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Revista Brasileira de Educação Médica

Print version ISSN 0100-5502On-line version ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.46 no.4 Rio de Janeiro  2022  Epub Nov 18, 2022

https://doi.org/10.1590/1981-5271v46.4-20220168 

Artigo Original

Preceptoria médica: concepções e vivências de participantes de curso de formação em preceptoria

Medical preceptorship: conceptions and experiences of participants in a training course in preceptorship

Iago Gonçalves Ferreira1  , concepção e delineamento do estudo, geração, análise e interpretação de dados, redação preliminar do manuscrito, revisão crítica da versão preliminar e redação final
http://orcid.org/0000-0002-4695-1982

Silvio César Cazella1  , delineamento do estudo, análise e interpretação de dados, revisão crítica da versão preliminar do manuscrito, redação final
http://orcid.org/0000-0003-2343-893X

Márcia Rosa da Costa1  , concepção e delineamento do estudo, análise e interpretação de dados, revisão crítica da versão preliminar do manuscrito e redação final
http://orcid.org/0000-0003-3340-0644

1Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.


Resumo:

Introdução:

O ensino por meio da vivência prática, denominado preceptoria, permite aos aprendizes buscar informações e esclarecer dúvidas com os preceptores, de maneira a desenvolver competências e habilidades em um ambiente de apoio e segurança, elementos essenciais ao bom aprendizado.

Objetivo:

Esse estudo objetivou compreender as concepções e vivências de alunos e egressos do curso de especialização em Preceptoria em Medicina de Família e Comunidade (UNA-SUS/UFCSPA) acerca da preceptoria na formação médica.

Método:

A pesquisa adotou abordagem qualitativa e observacional, sendo conduzida por meio de entrevistas individuais em plataforma de videoconferência, com 12 participantes do curso advindos das cinco regiões geográficas brasileiras, sob orientação de roteiro de questões abertas. As transcrições das entrevistas foram analisadas a partir dos conceitos da obra Análise de conteúdo, de Laurence Bardin.

Resultado:

Sob a ótica dos entrevistados, o papel do preceptor relaciona-se, sobretudo, à função de referencial para seus aprendizes, devendo assim apresentar atitudes éticas e profissionais, consonantes com atributos humanísticos e competências técnicas.

Conclusão:

A partir das perspectivas observadas no estudo, evidencia-se a relevância do preceptor no processo de formação médica, bem como a necessidade de debates entre instituições de ensino, entidades médicas, gestores e serviços de saúde sobre a valorização e qualificação de preceptores, e, consequentemente, dos futuros profissionais.

Palavras-chave: Preceptoria; Docentes de Medicina; Internato e Residência; Medicina

Abstract:

Introduction:

Teaching through practical experience, namely preceptorship, allows learners to seek information and clarify doubts with preceptors, in order to develop skills and abilities in a supportive and safe environment - essential elements for good learning.

Objective:

This study aimed to understand the conceptions and experiences of students and graduates of the Specialization Course in Preceptorship in Family and Community Medicine (UNA-SUS/UFCSPA) about preceptorship in medical education.

Method:

The research adopted a qualitative and observational approach, conducted through individual interviews on a videoconference platform, with 12 course participants from the five Brazilian geographic regions, guided by a script of open questions. The transcripts of the interviews were analyzed based on the concepts of the work ‘Content Analysis’ by Laurance Bardin.

Result:

From the perspective of the participants, the role of the preceptor is mainly related to the role of reference for their apprentices, thus having to present ethical and professional attitudes, in line with humanistic attributes and technical competences.

Conclusion:

From the perspectives observed in the study, the relevance of the preceptor in the medical training process is evidenced, as well as the need for debates between educational institutions, medical entities, managers and health services on the valuation and qualification of preceptors, and, consequently, of future professionals.

Keywords: Preceptorship; Faculty, Medical; Internship and Residency; Medicine

INTRODUÇÃO

Desde suas origens, o ensino médico baseou-se no modelo mestre-aprendiz. De acordo com esse modelo, um profissional mais experiente ensina jovens aprendizes por meio de vivências da prática médica1)-(3. O papel de “médico mais experiente” apresenta variadas definições na literatura: supervisor, tutor, mentor e preceptor. O termo preceptor é um dos mais enraizados e difundidos entre a comunidade médica1),(3),(4.

Nessa perspectiva, o preceptor deve desempenhar a função de agente na imersão e socialização de estudantes e residentes nos cenários de prática, atuando de maneira a mobilizar a responsabilidade de seus aprendizes pelos processos de aprendizagem2. Dessa forma, as atribuições da preceptoria requerem competências como domínio do conhecimento na área médica de atuação, desenvolvimento de bons relacionamentos preceptor-aluno e preceptor-paciente, além de atitudes éticas e comprometidas diante dos dilemas profissionais2.

A despeito da complexidade de atribuições e responsabilidades dos preceptores, tradicionalmente as escolas médicas têm adotado o destaque profissional e científico como critério de seleção para a composição de seus quadros5),(6. Tal concepção parte da premissa de que o ensino universitário pressupõe apenas o domínio de conhecimentos específicos, relegando a competência didático-pedagógica a um plano secundário. Por conseguinte, diversos profissionais adentram o ambiente educacional sem o devido preparo para atividades de docência e preceptoria6),(7.

Nesse sentido, os programas de formação pedagógica representam importantes recursos de qualificação da educação médica, fomentando a construção de conhecimentos e habilidades de ensino que estimulem os profissionais à adoção de métodos e ferramentas pedagógicos, assim como técnicas construtivas de feedback e avaliação de seus educandos7),(8.

A partir dessa compreensão, surge em 2016 o curso de especialização em Preceptoria em Medicina de Família e Comunidade, iniciativa que integra o Programa Nacional de Formação de Preceptores do Ministério da Saúde. Esse curso objetiva promover a formação de preceptores em Medicina de Família e Comunidade (MFC), ainda na residência, qualificando o ensino da especialidade na graduação e ampliando as vagas em programas de residência em MFC9)-(13.

Considerando que, não raro, as primeiras experiências em preceptoria ocorrem ainda nos programas de residência médica, em que residentes mais experientes acompanham e supervisionam graduandos e/ou residentes iniciantes, os programas de formação em preceptoria podem contribuir para a construção de habilidades pedagógicas e atitudes profissionais, beneficiando mutuamente os atores envolvidos no processo de ensino-aprendizagem14),(15.

Ante a relevância da preceptoria na educação médica, bem como o papel estratégico dos residentes na formação das futuras gerações de médicos e especialistas, torna-se proeminente a compreensão das visões desses especializandos sobre a preceptoria. Sendo assim, este estudo teve como objetivo analisar as percepções e perspectivas de alunos e egressos do curso de especialização em Preceptoria em MFC da Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (UNA-SUS) acerca do papel, dos atributos e das competências dos preceptores no ensino médico.

MÉTODO

Cenário e contexto do estudo

O curso de especialização em Preceptoria em MFC consiste em um programa de pós-graduação médica desenvolvido por meio de ferramentas de educação a distância. A iniciativa educacional integra o Programa Nacional de Formação de Preceptores, lançado pela Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde em 2016, objetivando ampliar a formação de preceptores em MFC9),(10),(12),(16.

O curso apresentava duração de dois anos e carga horária de 550 horas, organizadas em nove unidades de ensino compostas por módulos de conteúdos sobre preceptoria e clínica na atenção primária, casos clínicos e psicossociais fictícios, fóruns de discussão entre alunos e tutores, e atividades integradoras individuais. O processo avaliativo ocorreu nas modalidades a distância e presencial, tendo como requisito para a obtenção do certificado de conclusão a aprovação nas avaliações das unidades, bem como a apresentação de um portfólio final e um projeto de intervenção11),(17.

Desde o lançamento em 2016, o curso de especialização em Preceptoria ofertou três turmas - turma 1 (2016-2018), turma 2 (2018-2020) e turma 3 (2019-2021) - que obtiveram a participação de 974, 847 e 709 médicos residentes em MFC, respectivamente.

Delineamento e participantes do estudo

Com base no contexto elucidado, este estudo teve como objetivo analisar as percepções e perspectivas de alunos e egressos do curso de especialização em Preceptoria em MFC da UNA-SUS acerca da preceptoria na formação médica, caracterizando-se como qualitativo e observacional, sob a forma de entrevistas individuais. A pesquisa teve início após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA): Parecer nº 4.164.125 e Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 31351920.2.0000.5345.

A fundamentação teórica adotada para o delineamento das entrevistas consistiu na obra Análise de conteúdo, em que a autora Laurence Bardin introduz um conjunto de técnicas de análise das comunicações, utilizando procedimentos sistemáticos e objetivos para a descrição do conteúdo de textos e transcrições18),(19.

Dentre os métodos da análise de conteúdo propostos pela autora, optou-se pela análise categorial semântica apriorística, que consiste em uma técnica analítica empreendida a partir da identificação de características semânticas particulares nos elementos constitutivos do objeto de estudo, de maneira a classificá-los e agrupá-los em categorias temáticas, estabelecidas previamente à análise de conteúdo18),(20. Dessa maneira, as categorias temáticas apresentaram dois eixos temáticos: “preceptoria: percepções e perspectivas” e “formação e prática médica: graduação, residência e especialidade”.

Acerca do recrutamento dos participantes, a casuística do estudo foi estabelecida a partir das concepções de saturação descritas por Minayo11, considerando-se o quantitativo de dez a 15 entrevistados como adequado para estudos em perspectiva fenomenológica11. A seleção dos participantes ocorreu por meio de dois métodos de amostragem: amostragem não probabilística geográfica e amostragem intencional com variação máxima22),(23.

A amostragem não probabilística geográfica foi concebida a partir da seleção alunos e egressos das três edições do curso de especialização, advindos das cinco regiões geográficas do Brasil - Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul -, de maneira a permitir uma composição representativa do país. Quanto à amostragem intencional com variação máxima, ela foi realizada por meio de contato direto com os participantes, os quais foram convidados a integrar o estudo conforme sua vivência e diferentes perspectivas acerca do fenômeno central analisado.

Entrevistas individuais e análise do conteúdo das transcrições

As entrevistas individuais foram orientadas por roteiro com questões abertas, elaboradas pelos pesquisadores, abordando temas como o papel do preceptor na formação médica, percepções acerca das atividades de preceptoria (motivações, benefícios e obstáculos) e experiências durante a residência.

As entrevistas individuais foram realizadas por meio da plataforma de videoconferência Google Meet, acessada pelo pesquisador principal e pelos entrevistados, com duração estimada de 25 minutos, iniciando-se após a autorização dos participantes. As entrevistas foram registradas em áudio e vídeo com recurso próprio da ferramenta Google Meet, com posterior transcrição textual dos áudios pelo pesquisador.

A partir das categorias temáticas em análise, procedeu-se à leitura flutuante das transcrições das entrevistas (fase de pré-exploração), seguida de seleção criteriosa de unidades de referência (unidades de análise), as quais foram codificadas e categorizadas com auxílio do software NVivo 12. Admitiram-se como parâmetro de categorização das unidades de referência os “temas” expressos nas transcrições das entrevistas. Os “temas” podem ser conceituados como as afirmações, os enunciados, as proposições e as narrativas expressos pelos interlocutores entrevistados que remetessem a uma significação, a uma formulação singular18.

A análise descritiva e qualitativa do conteúdo das transcrições das entrevistas foi realizada com suporte dos recursos do software NVivo, sendo representadas por meio de gráficos, nuvens de palavras, diagramas de análise de clusters e síntese textual das categorias.

RESULTADOS

Mapeamento, categorização e codificação das entrevistas

As entrevistas individuais transcorreram com a participação de 12 entrevistados, advindos de diferentes regiões do Brasil: dois da Região Norte, três da Região Nordeste, dois da Região Centro-Oeste, três da Região Sudeste e dois da Região Sul (Quadro 1).

Quadro 1 Perfil dos participantes entrevistados do curso de especialização em Preceptoria em Medicina de Família e Comunidade (UNA-SUS/UFCSPA) 

Entrevistado Idade Gênero Turma Região* Esfera da instituição do PRM
Entrevistado1 35 Feminino 2 Norte Privada
Entrevistado 2 31 Masculino 2 Sul Federal
Entrevistado 3 32 Masculino 1 Sudeste Privada
Entrevistado 4 33 Feminino 2 Sul Municipal
Entrevistado 5 30 Feminino 2 Sudeste Federal
Entrevistado 6 27 Feminino 2 Norte Privada
Entrevistado 7 31 Feminino 2 Centro-Oeste Estadual
Entrevistado 8 32 Masculino 3 Nordeste Federal
Entrevistado 9 29 Feminino 3 Nordeste Privada
Entrevistado 10 32 Feminino 3 Nordeste Federal
Entrevistado 11 29 Masculino 1 Centro-Oeste Privada
Entrevistado 12 30 Feminino 1 Sudeste Municipal

* Região em que realizaram a residência em medicina de família e comunidade.

PRM = programa de residência médica.

Fonte: Elaborado pelos autores.

As entrevistas realizadas tiveram duração média de 28 minutos, totalizando 345 minutos de gravações (cinco horas e 45 minutos), correspondendo a cerca de 75 páginas de transcrições com aproximadamente 44.500 palavras. A partir do processo de codificação, verificou-se que a categoria “preceptoria: percepções e perspectivas” apresentou o maior número de unidades de referência codificadas (264 unidades), destacando-se a subcategoria “experiências: como preceptor e como residente” (72 unidades) - Tabela 1.

Tabela 1 Categorização e codificação das unidades de referências identificadas nas transcrições das entrevistas 

Categorização e codificação das unidades de referências
Preceptoria: percepções e perspectivas
Subcategorias Transcrições referenciadas Unidades de referência codificadas Palavras codificadas Parágrafos codificados
Percepções e concepções
Atributos do bom preceptor 11 40 1.172 40
Influências da preceptoria 10 19 688 19
O papel do preceptor 11 23 842 23
Ser preceptor 12 13 382 13
Perspectivas
Motivações e benefícios 11 33 1.250 33
Dificuldades e obstáculos 10 23 932 23
Experiências
Como preceptor 8 44 2.085 45
Como residente 9 28 1.040 28
Preceptoria na graduação e na residência
9 27 1.294 27
Formação em preceptoria e docência
6 14 660 14
Formação e prática médica: graduação, residência e especialidade
Medicina de família e comunidade 5 20 1.187 20
Instituição e residência 5 12 413 12
Formação médica 1 8 479 8
Vivências na atenção primária à saúde 8 18 948 20

Fonte: Elaborada pelos autores no software NVivo 12.

Preceptor: concepções e atributos

No que concerne ao papel da preceptoria na formação médica, a maioria dos entrevistados destacou a figura do “preceptor” como “facilitador”, “mentor”, “mestre”, “guia’, “exemplo”, um ator essencial no processo de formação dos profissionais. O preceptor representaria então um referencial tanto nos âmbitos profissionais, como nas condutas clínicas e na gestão de equipe, quanto nos âmbitos interpessoais, como nas habilidades de comunicação, na postura ética e na empatia. A Figura 1 apresenta uma “nuvem de palavras” formada a partir das transcrições das entrevistas codificadas na categoria “preceptoria: percepções e perspectivas”.

Fonte: Elaborada pelos autores no software NVivo 12.

Figura 1 Nuvem de palavras acerca das concepções sobre a figura do “preceptor” 

As atitudes empáticas e acolhedoras são citadas pelos entrevistados 10 e 11 como importantes na relação dos preceptores com os residentes e graduandos, de maneira a compreender suas potencialidades e fragilidades, a fim de possibilitar seu aprimoramento como profissionais. Todavia, os entrevistados 9 e 12 ressaltam que, a depender das atitudes e posturas demonstradas, a figura do preceptor pode representar um exemplo positivo ou mesmo negativo, no sentido de os comportamentos não serem seguidos pelos preceptorandos: “Eu tive preceptores muito bons que eu carrego como espelho de pessoa, espelho de profissional, espelho de professor mesmo, de preceptor, de querer ser como [...]. E eu tive preceptores bem ruins no sentido de tudo que eu não quero ser [...]” (Entrevistado 5).

A função de intermediação dos preceptores também foi apontada, cabendo-lhes a articulação entre residentes e demais entes envolvidos no processo de residência, como instituição de ensino, equipe de saúde, gestão local e Secretaria de Saúde, de forma a “proteger” e resguardar a formação dos médicos residentes ante as demandas assistenciais. Os entrevistados 1 e 9 sublinharam a necessidade de formação adequada em preceptoria, visto que o interesse e o engajamento em “ser preceptor” não bastam, tornando-se essenciais também a qualidade e a eficiência advindas da instrumentalização da preceptoria.

No que se refere aos atributos esperados de um “bom” preceptor ou uma “boa” preceptora, os entrevistados enumeraram características como paciência, empatia, sensibilidade, responsabilidade, proatividade, flexibilidade, habilidade de gestão de pessoas e conflitos, domínio de conhecimentos técnico-científicos e pedagógicos, disposição ao aprendizado, humildade e experiência prática.

Entre tais atributos, destacaram-se o vínculo com os preceptorandos e a capacidade de escuta e de entendimento de suas particularidades, de forma a tornar o ambiente de aprendizado acolhedor e respeitoso. Essa compreensão é nítida nos trechos das entrevistas transcritos a seguir:

Acho que o vínculo é fundamental em tudo na MFC [...]. Acho que é a palavra-chave pra gente em tudo [...]. Mas acho que esse vínculo permite à gente criar uma atmosfera de maior acolhimento, de maior compreensão, da pessoa se sentir mais respeitada [...] (Entrevistado 9).

[...] claro, precisa de conhecimento técnico, de como ensinar [...]. Mas não adianta ser o melhor professor do mundo, tecnicamente, e não ter o mínimo de empatia [...] acho que isso é fundamental! (Entrevistado 8).

[...] vou te tratar como médico formado, alguém que tem autonomia profissional, só que está interessado numa atribuição que eu já tenho competência [...] então eu vou estar te ensinando isso, até para fortalecer o que eu estou fazendo, até para fortalecer minha especialidade [...] (Entrevistado 3).

Uma síntese das percepções dos entrevistados sobre a figura do “preceptor” pôde ser observada a partir do complemento da frase “Ser preceptor é...”, cujas respostas são apresentadas no Quadro 2.

Quadro 2 Concepções dos participantes entrevistados do curso de especialização em Preceptoria acerca da frase “Ser preceptor é...” 

Concepções acerca da frase “Ser preceptor é...”
Entrevistado 1 Nossa, isso é difícil de dizer, ser preceptor é... abrir caminhos, abrir caminhos... abrir caminhos... conduzir alguém à luz!
Entrevistado 2 Muito profundo, hein? Acho que ser preceptor é sair da zona de conforto e tá o tempo todo se desafiando, como médico de família.
Entrevistado 3 A pergunta mais difícil... ser preceptor é ser um parceiro... é ser um parceiro... é ser um modelo, acho que é melhor esse pra finalizar, é ser um modelo.
Entrevistado 4 Aprender, sempre... com a troca com o residente [...]. E plantar as sementes da medicina de família e das ideologias... que vai ser a formação de uma pessoa, que vai, talvez, lembrar de você, durante a vida dela profissional [...]. Você vai ser a “voz da consciência” da pessoa [...].
Entrevistado 5 Ser preceptor... acho que ser preceptor é não saber o quanto você pode influenciar a vida de alguém, positiva ou negativamente, e sempre ter a consciência de que você pode estar fazendo uma diferença tão grande que você nem imagina [...].
Entrevistado 6 Ser preceptor é entrega... entrega...
Entrevistado 7 Um guia para pessoa que está se formando e que serve de espelho do que se deve fazer e do que não se deve fazer. Então é a pessoa que vai mostrar como é a prática médica.
Entrevistado 8 Ser preceptor é... Nossa! Um sonho, um sonho, eu gosto bastante do que faço... e ser preceptor é oportunizar o aprendizado de outros médicos a desempenharem um papel com qualidade e ofertar um serviço para a população que, muitas vezes, não é ofertado [...]. Então eu acho que o residente tem esse potencial, e pra mim é um sonho, é parte dos meus planos de vida atuar nessa parte [...].
Entrevistado 9 Ser preceptor é ser um facilitador, de conhecimentos e de trocas que podem beneficiar todas as pessoas envolvidas no processo, pacientes e alunos também.
Entrevistado 10 É uma boniteza! É isso, é um caminho!
Entrevistado 11 Ser preceptor é ser companheiro, é ser autocrítico e também ser exemplo.
Entrevistado 12 Um desafio diário... Muito recompensador, e que faz a gente crescer todos os dias [...].

Fonte: Elaborado pelos autores.

Preceptoria na residência: experiências e contribuições

As experiências com os preceptores durante a residência revelaram-se bem heterogêneas entre os relatos, destacando-se positivamente aquelas em que os preceptores demonstraram maior capacidade de compreensão, empatia e estabelecimento de vínculo com os residentes. As sensações de segurança e de suporte profissional e emocional também foram frequentemente referidas como vivências positivas.

[...] [o preceptor] sempre muito disposto, eu acho que isso foi muito importante... ter alguém que sempre que eu precisasse estava ali mesmo que eu não recorresse tanto quanto eu poderia recorrer [...] eu nunca vi ele fazer uma cara feia quando eu chegava, ou quando eu atrapalhava uma consulta, ou quando eu precisava dele [...] (Entrevistado 12).

[...] [a preceptora] era alguém que estava sempre do meu lado, então eu não me sentia insegura, porque se eu tivesse dúvida na conduta ela estava ali para me ajudar [...] (Entrevistado 9).

Acho que [na residência] foi o primeiro momento em que me senti acolhida, em que eu senti que eu poderia ter dúvidas [...]. Eu me vi próxima, mais próxima dos meus preceptores. Muito embora eles nem sempre estivesse fisicamente próximos, mas sempre estavam disponíveis (Entrevistado 1).

Quanto aos formatos de preceptoria, figuravam a observação direta, a “preceptoria ombro a ombro”, a discussão de casos, a supervisão, as sessões clínicas e as gravações de consultas, sendo o modelo mais frequente a discussão de casos clínicos. A orientação baseada em ferramentas de apoio à decisão clínica e as bibliografias da especialidade, como o Tratado de Medicina de Família e Comunidade, foram sublinhadas como desejáveis e proveitosas. A seguir, apresentam-se alguns relatos acerca de tais experiências:

[...] essa preceptoria, na minha prática era muito... algumas vezes observação direta, algumas vezes discussão de caso, era a maioria das vezes discussão de caso [...] (Entrevistado 10).

[...] eu fazia atendimentos, ele assistia... ele fazia o modelo ombro a ombro ou então eu gravava atendimentos e depois a gente discutia... e naturalmente eu via muito da maneira de ele atender [...] (Entrevistado 11).

[...] quando eu tinha uma dúvida, a gente fazia interconsulta, ele vinha até nós, a gente discutia ou, quando estava na visita domiciliar, ele auxiliava gente. Eu acho que eu aprendi bastante com a forma com que ele se dedicava aos estudos como ele usava o Medscape, instrumentos para checar medicamentos, a forma como ele utilizava sempre... consultava se tinha alguma interação medicamentosa [...] (Entrevistado 8).

Os aspectos negativos relatados concerniam, em sua maioria, à carência de uma participação mais ativa dos preceptores, à sensação de “abandono” perante as demandas assistenciais e às deficiências de habilidades e conhecimentos específicos da especialidade:

Como eu tava pouco supervisionado, com preceptoria, então eu não tinha muito com quem contar para ir atrás das coisas (Entrevistado 3).

[...] meu preceptor, além de não ser médico de família, também não era preceptor, então ele só era uma pessoa que estava lá... “Se precisa de mim, estou aqui”... eu sabia que ele estava ali, mas não confiava muitas vezes nas condutas, achava ele bem desatualizado [...] (Entrevistado 12).

[...] na dúvida, eu poderia recorrer a ela, mas não era alguém que me estimulava nesse sentido: “Vamos fazer uma discussão sobre este tema”, “Estou vendo que você está tendo dificuldades nisso”, “Vamos aprofundar tal coisa” [...] (Entrevistado 9).

A respeito da influência dos preceptores em sua formação profissional, a maioria dos entrevistados ressaltou as contribuições no campo das atitudes. Estas foram representadas pelas habilidades de comunicação e postura perante os pacientes, alunos e colegas de equipe, pelos feedbacks e pelo compartilhamento de vivências práticas, bem como pelo estímulo à busca de aperfeiçoamento técnico e à construção de visões críticas acerca da prática médica. Essas percepções emergem de forma bem proeminente no seguinte trecho:

[...] o preceptor, ele teve um papel gigantesco nos conhecimentos, nas habilidades, mas eu acredito que especialmente nas atitudes. Porque eu me baseei muito nas atitudes que eu via ele utilizando, seja com os alunos, seja com os pacientes, para a partir disso eu desenvolver as minhas próprias atitudes [...] (Entrevistado 11).

Muitos dos entrevistados relataram que, após a conclusão da residência em MFC, já haviam desenvolvido atividades de preceptoria tanto no âmbito da graduação em Medicina quanto no âmbito da residência médica. Diante das novas experiências e dos novos olhares, “medo” e “insegurança” foram mencionados como sentimentos iniciais, seguidos por sensação de “gratidão”, “satisfação”, de crescimento profissional e até mesmo como um estímulo à resiliência ante as dificuldades da atenção primária à saúde:

Quando eu terminei a residência, que eu fui... que eu passei a ser preceptora, eu mandei uma mensagem para o meu preceptor do curso de especialização e perguntei pra ele: “Professor, e agora? Será que eu dou conta desse negócio? Eu estou insegura com isso, não sei se eu dou conta não [...]” (Entrevistado 10).

Foi uma experiência, eu diria, assim, engrandecedora... Eu acredito que eu tenha aprendido muito a manejar os conflitos. [...] Acho que também ajudou bastante a me colocar no lugar do meu preceptor, que até então, era algo que eu tinha dificuldade [...] (Entrevistado 11).

O que que eu vou fazer? Eu não sei... Será que eu sei? Será que eu sou? Mas o dia a dia foi me trazendo um pouco mais de confiança... às vezes, bate insegurança... Você fala: “Nossa será que eu estou pronta para passar esse conhecimento para alguém?”. Mas aí eu lembro do que eu achei importante no meu preceptor assim... de tá ali, de estar disposta, de saber falar “não sei isso”... me trouxe uma certa tranquilidade... vamos ver juntos [...] (Entrevistado 12).

Vou falar que é mais difícil que eu imaginava, mas eu tento, dentro das possibilidades e das questões organizacionais daqui da rede, que dificulta um pouco mais [...]. Mas, de um modo geral, eu tenho ficado bastante satisfeito. Na verdade, nesse período de pandemia, o que eu acho que me fez continuar e conseguir passar por esse ano de 2020 foi muito o fato de dar preceptoria [...] (Entrevistado 2).

Ainda acerca das experiências em preceptoria, os participantes foram questionados sobre as diferenças identificadas nos processos de ensino-aprendizagem de graduandos em Medicina e médicos residentes, as quais se encontram sintetizadas no Quadro 3.

Quadro 3 Semelhanças e diferenças da preceptoria na graduação em Medicina e na residência médica em MFC, segundo os participantes entrevistados do curso de especialização em Preceptoria 

Graduação em Medicina Residência médica
Semelhanças
Se a gente pegar a parte teórica não muda muito... a andragogia... essa parte não! Você tem que ter um repertório muito grande, pedagógico... porque você abordar um aluno do primeiro ano, um aluno do terceiro ano, um aluno do internato e um residente, são contextos que têm um caminho em comum, mas são completamente diferentes assim [...] (Entrevistado 12).
Nenhuma, é a mesma [...] na verdade, não tem nenhuma diferença na minha abordagem, nem de um nem de outro grupo [...]. A gente diz que está lapidando diamantes, acho que é esse processo de lapidação de construção de mostrar o que é importante dentro dos princípios do sistema único de saúde, acesso, longitudinalidade [...] (Entrevistado 10).
Diferenças
Na graduação, você é mais cru, então você tem uma necessidade muito maior de atenção, uma necessidade muito maior de bons exemplos... está começando a formar aquilo que você pensa sobre a medicina e a sua forma de atuar (Entrevistado 5). [...] residente já é um médico formado, então já tem conhecimento, já estudou... às vezes o que falta pra ele é um alinhamento, ansiedade, nervosismo... que até sabe resposta! Tu consegue resgatar esse conhecimento, consegue tranquilizar o residente e acaba favorecendo o melhor desempenho da atuação desse profissional na comunidade (Entrevistado 8).
[...] os alunos da graduação eles precisam mais da gente... eles não têm também aquela autonomia de fazer prescrição, precisa estar ali do lado dos alunos [...]. E também não tem aquela associação, tem dificuldade de associar a questão teórica e prática por falta de prática mesmo [...] (Entrevistado 6). [...] na residência você já tem algumas ideias que você preconcebeu, pessoas que você se espelhou na graduação, então você já tem uma “malinha de bagagem”... no momento que você está ali para especialidade, então você precisa muito mais da parte técnica, mas não deixa de precisar também psicológico, social, do apoio, de espelhamento [...] (Entrevistado 6).
[...] a pessoa na graduação, geralmente eu vou ter um período um mês, ou dois, ou um semestre talvez, e ainda assim com frequências muito menores de contato (Entrevistado 11). O residente eu vou ter um ano ou dois anos de contato praticamente diário... então eu acredito que essa sensação de mentoria ela é muito diferente, ela é muito mais aprofundada na relação com o residente (Entrevistado 11).
Na graduação, eu acho que a gente tem quase uma missão... de apresentar o que é realmente a MFC! Eu acho que eu tinha mais uma função de mostrar o que é a MFC, as potencialidades, o que que a gente faz na unidade de saúde, de apresentar mesmo no sentido do que que é a MFC... do papel dela na atenção primária (Entrevistado 9). Eu acho que a informação que tem que dar para o residente é uma informação mais de especialista, então o cara vai sair dali e vai falar: “Eu sou médico de família”. Ele é um especialista em medicina de família. Então a informação que eu tenho que dar para ele é de alto grau, ele precisa saber a fundo o que é a medicina de família (Entrevistado 4).
[...] no internato, que é na graduação, a gente mostra o que seria o geral... a pessoa acaba tendo... acaba conhecendo diversos preceptores diferentes, diversas especialidades [...] (Entrevistado 7). Na residência, é uma coisa mais focada... então a gente vai aprender com o preceptor a ser médico de família, então a abordagem é mais intensa (Entrevistado 7).

Fonte: Elaborado pelos autores.

DISCUSSÃO

Papel do preceptor: concepções, atributos e contribuições

O termo “preceptor” origina-se do vocábulo em latim praecipio, o qual significava “mandar com império aos que lhe são inferiores” e era utilizado por mestres de ordens militares durante a Idade Média. Desde o século XVI, o termo tem sido adotado para referir-se ao ato de “dar preceitos ou instruções” e, por isso, relaciona-se a conceitos como “educador”, “mentor” e “instrutor”24.

Não obstante as divergências conceituais, pode-se buscar a compreensão desses atores do ensino médico a partir das atribuições inerentes às atividades de preceptoria, as quais abrangem essencialmente a supervisão e orientação de graduandos e pós-graduandos em Medicina, em cenários de prática profissional3),(25.

Quando se analisam as concepções acerca da figura do preceptor, nota-se uma heterogeneidade de compreensões, as quais denotam representações com caráter mais concreto e objetivo como “facilitador”, “parceiro”, “guia” e “companheiro”, assim como ilustrações mais abstratas e subjetivas que utilizam metáforas como “plantar sementes”, “espelho” e “voz da consciência”.

Corroborando essas visões, destaca-se a nuvem de palavras elaborada a partir das percepções de entrevistados em relação à figura do “preceptor”, na qual se torna perceptível a preponderância de termos como “conhecimento”, “fazer”, “pessoa”, “atitudes”, “exemplo”, “processo” e “saber”. A analogia com a relação pais e filhos também foi alvitrada, surgindo de forma singular na fala de um dos entrevistados: “vi esse exemplo assim: que está uma mãe com filho no parquinho, daí a criança ela vai brincar no brinquedo, mas, se ela sente medo, ela olha e vai até a mãe quando ela sentir medo. E aí ela vai abraçar mãe e ela volta pro parquinho [...]” (Entrevistado 10).

Em estudo qualitativo com preceptores de hospital de ensino, Botti e Rego19 sustentam que o preceptor assume diversos papéis na formação médica, servindo como guia de atitudes profissionais, fomentador de raciocínio e proatividade, gerenciador do processo de ensino-aprendizagem, referencial de experiência, observador e avaliador de desempenho, entre outras funções.

Entre os olhares acerca da função do preceptor, notabiliza-se a representação de “modelo”, um exemplo a orientar os jovens em formação. Essa assimilação emerge da literatura sob o conceito de role modeling, descrito como um fenômeno no qual profissionais educadores (preceptores ou docentes) demonstram habilidades clínicas, modelam e articulam processos cognitivos, e manifestam características profissionais positivas, exercendo influência sobre comportamento, desenvolvimento profissional e escolhas de carreira de estudantes e médicos residentes27),(28.

Percepções consonantes com o fenômeno de role modeling despontam entre os enunciados das entrevistas, sendo expressas representativamente no seguinte trecho:

Eu acho que, de alguma forma, a gente tem que ser exemplo! Não só exemplo no sentido também dessa relação de orientador e estudante, mas exemplo dentro da nossa prática, fazer aquilo que a gente diz que faz, que a gente orienta o outro fazer. Eu não posso dizer pro residente o caminho é esse e a minha prática completamente ao contrário [...] (Entrevistado 10).

Em contrapartida, Benbassat22 alerta que o role modeling expressa valor educacional se funciona como uma demonstração de habilidades clínicas e provisão de feedback após a observação da atuação alunos. De outra forma, também contribui para o desenvolvimento profissional se atua como um estímulo à reflexão crítica dos estudantes acerca dos benefícios e das desvantagens dos comportamentos de preceptores29.

Todavia, se encoraja a imitação não seletiva, consciente ou inconsciente, de modelos de comportamento correntes na cultura institucional ou assistencial, então pode adquirir um caráter negativo e potencialmente danoso, sobretudo quando refletem paradigmas inadequados e até mesmo antiéticos29.

Nessa perspectiva, Passi et al.20 introduzem os atributos considerados positivos no role modeling a partir de três domínios principais: atributos clínicos, relacionados ao nível de conhecimento e habilidades técnicas; habilidades de ensino, capacidade de construir um ambiente educacional positivo, apoiando e incentivando os aprendizes; e qualidades pessoais, que abrangem características interpessoais como integridade, boas habilidades de liderança e um compromisso com a excelência.

Tais atributos dialogam com aqueles levantados pelos entrevistados, sobretudo quanto aos comportamentos humanísticos e à criação de ambiente educacional positivo e de apoio. Nessa acepção, diversas falas de entrevistados enaltecem a empatia, o acolhimento, a humildade, a paciência e a disponibilidade como atributos desejáveis ao “bom preceptor” ou à “boa preceptora”.

As habilidades em estabelecer relações preceptor-educando harmônicas e acolhedoras também se encontram presentes em investigação com graduandos em medicina, na qual virtudes como “paciência”, “simpatia”, “humildade” e “educação” figuram entre as qualidades atribuídas aos “bons preceptores”2.

Barreto et al.23 reiteram a importância da relação preceptor-educando ao defenderem que se constitui em um recurso relevante para a construção do trabalho coletivo, necessitando ser concebida de modo horizontal. Assim, o preceptor deve atuar de forma crítica e cuidadora, reconhecendo e valorizando os saberes e sentimentos do educando30.

Sob outro panorama, os participantes entrevistados também destacam o conhecimento teórico, as competências técnicas, as habilidades pedagógicas, o compromisso com as atividades de ensino e o engajamento nelas como características esperadas de um “bom preceptor”, como elucidado neste extrato: “ser um bom clínico, estar interessado em aprender... ser um bom médico, um bom terapeuta, e também estar interessado em aprender a ser um bom educador... e também demonstrar uma certa disciplina, de ser pontual, cordial, de ser respeitoso [...]”(Entrevistado 3).

As atribuições do preceptor abrangem domínios como a facilitação do aprendizado de conhecimentos teóricos, a supervisão e orientação de habilidades práticas, e a representação referencial de valores, atitudes e ética profissional31. A partir desses domínios, os entrevistados foram arguidos sobre a influência de seus preceptores nos âmbitos dos conhecimentos, das habilidades e das atitudes, demonstrando marcante percepção de maior influência no campo das atitudes. Tal compreensão pôde ser identificada nos seguintes comentários:

[...] principalmente no âmbito das atitudes, no âmbito do ser... eu vi meus preceptores, antes de tudo, sendo pessoas que cuidavam de pessoas tendo habilidades humanísticas muito bem estruturadas, então eu acho que, na parte do ser, foi onde eu me senti mais influenciada (Entrevistado 1).

[...] a minha preceptora, na época da residência, ela era muito sensível com os pacientes... de dar atenção aos pacientes. [...] Isso me influenciou bastante, assim de ter essa sensibilidade de ouvir o paciente [...] (Entrevistado 6).

[...] eu me espelho muito no que eu aprendi com eles... a forma de atuar, de conversar com paciente, de se relacionar com os outros colegas da equipe (Entrevistado 7).

Ainda por essa compreensão, as vivências dos aprendizes com seus preceptores, além de inspirarem sua identidade médica, podem estimular o interesse por atividades de ensino-aprendizagem tanto em ambientes acadêmicos, como universidades e institutos de pesquisa, quanto em cenários assistenciais, como unidades de saúde e hospitais32. Tal influência não se restringe ao envolvimento educacional per se, podendo também moldar o perfil docente desses aprendizes, como exposto por um dos entrevistados:

[...] eu tento reproduzir o que um dos meus preceptores foi pra mim... tento me inspirar um pouco nele [...] o que mais pesa no papel de preceptoria é ser um referencial, seja de comportamento, seja de conduta clínica, seja de gestão da clínica, gestão de equipe [...] incentivar o máximo de autonomia [...] para fazer as coisas, sabendo que eu vou estar sempre junto, apoiando, supervisionando, tirando dúvidas [...] (Entrevistado 2).

Preceptoria no ciclo de formação médica: as peculiaridades na graduação e na residência

Considerando os predicados necessários à boa preceptoria, bem como as distintas fases do ciclo de aprendizado médico, nas quais figura o preceptor, questionou-se os entrevistados acerca das diferenças de abordagens de preceptores de MFC na graduação e na residência médica. Sob o ponto de vista dos participantes, existem nítidas distinções entre esses momentos de aprendizagem.

Na graduação médica, a preceptoria deve introduzir os princípios da MFC e da atenção primária à saúde, demonstrando a importância e as atribuições dos médicos de família para os pacientes e à comunidade, exercendo assim um papel de influenciador, inspirador e até mesmo de angariador de “novos especialistas”.

As Diretrizes para o Ensino na Atenção Primária à Saúde na Graduação em Medicina da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) ressaltam as contribuições desse cenário para a formação médica, destacando a oportunidade de contato com diferentes ciclos da vida e suas complexidades clínicas e culturais, além de contextualizarem suas práticas em saúde a partir do estabelecimento de relações com os indivíduos e as comunidades em seus cenários reais33.

Diferentemente do cenário hospitalar, a atenção primária à saúde propicia a inter-relação entre distintos conhecimentos, transpondo o saber biomédico e alcançando aspectos da psicologia humana, das ciências sociais e do saber popular. Com base em tais peculiaridades, os preceptores em MFC devem estimular a integração entre teoria e prática médicas de forma contextualizada, de modo a desenvolver a capacidade de reflexão crítica dos estudantes30.

Sob o olhar dos entrevistados, na residência médica, os preceptores têm um papel mais pragmático, devendo facilitar e estimular o desenvolvimento de determinados conhecimentos, habilidades e competências esperados de especialistas em MFC. Dessa forma, deve proporcionar o aprofundamento técnico e filosófico acerca das bases teóricas que fundamentam e orientam a especialidade, oferecendo recursos e ferramentas que subsidiem a prática da MFC.

Nesse sentido, a função do preceptor na RM envolve o compartilhamento de ideias e experiências profissionais, de modo a identificar dificuldades, inseguranças e frustrações dos médicos residentes , e mediar a construção da capacidade de discernimento clínico e acesso às informações perante cada situação-problema25),(30.

As atribuições e os papéis do preceptor representam um complexo desafio para os profissionais médicos dispostos a adentrar essa alçada da profissão. Seja na graduação, seja na residência médica, desvela-se a essencialidade de qualidades como dedicação, compromisso, disponibilidade, empatia, humildade, engajamento e, sobretudo, desejo de compartilhar e prazer em fazer isso.

Preceptoria: vivências e visões na perspectiva do “residente” e do “preceptor”

Na medida em que programas de residência e cenários de saúde manifestam-se heterogêneos pelo Brasil, as experiências vivenciadas pelos participantes em relação à preceptoria tenderiam à disparidade. Tal premissa pôde ser constatada a partir dos relatos dos participantes entrevistados.

No que concerne às entrevistas individuais, observam-se marcantes diferenças nas experiências dos participantes com seus preceptores. Se, por um lado, alguns entrevistados afirmavam que sentiam acolhidos, assistidos, protegidos, seguros, auxiliados e estimulados por seus preceptores, por outro, situavam-se impressões de insegurança, distanciamento, desassistência, desconfiança e desorientação. Tais discrepâncias são ilustradas a seguir:

Eu me sentia muito sem uma referência ali no meu dia a dia mesmo... sem esse guia [...] (Entrevistado 12).

Quando a gente tinha alguma dificuldade, ele conversava com a direção do posto, ele tentava intervir, de certa maneira, com relação à equipe (Entrevistado 8).

[...] não criava um espaço pra gente debater sobre isso, como a gente poderia melhorar. [...] “Se quiser, você pode vir aprender comigo, eu vou fazendo, você vai olhando; se você tiver dúvida, você pergunta” [...] mas não existia uma discussão sobre cada coisa que era feita, de como fazer, por que fazer [...] (Entrevistado 9).

Essa singularidade da minha preceptora, ela tem essa qualidade que é enxergar o que a gente precisa fazer, tipo assim: “A necessidade dele é essa” (Entrevistado 10).

As diferenças significantes nas experiências com os preceptores podem ser ocasionadas por variados fatores: grau de formação técnica e pedagógica, condições do cenário de ensino-aprendizagem, características e situações pessoais, entre outros. Em todo o caso, pode-se inferir que preceptores atuantes na atenção primária à saúde não representam um grupo homogêneo, como elucidado por Latessa et al.28.

De acordo com Ramani et al.10, as atribuições de near-peer teaching (ensino por pares) podem representar benefício mútuo para os residentes que auxiliam, bem como para os alunos e residentes auxiliados. Em todo o mundo, em diversas instituições de ensino os estudantes de Medicina convivem grande parte do tempo nos cenários de prática com os médicos residentes, sendo vistos pelos alunos, em muitos casos, como importantes “educadores”14.

Nesse sentido, vivências convergentes também foram reportadas em algumas das entrevistas:

[...] o meu primeiro contato com a preceptoria foi na residência quando a gente podia... a gente era... a gente ficava com os internos, como se fosse preceptor dos internos, eles acompanhavam durante o dia [...] (Entrevistado 12).

Quando eu comecei a receber os internos [na residência médica], eu cobrei o que era, qual era minha responsabilidade em relação aos internos. Porque é importante, é uma responsabilidade importante, você vai formar aqueles caras ali. [...] Vão ser seus colegas de profissão [...] (Entrevistado 10).

Acerca da formação em preceptoria para residentes, Hill et al.29 denominam essas estratégias educacionais de resident-as-teacher programs, sublinhando suas potenciais contribuições para a melhoria das habilidades pedagógicas de médicos residentes. Tais benefícios e a necessidade de iniciativas de suporte pedagógico para o desempenho das atribuições de preceptoria também têm sido enfatizados por outros autores33),(34.

Quanto às dificuldades para a implementação dessas iniciativas, Achkar et al.31 indicam a disponibilidade dos residentes e dos professores e a carência de recursos orçamentários como principais obstáculos. Entretanto, uma compreensão completa das atribuições educacionais de residentes deve ser investigada por pesquisas posteriores, com avaliações dos efeitos e das contribuições efetivas da participação dos residentes na formação médica de seus pares29.

As contribuições do envolvimento de residentes no ensino de graduandos têm sido associadas ao estímulo à reflexão crítica e à atualização científica, bem como à melhora de habilidades clínicas e intelectuais34. Ademais, o aumento da confiança como “educador” também pode ser beneficiado por essas experiências, como descrito em estudo precursor da George Washington University35.

CONCLUSÃO

A partir da perspectiva dos participantes, o papel da preceptoria relaciona-se, predominantemente, à função de modelo e de referencial para os educandos, de forma que as atitudes dos preceptores devem ser consonantes com atributos como empatia, humildade, paciência, disponibilidade, proatividade, atitudes humanísticas e competência técnica.

À vista da diversidade de competências necessárias ao exercício da preceptoria, as discussões e investigações referentes à formação desses profissionais tornam-se a cada vez mais proeminentes e fundamentais para a melhoria da qualidade da formação médica.

No que diz respeito às limitações deste estudo, deve-se ponderar que as percepções e perspectivas sobre a MFC e a preceptoria médica referem-se a uma parcela dos profissionais atuantes nesses âmbitos, podendo destoar de coordenadores de programas de residência, gestores e demais médicos e médicas de família com maior tempo de atuação.

Com base nas considerações concebidas, torna-se evidente a relevância da figura do preceptor no processo de formação médica, bem como a imprescindibilidade de um debate amplo entre instituições de ensino, entidades médicas, gestores e serviços de saúde, governos e comunidade acadêmica acerca da conjuntura educacional das novas gerações de profissionais de saúde.

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2Avaliado pelo processo de double blind review.

FINANCIAMENTO Declaramos não haver financiamento.

Recebido: 03 de Junho de 2022; Aceito: 04 de Outubro de 2022

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CONFLITO DE INTERESSES

Declaramos não haver conflito de interesses.

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