aprendizagem, visando à formação integral do profissional, com o trabalho baseado na interdisciplinaridade, utilizando-se de metodologias ativas. O egresso deve ter capacidade de reflexão sobre a própria prática e considerar a pluralidade do ser humano em seus diagnósticos, com postura crítica, reflexiva, humanista e ética2.

A realidade a ser trabalhada pelo estudante de Medicina é complexa, exigindo um pensamento abrangente, multidisciplinar e interdisciplinar3. As metodologias de ensino, definidas pelos modelos tradicional e ativo, englobam diferentes concepções de ensino e aprendizagem. A primeira é uma metodologia centrada em um detentor do conhecimento, o qual tem o papel de repassar o conteúdo, e cabe ao estudante a tarefa de assimilar o que lhe foi ensinado, sem realizar questionamentos ou reflexão sobre o assunto. Já a segunda fornece ao estudante condições de desenvolver habilidades técnicas, cognitivas e atitudinais para o cuidado do paciente sem que haja estabelecimento hierárquico entre os saberes, mas sim o trabalho coordenado para um fim, ou seja, tendo suas ações planejadas em conjunto4),(5.

Seguindo a lógica dos conceitos supracitados, a interprofissionalidade surge como complemento à multiprofissionalidade, pois nela aprende-se de forma conjunta e participativa com as diferentes realidades das profissões, principalmente na área da saúde, desenvolvendo ações articuladas para a realização de atividades e melhoria do trabalho da equipe de saúde6.

Nesse sentido, a interdisciplinaridade se coloca como uma resposta à necessidade de superação da visão fragmentada do objeto de estudo imposta pelos currículos utilizados pela maior parte das universidades7. Ela possibilita o aprofundamento da compreensão da relação entre a teoria e a prática, o rompimento das fronteiras das disciplinas e a construção do conhecimento pelo sujeito com base na relação com sua realidade e cultura8.

As metodologias ativas, além de permitirem essa união entre os saberes, proporcionam, principalmente, a capacidade do discente de autogerenciar e autogovernar seu processo de formação. Essa autonomia é fomentada pelo ensino ativo, como a Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) e a Problematização que têm o objetivo de suscitar, por meio de problemáticas reais e ferramentas interdisciplinares - filmes, contos, documentários -, dúvidas, desequilíbrios e perturbações intelectuais com forte motivação ao estímulo cognitivo de evocar reflexões necessárias à busca de soluções criativas5.

Para elaboração dessa autonomia e formação de competência que vai perdurar para a vida profissional, é primordial o papel norteador do docente, que deve ter criatividade e disposição para respeitar, escutar com empatia e propiciar liberdade no aprendizado. A convivência com o professor tem o papel de propiciar ao estudante o desenvolvimento de desempenhos para estabelecer relações intersubjetivas e sustentá-las9.

O estudo da medicina, apesar de ter em sua essência as relações humanas, leva muitos estudantes, durante a graduação, a priorizar o aspecto biológico, tornando a prática mecanicista e pouco empática10. Contrapondo-se a isso, as novas DCN trazem o ensino das humanidades, entre elas a literatura, como forma de superar tal obstáculo.

De acordo com o conceito apresentado pela Rede Humaniza SUS11, empatia é a inclinação para sentir o que se sentiria caso estivesse na situação vivenciada por outra pessoa. Muitas vezes, no ambiente de aprendizagem, ocorre aplicação exclusiva de recursos tecnológicos, em que há o predomínio da individualidade, da competitividade e do pragmatismo12. Assim, há a minimização do tempo em que o estudante entra em contato com o outro, deteriorando os laços afetivos que se estabeleceriam13.

A fim de romper com esse processo, é necessária a mobilização da afetividade, utilizando-se de disciplinas não tradicionais no currículo da Medicina, como as artes e as humanidades, incluindo a literatura, o cinema, o teatro e a pintura. Com isso, os estudantes têm melhor entendimento acerca das experiências de vida de seus pacientes e a oportunidade de autoconhecimento; aprofundam sua capacidade de compaixão; reconhecem o ser humano integralmente no processo saúde-doença; discutem acerca das dimensões morais, éticas e legais; refletem sobre outros aspectos da realidade14. Todos os modelos citados possuem potencialidades a serem exploradas de modo a atingir tais objetivos na formação do estudante; todavia, neste estudo deu-se preferência à literatura por conta do contato prévio das autoras com uma docente que utilizou essa ferramenta como metodologia de ensino durante atividades da graduação.

O ensino da língua e, por sua vez, da literatura não só se faz pela transmissão de conhecimento ou de um aspecto histórico que marcou uma época, mas serve como ferramenta formativa na educação do homem por meio do questionamento, perplexidade e inquietação acerca das questões abordadas por seus autores, com a missão de “civilizar” o homem de maneira que o torne mais reflexivo e com mais alteridade com seu semelhante, o que é tanto clamado e exigido nessa área15.

A linguagem é um importante instrumento de comunicação para os profissionais da saúde. Por meio da prática profissional, é necessário o seu uso para investigação do histórico do paciente e de seu estado de saúde, enaltecendo, assim, o poder da palavra. Conhecer os códigos linguísticos, estudá-los e compreender suas variantes, regionais e culturais, garantirá para o futuro profissional maior condição de expressão e comunicação, ajudando-o a se situar no mundo e, consequentemente, estabelecendo maior vínculo com seus pacientes15.

A literatura, por ser uma forma de expressão humana persistente e imaterial15, pode ser objeto de análise de uma cultura, um período e uma visão de mundo específicos, produzindo sobre os indivíduos mudanças de atitudes e concepções sobre valores sociais preexistentes10. Nesse sentido, a pergunta para esta pesquisa foi:

  • Como a literatura pode influenciar a formação de estudantes de Medicina a partir do seu contato, mediado por um professor, na graduação?

Teve-se como pressuposto que, por meio da literatura, é possível ampliar a formação crítica, reflexiva e humanística, culminando em uma nova visão sobre o processo de saúde-doença, capaz de mobilizar empatia do profissional para com o paciente e sua doença, com maior facilidade de expressão e autoconhecimento.

Assim, este estudo teve como objetivo compreender as experiências dos estudantes de Medicina da Faculdade de Medicina de Marília que tiveram contato com textos literários nos dois primeiros anos da graduação, na unidade de prática referida. Nesse contexto, utilizou-se a metodologia supracitada e elaborou-se um modelo representativo da experiência.

MÉTODO

A pesquisa de abordagem qualitativa pode ser definida como aquela que considera a essência das relações sociais e a criatividade humana, subjetiva e racional16.

As investigações de ordem qualitativa podem se referir à pesquisa sobre a vida das pessoas, experiências vividas, comportamentos, emoções e sentimentos, e também à pesquisa sobre funcionamento organizacional, movimentos sociais, fenômenos culturais e interações entre nações17.

Esta pesquisa foi orientada pelo referencial metodológico da Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), que tem como objetivo compreender a realidade a partir da percepção ou do significado que certo contexto ou objeto tem para a pessoa, de modo a gerar conhecimentos, aumentar o entendimento e proporcionar um guia significativo para a ação17. A escolha do referencial teórico e metodológico se interliga na potencialidade da compreensão da experiência.

A TFD não parte de teorias já existentes, mas se fundamenta em dados da própria cena social. Dessa forma, trata-se de uma teoria substantiva que não pretende refutar ou provar o produto de seus achados, mas acrescentar outras perspectivas para elucidar o objeto investigado18.

Esse método se estrutura nos seguintes passos, propostos por Strauss e Corbin19:

  1. Microanálise: refere-se à análise detalhada linha por linha, necessária para gerar categorias iniciais, com suas propriedades e dimensões, sugerindo relações entre elas e uma combinação de codificação aberta e axial.

  2. Codificação aberta: trata-se de processo analítico por meio do qual são identificados os conceitos, bem como se descobrem suas propriedades e dimensões a partir dos dados. Conceito é a representação abstrata de um evento, um objeto ou uma ação/interação que um investigador identifica como sendo significativa nos dados, os quais, por sua vez, representam fenômenos.

  3. Codificação axial: é o processo de desenvolver categorias e relacioná-las às suas subcategorias, em torno do eixo de uma categoria, ou seja, ligando categorias, segundo suas propriedades e dimensões, para construir a teoria.

  4. Codificação seletiva: corresponde ao processo de integração e de aprimoramento da teoria, no qual as categorias são organizadas em torno de um conceito central de motivos (categoria central), o qual abarca as principais categorias que estão relacionadas a ele, por meio de notas explicativas das relações (memorandos), associado a outras técnicas, como a utilização de diagramas para facilitar o processo de integração.

Para compreender intimamente a experiência dos atores envolvidos, as entrevistas semiestruturadas foram conduzidas a partir da pergunta norteadora “Como foi a sua experiência com textos literários no início da sua formação médica?”, mas com a flexibilidade de questionar o entrevistado para esclarecer ou melhor desenvolver pontos importantes para a compreensão do fenômeno investigado.

A entrevista era iniciada pela pergunta norteadora, de forma geral e abrangente, a fim de suscitar a liberdade ao entrevistado para comentar a sua experiência com a metodologia utilizada pela professora. Por meio de uma semiestruturação prévia, alguns tópicos do roteiro eram colocados durante a entrevista, de forma natural e simples, questionando e tentando entender se a experiência proporcionou mudanças atitudinais e em habilidades, se impactou a humanização do cuidado e a sua prática com paciente. Além disso, foram investigados aspectos da metodologia e didática empregados pela professora, sendo apontadas fragilidades e fortalezas dessa estratégia e a lembrança de algum texto marcante com que o entrevistado teve contato.

Durante as entrevistas, notas metodológicas (de crítica, sugestões ou outras anotações pertinentes à conduta do observador) e notas de observação (registro de gestos, palavras, frases utilizadas pelo entrevistado) foram realizadas sempre que necessário, a fim de explorar todos os dados verbais e não verbais que surgiram.

Além disso, as entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra. Durante esse procedimento, passaram pelo processo de codificação aberta antes que se realizasse a próxima entrevista, de acordo com o modelo descrito na TFD, permitindo que o conteúdo e sua consistência fossem sempre avaliados e revisados antes da próxima entrevista. Essa codificação aberta é feita com o propósito de extrair as ideias da fala do entrevistado. Ela é feita linha a linha, seguindo o preceito da microanálise, com o objetivo de correlacionar posteriormente com outros conceitos para a construção da teoria.

Quadro 1 Exemplo de transcrição e codificação de entrevista 

Trecho da entrevista Código
Entrevistador 1: Você consegue ver uma potência nisso? Algo bom, uma fortaleza no ensino, no emprego da literatura na educação médica? - Concordando que a experiência que teve com os textos literários junto de seu grupo de trabalho deveria ser trabalhada com outros grupos de UPP (T5.3).
T: Sim, ah eu consigo, só que assim, eu acho que seria interessante se todos os grupos tivessem essa, essa relação, só que ao mesmo tempo que tinha gente, no nosso próprio grupo, que gostava disso, tinha muita gente que fica resistente, que não se importava... Tem gente que é um pouco mais fechada, mas não é por questão de a pessoa querer ser fechada, ela, é o jeito dela mesmo [...]. - Reconhecendo que há as particularidades de cada pessoa ser adepta e gostar da dinâmica que tiveram com os textos literários (T5.3).

Com a formação desses códigos como resultado da transcrição das entrevistas, percebeu-se semelhança de ideias, sentidos, o que permitiu seguir o referencial metodológico com o agrupamento desses dados e gerar subcategorias. Essas subcategorias posteriormente foram agrupadas e geraram categorias, resultando na categoria central que abrange de forma complexa todo o processo e as experiências extraídas das entrevistas com os estudantes a respeito da metodologia. Essa categoria central norteia a elaboração do modelo teórico que sintetiza o resultado obtido desta pesquisa.

Este estudo foi conduzido na Faculdade de Medicina de Marília, com estudantes do curso de Medicina. Nesse cenário, desde a criação dos cursos até a década de 1990, houve uma organização curricular pautada no modelo tradicional, com o ensino centrado no desenvolvimento de técnicas e voltado para o cenário hospitalar, com ênfase no conhecimento transmitido pelo professor. O início de novos projetos educacionais para os cursos de Medicina e Enfermagem ocorre, respectivamente, a partir de 1997 e 1998.

Segundo o Currículo da Famema20:

A estrutura curricular dos cursos de graduação da Famema é anual e organizada por séries com as seguintes unidades: Unidade de Prática Profissional (UPP), Unidade Educacional Sistematizada (UES) [...]. Na primeira e na segunda série estas unidades são iguais para os dois cursos (Medicina e Enfermagem).

[...]

Na UPP, a cada atividade [...], problematizam-se as necessidades de saúde da pessoa/família, formula-se o problema de saúde e elabora-se um plano de cuidado. A estas práticas alternam-se momentos de discussão, com o grupo todo, nos quais cada dupla de estudantes elege uma ou mais situações a serem apresentadas. [...] A UPP se desenvolve nas primeiras duas séries em Unidades de Saúde da Família, com enfoque na atenção primária e no modelo de vigilância à saúde.

[...]

Na UES, o estímulo para a aprendizagem advém da representação da realidade, por meio de um problema [...] previamente elaborado [...]. A UES utiliza a metodologia da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP). O trabalho ocorre em pequenos grupos, em sessões de tutoria, onde o problema é utilizado como estímulo à busca de saberes (conhecimentos, valores, representações, experiências) e compreensão de conceitos (p. 2-3).

Os contos literários foram utilizados durante as atividades de Unidade de Prática Profissional (UPP), que são voltadas para a prática profissional, permitindo que os estudantes entrem em contato com os pacientes desde o primeiro ano da graduação. Nas duas primeiras séries, a UPP se dá a partir de grupos de 12 estudantes, sendo quatro de Enfermagem e oito de Medicina. Tal estratégia educacional foi realizada pela docente responsável por alguns desses grupos, em diferentes turmas.

A escolha dos textos, que eram lidos individualmente e discutidos coletivamente, partia da própria professora, de acordo com as necessidades que ela identificava no grupo, sem uma periodicidade preestabelecida. Os contos serviam como disparadores para determinada discussão, tanto a respeito de experiências já vivenciadas, como a morte de um paciente e a consequente reflexão sobre o luto, quanto a respeito de temas que seriam estudados ou atividades que seriam realizadas posteriormente. Além disso, em parte desses grupos, em momentos pontuais, também foram utilizados filmes com o mesmo objetivo.

Os entrevistados citaram alguns dos contos trabalhados, como “Aniuta”, do escritor russo Tchekhov21, que trata da importância da empatia na relação médico-paciente, além de questões como constrangimento e pudor. Esse foi o disparador para o grupo poder estudar o exame físico de uma forma mais humanizada. Outros contos também foram lembrados, como “Minha vida como uma bolsa” (22, que utiliza a personificação de objetos para falar sobre igualdade e discriminação, e “Dentro do bosque”, do autor Akutagawa23, que foi abordado antes de uma coleta de dados na comunidade em que os estudantes iriam atuar, para demonstrar que existem diferentes visões sobre uma mesma situação. Já para abordar o tema da morte e do luto, escolheram-se os contos “A vida de mãe Parker” (24 e “A cara engraçada do medo” (25.

O professor tem papel fundamental nesse tipo de estratégia educacional, pois vem dele a iniciativa de querer utilizar outras formas de instigar a reflexão de seus estudantes e, dessa forma, compreender assuntos que estão além dos livros. Por meio da análise das artes humanas, como os textos literários, os estudantes conseguem ter um melhor entendimento e senso crítico de situações pelas quais passarão ao longo da vida acadêmica e da profissional, que não seriam trabalhadas se o docente, a princípio, não tivesse introduzido algo novo na forma de ensinar9.

Como critério de inclusão do estudo, consideraram-se aqueles estudantes que não haviam concluído a graduação e que participaram de grupos conduzidos pela professora que implementou tal estratégia educacional. Os participantes da pesquisa foram selecionados aleatoriamente, por sorteio, considerando todas as séries do curso de Medicina. Não se incluíram os estudantes de Enfermagem pelo foco na mudança das DCN para o curso médico.

Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada. O instrumento utilizado contou com os seguintes itens:

  • Identificação do entrevistado: nome, idade, série, sexo, data de nascimento e graduações prévias.

  • Pergunta norteadora: “Como foi a sua experiência com textos literários no início da sua formação médica?”.

  • Roteiro de apoio: 1. mudanças de conhecimento, atitudinais, de habilidades; 2. articulação dos textos literários com os cenários de prática; 3. influência sobre a visão da humanização e empatia; 4. fragilidade, potência, mudança na estratégia educacional; 5. significado; texto marcante.

Todas as entrevistas contaram com a presença de duas autoras, responsáveis por explicar ao participante o objetivo do estudo e conduzir a entrevista a partir da pergunta norteadora, contemplando os demais itens do roteiro. O número de participantes foi definido por meio da saturação teórica, em um processo que envolve entrevista e análise concomitantes, ou seja, quando nenhum dado novo aparecer nas entrevistas e os conceitos forem apreendidos para que um modelo teórico da experiência seja construído19.

Além disso, a amostragem teórica, em vez de ser determinada antes do início da pesquisa, desenvolve-se durante o processo, o que significa que ela é cumulativa e acrescentada à coleta e análise de dados anteriores. Isto é, o objetivo da amostragem teórica é maximizar oportunidades de comparar fatos “incidentes ou acontecimentos para determinar como uma categoria varia em termos de suas propriedades e dimensões” (19.

A coleta dos dados ocorreu de acordo com parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) sob nº 2.300.058 e fomento do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Pibic/CNPq) nº 800498/2018-6. Todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para participação na pesquisa.

Realizou-se uma entrevista-piloto para a validação do instrumento de pesquisa, constituído por pergunta norteadora e roteiro que contemplava o objetivo do estudo anteriormente. A saturação teórica do estudo ocorreu na 12ª entrevista. Todas as autoras participaram do processo. As entrevistas foram gravadas, transcritas na íntegra e, em seguida, codificadas linha a linha antes do contato com o próximo entrevistado. Para apresentação dos resultados, a identificação dos estudantes foi realizada da seguinte forma: as letras correspondem às iniciais do nome, o primeiro número é o ano de graduação a que pertence o estudante, e o número após o ponto representa a página da transcrição.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Participaram das entrevistas 12 estudantes da Medicina que tiveram contato com a literatura nos dois primeiros anos da graduação. Identificaram-se quatro categorias que culminaram no modelo que explica a experiência dos estudantes com a literatura na faculdade referida.

Categoria 1: Importância da literatura e das artes em geral na formação médica, visando ao rompimento do modelo biomédico e à potencialização tanto da empatia quanto da humanização do cuidado na relação médico-paciente

Essa categoria surgiu a partir do relato dos entrevistados de que os contos propunham uma quebra da expectativa de um aprendizado baseado no modelo biologicista e tradicional que compõe os cursos de Medicina. Os estudantes que haviam ingressado recentemente no curso tinham a ideia geral de que, para o aprendizado dessa ciência, bastariam matérias consagradas, como fisiologia, anatomia, patologia e semiologia.

Diante de uma metodologia distinta, na qual os estudantes tinham atividades para ler contos e discutir em grupo, a estranheza foi, à primeira vista, um sentimento presente e comum entre eles. No entanto, ao longo do processo de trabalho com essa metodologia, a leitura dos contos, que continham em sua maioria questionamentos sobre aspectos humanos e culturais, trouxe uma maior percepção de humanização. Silva et al.26 defendem que uma obra literária clássica não somente apresenta particularidades culturais de uma época, mas também é capaz de introduzir valores conceituais ou morais que envolvem anseios, emoções, sentimentos e afinidades comuns à vida humana.

Tal trabalho propiciou que os estudantes aprendessem a ver o paciente integralmente, além de despertar e amadurecer as concepções de empatia e alteridade no cuidado. Nesse sentido, a representação artística proporciona uma educação dos sentimentos, pois esta pode interferir na construção da identidade, com a representação da vida feita pela arte. A partir desse entendimento, passa-se a ter a responsabilidade pelo outro26.

Eu acho que você aprende a ter um pouco mais alteridade, de aprender a interpretar a vida da pessoa pelo lado dela, tentar ver pelos olhos dela, né?, o contexto que está acontecendo na vida, ali, daquele contexto do momento da pessoa. Não só pelo seu contexto como estudante de medicina (O4.1).

Alguns estudantes também identificaram que a literatura proporcionou uma maior autenticidade na hora de eles realizarem o atendimento, aprendendo a se relacionar e conversar com o paciente sem a rigidez de checklists, ou seja, mecanização da consulta.

Isso… Fazer menos checklist. Entender mais a necessidade do paciente. Igual tipo, a gente conversa, trocar uma ideia, sabe… Perceber por que o paciente tá ali na sua frente, naquele momento (P6.1).

[...] isso me fez enxergar mesmo que, assim, a gente sempre tem que se adaptar ao paciente (K6.2).

O trabalho realizado a partir da leitura dos contos reduz a discrepância entre a experiência da doença por parte do doente e por parte da interpretação que faz dela o estudante/futuro médico, o que permite que ambos se compreendam. A literatura esclarece aspectos não abordados pela ciência, como a vivência que os pacientes e seus familiares têm de determinadas doenças, o que contribui para erradicar estigmas sociais de algumas delas27.

Consequentemente, isso se reflete na prática, na qual os estudantes perceberam que, ao entenderem o contexto do paciente, resgatarem aspectos humanos e fugirem da mecanização da consulta, os pacientes se sentiam mais à vontade, possibilitando a criação do vínculo, primordial, na relação médico-paciente.

Isso corrobora a discussão de que a literatura pode proporcionar reflexões sobre valores e relações humanas, e permitir que o estudante aprenda a lidar com o paciente real, desenvolvendo a habilidade de interpretação das experiências, de relacionamento com o incremento da empatia e do vínculo, além de fluência linguística28.

Categoria 2: Refletindo sobre o uso de ferramentas artísticas para o aprendizado de conteúdos técnicos/práticos da medicina, assim como para proporcionar a mudança de habilidades e conhecimentos psicossociais

Essa categoria buscou contemplar a percepção dos estudantes sobre como o contato com ferramentas artísticas contribuiu para que fossem adquiridos novos conhecimentos, sendo eles técnicos/práticos, emocionais ou psicossociais.

Muitos apontaram a literatura como uma boa estratégia para introduzir temas necessários do saber médico em sua parte prática, como conhecimentos dos passos que devem ser seguidos para a realização de uma anamnese e como se comportar na execução do exame físico no paciente. A introdução de tais noções por meio dos contos fazia com que os estudantes adquirissem familiaridade diante da temática para que partissem subsequentemente à procura de livros de semiologia para consolidar o aprendizado.

Olha... Pelo fato do texto do Millôr Fernandes ter um cunho de o porquê você faz as coisas que você faz na anamnese, o porquê que você instiga a pessoa sobre a vida inteira dela, porque que você investiga tintim por tintim do que aconteceu, foi mais no sentido de ver o que que eu vou investigar. Tem até uma frase que ele fala “você só pergunta o que você sabe e você só investiga a partir do que você pergunta”. Então foi, é nessa, nesse sentido das coisas, sabe? (L2.3).

Desse modo, as ferramentas artísticas, além de abordarem os aspectos humanísticos da área da saúde, promovendo a empatia, também contribuem para o desenvolvimento de outras habilidades úteis ao aprendizado. O exercício de relacionar textos literários com a prática clínica enriquece as capacidades de compreensão e interpretação durante um atendimento médico. Além disso, outras estratégias, como o teatro, podem ser utilizadas para estimular o trabalho em equipe, enquanto a pintura, por exemplo, pode contribuir para o estudo da anatomia29.

Além disso, muitos estudantes apontaram que o contato com os contos possibilitou mudanças atitudinais e a amplificação da sua visão do mundo, promovendo a ruptura de preconceitos, de prejulgamentos e do desconhecimento de experiências que nunca tiveram. Segundo eles, tal mudança adquirida é tão importante que transcende a técnica e faz com que reflitam tais aprendizados até nas séries subsequentes.

Então, eu acho que foi muito bom nesse sentido de, tipo, mostrar que não existe só um mundo, né?, existem muitas realidades e que a gente, muitas vezes, não tem noção. Então através dos contos, ela... A gente conseguia enxergar essas outras vivências, esses outros entendimentos mesmo dessas outras pessoas, é […] (K6.1).

O emprego da literatura e de recursos audiovisuais, como o cinema, proporciona a reflexão sobre questões político-sociais, gerando também o questionamento sobre si mesmo e sobre os valores aprendidos. Tais ferramentas, que muito contribuem com as metodologias ativas de ensino, também promovem o desenvolvimento de habilidades clínicas no estudante de Medicina, como as capacidades de observação e interpretação das experiências humanas. Para lidar com os dilemas e a pluralidade de opiniões na área da saúde, é fundamental que o estudante adquira uma capacidade crítica durante a sua formação, desenvolvendo sua cidadania e responsabilidade social28.

No entanto, algumas falas se opuseram à substituição integral da estratégia metodológica utilizada dos contos ao aprendizado tradicional, representado por meio de aulas de semiologia e abertura de questões de aprendizagem específicas. Defendem a atividade como complementar: “Eu acho que não pode substituir, a parte técnica não pode substituir. O ideal seria ter abertura de questão de anamnese e exame físico certinho e complementar com algumas leituras desse tipo” (M4.2).

Segundo pensamento de Paulo Freire sobre o formato ideal da educação, o processo educacional não deve ser um mero depósito de conteúdos, é preciso que ele problematize as relações do homem com o mundo mediante metodologias que permitam a verdadeira aprendizagem, e não apenas a memorização isolada de conceitos30.

Categoria 3: Refletindo acerca de uma possível sistematização curricular, considerando as metodologias ativas e outras formas artísticas, e comparando grupos/séries da graduação que tiveram ou não contato com essas ferramentas

Compreende a importância que os estudantes atribuíram à experiência com a literatura e à sua viabilidade de inserção na grade curricular em conjunto com outras metodologias ativas utilizadas. Contudo, para tal implementação, muitos analisaram de modo crítico a própria experiência e como foi estruturada a atividade acerca da quantidade de textos trabalhados - alguns estudantes consideraram que houve poucos contos; outros, muitos - e da dinâmica nas discussões sobre os contos.

Quando se analisaram as entrevistas, constataram-se também muitas sugestões relacionadas ao melhor momento de se trabalhar a atividade na graduação, aos cenários em que teria sentido a sua aplicabilidade, à ordem de apresentação dos textos e à possibilidade de aproveitar melhor o espaço, com maior adesão e participação das pessoas.

Mas seria fundamental se, por exemplo, nos ciclos que a gente tem no quarto ano, que é o momento que a gente discute, poderia ser implementado, no terceiro ano [...]. Por mim, poderia ter em todos os anos, porque acho que o olhar humanizado não fica só no primeiro e no segundo ano (A4.4).

Ah do currículo mesmo, começa do primeiro ano vai receber não só 5 contos, mas recebe 15 contos e ao longo dos 2 anos de UPP ir lendo e ilustrando. Mas o professor que tem que dar, fazer umas perguntas críticas pros alunos (H2.4).

Apesar da tendência mundial de introduzir as humanidades médicas, ainda não há um consenso entre estudantes ou especialistas sobre o modelo ideal de abordagem: opcional ou obrigatório; avaliado ou extracurricular. É demonstrado que o tipo de proposta curricular influencia bastante o nível de aceitação do estudante. Ao compararem os formatos do curso de humanidades na Universidade de Durham, Balbi et al.28 mostram que o discente voluntário do terceiro ano era mais participativo e apreciava mais o conteúdo. Contudo, quando o curso fazia parte do currículo obrigatório do último ano, a maioria dos alunos não o considerava útil.

No ensino de humanidades, em muitas escolas médicas, apontam-se fragilidades de integração curricular, uso de metodologias de ensino inadequadas e falta de formação de professores na área. Os problemas não são mais em relação à tomada de consciência da necessidade da abordagem humanística na formação médica, já bem estabelecida, mas em relação às suas fronteiras de campo de conhecimento específico31.

Portanto, segundo as entrevistas, a implementação do trabalho com os contos como estratégia metodológica e homogeneização entre os grupos seria importante para a organização da atividade, favorecendo a disseminação para mais pessoas e possibilidade de delineamento curricular para oportunizar responsabilidade e participação, com o fortalecimento da abordagem humanística na formação médica.

Categoria 4: Possibilitando a lembrança dos contos ou das discussões fomentados nos primeiros anos da graduação, associando ao interesse pessoal do estudante pela atividade e promovendo a integração dos conhecimentos adquiridos na prática médica

A categoria diz respeito aos fatores que propiciaram adesão e aproveitamento da atividade, levando em conta características da personalidade e interesses do estudante, como o hábito prévio de leitura antes da atividade e apreço pela literatura.

Alguns contos continham um conteúdo mais simples e com uma visão positiva do lado humano do cuidado do profissional, nos quais se abordavam o respeito, o acolhimento e a empatia. Outros textos propunham uma maior reflexão por meio da contraposição à primeira temática, com temas mais consistentes, em que a intenção era provocar questionamentos sobre a prática, visando a uma ruptura do modelo tecnicista do biomédico.

Trazia, assim, alguns contos traziam uma relação bonita da medicina com a sociedade, e outros traziam uma relação meio tensa, assim, sabe?, de, tipo, muito científico, você não olhar a pessoa como um todo, olhar só partes, então eu acho que tinha dos dois lados, então, no começo da formação, a gente vê muito disso, né? A gente vê necessidades de saúde, a gente vê teoria do SUS etc. Então a gente vê muito essa parte da humanização (A4.2).

A maioria dos entrevistados citou contos ou trechos de contos mais marcantes, como foi caso de “Aniuta”, de Tchekhov21, que conta a história de um jovem médico que utilizava o paciente como material de aprendizado sem se importar com o biopsicossocial. Esse conto principalmente, assim como outros, propiciou a articulação teórico-prática, fazendo com que os estudantes por meio da reflexão pudessem desenvolver ferramentas na prática médica de um atendimento mais humanizado:

Porque levou à conclusão, tipo assim, que não é sempre que a pessoa vai falar [...] nem um paciente, nem uma pessoa vai falar a verdade, às vezes vai contradizer as informações e esse texto meio que ilustrou bastante. Se futuramente eu estiver numa situação dessa, eu vou refletir... No, aquele texto falava sobre isso... Vai me deixar mais atento, assim, ilustra melhor (H2.3).

Também foi abordado como o contato com os contos intensificou o interesse pela leitura daqueles alunos que já tinham hábito e despertou interesse nos que não o possuíam: “Me deu mais interesse, isso é verdade, mas não foi uma coisa que assim, é porque antes eu não era desinteressado, sabe? Só aumentou meu interesse” (L2.2).

Foi possível notar também que a metodologia utilizada possibilitou a participação dos estudantes que não haviam lido o conto, mostrando a efetividade da discussão entre os integrantes do grupo e, consequentemente, incentivando a leitura posteriormente e a recomendação para outras pessoas.

Eu acho que gera discussão dentro do próprio grupo, então... Mesmo pra quem não leu o texto, se eu li, eu discuto com você, aí você fala “ah é verdade” e às vezes não precisa nem ler o texto, mas, quando você divulga esse texto, essa pessoa que lê vai divulgar pra outras pessoas ao seu redor, né? (P6.3).

Uma vez que as atividades resgatam os conhecimentos prévios dos acadêmicos e os relacionam com o texto lido, os participantes vivenciam uma experiência da arte na qual não existe apenas uma interpretação considerada correta, uma vez que a leitura torna-se válida a partir das percepções dos estudantes26.

Como essa experiência é, ao mesmo tempo, individual e compartilhada, ela leva a olhares ampliados sobre valores e significados por meio do contato com diferentes percepções estéticas, possibilitando uma prática formativa humanizadora26.

Com isso, ficou esclarecida a relação que aqueles estudantes que praticavam a leitura tiveram boa adesão e bom aproveitamento da atividade com possibilidade de amplificação da busca por mais textos e do contato com a humanização.

Modelo teórico

Com base nas categorias apresentadas anteriormente, foi possível depreender um modelo teórico que contemplasse o objetivo de compreender a vivência dos estudantes de Medicina da Famema a partir do contato com a literatura nos primeiros anos da graduação.

Assim, esse modelo representativo da experiência remete à satisfação dos estudantes com a literatura na formação médica, potencializando a humanização da atenção e do cuidado, porém necessita de organização, oportunidade e homogeneização curricular.

O Diagrama 1 apresenta as categorias e o modelo teórico originado das experiências.

Diagrama 1 Categorias e modelo teórico da experiência 

CONCLUSÃO

O modelo compreende a noção de que a literatura na formação médica potencializa a humanização da atenção e do cuidado e rompe com o modelo biomédico, e, para essa estratégia de ensino atingir todo o seu potencial, é necessário que haja organização, oportunidade a todos e homogeneização curricular, incluindo discentes e formação docente.

O estudo foi realizado sob a ótica dos estudantes que tiveram contato com textos literários nos primeiros anos da graduação, de modo que, para uma melhor apreensão do fenômeno, sugere-se como tema para trabalhos futuros considerar o ponto de vista de estudantes que não participaram de grupos com a metodologia analisada, além da percepção dos discentes de Enfermagem que compunham o grupo de UPP e os professores envolvidos na operacionalização do currículo.

Reforça-se que o professor tem fundamental importância nesse modelo de aprendizagem, tendo em vista que são inerentes ao seu papel a reflexão e a escolha de apresentar aos discentes uma nova forma de analisar, refletir e vivenciar os cenários de prática, inseridos no mundo do trabalho, no contato afetivo, solidário e empático na relação com o outro.

A potencialidade do estudo tem seu alcance na possibilidade de apresentá-lo para comunidade e gestão acadêmica na proposição de estratégias de fortalecimento da humanização, na perspectiva curricular da formação médica e docente.

AGRADECIMENTOS

Ao incentivo da Faculdade de Medicina de Marília (Famema) e do CNPq, por meio de fomento Pibic/CNPq nº 800498/2018-6.

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7Avaliado pelo processo de double blind review.

FINANCIAMENTO Esta pesquisa contou com o fomento do Pibic/CNPq nº 800498/2018-6 e incentivo da Famema.

Recebido: 09 de Julho de 2020; Aceito: 17 de Fevereiro de 2021

Editora-chefe: Daniela Chiesa. Editora associada: Rosiane Viana Zuza Diniz

CONTRIBUIÇÃO DAS AUTORAS

Todas as autoras contribuíram igualmente na preparação, elaboração e revisão do manuscrito.

CONFLITO DE INTERESSES

Não houve conflitos de interesse na pesquisa.

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