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Revista Brasileira de Educação Médica

Print version ISSN 0100-5502On-line version ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.46 no.2 Rio de Janeiro  2022  Epub June 02, 2022

https://doi.org/10.1590/1981-5271v46.2-20210366 

Artigo Original

Currículo informal singular: eletividade na formação médica durante a pandemia

Singular informal curriculum: electiveness in medical training during the pandemic

Walter Gabriel Neves Cruz1 
http://orcid.org/0000-0001-9146-7471

Mariana Camelier-Mascarenhas1 
http://orcid.org/0000-0002-9239-8962

Vitória Oliveira de Queirós1 
http://orcid.org/0000-0003-0309-9766

Gustavo Henrique Mendes Ferreira1 
http://orcid.org/0000-0003-4483-6320

Jorge Carvalho Guedes1 
http://orcid.org/0000-0002-4687-3590

1Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia, Brasil.


Resumo:

Introdução:

A interrupção das atividades de ensino imposta pela pandemia de Sars-CoV-2 ofereceu uma oportunidade ímpar de analisar os hábitos de estudo extracurriculares dos estudantes de Medicina, buscando compreender como a inexistência de um direcionamento institucional temático impactou a formação médica durante esse período de isolamento social.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo avaliar a ocorrência, as temáticas e as principais fontes dos estudos durante o período de suspensão de aulas na pandemia.

Método:

Trata-se de um estudo analítico e descritivo com dados colhidos a partir de um questionário virtual aplicado a estudantes de Medicina de uma instituição de ensino superior.

Resultado:

A partir da suspensão total das aulas, dos 310 participantes, 152 (49,0%) discentes alegaram ter estudado temas relacionados à área de ciências da saúde e 93 (30,0%) estudaram temas não relacionados à área de ciências da saúde. Estatisticamente, houve preferência exclusiva por uma área outra (p < 0,001), indicando dois perfis de estudo no período. Os interesses temáticos mais abundantes foram aqueles abordados em eventos médicos virtuais, como congressos ou simpósios, bem como os relacionados à Covid-19. Entre os temas mais citados, destacaram-se: fisiologia, clínica médica e geral ou especializada, anatomia, idiomas, finanças e filosofia.

Conclusão:

A despeito da suspensão das atividades acadêmicas curriculares, os estudantes buscaram novos aprendizados de acordo com suas demandas intelectivas, denotando o desenvolvimento de um currículo informal singularizado.

Palavras-chave: Autoaprendizagem como Assunto; Avaliação das Faculdades de Medicina; Pandemia da Covid-19; Educação à Distância

Abstract:

Introduction:

The interruption of teaching activities imposed by the Sars-CoV-2 pandemic offered a unique opportunity to analyze the extracurricular study habits of medical students, seeking to understand how the lack of a thematic institutional targeting impacted on medical training during the period of social isolation.

Objective:

This study aimed to evaluation of the occurrence, themes, and main sources of studies during the period of suspension of classes in the pandemic.

Method:

Analytical and descriptive study with data collected from a virtual questionnaire applied to medical students of a higher education institution.

Result:

From the complete suspension of local activities, of the 310 participants, 152 (49.0%) students claimed to have studied topics related to the health sciences and 93 (30.0%) studied topics not related to the health sciences area. Statistically, there was an exclusive preference for one area to another (p < 0.001), indicating two study profiles in the period. The most abundant thematic interests were those addressed in virtual medical events, such as conferences or symposia, as well as those related to Covid-19. It stands out as the most cited themes: physiology, medical and general or specialized clinic, anatomy, languages, finance and philosophy.

Conclusion:

Despite the suspension of academic activities, students sought new learning habits according to their intellectual demands, denoting the development of a singularized informal curriculum.

Keywords: Self-Directed Learning as Topic; Evaluation of Medical School Curriculum; Covid-19 Pandemic; Distance Learning

INTRODUÇÃO

Desde 2020, as medidas de distanciamento social impostas para combater a pandemia da coronavirus disease 2019 (Covid-19) têm impactado as relações que os indivíduos mantêm entre si e com os espaços onde interagem1),(2. Durante a fase de progressão epidêmica, quase todas as atividades presenciais migraram para o ambiente virtual de forma brusca e heterogênea, com algumas atividades funcionando de forma razoável, ao passo que outras não foram tão bem adaptadas.

Um dos dilemas enquadrados no último cenário é a formação médica diante da pandemia de Covid-19. Com componentes curriculares eminentemente práticos e saberes sensíveis, os cursos de saúde enfrentam os desafios de como contornar as medidas de distanciamento social e manter o compromisso com a formação técnica e ética de seus futuros profissionais3.

No Brasil, em consonância com as medidas adotadas em outros países, estabeleceu-se a suspensão de atividades presenciais de ensino, e, de acordo com as especificidades de cada instituição, algumas adotaram atividades a distância4),(5. Segundo levantamento da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), 90% das instituições de ensino médico no Brasil interromperam suas atividades acadêmicas presenciais em março de 20206.

De acordo com portarias publicadas pelo Ministério da Educação (MEC), esse cenário de suspensão das aulas presenciais deveria se manter pelo menos até junho de 2020, tendo sido posteriormente prorrogado até final desse ano7),(8. Tais medidas se justificaram porque os estudantes podem atuar como vetores de propagação do vírus, além do entendimento da escassez dos equipamentos de proteção individual, o que foi amplamente denunciada por profissionais de saúde em todo o Brasil9.

Nesse contexto, a Faculdade de Medicina da Bahia (FMB) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em consonância com o seu Conselho Universitário, suspendeu toda e qualquer atividade acadêmica do primeiro ao oitavo semestre10. A suspensão das atividades do internato - período que compreende do nono ao 12° semestre - foi deliberada em reunião subsequente, dado o entendimento das especificidades pedagógicas das turmas em questão11.

Com o descenso da primeira onda pandêmica, a Universidade iniciou a mobilização para planejamento da retomada das atividades. Na FMB-UFBA, o retorno às atividades se deu de forma escalonada, semipresencial e progressiva a partir da volta de parte do internato. Em abril de 2021, as atividades acadêmicas regulares do terceiro ao oitavo semestre retornaram em um modelo híbrido.

Dada essa conjuntura inicial de suspensão das atividades universitárias da graduação, é possível partir da premissa de que qualquer aprendizado que os estudantes desenvolveram no período de suspensão total das atividades acadêmicas ocorreu devido à iniciativa própria, voluntária, alinhada ao contexto de interesses temáticos de cada um, constituindo um currículo não formal desenvolvido no “ócio” oferecido pelo isolamento social.

Entende-se por currículo não formal todo conjunto de potencialidades pedagógicas não sistematizadas que transmitem conhecimentos não necessariamente prescritos nas diretrizes curriculares e nos objetivos do curso. Alguns dos seus subconceitos são: currículo informal, que se refere às atividades realizadas cuja finalidade não está contida no currículo formal; currículo oculto, um conjunto mensagens transmitidas implicitamente, até mesmo sem intenção, e absorvidas por meio da observação e apreensão de práticas; e currículo nulo, que concerne aos pressupostos transmitidos pela omissão, ou seja, quando algo não é considerado em ambientes formais de ensino e o estudante acaba por deduzir que o objeto em questão não é importante ou necessário12)-(14. Vale ressaltar que as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de Medicina preconizam que sejam realizadas atividades complementares, como programas de extensão, iniciações científicas, monitorias, estágios, estudos complementares e cursos, a critério do estudante, com base nos seus interesses3. Nesse sentido, mesmo no currículo formal existe espaço para a eletividade.

Essas ações são tidas como um complemento à formação tradicional, pois auxiliam na construção dos principais conhecimentos esperados dos egressos do curso: atenção à saúde, quando são capazes de tratar as doenças mais prevalentes e realizar a promoção da saúde e o respeito à diversidade; gestão em saúde, quando têm compreensão do funcionamento do sistema de saúde; e educação em saúde, para que possam ser capazes de se manter em constante aprendizado e auxiliar as próximas gerações de médicos3.

No período inicial que antecedeu o planejamento e a implantação do modelo híbrido de ensino, em uma excepcional situação de distanciamento social, a inexistência de um direcionamento institucional temático (quais assuntos estudar) e cronológico (quando estudar) ofereceu não apenas a informalidade do currículo, mas também transportou a responsabilidade do aprendizado, que antes era compartilhada, inteiramente para os estudantes. Em outras palavras, possibilitou o desenvolvimento de um currículo informal singularizado.

A eletividade curricular vem sendo considerada como modelo para o ensino médico desde a publicação por Harden et al.15 da ferramenta SPICES. Essa eletividade se coaduna com os princípios modernos da andragogia, pois os adultos aprendem aquilo que lhes interessa nos seus contextos individuais e sociais. Os currículos médicos brasileiros são, na sua maioria, prescritivos, no sentido que as instituições educacionais decidem o que, como e quando os estudantes vão estudar.

Moravec13 entende que se aprende melhor quando as estruturas de controle que restringem a liberdade e a autodeterminação nas experiências de aprendizado estão suspensas. Consequentemente, compreende-se que talvez seja mais útil propor uma formação na qual é oferecida uma “ecologia de opções” para que os estudantes construam o seu próprio currículo singular. Deste modo, a suspensão das atividades de ensino representa um experimento natural para analisar o direcionamento educacional espontâneo dos estudantes nessa nova conjuntura, o que pode ser útil para reflexões acerca de novas estratégias educacionais que propõem mais confiança nos educandos e menos responsabilização dos educadores. Nesse contexto, as seguintes questões foram propostas:

  • Independentemente das expectativas de retorno das atividades acadêmicas obrigatórias e das suas normativas, os estudantes permaneceram buscando novos aprendizados de acordo com suas demandas?

  • A que temáticas e assuntos os alunos de Medicina de uma determinada instituição dedicaram os seus estudos?

  • Que ferramentas e fontes de acesso foram mais utilizadas?

Diante do exposto, este trabalho objetivou analisar e descrever as práticas intelectuais dos acadêmicos de Medicina da UFBA, que podem ser ou não dissociadas do contexto acadêmico rotineiro, durante o período de isolamento social em decorrência da pandemia da Covid-19.

MÉTODO

Este estudo é um corte transversal, analítico descritivo, cujos dados foram coletados por meio de questionário virtual, aplicado entre julho e agosto de 2020 - no período de suspensão das atividades de ensino -, em amostra de intencionalidade. Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FMB-UFBA, com Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) n° 33225020.1.0000.5577.

Adotaram-se os seguintes critérios de inclusão: ser estudante de Medicina do segundo ao 12º semestre da FMB-UFBA, situada no campus de Salvador (Bahia, Brasil), com nome presente na lista de escalonamento de matrícula do Colegiado de Graduação; ter concluído, pelo menos, um período da grade curricular na FMB-UFBA; e ter, pelo menos, 18 anos de idade. Os critérios de exclusão foram a recusa em preencher todas as questões objetivas do formulário eletrônico e estar em situação vigente de trancamento de matrícula. O convite para participação na pesquisa foi feito por meio de mensagens de e-mail e por aplicativo WhatsApp a todos os estudantes da instituição, com exceção dos integrantes do primeiro semestre. Aplicou-se o questionário por meio da plataforma on-line Google Forms.

As variáveis coletadas incluíam perfil sociodemográfico (gênero, cor/raça e renda média familiar), situação acadêmica (semestre/turma vigente e existência de atrasos na formação), hábitos de estudo e temas estudados no período de suspensão das atividades, relacionados ou não à medicina e às ciências da saúde. Os temas de estudo que foram relatados passaram por uma filtragem qualitativa com o fim de uniformizar os sinônimos utilizados para uma mesma temática. Os temas não relacionados às ciências da saúde foram categorizados de acordo com a classificação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) das áreas do conhecimento.

A análise estatística dos dados foi feita por meio do software IBM SPSS Statistics, versão 20. Calculou-se a frequência de ocorrência das respostas, e realizou-se o teste qui-quadrado de Pearson para verificar a independência entre os grupos que estudaram temas relacionados às ciências da saúde (área temática A) e os que estudaram outros temas não relacionados (área temática B).

RESULTADOS

Para o questionário, houve 314 respostas no total, sendo excluídas três duplicatas de respostas e uma por irregularidade de matrícula, resultando em 310 respostas elegíveis para o estudo.

Quanto ao perfil sociodemográfico (Tabela 1), os estudantes eram, em sua maioria, do gênero feminino, com local de residência predominantemente urbano (95,8%). Majoritariamente os alunos se identificaram como pardos, em proporção maior que brancos, pretos, amarelos e indígenas. Em relação ao status acadêmico, 122 (39,4%) encontravam-se no ciclo básico; 98 (31,5%), no ciclo clínico; e 90 (29,1%), no internato. Desses, uma minoria (16,5%) teve algum atraso na progressão do curso.

Tabela 1 Características gerais da amostra. 

Variável n (%)
Gênero Feminino 178 57,4%
Masculino 132 42,6%
Cor/raça Branca 120 38,7%
Amarela 3 1,0%
Indígena 2 0,6%
Parda 142 45,8%
Preta 43 13,9%
Semestre cursado 46 14,8%
40 12,9%
36 11,6%
36 11,6%
19 6,1%
21 6,8%
22 7,1%
30 9,7%
10º 14 4,5%
11º 21 6,8%
12º 25 8,1%
Atrasos no curso Sim 51 16,5%
Não 259 83,5%
Renda familiar (em salários mínimos*) Nenhuma renda 1 0,3%
Até 1 13 4,2%
De 1 a 3 97 31,3%
De 3 a 6 76 24,5%
De 6 a 9 41 13,2%
De 9 a 12 31 10,0%
De 12 a 15 18 5,8%
Mais de 15 33 10,6%

*Correspondente a R$ 1.045,00 no período do estudo.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Quando se correlacionaram os resultados da pergunta sobre a realização de estudos relacionados às ciências da saúde (área A) com os da pergunta acerca de estudos não relacionados a essa área (área B), constatou-se que 89 (28,7%) participantes não estudaram nenhuma das áreas, 24 (7,7%) estudaram ambas, 128 (41,3%) estudaram apenas área A, e 69 (22,2%) estudaram apenas a área B. O teste qui-quadrado de Pearson demonstrou dependência significativa (p < 0,001) entre a insinuação sobre estudos na área A ou na área B.

Estudos relacionados às ciências da saúde

Dos discentes que participaram do estudo, 152 (49,0%) alegaram fazer uso do maior tempo disponibilizado a partir da suspensão das aulas para estudar temas relacionados à área de ciências da saúde. Quanto à origem dos assuntos, aqueles abordados em videoconferências e seminários on-line realizados por instituições de educação médica e/ou profissionais de saúde foram os mais citados, com 107 (70,4%) ocorrências. Por sua vez, 99 (65,1%) se dedicaram ao estudo de temas já abordados na faculdade, seguido pelo estudo de temas relacionados à Covid-19, com 91 (59,9%) concordâncias. Com menor incidência, estiveram os assuntos previstos nas disciplinas cursadas no período da interrupção das aulas, assim como temas com os quais os alunos ainda não tiveram contato na faculdade; e ambas as opções contaram com 89 (58,6%) respostas.

Quanto aos principais objetos de estudo relacionados à área médica listados pelos estudantes, o de maior incidência foi fisiologia, com 40 (26,3%) citações. Em menor medida, o tema de clínica médica geral foi o segundo mais incidente, com 38 (25,0%) menções, enquanto anatomia foi o terceiro tema mais listado, com 37 (24,3%) estudantes citando-o. Vale ressaltar as numerosas citações acerca de especialidades clínicas (oncologia, cardiologia, endocrinologia, gastroenterologia e hepatologia, geriatria, pneumologia, hematologia, nefrologia, reumatologia, dermatologia, infectologia e neurologia), as quais, quando consideradas como uma única categoria, foram as mais presentes, com 142 citações no total. Os assuntos citados estão detalhados na Tabela 2.

Tabela 2 Frequência de temáticas relacionadas às ciências da saúde. 

Assunto n (152) (%)
Fisiologia 40 26,3%
Clínica médica geral 38 25,0%
Anatomia 37 24,3%
Neurologia 28 18,4%
Cirurgia geral 25 16,4%
Obstetrícia 25 16,4%
Pediatria 25 16,4%
Cardiologia 24 15,8%
Ginecologia 24 15,8%
Urgência e emergência 24 15,8%
Infectologia 22 14,5%
Diagnóstico por imagem 15 9,9%
Gastroenterologia 14 9,2%
Farmacologia 14 9,2%
Hepatologia 11 7,2%
Epidemiologia 11 7,2%
Pesquisa 11 7,2%
Saúde mental e/ou psiquiatria 10 6,6%
Saúde coletiva 10 6,6%
Eletrocardiograma 10 6,6%
Nefrologia 9 5,9%
Pneumologia 9 5,9%
Medicina intensiva 8 5,3%
Reumatologia 8 5,3%
Cirurgia especializada 7 4,6%
Endocrinologia 7 4,6%
Semiologia 7 4,6%
Saúde das populações negligenciadas 7 4,6%
Patologia 6 3,9%
Bioestatística 5 3,3%
Dermatologia 4 2,6%
Hematologia 4 2,6%
Biofísica 4 2,6%
Outros* 32 21,0%

*Correspondem, para cada um n = 3 (2,0%), a: imunologia, histologia, microbiologia e assuntos não especificados; n = 2 (1,3%): oftalmologia, ortopedia, urologia, medicina alternativa e educação médica; n = 1 (0,7%): anestesiologia, geriatria, oncologia, bioquímica, embriologia, ética médica, genética, nutrição, medicina do esporte e medicina legal.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Estudos não relacionados às ciências da saúde

Dos discentes que participaram do estudo, 93 (30,0%) alegaram que fizeram uso do maior tempo disponibilizado a partir da suspensão das aulas para estudar temas não relacionados à área de ciências da saúde. As temáticas mais estudadas correspondiam à grande área do conhecimento da linguística, das letras e das artes, com 54 (58,1%) citações. Por sua vez, 50 (53,8%) se dedicaram ao estudo de humanidades, seguido pelo estudo de ciências sociais aplicadas, com 23 (24,7%) ocorrências. Em menor medida, estiveram as ciências exatas e da terra e ciências biológicas, com 11 (11,8%) citações cada, e, por fim, ciências agrárias, com apenas duas (2,2%) menções.

Quanto às temáticas, o principal objeto de estudo foi o tema de línguas, o qual envolvia majoritariamente menções ao estudo de idiomas não nativos - como espanhol, inglês, francês, entre outros - com 41 referências (44,1%) dos estudantes. O tema de finanças foi o segundo mais prevalente, com 25 (26,9%) citações sobre educação financeira, mercado de ações, economia e/ou investimentos no geral. Filosofia foi a terceira temática mais presente, com 19 (20,4%) menções à filosofia grega, socrática, aristotélica, hegeliana, moderna ou geral. Os dados relativos a todas as temáticas citadas estão descritos na Tabela 3.

Tabela 3 Frequência de temáticas estudadas não relacionadas às ciências da saúde. 

Temas estudados n %
Línguas 41 44,1%
Finanças 25 26,9%
Filosofia 19 20,4%
Literatura 16 17,2%
Ciências sociais 13 14,0%
Música 11 11,8%
Psicologia 8 8,6%
Teoria feminista 8 8,6%
Questões raciais 6 6,5%
Religião 5 5,4%
Outros* 22 23,7%

*Correspondentes, cada um, a: física e programação (n = 4; 4,3%); marketing e autoconhecimento (n = 3; 3,2%); gestão, dança, culinária e agropecuária (n = 2; 2,2%).

Fonte: Elaborada pelos autores.

DISCUSSÃO

Até o momento da submissão deste trabalho, não identificamos outra pesquisa que analisasse os hábitos de estudos de estudantes de Medicina durante a suspensão das atividades acadêmicas de ensino imposta pela pandemia Sars-Cov-2.

Vale dizer que a amostra estudada teve perfil sociodemográfico compatível com outro estudo de mesmo público-alvo, realizado na mesma instituição de ensino médico16.

Primeiramente, o achado estatístico significante de dependência entre o estudo de temas da área A (relacionados à medicina) ou área B (não relacionados à medicina) indica que, na maior parte dos casos, houve exclusividade na escolha da área, tal como apontado pelas frequências. Ou seja, escolher estudar a área A representava um distanciamento da área B, e vice-versa. Assim, podemos destacar dois perfis de estudantes: aqueles que aproveitaram o tempo ocioso para evitar a desconexão das ciências da saúde, buscando revisar ou aprender assuntos relevantes da área; e aqueles diametralmente opostos, que buscavam ampliar os seus conhecimentos gerais ou sobre as áreas de interesse que não estavam diretamente ligadas à carreira almejada. Vale ressaltar a existência dos grupos minoritários que buscaram as duas áreas e aqueles que não optaram por realizar estudos no período.

Estudos relacionados à medicina

Como teorizado inicialmente, uma parcela substancial dos estudantes desenvolveu um currículo informal singular. A concentração de interesses temáticos pelos assuntos abordados em eventos médicos virtuais ou por aqueles sobre o Sars-CoV-2 pelos estudantes que estudaram no período de suspensão de aulas, preterindo os temas curriculares tradicionais, suscita a tese de que a curiosidade e o interesse estão mais associados com a liberdade de escolha do que com a obrigação formal de cumprir as metas curriculares preestabelecidas17. A ausência de um plano estruturado, nessa situação, denota que os limites ou objetivos do aprendizado não são previamente estabelecidos, mas que se desenvolvem espontaneamente13.

Em se tratando dos eventos institucionais, é necessário considerar que essas preferências podem demonstrar uma maior acessibilidade dos estudantes a esses espaços científicos. Essa é uma das vantagens da digitalização de congressos científicos, simpósios, encontros e conferências, pois, ao ser hospedado na internet, o evento se torna mais acessível geograficamente, com público mais diverso, incluindo mais estudantes, residentes e profissionais no início da carreira, o que representa menor custo envolvido na realização e participação do evento e mais espaço para apresentação de trabalhos submetidos, além de haver redução nas barreiras linguísticas, devido à facilidade de usar ferramentas de tradução em eventos on-line, e de fuso horário, pela possibilidade de realizar atividades assíncronas18),(19. Apesar dos ganhos, é importante lembrar que a grande adesão de alunos a esses eventos pode estar relacionada ao fato de estes serem as únicas atividades de ensino disponíveis no momento, devido ao contexto de suspensão das aulas e do distanciamento social, e o interesse genuíno nos temas pode não ter sido o principal motivador da participação. Há ainda evidências de rápida perda de interesse em eventos virtuais, o que pode também ter ocorrido com nossa amostra19.

Quanto ao interesse por estudos de temas relacionados à Covid-19, isso pode ser associado com a ausência de atividades acadêmicas curriculares que pudessem preencher essa lacuna emergente do conhecimento. Como apontam Loda et al.20, os estudantes de Medicina alemães também se utilizaram de videoconferências em substituição da carga horária presencial e, mesmo com a sensação de estarem bem informados sobre a pandemia, também apontaram a ausência de abordagem acadêmica do tema.

Especificamente sobre os assuntos, é notável que, mesmo que grande parte dos estudantes já tivesse concluído o ciclo básico (60,6%), a ocorrência de temas fundamentais das ciências da saúde, como fisiologia e anatomia, foi alta. Assim, pode-se dizer que, para além da introdução aos temas pelos estudantes no início do curso, há também um processo de revisitação voluntária a esses conhecimentos fundamentais para o raciocínio médico pelos alunos de períodos mais avançados21. É possível que essa priorização dos estudos básicos tenha se dado devido a uma maior necessidade de integrar conteúdos ministrados nos primeiros anos do curso com o ciclo clínico. Tal carência pode se dever não somente à importância de disciplinas como fisiologia e anatomia, uma vez que, de acordo com Silva et al.22, elas são de extrema significância para a realização do raciocínio clínico e a compreensão do problema médico, mas sobretudo pela falta de articulação existente entre os ciclos básico e clínico, o que compromete a sedimentação e, posteriormente, a aplicação dos conhecimentos adquiridos nos primeiros períodos. Para além da desarticulação entre os ciclos, o detalhamento excessivo dos assuntos propostos para o ciclo básico limita a capacidade de aprendizado do que realmente importa para a prática clínica, o que pode ser verificado no estudo de Moura et al.23, o qual mostrou que, apesar de a maioria dos estudantes do oitavo período do curso de Medicina (63%) considerar o ciclo básico significativamente importante prática médica, a maior parte dos alunos (77%) estava insatisfeita com o ensino do ciclo básico. Além disso, 94% consideraram ter assimilado menos que 60% do conteúdo ministrado durante esse ciclo, o que corrobora a necessidade de os alunos do presente estudo revisarem assuntos do ciclo básico em detrimento de uma possível mudança de perfil do estudante para um método mais tradicional.

Vale ressaltar que os tópicos de clínica médica especializada, subdivididos em neurologia, cardiologia, infectologia, gastroenterologia, entre outros, constituíram o cerne temático mais comum desta pesquisa. A dedicação a um tema específico, como uma especialidade clínica, pode tanto alimentar o repertório de conhecimentos que podem ser transpostos para outras áreas, integralizando os conhecimentos, quanto ser um fator de experimentação importante para o processo de decisão de carreira futura, tal como apontam Mihalynuk et al.24 ao analisarem o efeito de estágios clínicos optativos.

Por sua vez, a predominância das temáticas de especialidades levanta a possibilidade de um processo de especialização precoce, contrariando os fundamentos de uma formação generalista, como preconizado pelas DCN3. De acordo com os dados apresentados por Ribeiro et al.25, quando candidatos à residência deram ênfase a uma determinada área no período de graduação, houve prejuízos na formação de áreas não diretamente relacionadas e também nas correlatas às especialidades pretendidas, prejudicando, assim, um processo de formação sólido e integral.

Ora, se o modelo de formação, em tese, busca valorizar uma formação mais completa, transdisciplinar e generalista, enquanto eletivamente os alunos buscam saberes especializados, existe um descompasso entre o pressuposto institucional e a concretização do ensino-aprendizado. Duas hipóteses podem explicar esse panorama: 1. as DCN, com ênfase no fortalecimento da atenção primária à saúde e da emergência, não foram suficientemente absorvidas pela instituição de ensino, podendo indicar um ambiente acadêmico no qual ainda existe uma valorização didática, discursiva e simbólica do processo de especialização, sobretudo precoce; 2. pelo fato de a influência externa do mercado de trabalho e de outros fatores, como jornada de trabalho, remuneração futura e estilo de vida, ser decisiva na escolha da carreira, a percepção desses fatores ainda na graduação pressiona os estudantes a antecipar a preparação para uma área específica, dada a concorrência nos processos seletivos de residência26.

Estudos não relacionados à medicina

Em menor medida, os estudantes relataram dedicação a temas não relacionados à medicina. O ensino de idiomas, na maioria das escolas brasileiras, é visto como formação complementar, não havendo um programa sistemático de ensino que ofereça proficiência aos alunos. Nesse contexto, com exceção daqueles que puderam pagar por uma formação pré-universitária adicional, o ingressante na universidade lida com a necessidade de aprender um idioma enquanto percorre a formação tradicional. Portanto, a predominância do estudo de idiomas é compreensível, pois, mesmo não fazendo parte do currículo médico padrão, o domínio de uma língua estrangeira é necessário para o acesso à literatura científica internacional e para a expansão do horizonte de oportunidade profissional no competitivo mercado de trabalho27. Ressalta-se que o ensino de idiomas no currículo médico é preconizado em outras faculdades de Medicina de maneira eletiva, embora essa opção não esteja disponível para graduação na faculdade onde o estudo foi feito.

O segundo tema mais estudado pode refletir o crescente interesse pelo tema da educação financeira. A ausência de uma previdência sólida para os profissionais médicos e as peculiaridades dos seus regimes de trabalho já dispõem um interesse especial desse público sobre o tema, porém não é possível separar esse fenômeno do efeito catalisador que a crise econômica associada à pandemia causou em todos os brasileiros no que tange à organização das finanças pessoais. Em 2020, o número de pessoas físicas com conta na B3, a Bolsa de Valores brasileira, aumentou 92% em relação ao ano anterior, mostrando que o movimento de buscar conhecimento sobre renda variável e finanças não ocorre somente entre médicos e estudantes, mas por toda a população28. Esse fenômeno pode ter sido catalisado pelas recentes reformas trabalhistas e da previdência, o que gerou um clima de incerteza quanto à aposentadoria e aumentou a necessidade de ter uma reserva financeira29. Com a crise econômica associada à pandemia, ficou ainda mais evidente a importância da organização das finanças, devido à perda de empregos e ao aumento do endividamento30. É sabido também que os médicos frequentemente são contratados em regime de pessoa jurídica, fenômeno conhecido como “pejotização”, levando à precarização do trabalho e deixando os profissionais sem garantias trabalhistas31. Assim, o conhecimento de finanças torna-se necessário para essa população, que precisa fazer investimentos por conta própria caso deseje gozar de direitos preconizados mas não oferecidos - como tirar férias, ter licença-maternidade ou ainda se aposentar.

Quanto aos demais temas, vale ressaltar a predominância de temas relacionados às humanidades. Considera-se que o currículo médico traz na sua história a desarticulação entre esses saberes e o escopo biomédico padrão. Alguns esforços foram feitos para a transformação desse quadro, como a instituição de disciplinas obrigatórias que trabalhem esses temas, especialmente a partir da promulgação das novas DCN em 2014, as quais visavam à “presença de ciências sociais e discussões em temas fundamentais para a formação ética do estudante”3. Os estudantes participantes do estudo já haviam experimentado componentes curriculares pertencentes ao eixo ético-humanístico existente na instituição avaliada. Isso pode indicar o sucesso desse eixo curricular no despertar de interesse pela área, a partir do aprofundamento ou da expansão dos temas formalmente inseridos no currículo da faculdade, além de demonstrar o compromisso de parcela significativa dos estudantes com a ampliação dos horizontes de formação, em busca de formas alternativas de praticar e pensar a medicina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A despeito da interrupção das atividades acadêmicas curriculares, os estudantes buscaram novos aprendizados de acordo com suas demandas intelectivas. Os alunos buscaram conhecimentos de aspectos variados da medicina, desde temas fundamentais como anatomia e fisiologia até as especialidades clínicas e cirúrgicas. Acerca das especialidades, a prevalência dessas temáticas específicas acende o alerta para a especialização precoce, deletéria para a formação generalista, sólida e integral. Além desses estudos, houve dedicação para assuntos que, embora não diretamente vinculados à prática médica, são possivelmente relevantes para a formação, como línguas, finanças e ciências humanas. Houve preferência relevante acerca de temas abordados em congressos ou conferências virtuais, denotando a maior acessibilidade a esses tipos de evento na modalidade on-line, bem como sobre os assuntos relacionados ao Sars-CoV-2.

O fato de uma parcela substancial dos estudantes ter se empenhado no aprendizado de temas não programados institucionalmente no momento de isolamento social, o que os isentou de obrigações formais, corrobora a tese do desenvolvimento do currículo eletivo informal singularizado a partir de demandas próprias. Se, por um lado, seria impróprio afirmar que é possível formar médicos sem faculdades, por outro, também não se pode dizer que o ato de estudar medicina depende exclusivamente da influência ou cobrança da instituição. Nesse sentido, os achados fomentam reflexões acerca das potencialidades de novas estratégias educacionais que venham a inserir um maior protagonismo estudantil na construção do seu próprio caminho no processo de aprendizado.

AGRADECIMENTO

Agradecemos ao Programa de Educação Tutorial da Faculdade de Medicina da UFBA (PET Medicina UFBA) o apoio intelectual e institucional à realização desta pesquisa.

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2Avaliado pelo processo de double blind review.

FINANCIAMENTO Declaramos não haver financiamento.

Recebido: 11 de Março de 2022; Aceito: 21 de Abril de 2022

walter.cruz@ufba.br marianacamelier@hotmail.com vitoria.queiros@ufba.br gustavodmhenrique@gmail.com jorge.guedes.ufba@gmail.com

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editora associada: Ana Cláudia Santos Chazan.

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Walter Gabriel Neves Cruz participou da concepção do estudo, da análise e interpretação dos dados, da redação de versões preliminares do artigo e da aprovação final da versão a ser publicada. Mariana Camelier-Mascarenhas e Vitória Oliveira de Queirós participaram da concepção e do delineamento do estudo, da interpretação dos dados, da redação de versões preliminares do artigo e da aprovação final da versão a ser publicada. Gustavo Henrique Mendes Ferreira participou da concepção do estudo, da interpretação dos dados, da redação de versões preliminares do artigo e da aprovação final da versão a ser publicada. Jorge Carvalho Guedes participou da interpretação dos dados, da redação de versões preliminares do artigo, da revisão crítica referente às hipóteses levantadas e aos conteúdos conceituais importantes, e da aprovação final da versão a ser publicada.

CONFLITO DE INTERESSES

Declaramos não haver conflito de interesses.

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