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Revista Brasileira de Educação Médica

versão impressa ISSN 0100-5502versão On-line ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.47 no.2 Rio de Janeiro abr./jun. 2023  Epub 27-Jun-2023

https://doi.org/10.1590/1981-5271v47.2-20220026 

ARTIGO ORIGINAL

Diretivas antecipadas de vontade na percepção de estudantes de Medicina

Tatiana Rosa Ogata Nakagawa1  , atuou como pesquisadora, redigiu o artigo
http://orcid.org/0000-0003-1633-2002

Andressa Luciani Pereira Rodrigues1  , coletaram os dados, formataram o artigo
http://orcid.org/0000-0002-6929-5340

Valéria Carolina Armas Villegas1  , coletaram os dados, formataram o artigo
http://orcid.org/0000-0003-1989-7738

Laura Block Gurtat1  , coletaram os dados, formataram o artigo
http://orcid.org/0000-0001-8011-8903

Gabriela Ribeiro de Castro1  , coletaram os dados, formataram o artigo
http://orcid.org/0000-0002-4310-7495

Márcio José de Almeida1  , orientou o estudo, revisou o artigo
http://orcid.org/0000-0001-7094-9906

1 Faculdades Pequeno Príncipe, Curitiba, Paraná, Brasil.


Resumo:

Introdução:

A autonomia do paciente na tomada de decisões a respeito da sua vida e das condutas diagnósticas e terapêuticas na sua saúde tem sido objeto de valorização social crescente. As diretivas antecipadas de vontade surgem, então, como um meio de o paciente expressar sua última vontade, salvaguardando o princípio da autonomia. No processo de aprendizagem acadêmica, na maioria das escolas médicas, o acadêmico se compromete com a vida, e toda a sua capacitação é fundamentada em aspectos técnicos, e apenas uma pequena parte do currículo, quando presente, abrange conteúdo específico voltado para a terminalidade da vida. A medicina evoluiu com importantes avanços tecnológicos que resultaram em melhorias na qualidade de vida, porém também trouxeram um prolongamento questionável da vida, com tratamentos muitas vezes injustificáveis e com a obstinação terapêutica de manter a vida a qualquer custo.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo analisar a percepção de estudantes de Medicina sobre as diretivas antecipadas de vontade.

Método:

O instrumento de pesquisa foi elaborado com uma entrevista individual e semiestruturada, aplicada pela plataforma de pesquisa Google Forms. Por causa do período de pandemia pelo Sars-CoV-2, a pesquisa foi realizada de forma não presencial em conformidade com a legislação vigente nacional. Após fechamento da amostra por exaustão, analisaram-se as respostas de 13 estudantes.

Resultado:

Em conformidade aos elementos, passos e critérios metodológicos, as informações obtidas foram classificadas e dispostas em duas categorias: dignidade da pessoa humana e autonomia do paciente; e conhecimento sobre diretivas antecipadas de vontade.

Conclusão:

Essa análise qualitativa trouxe à tona importantes temas, como a regulamentação que norteia as diretivas antecipadas de vontade e os princípios que envolvem a bioética, a fim de consolidar o respeito, a autonomia e a dignidade do paciente que está, ou estará, passando pela terminalidade da vida.

Palavras-chave: Cuidados Paliativos na Terminalidade da Vida; Diretivas Antecipadas; Cuidados Paliativos

Abstract:

Introduction:

The patient’s autonomy in making decisions about their life and about diagnostic and therapeutic approaches related to their health has been the object of growing social value. Then advanced directives appear to express the patient’s last will, safeguarding the Principle of Autonomy. During the undergraduate learning process, students are committed to life, and all of their training is based on technical aspects. Only a small part of the curriculum covers specific contents focused on terminal illness, when present. Medicine has evolved with important technological advances that resulted in quality-of-life improvement, but also brought a questionable extension of life, with often unjustifiable treatments and a therapeutic obstinacy to maintain life at any cost.

Objective:

The aim of this study is to analyze the perception of medical students about end-of-life directives.

Method:

A descriptive qualitative research was carried out through an individual and semi-structured interview, applied through Google forms. Due to the period of pandemic caused by the SARS-CoV-2, the survey was carried out remotely, in accordance with current national legislation. After the target was attained through sample exhaustion, the responses of 13 students were analyzed.

Results:

In accordance with the elements, steps and methodological criteria, the obtained information was classified and arranged into two categories: Human Dignity and Patient Autonomy; Knowledge of Advance Will Directives.

Conclusion:

This qualitative analysis brought to light important topics such as the regulation that guides advance will directives and principles that involve bioethics, to consolidate the respect, autonomy and dignity of the patient who is, or will be, undergoing the terminality of life.

Keywords: Terminal care; Advance Directives; Palliative care

INTRODUÇÃO

A autonomia do paciente na tomada de decisões a respeito da sua vida e do seu processo terapêutico tem sido objeto de valorização social crescente. Na América Latina, países como Porto Rico1, Argentina2 e Uruguai3 já têm legislações que concedem autonomia aos pacientes.

No Brasil, não há legislações sobre o assunto, apenas resoluções de conselhos de classe. A Resolução nº 1.805/2006, de 28 de novembro de 20064, permitiu ao médico limitar ou abortar tratamentos que prolonguem a vida de pacientes em fase terminal4. Já a Resolução nº 1.995/2012, de 31 de agosto de 20125, manteve as disposições estabelecidas anteriormente e regulamentou de modo mais completo as diretivas antecipadas de vontade (DAV)5. Nesse contexto, as DAV surgem como uma forma de o paciente expressar sua última vontade, salvaguardando o princípio da autonomia6.

Os estudantes, na maioria das escolas médicas, se comprometem com a vida, e sua capacitação é fundamentada em aspectos técnicos. Apenas uma pequena parte do currículo apresenta conteúdos voltados para a terminalidade, mas que, ainda assim, são insuficientes para lidar com os cenários do fim de vida. Diante dessa escassez de reflexões sobre terminalidade de vida no contexto médico estudante, torna-se necessário entender o quão familiarizados com o assunto os discentes estão7.

É importante avaliar o conhecimento e as atitudes em relação a essas questões entre estudantes de Medicina, pois sabe-se que é um cenário de desconhecimento e insegurança, a fim de identificar possíveis lacunas nos currículos médicos e trabalhar questões éticas fundamentais para um atendimento7. Assim, realizou-se esta pesquisa com o objetivo de analisar o conhecimento sobre a compreensão que estudantes de Medicina de uma instituição de ensino superior (IES) têm sobre as DAV.

MÉTODO

O presente estudo constituiu-se em uma pesquisa de cunho descritivo com abordagem qualitativa, que tem como alvo analisar valores e significados que não se adaptam à abordagem quantitativa. Tal metodologia foi escolhida diante da necessidade de estudos mais aprofundados sobre o tema e a população sob tal visão metodológica8.

A pergunta desencadeadora da pesquisa “Qual é o conhecimento queo estudante de graduação em Medicina tem sobre as diretivas antecipadas de vontade?” teve suas respostas analisadas conforme a base teórica de Minayo9, que permite abordagem das expressões humanas nas relações, nos sujeitos e nas representações.

O foco da metodologia qualitativa está no aprofundamento da compreensão; busca explicar o porquê das coisas, produzindo informações aprofundadas e ilustrativas. Portanto, não há preocupação extensa com representatividade numérica9.

Para estruturar a pesquisa qualitativa, Minayo10 defende a existência de quatro termos: experiência, vivência, senso comum e ação. A partir disso, é realizada a análise por meio de compreensão, interpretação e dialetização10. A compreensão atua como base da metodologia utilizada no presente estudo, sendo exercida pelo ato de se colocar no lugar do outro; vale ressaltar que toda compreensão é parcial e inacabada, tanto pelo entrevistado como pelo pesquisador - somos limitados no que compreendemos e interpretamos10.

No que diz respeito ao contexto de realização da pesquisa, inicialmente foi desenvolvida a proposta de coleta de dados por entrevista semiestruturada, contando com a simulação de cenário realístico. Durante o período de coleta de dados, surgiu a pandemia por Sars-CoV-2, e, por causa da necessidade de isolamento social, a entrevista presencial se tornou inviável. Diante do cenário inesperado, foi encontrada a alternativa de realizar a coleta de dados por meio de plataforma digital. Elaborou-se um questionário pelo Google Forms, com divulgação por meio de plataformas digitais (WhatsApp e e-mail).

O convite para a pesquisa foi encaminhado a um total de 608 estudantes do curso de Medicina devidamente matriculados na IES. Obtiveram-se, depois de várias tentativas nos meses de abril a julho de 2020, época em que a pandemia estava na sua fase ascendente, 14 respostas. Uma delas foi excluída porque o estudante já tinha uma graduação prévia. Após 90 dias de espera e buscas infrutíferas por novos participantes, os autores decidiram fazer o fechamento por exaustão da amostra11.

Para analisar o material qualitativo, Minayo9 defende a existência de três modalidades: análise de conteúdo, análise de discurso e análise hermenêutico-dialética. No estudo em questão, optou-se pelo uso da análise de discurso, que envolve materialismo histórico, linguística e teoria do discurso9.

A primeira etapa de análise consiste na disposição pré-analítica dos dados, na qual realiza-se a transcrição literal das entrevistas. A partir disso, é possível uma organização classificatória conforme palavras-chave e núcleos de sentido evidentes nas falas dos entrevistados12.

Já na segunda etapa, também chamada de etapa pré-analítica final, inicia-se a organização temática baseada nas ideias centrais das respostas e nos temas mais relevantes identificados13.

Por último, é feita a análise final que interpreta os conteúdos organizados nas primeiras duas etapas. Como resultado, sempre devem ser geradas novas questões, respeitando o processo espiral do ciclo de pesquisa - parte do empírico e retorna novamente ao empírico9.

Em relação aos aspectos éticos, a pesquisa fundamentou-se nas Resoluções nºs 466/2012 e 510/2016. O projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa e devidamente aprovado - CAAE nº 26695919.7.0000.5580. Apenas depois da aprovação, realizou-se a coleta de dados para a pesquisa.

O risco de constrangimento direto deixou de existir no novo formato de coleta de dados, mas mantiveram-se os riscos de perda de anonimato dos participantes, de perda do sigilo de informações coletadas e de desencadeamento de sentimentos ao serem realizadas questões de ordem emocional.

Como forma de minimizar os riscos, retiraram-se as respostas do ambiente digital, mantiveram-se o sigilo e o anonimato dos participantes por parte da pesquisadora, e disponibilizou-se acesso direto à pesquisadora por meio de e-mail pessoal para todos os participantes.

A pesquisa traz como benefício a possibilidade de análise e compreensão dos estudantes sobre as DAV.

As simulações utilizadas para coleta de dados foram gravadas em laboratório de simulação da instituição, contando com a participação de integrantes do grupo de Iniciação Científica em Cuidados Paliativos.

Nessas simulações, havia um paciente simulado com doença terminal que relata ao seu médico assistente que tem dúvidas sobre a continuação do tratamento e a qualidade de vida que isso tem lhe trazido. Num segundo momento, o paciente simulado informa ao seu médico assistente, durante uma consulta ambulatorial, que não quer mais manter o seu tratamento. E a terceira parte dessa simulação ocorre em ambiente de pronto atendimento, com o paciente simulado em franco sofrimento, relatando desejo de cuidados paliativos e a familiar solicitando que seja realizado todo o esforço possível para a sobrevivência do paciente.

RESULTADOS

A análise das informações coletadas nas entrevistas dos 13 participantes foi realizada após a leitura detalhada e cuidadosa de todo o material, transcrito na íntegra. Isso possibilitou evidenciar os conteúdos que respondiam às perguntas iniciais da pesquisa.

Após a leitura, seguiu-se a organização do material por categorias. De acordo com os elementos, passos e critérios metodológicos mencionados anteriormente, as informações obtidas foram classificadas e dispostas em duas categorias e oito subcategorias. A primeira diz respeito à dignidade da pessoa humana e autonomia do paciente, envolvendo termos e expressões bastante empregados nas respostas, como respeito aos valores éticos e profissionais, cuidados paliativos, qualidade de vida e ortotanásia. Na segunda categoria, conhecimento sobre diretivas antecipadas de vontade, observa-se a periodicidade das expressões terminalidade da vida, qualidade de vida, direito e escolhas do paciente, e decisão terapêutica.

Dessa forma, foi possível subdividir as categorias em subcategorias de acordo com os termos-chave embasados nas respostas dos estudantes. Das respostas dos estudantes, foram ressaltados os conteúdos observados de forma mais recorrente, a saber:

  • No caso da categoria 1 - dignidade da pessoa humana e autonomia do paciente -, selecionaram-se as seguintes citações, que permitiram a identificação das subcategorias citadas entre parênteses:

Estudante K: Que a paciente tomou a decisão pela decisão terapêutica que mais lhe deixaria em paz. Independente da sua escolha, meu papel como médica é oferecer conforto e alívio na forma de cuidados paliativos. Se a decisão da paciente é abster-se do tratamento, ainda assim meu dever é fornecer a melhor qualidade de vida, o melhor cuidado paliativo, mesmo nessa situação (valores éticos e profissionais).

Estudante E: Buscar saber sobre o caso da outra paciente com a médica em questão é o serviço referência em que ela acompanhava! Solicitar uma conversa com a familiar em ambiente tranquilo, perguntar o que ela entende sobre cuidados paliativos, sobre a doença da mãe de sua percepção! Perguntar se ela já ouviu falar em diretivas antecipadas de vontade e explicar que para a paciente todo esse processo pode ser muito mais doloroso que para a família que quer mantê-la viva pelo tempo mais prolongado! E respeitar sempre a vontade do paciente, pois lhe é um direito! (cuidados paliativos).

Estudante A: Para mim, definiria isso como liberdade de escolha e qualidade de vida. A paciente, ciente da sua terminalidade da vida, tem total liberdade de escolher o que ela quer para ela, e cabe a nós acatarmos essa decisão. A paciente opta pela qualidade de vida que tanto sente falta, o que, portanto, cabe a nós darmos o suporte para que recupere isso. Após isso a escolha da paciente, em primeiro momento confirmaria com a paciente se é o que ela deseja, se ela não gostaria de alguma ajuda de outros serviços como psicologia. Se é o que ela realmente busca, iria aceitar e buscar trazer toda a qualidade de vida que a paciente deseja. Permitir que ela faça o que quer, com as devidas providências. Liberdade de escolha para a paciente, porém com todas as orientações devidas (qualidade de vida).

Estudante F: Primeiro admitiria a paciente e encaminharia para ser medicada para a dor. Nesse tempo tentaria saber mais da história médica da paciente e conversaria com a filha, explicando o quadro da doença e se há ou não possibilidade de cura, respeitando o desejo da paciente em não mais se submeter ao tratamento (ortotanásia).

  • Em relação à categoria 2 - conhecimento sobre diretivas antecipadas de vontade -, foram selecionadas as seguintes citações:

Estudante A: A paciente, ciente da sua terminalidade da vida, tem total liberdade de escolher o que ela quer para ela, e cabe a nós acatarmos essa decisão. A paciente opta pela qualidade de vida que tanto sente falta, o que, por tanto, cabe a nós darmos o suporte para que recupere isso. Após isso a escolha da paciente, em primeiro momento confirmaria com a paciente se é o que ela deseja, se ela não gostaria de alguma ajuda de outros serviços como psicologia. Se é o que ela realmente busca, iria aceitar e buscar trazer toda a qualidade de vida que a paciente deseja. Permitir que ela faça o que quer, com a devida prudência. Liberdade de escolha para a paciente, porém com todas as orientações devidas (terminalidade de vida).

Estudante K: Para mim, a decisão do paciente deve ser respeitada, o mesmo reconhece a terminalidade da vida, não cabendo a mim julgamentos e decisões por ele, como obrigá-lo a fazer um tratamento muito invasivo que só diminua sua qualidade de vida e torne o fim de sua vida conturbado e de muito sofrimento; assim, apresentaria a os cuidados paliativos, explicando como funciona, quais os objetivos e aproximação que pode haver com a família (terminalidade de vida).

Estudante L: Sim! Quando ela decidiu que não queria continuar a quimio, nem diálise, nem internação, nem reanimação (qualidade de vida).

Estudante C: Explicaria pra filha da paciente que é direito da mãe e sobre a autonomia da mãe dela sobre a decisão da conduta; explicaria sobre termos que a senhora poderia fazer sobre suas vontades e administrar o medicamento para alívio da dor. (direito e escolhas do paciente).

Estudante D: Respeito a decisão da paciente. E explico ao familiar que essa decisão deve ser respeitada, por mais triste que seja para a família (direito e escolhas do paciente).

Estudante F: Sei que é uma situação difícil, mas eu abordaria a família para um tratamento psicológico, para o convencimento da filha e para uma abordagem de cuidados paliativos (pois eles precisam também desse cuidado) e tentaria cumprir com os desejos da paciente, pois entendo que é um direito de qualquer paciente enquanto apresenta sua consciência (direito e escolhas do paciente).

Estudante E: Buscar saber sobre o caso da outra paciente com a médica em questão é o serviço referência em que ela acompanhava! Solicitar uma conversa com a familiar em ambiente tranquilo, perguntar o que ela entende sobre cuidados paliativos, sobre a doença da mãe de sua percepção! Perguntar se ela já ouviu falar em diretivas antecipadas de vontade e explicar que para a paciente todo esse processo pode ser muito mais doloroso que para a família que quer mantê-la viva pelo tempo mais prolongado! E respeitar sempre a vontade do paciente, pois lhe é um direito! (direito e escolhas do paciente).

Estudante L: Sim! Quando ela decidiu que não queria continuar a quimio, nem diálise, nem internação, nem reanimação (direito e escolhas do paciente).

Estudante B: Eu conversaria com a família tentando demonstrar que ela está em perfeita saúde mental e que essa escolha só pode ser feita por ela. Tentaria mostrar novamente os lados positivos do tratamento e os negativos. Encontraria terapia que dentro das condições de saúde dela permitisse a redução da dor sem causar outros problemas (decisão terapêutica).

Estudante D: Eu iria tratar a dor com medicação e iria respeitar a opção da paciente, conversaria com a filha sobre a decisão da mãe e que é muito importante o apoio de toda a família nesse momento (decisão terapêutica).

DISCUSSÃO

Dignidade humana e cuidados paliativos

Em uma perspectiva conceitual, a dignidade da pessoa humana é, segundo Bonavides et al. (2009)14, um conceito amplo e complexo: “um conjunto de condições sociais, econômicas, culturais e políticas” (p. 21). Um conceito de difícil entendimento, mas de fácil afirmação. Historicamente, o princípio da dignidade da pessoa humana teve sua origem nas Revoluções Americana e Francesa, no século XVIII, cuja base foi a busca da tríade felicidade, liberdade e igualdade15.

No Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana está embutido na Constituição Federal16, no artigo 1º, III, no título I “Dos princípios fundamentais”, como fundamento do Estado Democrático de Direito, ao lado de soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e pluralismo político. Moraes (2015)17, por sua vez, afirma que a dignidade da pessoa humana é um princípio que “concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas” (p. 75). A dignidade seria, segundo ele, “um valor espiritual e moral inerente à pessoa” que se manifesta na “autodeterminação consciente e responsável da própria vida” (p. 21)17.

Nesse sentido, a dignidade está intrinsecamente envolvida com o cuidar do paciente no estágio de fim de vida, por meio dos cuidados paliativos que preservam a dignidade humana. O conceito de cuidados paliativos é definido pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos18 como uma abordagem que melhora a qualidade de vida, com identificação precoce e correta da dor, além do manejo de outros problemas psíquicos, sociais e espirituais do paciente.

Para que se garantam a qualidade de vida, o bem-estar, o conforto e os dignidade humana, os cuidados paliativos devem ser pautados nos cuidados à pessoa, valorizando as necessidades do paciente de forma que ele receba informações adequadas e culturalmente apropriadas sobre seu estado de saúde e seu papel nas tomadas de decisão acerca de seu tratamento19.

Decisão terapêutica e autonomia do paciente

No que tange à decisão terapêutica, não há obrigação de o profissional médico prolongar a vida do paciente cujas perspectivas de cura já se exauriram, cabendo a este ou a seu representante legal decidir a respeito da continuação do tratamento, contando com todas as informações disponíveis sobre as alternativas terapêuticas. Dessa forma, preservam-se a autonomia individual e a dignidade do paciente, que receberá os cuidados necessários ao alívio de seu sofrimento. Permite-se ainda a possibilidade de o paciente ou seu representante legal solicitar alta hospitalar, de modo que o indivíduo doente possa vivenciar o processo da morte com mais dignidade e humanidade ao lado das pessoas que mais ama19),(20.

A decisão terapêutica só se valida após exaustiva informação acerca do estado de saúde do paciente e possibilidades de cura ou morte. Pode-se evidenciar nas respostas dos estudantes que a escolha terapêutica é uma forma de se respeitar a autonomia de escolha do paciente.

O próprio conceito hipocrático, historicamente conhecido, baseou-se nos princípios de alívio da dor, redução da nocividade da patologia e renúncia a tratamentos quando a medicina não é mais capaz de colaborar para a reversão do quadro. Na atualidade, houve a publicação da Resolução nº 1.995/2012 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que reconhece a validade das DAV e ampara o médico que seguir suas determinações5. Tal resolução, embora tenha força normativa, cujo descumprimento dos atos previstos fere o Código de Ética Médica21, não encontra regulamentação no Código Civil22.

É fundamental manter o equilíbrio entre o conhecimento científico e o humanístico, de modo a recuperar a dignidade da vida e a qualidade da morte. Como a morte é uma evolução gradual do processo vital, do ponto de vista filosófico, e mesmo ontológico, existem vários conceitos que repercutem no campo da ética e do direito de forma complexa.

Diretivas antecipadas de vontade e direitos de escolha do paciente

Com o objetivo de reforçar a importância da autonomia do paciente no fim de vida, cita-se as DAV que, na Resolução nº 1.995/2012 do CFM5, são definidas como os desígnios postos pelo paciente na decisão de tratamentos a que deseja, ou não, ser submetido, especialmente quando incapacitado para se expressar, além de esclarecer questões limítrofes, inclusive quanto à hipótese de manifestação pelo representante designado do paciente5.

Por meio dessa mesma resolução, cabe ressaltar que não é uma faculdade dos médicos escolher se a seguem ou não. Se não fizerem conforme o disposto, serão responsabilizados no mínimo administrativamente, uma vez que as resoluções são atos emanados dos plenários do CFM e de alguns dos Conselhos Regionais de Medicina que regulam temas de competência privativa e dessas entidades em suas áreas de alcance, como os órgãos supervisores, normalizadores, disciplinadores, fiscalizadores e julgadores da atividade profissional médica em todo território nacional23.

Em resposta às condutas adotadas pelo estudante de Medicina na simulação, diante da solicitação do paciente simulado, muito se observa a preservação do direito de decisão do paciente por meio do processo de convencimento e aceitação por parte da filha. É muito comum na prática médica o paciente solicitar que medidas invasivas infrutíferas sejam evitadas, mas os familiares se negarem ou não aceitarem. Percebe-se nas respostas dos estudantes uma maturidade em relação ao princípio bioético da autonomia e ao direito constitucional da dignidade e da liberdade de escolha, sem desamparar as necessidades de cuidados.

Dessa forma, cabe também ao médico o dever de informar ao paciente. Esse dever está garantido na Constituição Federal de198816, em seu artigo 5º, inciso XIV: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo de fonte, quando necessário ao exercício profissional”16. Tal dever de informação também tem previsão no próprio Código de Ética Médica21, segundo o qual, em seu artigo 34, é vedado ao médico “deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal”. Fica claro, portanto, que o médico tem o dever de informar o paciente sobre tratamento a que deverá ser submetido.

Ortotanásia

A ortotanásia é definida como a “morte em seu tempo certo”, o que remete à renúncia de tratamentos e procedimentos fúteis e desnecessários, de modo a evitar a distanásia, sendo possível optar ou não pelos métodos paliativos de tratamento para controlar a dor e manter a qualidade de vida. Essa reflexão já era realizada na Antiguidade por Hipócrates, quando pregava que o médico deve curar quando possível, aliviar quando necessário e consolar sempre quando não há mais nada a fazer sob o aspecto curativo24.

A ortotanásia é um procedimento previsto na condição de procedimento ético-médico, por conta da Resolução nº 1.805 do CFM, de 9 de novembro de 20064. Nela o CFM permitiu que o médico interviesse no procedimento que prolongasse a vida do paciente em fim de vida, respeitando a sua vontade ou de seu representante legal4.

Nesse sentido, ao considerar a possibilidade ou não de cura do paciente e a necessidade de medicar para a dor independentemente da conduta seguinte, o estudante, ao assistir à simulação, demonstrou noções básicas ligadas ao conceito de ortotanásia.

Terminalidade e qualidade de vida

A necessidade da compreensão acerca da terminalidade da vida, processo decorrente do exaurimento dos esforços para restaurar a saúde do enfermo, que traz à tona a morte iminente, inexorável e prevista, é fundamental, principalmente porque, nos tempos atuais, a tecnologia e os métodos invasivos não apenas aumentaram a longevidade, mas também retardaram o processo de morte e prolongaram a existência, ainda que não sejam capazes de assegurar a qualidade de vida25.

A terminalidade da vida advém com desconforto e angústia consideráveis principalmente nos doentes oncológicos e vítimas de acidentes neurovasculares degenerativos ou acidentais. Para tanto, dilemas éticos especiais são trazidos à tona, dependentes do meio cultural e das convicções religiosas em que se vive, assim como dos meios econômicos e sociais destinados à saúde26.

Portanto, abordagens destinadas a manter a vida do paciente em terminalidade a qualquer custo são insuficientes, exageradas, desnecessárias e ignoram o sofrimento do doente e de seus familiares. No cenário simulado, apesar de ser um fato fictício, mostra-se o quanto é árduo para a família ter que reconhecer a terminalidade da vida de seu ente querido. Por isso, é imprescindível que o profissional da saúde explique que, por vezes, o paciente é mantido vivo graças a tratamentos que provocam mais dor do que alívio e conforto. Do ponto de vista bioético, essas observações não seriam uma reprovação da medicina tecnológica, e sim um estímulo à reflexão sobre a conduta a ser tomada diante da inevitável mortalidade humana26.

Dentro do conceito cultural de que cabe ao médico preservar a vida a qualquer preço, não deve ser desincumbido do dever de informação, explicando ao paciente e aos familiares o alcance real de uma determinada terapêutica, sem que com isso fira a dignidade de um paciente, cuja cura não mais exista, e os cuidados paliativos são a opção de um conforto ao corpo já muito comprometido. Assim, estando o paciente devidamente informado e esclarecido, cabe a ele a opção de limitar ou suspender o tratamento ineficaz, com respaldo nas garantias constitucionais, que não podem ser descartadas, uma vez que são garantias e não opcionalidades25.

CONCLUSÕES

Por causa da ausência de legislação sobre as DAV, há muita insegurança e desconhecimento tanto de pacientes quanto de médicos.

Com as entrevistas realizadas com os estudantes, pôde-se observar que muitos já têm conhecimento sobre DAV, porém há insegurança em alguns no que concerne a acatar a decisão do paciente quando contrária à da família. Não se deve aplaudir o sobrevivente, nem usar termos como “perdeu” ou “ganhou” uma batalha. Os médicos não estão em guerra com a doença, não há fracasso quando alguém morre.

Essa questão deve ser discutida em vários âmbitos e momentos, em conjunto com vários temas e situações. Deve-se permitir que o estudante sinta a dor ao dar uma notícia de doença ou óbito. Assim, serão formados profissionais mais empáticos e conscientes do seu papel ao mostrarem que não estão lidando somente com o corpo biológico do paciente, mas também com uma vida cheia de histórias, e que, em determinado momento, como médicos, farão parte dessa história também.

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2Avaliado pelo processo de double blind review.

FINANCIAMENTO Declaramos não haver financiamento.

Recebido: 26 de Janeiro de 2022; Aceito: 21 de Março de 2023

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CONFLITO DE INTERESSES

Declaramos não haver conflito de interesses.

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