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Revista Brasileira de Educação Médica

versão impressa ISSN 0100-5502versão On-line ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.46 no.2 Rio de Janeiro  2022  Epub 07-Jul-2022

https://doi.org/10.1590/1981-5271v46.2-20210301 

Artigo Original

Os desafios para o ensino de emergências de psiquiatria em desastres e conflitos armados

Maria Rosel S. Pedro1 
http://orcid.org/0000-0002-4881-0681

António José Pacheco Palha2 
http://orcid.org/0000-0003-1619-0040

Maria Amélia Ferreira2 
http://orcid.org/0000-0001-6789-3796

1 Faculdade de Medicina da Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique.

2 Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Porto, Portugal.


Resumo:

Introdução:

A população moçambicana tem sido recorrentemente afectada por situações traumáticas devido a catástrofes naturais (ciclones, secas, inundações) ou provocadas pelo homem (conflitos armados), que podem levar ao desenvolvimento de perturbações mentais que, se não forem identificadas e tratadas, deixarão sequelas graves e causarão cronicidade.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo promover uma reflexão sobre a inclusão de temas psiquiátricos de emergência em desastres naturais e conflitos armados nas disciplinas ou módulos de psiquiatria, nos cursos de formação de graduação nas escolas médicas de Moçambique.

Método:

Trata-se de revisão narrativa da bibliografia, realizada entre abril e junho de 2021, com foco na pesquisa de artigos e documentos publicados nas plataformas virtuais Research4Life, PubMed, Hifa-pt e Google Scholar que abordam o tema desastres naturais e conflitos armados e seu ensino para estudantes de Medicina na disciplina de psiquiatria.

Resultado:

A inclusão das emergências psiquiátricas em desastres e conflitos armados no curso de Medicina pode proporcionar aos clínicos gerais que atuam na atenção primária à saúde conhecimentos e habilidades para que possam reconhecer emergências psiquiátricas causadas por desastres naturais e conflitos armados e trabalhar nelas, levando em consideração que o país atualmente tem poucos médicos especializados em psiquiatria.

Conclusão:

A adequada organização e assistência em emergências psiquiátricas à população exposta a desastres naturais e conflitos armados contribui para a resiliência e salvaguarda da saúde mental das comunidades. Neste ensaio, refletimos sobre o desafio de incorporar os temas das emergências psiquiátricas causadas pela exposição a desastres naturais e conflitos bélicos como contribuição para melhorar as habilidades dos médicos generalistas na resposta às demandas prementes de saúde mental dessa população vulnerável.

Palavras-chave: Educação Médica; Ensino de Psiquiatria; Emergências Psiquiátricas; Desastres Naturais; Conflitos Armados

Abstract:

Introduction:

The Mozambican population has been recurrently affected by traumatic situations due to natural (cyclones, droughts, floods) or man-made (armed conflicts) catastrophes, which can lead to the development of mental disorders that, if not identified and treated, result in severe sequelae and cause chronicity.

Objectives:

To promote a reflection on the inclusion of emergency psychiatric topics in natural disasters and armed conflicts in the disciplines or modules of psychiatry in undergraduate medical school courses in Mozambique.

Methods:

Narrative literature review carried out between April and June 2021, focusing on the research of articles and documents published on the virtual platforms Research4life, PubMed, Hifa-PT, Google Scholar and that address the topics of natural disasters and armed conflicts and the teaching of these topics to medical students in the discipline of psychiatry.

Results:

The inclusion of psychiatric emergencies in situations of natural disasters and armed conflicts in the medical course can provide general practitioners who work in primary health care with knowledge and skills to recognize and act in psychiatric emergencies caused by natural disasters and armed conflicts, taking into account the fact that the country currently has few doctors specialized in psychiatry.

Final considerations:

The adequacy of the organization and assistance in psychiatric emergencies to the population exposed to natural disasters and armed conflicts contributes to the resilience and protection of the mental health of the communities. In this article, we reflect on the challenge of incorporating the topics of psychiatric emergencies caused by exposure to natural disasters and armed conflicts as a contribution to improving the skills of general practitioners in responding to the pressing mental health demands of this vulnerable population.

Keywords: medical education; psychiatry teaching; psychiatric emergencies; natural disasters; armed conflicts

INTRODUÇÃO

Moçambique é um dos países de África mais vulneráveis aos desastres naturais em consequência da localização geográfica, das características climáticas e do nível de pobreza1. Devido aos elevados índices de pobreza, a população usa as poucas barreiras naturais da savana e aumenta a sua vulnerabilidade a estes fenómenos2.

Em trabalho realizado num distrito da província de Inhambane, no Sul de Moçambique, constatou-se que a vulnerabilidade das comunidades aos eventos climáticos estava ligada ao grau de exposição aos riscos e ao nível de fragilidade destas comunidades, nomeadamente sobreposição dos factores físicos, socio-económicos e ambientais3.

De acordo com o relatório mundial sobre os desastres naturais, mais de oito milhões de moçambicanos foram afectados pelas calamidades naturais nas décadas de 1980 e 1990. As vítimas destes fenómenos climatéricos só têm vindo a aumentar, e, no presente milénio, cabe mencionar, entre outros, as cheias de 2000, os ciclones Idai e Kenneth em 2019 que deixaram um rasto de desvastação, com mais de um milhão e meio de afectados e acima de mil mortes5),(6.

Para além dos fenómenos naturais, nos últimos cinco anos, Moçambique tem sido alvo de ataques militares nas zonas Norte e Centro, províncias de Cabo Delgado e Manica, com relatos de perda de mais de três mil vidas e deslocação de centenas de milhares de pessoas7.

Dados da Organização Internacional das Nações Unidas para as Migrações (OIM) dão a conhecer que, só no primeiro trimestre de 2021, com o aumento dos conflitos armados em Mocímboa da Praia, Palma, Macomia, Ilha do Ibo e Metuge, aproximadamente 17 mil pessoas estão deslocadas das suas zonas de origem, sendo que mulheres e crianças representam quase 74% dos deslocados. Estas situações movimentaram cerca de 800 mil cidadãos moçambicanos internamente nas províncias de Cabo Delgado, Niassa e Nampula desde 20178.

Para assegurar a assistência desta população, é necessário, por um lado, avaliar o impacto psicológico do trauma e, por outro, dar a conhecer como o sistema de saúde mental responderá nestas situações pós-desastre9. A organização destes serviços dependem do conhecimento que os médicos possuem, através do ensino de psiquiatria em situações de catástrofes, para que os métodos de abordagem, os conteúdos de avaliação e os mecanismos de implementação sejam de acordo com a população-alvo10),(11.

Vários estudos relatam a ocorrência de uma grande variedade de sintomas psicológicos e síndromes psiquiátricas nas populações em situações de catástrofes e conflito9, mas, tal como é referido que estes fenómenos causam alterações psiquiátricas, não se sabe se os efeitos psicológicos e as suas manifestações clínicas são universais, que tipo de alterações mentais causam, como é que elas devem ser abordadas em termos de intervenções médicas e, não menos importante, porque a maioria da população exposta não desenvolve doença mental12.

Na análise do trabalho efectuado em crianças sírias deslocadas de guerra e assistidas pelo Projecto Mental health psicosocial support (MHPSS), foram avaliadas as ferramentas de suporte em saúde mental e apoio psicossocial, usadas para apoiar esta população, tendo-se verificado que as patologias prevalentes entre as crianças eram as perturbações depressivas, perturbações de stress pós-traumático, perturbações ansiedade, perturbações de conduta e fobias. Notaram uma melhora significativa da maioria das crianças da amostra após a implementação das actividades de suporte em saúde mental e apoio psicossocial, apesar de recomendarem a elaboração de modelos de acordo com o contexto de cada zona de conflito13.

OBJETIVO

O objectivo deste ensaio é promover uma reflexão académica em medicina para a inclusão de seminários e temas de psiquiatria em situações de catástrofes e conflitos de guerra, nas disciplinas ou módulos de graduação de psiquiatria e saúde mental das Faculdades de Medicina em Moçambique.

MÉTODO

Trata-se de revisão narrativa bibliográfica e documental de artigos, documentos e reportagens que abordam a temática de catástrofes naturais e conflitos armados e o seu ensino na disciplina de psiquiatria nos cursos de graduação de Medicina, efectuada entre Abril e Junho de 2021, através de consulta on-line nas plataformas virtuais Research4Life, PubMed, Hifa-pt e Google Acadêmico, e sites. Na busca, foram usadas as palavras: desastres naturais, ciclones tropicais, conflitos armados, saúde mental, ensino de psiquiatria e emergências psiquiátricas para a selecção dos estudos científicos e demais informações relevantes de revisão de literatura que versassem sobre as principais patologias que surgem em situações de catástrofe naturais e conflitos de guerra e a metodologia de ensino.

RESULTADOS

Estudos de experiências de eventos traumáticos mostraram que a maioria das pessoas que vivenciam um evento traumático nem sempre desenvolvem psicopatologia. Goldmann et al.14 sugerem que se mude o foco nas observações pós-desastre de procura de perturbações de stress pós-traumático, que foram abordadas e estudadas exaustivamente, a avaliações longitudinais de vítimas de desastres para elucidar ainda mais a trajetórias pós-exposição, de modo a perceber melhor os mecanismos protectores e despoletadores de doença, e os diferentes tipos de patologias que podem surgir.

Os riscos para o aparecimento de doenças mentais incluem factores pré-traumáticos, peritraumáticos e pós-traumáticos, podendo estes ser de causa temperamental, ambiental ou genética. Contrariamente aos factores de risco, os factores promotores de resiliência, como as estratégias de enfrentamento, a flexibilidade cognitiva, os mecanismos de coping, a espiritualidade, a manutenção da união familiar e o suporte social e da comunidade, podem ajudar a reduzir o risco de adoecer15),(16.

Em metanálise de vários estudos de desastres ambientais e casos de doenças mentais em situações de vulnerabilidade, constata-se que a vivência repetida, vários riscos sobrepostos e a falta de recursos económicos, sobretudo em populações com menos recursos financeiros, podem afectar os mecanismo de adaptação e não permitir que estratégias de reforço positivo possam surgir17.

A atrasar a assistência temos a detecção tardia das doenças mentais, decorrente dos seguintes factores:

  • Natureza da doença mental que acarreta a falta de auto-objectividade, fazendo com que muitos pacientes não saibam que precisam de tratamento ou neguem esse facto por completo.

  • Falta de acesso a cuidados de saúde devido à condição do utente.

  • Área geográfica onde ocorreu/ocorre o evento catastrófico ou conflito.

  • Falta de atenção, preocupação e (re)conhecimento por parte do médico das doenças mentais.

  • Falta de treino dos médicos na abordagen e intervenção das doenças mentais.

  • O estigma da doença mental18),(19.

Numa revisão bibliográfica, Benthem et al.20 analisaram 27 programas de ensino de psiquiatria para clínicos gerais e constataram a não inclusão ou abordagem de temas de psiquiatria de emergências em desastres naturais ou conflitos armados. Outro aspecto importante referido na pesquisa foi o reconhecimento mundialmente percebido como um problema persistente, de subdiagnóstico das perturbações psiquiátricas, pelo que se considerava haver necessidade de incluir temas críticos de psiquiatria e saúde mental e a escolha de métodos eficazes de treino de conhecimento e habilidades.

Resultado idêntico vamos encontrar em trabalho apresentado no 21º Congresso Brasileiro de Psiquiatria, no qual se referiu que os médicos de clínica geral entendiam que a responsabilidade do diagnóstico e tratamento das doenças mentais era dos especialistas em psiquiatria pelo que o desafio da educação continuada em saúde mental se mantinha e requeria métodos de ensino interactivos e críticos21.

Para tentar melhorar os conhecimentos dos médicos de clínica geral em matéria de ensino de psiquiatria e saúde mental, vários autores recomendam que, na conceptualização de um programa a formação dos médicos generalistas, os seguintes factores sejam considerados: 1. as necessidades do médico como estudante e do utente das unidades sanitárias; 2. o conteúdo do programa; 3. a descrição dos métodos de ensino do referido programa; 4. o uso de métodos combinados de ensino para a obtenção de melhores resultados práticos; 5. a aprovação e implementação do programa; 6. a acreditação e certificação do programa10),(20),(22.

Programa actual de psiquiatria e saúde mental

No actual contexto de ensino de medicina geral em Moçambique, os programas de ensino de psiquiatria e saúde mental possuem, em geral, uma carga horária média de 40 horas teóricas e 80 horas práticas. A disciplina é semestral, leccionada no quinto ano do curso de Medicina, num modelo de aulas teórico-práticas semanais, seguidas de estágios de três a quatro semanas em hospitais centrais ou gerais e em hospitais psiquiátricos , onde é incentivado o contacto com os doentes através da discussão de casos, resolução de problemas, elaboração de histórias clínicas e discussão de casos da família adoptada.

A Tabela 1 apresenta um exemplo de adaptação de programa de psiquiatria e saúde mental em Moçambique23.

Tabela 1 Proposta de adaptação de plano temático de psiquiatria e saúde mental. 

Proposta de inclusão de temas Carga horária Observações
Introdução à história de psiquiatria. 1 hora Redução na carga horária em 3 horas
Saúde mental como parte integrante da saúde.
Programa nacional de saúde mental.
Saúde mental em Moçambique.
História clinica e entrevista psiquiátrica.
Semiologia em psiquiatria. 2 horas
Sintomas e sinais, sintomatologia. Generalidade nas diferentes esferas do psiquismo.
Síndromes cerebrais agudos e crônicos. 2 horas
Síndrome esquizofrénico, síndromes delirantes, síndromes afectivos, síndromes discinéticos, síndromes hipocondríacos.
Níveis de funcionamento psicológico.
Esquizofrenia e outras psicoses. 4 horas
Transtornos do humor, neuróticos, relacionados ao estresse e somatoforme.
Transtornos de personalidade e comportamento em adulto. Atraso mental.
Transtornos infantojuvenis mais frequentes. Alcoolismo e outras drogas. Suicídio. Psicogeriatria.
Perturbações psiquiátricas associadas ao vírus da imunodeficiência humana (VIH) e às doenças sexualmente transmissíveis. 2 horas
Emergências psiquiátricas. 5 horas Tema introduzido
Terapias em psiquiatria. 4 horas
Psiquiatria forense. 2 horas Redução da carga horária em 2 horas
Preparação para testes e exames, testes, exames. 16 horas

Fonte: Adaptado de Faculdade de Medicina da UEM (2021).

O porquê da inclusão da psiquiatria de catástrofes e de conflitos armados nos programas de ensino médico da disciplina de psiquiatria em Moçambique

Benefícios na organização adequada de serviços de saúde mental

O impacto psicológico de situações traumáticas causadas por desastres naturais e conflitos armados é, normalmente, profundo a curto prazo, mas pode também deteriorar a saúde mental e o bem-estar da população afectada a longo prazo e criar situações de cronicidade pelo que há necessidade de uma intervenção imediata, centrada nas redes de base comunitária24.

Para projectar, organizar e implementar serviços orientados para crises pós-desastre, é necessário estabelecer um sistema de ligação integrado, interactivo e flexível entre a saúde mental e as agências de gestão de emergências25, e em Moçambique esta actividade é desempenhada pelo Instituto Nacional de Gestão e Redução de Riscos de Desastres que coordena todas as acções de assistência em situação de emergência e catástrofes26. É importante perceber que, enquanto os profissionais de saúde mental se organizam para definir as estratégias de atenção, há necessidades prementes de assistência humanitária e de reabilitação pós-desastre (actividade esta que pode persistir por meses ou mesmo anos)27.

Os serviços devem ser organizados de modo a identificar as diferenças de necessidade pós-desastre entre grupos de sobreviventes, cujo impacto pode ser directo (expostos à situação de catástrofe ou conflito armado) ou indirecto (familiares dos sobreviventes, pessoal de apoio e resgate de primeira linha, pessoal de saúde, bombeiros, polícia, Forças Armadas), e o tipo de plano a elaborar e os mecanismos de trabalho usados diferem de acordo com o grupo-alvo9),(28, sendo necessário atendimento célere, organizado, provido por uma equipa eficiente de modo a atenuar a instabilidade emocional, as reacções de stress, a ansiedade, o trauma e outros sintomas psicológicos que são observados comumente após o desastre, que pode ser de duas causas: desastres naturais ou causados pelo homem, como é o caso dos conflitos armados, e outras experiências traumáticas29.

Benefícios da resiliência e intervenção em psiquiatria

Vários artigos referem-se à necessidade de intervenções em saúde mental em situações de catástrofe, causadas por desastres naturais e conflito armados, através programas de intervenção, devendo ter em conta os recursos financeiros e humanos existentes no país, de modo a minimizar o impacto na saúde mental das comunidades afectadas, apoiando-as na adaptação e enfrentamento às adversidades, melhorando a sua resiliência que desempenha um papel vital e actua como uma medida eficaz na prevenção de aparecimento ou recidiva de doença mental30. A maioria dos indivíduos afectados recupera-se com o tempo, tendo como factores predictores de boa recuperação os determinantes sociais e a resposta em saúde mental, com a ajuda de técnicas eficazes de pós-intervenção, factores pessoais de personalidade, em que os pontos fortes de coping individuais prevalecem, e a integração comunitária. Em alguns casos, a recuperação é incompleta, levando a uma série de sintomas persistentes que costumam ser de natureza severa31),(32.

Reconhecendo que a maioria dos indivíduos com sintomas iniciais de doença mental não terá acesso a médicos especialistas27, todos os clínicos gerais também deveriam ser formados nos princípios da psiquiatria de guerra para melhorar as suas habilidades em medidas de intervenção preventivas e no tratamento das populações expostas, de modo a evitar o desenvolvimento de perturbações mentais graves num modelo integrado de base comunitária28. Neste contexto, a adaptação de conteúdos durante a formação e o ensino de psiquiatria e saúde mental terá um grande impacto na população das comunidades afectadas em termos de preparação, resposta e recuperação das perturbações mentais33),(34, podendo estes ser efectuados em forma de seminários, discussões, treinos práticos, com maior enfoque na avaliação para identificação de casos activos, escolha da conduta e tratamentos11),(35),(36.

Vantagens do ensino de psiquiatria de emergências de psiquiatria em situação de catástrofes e guerra

Como já mencionado, o actual programa possui uma lacuna em relação ao ensino e manejo das emergências psiquiátricas pelo que, no desenho do plano específico de ensino de psiquiatria e saúde mental, propomos a reforma do plano, com a redução da carga horária dos seguintes temas: introdução à história de psiquiatria, saúde mental como parte integrante da saúde, programa nacional de saúde mental em Moçambique e psiquiatria forense. Sugerimos ainda a introdução do módulo/tema de emergências psiquiátricas que terá como premissa dotar os estudantes de conhecimentos sobre:

  • abordagem das emergências psiquiátricas comuns na prática clínica;

  • avaliação diagnóstica e manejo dos casos agudos;

  • reconhecimento e manejo de casos após exposição a eventos traumáticos;

  • implementação de medidas psicoterapêuticas e de intervenção;

  • organização de equipas multidisciplinares para assistência em situações extremas*;

  • prestação de assistência médica extra-hospitalar (na comunidade)32.

De acordo com a proposta, o referido módulo/tema deverá permitir o pensamento crítico e também o aprimoramento de habilidades e competências na área de emergências psiquiátricas, especialmente de intervenção, através do uso de métodos activos de ensino, como a resolução de problemas, problematização de situações, seminários práticos e casos clínicos, entre outros, para alcançar os objectivos definidos no programa e plano analítico de psiquiatria e saúde mental37),(38.

As alterações propostas no programa de psiquiatria no curso de Medicina são baseadas na realidade actual e na necessidade de prover os médicos de clínica geral de conhecimentos para a consolidação da assistência de saúde mental de base comunitária, permitindo o fortalecimento das equipas, com uma actuação atempada e acertiva39, uma vez que, após a conclusão do curso de Medicina, os médicos de clínica geral são colocados a trabalhar nas unidades de saúde periféricas em todas as províncias e prestam assistência a cerca de 80% da população do país40.

Contudo, há ter em conta que Moçambique conta, somente, com cerca de 25 médicos especialistas em psiquiatria para uma população de 29 milhões de habitantes40, sendo o acesso a estes especialistas reservado para as referências aos hospitais provinciais e centrais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Moçambique, a gestão humanitária de catástrofres, desastres naturais, consequências dos conflitos armados e outras situações de emergência é feita pelo Instituto Nacional de Gestão e Redução de Riscos de Desastres (INGD), coordenando com todas as áreas governamentais transversais na implementação de actividades preventivas ou de tratamento para atender à população vulnerável e em risco26.

Ao Ministério da Saúde cabe a actuação através do plano de intervenção de suporte psicossocial e em saúde mental41, que permite, quando implementado atempadamente, o desenvolvimento de estratégias integradas de promoção de processos comuns de cura e apoio social entre pares, através das unidades de saúde da comunidade às quais estão adstritos médicos generalistas.

Todos os cursos de graduação em Medicina de Moçambique42 possuem disciplinas ou módulos de psiquiatria e saúde mental. É essencial que, face à realidade conjuntural, não só se abordem os temas gerais de psicopatologia, mas também se inclua a área de emergências psiquiátricas gerais e em catástrofes naturais e conflitos de guerra que são críticas para o país.

O ensino de emergências psiquiátricas permitirá a salvaguarda do bem-estar da população através de uma melhor compreensão dos processos, e o reconhecimento e tratamento precoce das doenças mentais que surjam para assegurar o retorno da população à normalidade43),(44, tendo como essência que o médico de clínica geral deve saber como coordenar e chefiar as equipas a nível dos cuidados de saúde provínciais, organizar e prestar a assistência médica e psicológica, assegurar a quantificação para a provisão de psicofármacos, interagir com os líderes comunitários e autoridades tradicionais, e, não menos importante, garantir suporte psicológico à equipe que presta assistência à população45),(46.

As implicações de desastres para a saúde mental em indivíduos e comunidades são muitas e continuam a ser estudadas. Apesar do reconhecimento e da valorização crescente desses riscos, há necessidade de se efectuarem mais trabalhos em Moçambique, que, ao longo dos anos, tem sido alvo de fenómenos traumáticos naturais e provocados pelo homem para a identificação mais clara do impacto na saúde mental das comunidades, bem como para fornecer intervenções baseadas em evidências. Intervenções de saúde mental precoces e rápidas ajudam a promover a recuperação individual e comunitária pelo que é chegado o momento de reflectir e implementar actividades para que esta mudança ocorra no âmbito do ensino de psiquiatria.

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2Avaliado pelo processo de double blind review.

FINANCIAMENTO Declaramos não haver financiamento.

ABREVIATURAS

MHPSS

- Mental health psicosocial support

UEM

- Universidade Eduardo Mondlane

INGD

- Instituto Nacional de Gestão e Redução de Riscos de Desastres

MISAU

- Ministério da Saúde

Recebido: 04 de Março de 2022; Aceito: 21 de Abril de 2022

rsalomao30@gmail.com apachecopalha@gmail.com mameliaferreira@gmail.com

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Pedro Tadao Hamamoto Filho.

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Maria Rosel S. Pedro elaborou o manuscrito. António José Pacheco Palha e Maria Amélia Ferreira revisaram o manuscrito.

CONFLITO DE INTERESSES

Declaramos não haver conflito de interesses.

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