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Revista Brasileira de Educação Médica

versão impressa ISSN 0100-5502versão On-line ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.45 no.3 Rio de Janeiro  2021  Epub 19-Jul-2021

https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.3-20210180 

ARTIGO ORIGINAL

“De todos os lados, eu me sentia culpada”: o sofrimento mental de estudantes de medicina

“From all sides I felt guilty”: the mental suffering of students at a medical school

Thaís Silva Lourenço1 
http://orcid.org/0000-0003-3599-7245

Angela Bertoldo1 
http://orcid.org/0000-0001-5530-8537

Deivisson Vianna Dantas dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-1198-1890

Sabrina Stefanello1 
http://orcid.org/0000-0002-9299-0405

1 Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil.


Resumo:

Introdução:

O curso de Medicina é conhecido pela alta prevalência de estudantes diagnosticados com algum tipo de transtorno mental. O ingresso e a formação no curso são marcados por inúmeras modificações no estilo de vida que podem influenciar a saúde mental do indivíduo.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivos compreender como se sentem os alunos de Medicina que relatam fazer acompanhamento psiquiátrico por transtorno mental e também identificar aspectos que influenciam o problema mental deles.

Método:

Trata-se de uma pesquisa qualitativa desenvolvida por meio de entrevistas semiestruturadas, guiadas por um roteiro de perguntas abertas que abordaram temáticas preestabelecidas de acordo com o objetivo da pesquisa. A seleção dos sujeitos se deu por meio da técnica bola de neve, em que o primeiro participante foi convidado a indicar outro aluno e assim sucessivamente, formando uma cadeia de referência. Os critérios de inclusão foram os seguintes: ser estudante de Medicina, estar em acompanhamento psiquiátrico e concordar em participar espontaneamente da pesquisa. As entrevistas foram audiogravadas, transcritas na íntegra e convertidas em narrativas para posterior categorização e análise do conteúdo.

Resultado:

Analisaram-se sete entrevistas, nas quais as experiências relatadas apontaram para sofrimentos mentais potencializados ao longo do curso. O recebimento do diagnóstico de transtorno mental e a realização de acompanhamento psiquiátrico e psicológico foram descritos como momentos de alívio e de maior compreensão individual. Contudo, o preconceito dos próprios estudantes quanto aos problemas mentais e a constatação desse estigma em seu entorno foram percebidos como causa para se postergar a busca por ajuda.

Conclusão:

Percebeu-se, por meio das experiências dos alunos de Medicina diante do sofrimento mental, o quanto o estigma é presente mesmo em um curso em que se esperam maior conhecimento e abertura sobre o tema, sendo esse um desafio a ser superado.

Palavras-chave: Transtorno Mental; Sofrimento Mental; Estudantes de Medicina; Autorrelato

Abstract:

Introduction:

Medical school is renowned for a high prevalence of mental disorder diagnoses among students. Admission and training are marked by countless lifestyle changes that can influence the mental health of the individual.

Objective:

To understand how medicine students who report psychiatric care feel, and also to identify aspects that influence their own mental problem.

Methods:

This study is a qualitative research developed from semi-structured and audio-taped interviews. Participants were selected through the snowball technique, in which the first participant was invited to recommend another student and so on, building a chain of reference. The inclusion criteria were: to be a medical student; to attend psychiatric care and to voluntarily accept participation. The audio-recorded material was fully transcribed and converted into narratives for subsequent categorization and content analysis.

Results:

Seven interviews were analyzed, and the experiences reported pointed to mental suffering that accentuated throughout the medical course. Receiving the diagnosis of mental disorder and undergoing psychiatric and psychological care were described as moments of relief and greater self-understanding. However, the students’ own prejudices about mental problems and the perception of this stigma in their surroundings were recognized as a reason for not seeking help earlier.

Conclusion:

The experiences of medical students who face mental suffering shed light on the degree of stigma even among students of a course in which greater knowledge and openness regarding the subject are expected. This remains a challenge to be overcome.

Keywords: Mental Disorder; Psychological Stress; Medical Students; Self-Reporting

INTRODUÇÃO

O curso de Medicina apresenta uma alta prevalência de estudantes diagnosticados com algum tipo de transtorno mental1 e muitas vezes com níveis de adoecimento mental mais elevados em relação à população geral2. Isso aponta para a necessidade da promoção de saúde mental para esse grupo3.

Ao ingressar na graduação em Medicina, o estilo de vida do estudante passa por inúmeras modificações para sua adaptação ao novo contexto2. O curso pode propiciar experiências extremamente gratificantes, mas também exaustivas, as quais são percebidas de forma individual e subjetiva. O estado mental, o histórico cultural e o perfil socioeconômico determinam a capacidade de resiliência de cada aluno e apresentam impacto significativo em sua saúde2.

Além disso, os transtornos mentais são observados de modo muito negativo pela população em geral, inclusive pela equipe de saúde. Essa visão distorcida e estigmatizada prevalece porque são definidos por estereótipos culturais preconcebidos e porque a maioria das pessoas não compreende o processo de adoecimento mental4.

No entanto, mesmo em um ambiente com acesso universal a esses serviços, a maioria dos estudantes não procura ajuda5. Barreiras como a falta de percepção da necessidade de ajuda, a baixa credibilidade do tratamento, o desconhecimento dos serviços prestados e ainda a presença de estigmas entre os próprios estudantes a respeito de transtornos mentais diminuem muito a procura por esses serviços6. Além disso, os transtornos mentais são vistos como vulnerabilidades inclusive no meio médico e podem ter implicações no sucesso profissional do indivíduo7.

Diante desse contexto, esta pesquisa buscou compreender como se sente o aluno de medicina que relata fazer acompanhamento psiquiátrico. Além disso, objetivou questionar os próprios estudantes sobre as percepções deles a respeito de aspectos que influenciam seu problema mental e de suas sugestões para o curso.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo exploratório descritivo de base qualitativa, em que se utilizaram como ferramenta entrevistas com estudantes de Medicina de uma universidade pública brasileira, seguidas de avaliação das narrativas por meio da análise do conteúdo8.

A coleta de dados se deu por meio de entrevistas semiestruturadas. Todas as entrevistas foram guiadas por um roteiro de 11 perguntas abertas. O roteiro de entrevista foi elaborado pelas pesquisadoras e debatido com outros pesquisadores, a fim de construir um instrumento qualitativo que abarcasse diferentes temáticas relacionadas à saúde mental do estudante de Medicina e objetivadas neste estudo: características do acompanhamento psiquiátrico; história do adoecimento; experiências perante o adoecimento; percepções ao receber o diagnóstico; aspectos que influenciam o sofrimento mental; influências do sofrimento mental no âmbito da medicina; influências no bem-estar; cotidiano; convivência com o sofrimento mental no cotidiano; experiências positivas durante o curso; experiências negativas durante o curso; rede de apoio; rede de apoio dentro do curso; sugestões de melhorias para o curso.

A construção do roteiro primou pela dinâmica própria da pesquisa qualitativa, com perguntas abertas, não indutivas de respostas prontas, que favoreciam questões relacionadas ao “como” e ao relato da experiência de cada participante8. Dessa forma, construímos as questões necessárias para atingir o objetivo da pesquisa, garantindo máxima abertura para o participante externalizar as suas percepções. No momento da entrevista, surgiram questões complementares e necessárias para o esclarecimento do discurso tanto dos entrevistados quanto das entrevistadoras. Esse modelo de entrevista permite buscar a máxima expressão do entrevistado para que a coleta de dados seja efetiva por meio da empatia, da sensibilidade e do humor. Como o pesquisador é também instrumento da pesquisa, os seus sentidos necessitam captar os fenômenos e o seu cognitivo deve exprimi-los e elaborar a análise do material8. Foi reforçado o compromisso com o sigilo durante toda a pesquisa.

Adotaram-se os seguintes critérios de inclusão: ser estudante de Medicina devidamente matriculado na Universidade Federal do Paraná, frequentar do sétimo ao 12º período do curso, concordar em participar espontaneamente da pesquisa e declarar verbalmente que está em acompanhamento psiquiátrico por qualquer tipo de transtorno mental.

Foram entrevistados dez voluntários que cursavam do sétimo ao 12º período do curso durante o ano de 2018. Das entrevistas feitas, três foram excluídas do estudo, uma vez que os participantes não completaram os requisitos da pesquisa: dois por interromperem o acompanhamento psiquiátrico e um por estar aguardando para iniciá-lo. A escolha dos participantes foi intencional, por informante-chave, começando o convite a alunos do final do curso que preenchiam os critérios e solicitando a indicação de um novo candidato a participante ao entrevistado. Seguimos, portanto, o postulado da técnica bola de neve que utiliza cadeias de referência, e o início da seleção dos participantes se dá por uma semente, um informante-chave ou um documento. A técnica da bola de neve é a mais adequada a estudos de grupos de difícil contato ou que, por razões éticas, se sintam constrangidos no momento da escolha dos participantes.

Em seguida, esse primeiro entrevistado é convidado a indicar um novo participante e assim sucessivamente, até alcançar a saturação inferida pelo pesquisador9. O primeiro entrevistado, ou seja, a semente dessa amostragem, foi um aluno que já havia declarado publicamente fazer tratamento psiquiátrico por problema mental. A cadeia de indicações foi sendo construída sucessivamente, como a técnica prevê.

Para definirmos o número total de participantes, seguimos o princípio da saturação de dados9) comum às pesquisas qualitativas. A escolha por saturação consiste na suspensão da inclusão de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na visão do pesquisador, redundância ou repetição, não sendo relevante persistir na coleta9.

As entrevistas duraram aproximadamente uma hora cada. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e tiveram suas dúvidas esclarecidas pelas pesquisadoras quando necessário. As entrevistas ocorreram presencialmente e em local escolhido pelo participante, e todas foram conduzidas pelas duas estudantes de Medicina responsáveis pela elaboração da pesquisa. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição, sob Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 69805617.7.0000.0102.

As entrevistas foram transcritas, e converteram-se as transcrições em narrativas após um processo de inúmeras leituras superficiais e profundas, de modo a sintetizar exemplos e transformar vícios de linguagem em escrita. A narrativa é uma ferramenta da pesquisa qualitativa que permite mediar a experiência viva e o discurso, ou seja, possibilita a organização e estruturação das entrevistas em forma de texto coeso sem alterar o sentido das falas dos participantes10. A partir das narrativas e de seus núcleos argumentais, foram criadas categorias, levando em conta as temáticas pré-escolhidas no roteiro das perguntas, a frequência de repetição de ideias e o andamento do discurso para então construir uma grade argumentativa com o objetivo de explicitar os principais sentidos e as percepções contidos nos relatos8.

Avaliamos, em seguida, as diferenças e semelhanças entre os textos das narrativas dos diferentes participantes. Procuramos entender as explicações para as diferentes experiências e sobre os elementos relacionados ao sofrimento mental vivenciado. A abordagem utilizada é descrita na pesquisa clínico-qualitativa como análise do conteúdo8. Todo o processo se preocupou com o sigilo do participante, substituindo os nomes, trocando-os por nomes fictícios e retirando dados que pudessem revelar a sua identidade nas transcrições.

As categorias que emanaram do discurso dos participantes foram: 1. história e percepções sobre o adoecimento, 2. características do acompanhamento do problema mental, 3. experiências perante o sofrimento mental, 4. relações do curso com a experiência de adoecimento e 5. redes de apoio, que apresentaremos a seguir.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os entrevistados foram convidados, primeiramente, a relatar sobre a história de seu adoecimento e sobre o acompanhamento psiquiátrico. As experiências descritas apontaram para sofrimentos iniciados ou potencializados ao longo do curso de Medicina.

A exaustão física e mental e, principalmente, a perda da vontade de realizar ou da capacidade de concluir atividades outrora habituais mostraram-se pontos penosos do processo de adoecimento. Outras manifestações citadas - como insônia, ansiedade, irritabilidade, pensamentos destrutivos, crises de choro constantes, inadequações sociais, perda de prazer e descuidos com a própria imagem - também revelaram impactos significativos na qualidade de vida e na autopercepção desses estudantes.

Em relação à influência do transtorno mental no bem-estar, mencionaram-se prejuízos na qualidade e duração do sono, nas atividades físicas, nos hobbies, nos relacionamentos com amigos e familiares, e nos hábitos alimentares. Isso teve repercussões no próprio corpo e consequentemente na autoimagem, acentuando o sofrimento e reforçando o isolamento social.

Conviver com esse problema é complicado, bem difícil! Ele atrapalha toda minha rotina. Tem horas que eu não consigo sair de casa, fazer alguma coisa, porque eu tenho uma crise de ansiedade. Eu me isolo, me tranco no meu quarto e nessa época eu realmente não consigo estudar. Atrapalha muito meus estudos, atrapalha minhas relações sociais e familiares, atrapalha até meus hobbies. Por causa da ansiedade, eu parei de correr, de fazer academia. Esse ano eu engordei dez quilos devido a isso, foi horrível! (E03).

Os participantes compararam o sofrimento mental experimentado dentro do meio acadêmico com a síndrome de burnout, um distúrbio ligado ao trabalhado que é caracterizado pela tríade exaustão emocional, despersonalização e redução da realização pessoal11. A intensa exigência social e acadêmica para um alto grau de desempenho, inserida numa rotina intensamente acelerada, foi a razão atribuída à equiparação com esse quadro. Entrevistados citaram exemplos de estágios com alta demanda de atendimento em um curto período e outros estágios sem o apoio e a supervisão adequados de seus preceptores. Além do desgaste e estresse dessas condições, eles relataram a frustração com essa prática médica vivenciada.

A literatura revela que pelo menos metade dos estudantes passam por um período de burnout durante a formação médica12, e quanto maior é esse nível de esgotamento, menor é a capacidade de empatia do indivíduo13),(14. Portanto, esse problema afeta tanto a saúde do próprio estudante quanto a qualidade do atendimento ao paciente, além de aumentar o desejo de abandono da profissão11.

Eu sei que a gente não pode usar esse termo sendo estudante, mas eu senti que eu estava com burnout, total, não conseguia vir para a faculdade. No internato a gente faz bastante atendimento, a gente está o tempo todo no ambulatório, ou no centro cirúrgico, ou na enfermaria atendendo os pacientes. Então quando eu tinha que vir para faculdade, eu ficava muito agitado. Eu não queria mais atender o paciente, porque não queria ouvir os problemas da outra pessoa, eu já tinha problema suficiente na minha vida para ouvir problemas dos outros. Eu tinha uma despersonalização enorme com o curso, não queria mais fazer aquilo [...]. É muito cansaço mental mesmo [...]. Cheguei a começar a faltar muito no curso, não conseguia estudar. A cada cinco linhas que eu lia eu parava: “Cara, eu não consigo, não consigo” (E03).

O sofrimento mental impõe barreiras ao desempenho acadêmico e às relações sociais15. Dificuldades de estudar, memorizar, frequentar as aulas e se concentrar - somadas a crises de ansiedade, fadiga, instabilidade emocional e desinteresse - foram relatadas como influências negativas e marcantes no desempenho desses acadêmicos, resultando em prejuízo ao rendimento. Por consequência, esse processo intensifica o sentimento de culpa e cobrança, o que retroalimenta o sofrimento e a dificuldade de desempenho, funcionando na perspectiva desses alunos como um “ciclo vicioso”. Além disso, os entrevistados perceberam dentro do curso o julgamento deles próprios e de colegas e professores quanto àqueles que não atingem as notas esperadas, que necessitam realizar prova final ou que precisam refazer a disciplina.

As exigências do ambiente universitário afetam não somente alunos, mas também docentes - subordinados a produzir volumes crescentes de conteúdo científico sem comprometer sua capacidade de adquirir conhecimento e transmiti-lo. Esse modus operandi os torna susceptíveis a fontes de sofrimentos similares a de seus alunos, amplificando o impacto do sofrimento mental no cenário universitário16.

A minha produtividade caiu, praticamente zerou, em relação ao que eu era antes. Até o primeiro ano da faculdade, eu rendia muito. Tudo que eu pegava para fazer, eu fazia muito bem. Hoje em dia, eu pego quase nada para fazer, e tudo que pego, faço mal. Isso quando não desisto no meio do caminho (E02).

De todos os lados, eu me sentia culpada. Então qualquer coisa que despertasse esse sentimento de “não estou dando o meu máximo” me deixava muito mal, e aí virava um ciclo vicioso (E06).

Hoje eu consigo ver que não seria fraqueza minha ter desistido, ter parado um tempo, ter tirado um tempo para mim. Mas o “EU” do passado achava que era o fim do mundo atrasar... E, sei lá, estou me perdoando mais (E06).

Os entrevistados perceberam o aluno de Medicina “muito unilateral e alienado”, vivendo em uma “bolha” da medicina, em que a vida fica voltada exclusivamente para as atividades do curso. Foi ressaltada a necessidade de terem experiências e convivências com pessoas fora do curso de Medicina, como praticar esportes, ioga e meditação, fazer curso de inglês, ter amizades de outros cursos. Esses aspectos foram destacados como positivos e de ajuda, por proporcionarem sensação de bem-estar.

Alguns professores acreditam que, quando você entra na medicina, você é médico e tem que pensar na medicina 24 horas por dia. Eu não sou assim, eu sou um ser humano antes de qualquer coisa (E01).

Jogar bola me desestressa bastante. Eu vejo gente que não é da medicina, saio um pouco dessa bolha. [...] Quando eu saio com outros amigos, a gente fala de qualquer coisa aleatória menos disso [de medicina], porque de vez em quando isso me satura (E04).

Na percepção dos entrevistados, a distância geográfica da família e dos amigos, o preparatório para a prova de residência e a sensação de serem expostos, humilhados ou assustados com comentários de professores - além do relato de “algumas histórias muito pesadas dos pacientes [...] história de terror [...] que são osso de ouvir” e da perda de alguém importante e próximo do estudante - mostraram-se fatores contribuintes que influenciaram seu sofrimento, uma vez que os próprios entrevistados se perceberam já sensibilizados quando comparados a outros alunos em geral.

Eu acho que tem uma diferença muito grande entre as pessoas. Entre aqueles que têm essa resiliência de passar por tudo isso e achar que é normal, que está tudo bem, e aqueles que realmente sofrem com um transtorno durante o curso e veem que talvez a gente tenha uma carga muito além do que a gente precisaria. Isso atrapalha muito quem tem transtorno mental ou pode desencadear transtornos mentais (E01).

Os entrevistados relataram intensa cobrança individual, acadêmica e social para uma alta performance no curso, além da falta de tolerância a falhas associada ao peso da imagem do médico como uma divindade, erudito e infalível. Porém, apesar de essa ideação aparentar ser um privilégio, tentar atingir essa imagem mostrou ser uma fonte de grande sofrimento.

Não era simplesmente tirar uma nota baixa. Era realmente como se eu não fosse ser uma boa médica, não fosse passar na residência, como se eu fosse matar meus pacientes. Mexe muito comigo, principalmente quando ouço isso dos professores (E07).

A medicina influencia demais nesse problema, totalmente. A pressão que a gente tem diária de se provar cada vez melhor. Essa pressão de você provar para você mesmo, para sua família e para os seus colegas que você não está ali de brincadeira afeta demais a saúde das pessoas. [...] Eu acho que a gente precisa aprender que medicina é uma profissão. Você não é um santo, não é um deus, você é uma pessoa e tem direito de descansar. Mas isso é um problema social, não é um problema só do curso (E03).

Apesar de se tratar de um curso em que se esperam maior conhecimento e abertura para os problemas mentais, as entrevistas evidenciaram a existência do estigma de “frescura”, “drama”, “piti” e “loucura” entre os próprios entrevistados, os seus familiares, os colegas de curso, os professores e os outros profissionais da saúde. Somado a isso, eles vivenciaram a dicotomia que permanece entre mente e corpo resultando no descrédito em relação aos transtornos mentais. Esses preconceitos marcantes muitas vezes justificam o fato de as pessoas postergarem a busca por acompanhamento.

Espera-se que pessoas com transtornos mentais, ao contrário daquelas com incapacidades físicas, sejam capazes de controlar os próprios problemas, já que eles se apresentam no âmbito da própria mente15),(17. Por esse motivo, esses indivíduos são constantemente responsabilizados por sua condição15. Esse estigma pode ser uma barreira na procura por ajuda17),(18. A autoestigmatização e o medo da rejeição por outros podem aumentar a ocorrência de isolamento social19),(20.

Um estudo brasileiro apontou que mesmo psiquiatras tendem a estereotipar indivíduos com esquizofrenia, o que reforça ainda mais a necessidade de intervenções para a redução dessa estigmatização21.

Quando eu dizia que não estava bem, eles [meus pais] diziam que era assim mesmo, que era normal. Então eu sentia que estava reclamando à toa. [...] Eu carregava esse estigma da frescura (E01).

Dá para entender por que os pacientes não aderem ao tratamento, porque é difícil e estigmatizante. Quantas vezes a gente vê o pessoal falando: “Ah, aquela lá é uma bipolar, uma hora ela acha uma coisa, outra hora acha outra” ou “Já tomou o lítio hoje?”. Dentro da faculdade, colegas, professores, funcionários. Onde eu mais convivo, dentro do hospital (E05).

O desejo de “largar” o curso e a ideação suicida apareceram como forma de evasão ou de interrupção do sofrimento. Os índices elevados de suicídio entre estudantes de Medicina podem ser relacionados com a perda da suposta onipotência, onisciência e virilidade idealizadas durante o curso, além da crescente ansiedade pelo temor em falhar22.

Tive ideação suicida várias vezes [...]. Nossa! Naquelas épocas pré-provas que você vira a madrugada. Aí você vai na sacada, você olha. Nossa! [...] E ter vontade de pular, largar tudo, acabar com tudo. Nunca tive coragem, nem de fazer isso, mas que às vezes você olhava e dava vontade, isso dava. Você está esgotado, cansado, tipo um burnout associado a um monte de coisa, mas sem planejamento (E04).

Receber o diagnóstico psiquiátrico, apesar de ser difícil, e realizar o acompanhamento foi referido como momento de alívio e de maior entendimento do sofrimento que esses estudantes estavam vivenciando, assim como buscar depoimentos e ter contato com outras pessoas com transtorno mental. Ainda que impactante, os entrevistados perceberam que esse processo de adoecimento e tratamento foi vivenciado como transformador, pois ampliou a empatia com os pacientes e influenciou na prática clínica: “Eu tive uma rede de apoio muito grande com os meus amigos. Inclusive, quando eu me abri, várias pessoas se abriram. A gente percebeu que muitos estão passando por isso e não falam por medo de serem julgados” (E03).

Entre as experiências positivas no curso discutidas nas entrevistas, destacaram-se a identificação e a importância do apoio fornecido por alguns professores e técnicos, o contato com a prática clínica, as atividades extracurriculares, os jogos e esportes vinculados à universidade e o relacionamento mais próximo e cordial com os professores no internato.

Quanto à rede de apoio, os participantes listaram: acompanhamento psiquiátrico e psicológico, família, amizades próximas ou que compartilham desse sofrimento e trocam experiências, e terapias alternativas como ioga e meditação.

No que tange à universidade e ao curso, alguns entrevistados disseram desconhecer as redes de apoio, enquanto outros citaram: a unidade ambulatorial que presta atendimento gratuito aos universitários, o atendimento psicológico para os estudantes de Medicina no hospital e palestras e discussões dentro do curso sobre transtornos mentais. No entanto, lamentam que essas medidas são pouco divulgadas e incentivadas, pois podem ser fundamentais para desfazer o “medo” e o “bloqueio” que existem em relação aos transtornos mentais.

Eu acho que, quando a gente põe isso em discussão, em sala de aula, a gente vai perdendo o medo de admitir para a gente mesmo. Nem que a gente não fale nada na sala, mas para que se encare isso como algo que tem que ser cultivado, cuidado e não ignorado como é feito. Acho que isso vai ser essencial para quebrar esse ciclo (E05).

Os participantes sugeriram também: reduzir a carga horária; aumentar as horas de atividades clínicas práticas; reduzir as matérias que repetem o conteúdo já abordado na grade e as disciplinas muito específicas, que vão além daquilo que um clínico geral deve dominar; aumentar a convivência dos alunos com os professores e estabelecer essa aproximação por meio de turmas menores; reforçar a importância de discutir sobre a saúde e o sofrimento mental. Tais sugestões reforçam as diretrizes curriculares já existentes, indicando uma abertura dos alunos para metodologias mais ativas de ensino, o que contribui para uma maior proximidade e apoio aos alunos.

Em outro estudo realizado em faculdades Medicina no Brasil, os estudantes relataram que a qualidade dos professores e dos currículos influenciaram em sua qualidade de vida23. O ensino médico deve utilizar metodologias que privilegiem a participação ativa do aluno na construção do conhecimento, colocando-o como sujeito da aprendizagem e o professor como facilitador e mediador desse processo24.

Essa hierarquia, esse poder que é dado aos professores os torna menos humanos. Esse tipo de exposição [por meio de comentários feitos por professores] … não fui só eu, eu sei de muitas pessoas que passaram por isso também. Uma coisa que para eles não é nada, que não muda praticamente nada na vida deles, mas que, para quem sofre, é absurdo como isso nos afeta (E02).

A estigmatização dos transtornos mentais foi intensamente abordada durante os relatos, sendo apresentada como uma barreira muito relevante para a procura por ajuda. Variados estudos defendem a necessidade de estratégias para diminuir os níveis de discriminação e salvaguardar esses indivíduos, principalmente no âmbito médico7),(20),(21. Além disso, os alunos se sentiram compelidos a compartilhar suas experiências, o que possibilitou a discussão e um ambiente de ajuda mútua para lidar com esse sofrimento.

Acho que eu queria poder falar para todos os alunos que não se obriguem tanto, não se martirizem, não façam do seu sofrimento um orgulho. Esse tipo de sofrimento é também válido, é justificável [assim como sofrimentos físicos]. Você pode estar sofrendo, e espero que tenha alguém para te ajudar (E06).

A pesquisa apresentou algumas limitações. Todas as entrevistas foram conduzidas por duas estudantes de Medicina do quarto ano da mesma universidade que os entrevistados, os quais, por esse motivo, podem ter apresentado maior ênfase em aspectos ligados ao curso. Contudo, o fato de serem alunas também pode ter contribuído para garantir um espaço de fala mais livre, facilitando assim o acesso ao campo e mitigando possíveis constrangimentos.

A escolha amostral por meio da técnica bola de neve também foi um fator limitador, uma vez que restringiu os participantes a um grupo mais próximo. Não foram entrevistados alunos do início do curso devido ao menor alcance dessa técnica, porém a ausência de distanciamento entre os participantes e as entrevistadoras possibilitou maior abertura para a discussão de questões delicadas.

Todos os alunos faziam o curso na mesma universidade, o que pode limitar a generalização dos achados. No entanto, as questões destacadas são condizentes com os conceitos mencionados na literatura mais ampla. Além disso, a pesquisa complementa estudos anteriores, ao passo que identifica e discute em maior profundidade fatores já evidenciados.

CONCLUSÕES

O estigma em relação a transtornos mentais resultou em uma maior resistência à procura por ajuda. Esse preconceito está presente mesmo no curso de Medicina, em que se esperam maior conhecimento e abertura, sendo esse um desafio a ser superado. Está presente também em muitos dos entrevistados e em seus ambientes familiares. Os processos institucionais permeados pela competitividade e pela busca por produtividade, aspectos muito comuns nos cursos de Medicina, contribuem para um ambiente propício ao sofrimento. Apesar da dificuldade de receber e aceitar o diagnóstico, a realização de acompanhamento para o transtorno mental e o compartilhamento de experiências com pessoas que vivenciaram a mesma realidade proporcionaram maior compreensão e alívio aos estudantes inseridos em contexto idêntico, além repercutirem em relatos de maior sensibilidade e empatia com os pacientes.

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2Avaliado pelo processo de double blind review.

FINANCIAMENTO Declaramos não haver financiamento.

Recebido: 07 de Maio de 2021; Aceito: 11 de Julho de 2021

tslourencco@gmail.com angelabertoldo0449@gmail.com deivianna@gmail.com binastefanello@gmail.com

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editora associada: Cristiane Barelli.

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Thaís Silva Lourenço e Angela Bertoldo participaram da concepção da pesquisa, da aquisição, análise e interpretação dos dados, e da estruturação do texto. Sabrina Stefanello participou da concepção e do desenho da pesquisa, da análise e interpretação dos dados, da revisão crítica para conteúdo intelectual significativo e da aprovação final da versão encaminhada para publicação. Deivisson Vianna Dantas dos Santos participou da revisão crítica para conteúdo intelectual significativo e da aprovação final da versão encaminhada para publicação.

CONFLITO DE INTERESSES

Declaramos não haver conflito de interesses.

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