INTRODUÇÃO

Memes são formalmente conceituados como uma ideia ou um comportamento que se espalha de uma pessoa para outra em uma cultura¹; apesar disso, são frequentemente representados pelo uso de imagens e palavras humorísticas. Em uma definição mais atual, o meme é apresentado como um fragmento cultural, tipicamente sob a forma de uma piada, que ganha influência por meio da transmissão on-line². Atualmente, existem relatos do uso de memes na educação como estratégia pedagógica^3)-(5. Existem evidências de que, quando os discentes são incentivados a produzir seus próprios memes, há a promoção do pensamento crítico, além de os estudantes se engajarem mais engajados no próprio processo de aprendizado⁵. Assim, aliar essa ferramenta humorística à educação é uma oportunidade de fortalecer o aprendizado de forma leve e lúdica, promovendo cuidado e afeto no ambiente acadêmico.

Para Vasconcelos⁶, o ato de cuidar dá-se a partir do reconhecimento do outro e dos problemas passíveis de ser enfrentados em seu contexto de vida, colocando à sua disposição as condições por eles exigidas. Assim, esse conceito de cuidado se aproxima da compreensão ético-crítico-política de Paulo Freire sobre a educação repleta de noções cuidadoras, uma vez que a pedagogia freiriana prega a inseparabilidade entre a prática social e o compromisso com a transformação da realidade⁷. Por esse motivo, pode-se afirmar que, na pedagogia de Paulo Freire, o ato de educar é um ato de cuidado, na mesma medida em que o ato de cuidado é educativo⁷, haja vista que a educação em Freire é prática social consoante a uma realidade em transformação e direcionada às demandas de seu público⁷. Na educação médica, aplica-se tal concepção quando o ato pedagógico constrói o cuidar com os discentes e atua, ainda, como referência e cuidado para os profissionais da saúde, de modo atento às necessidades de seu público. Com o advento da pandemia de Covid-19 e os desafios impostos pela reestruturação das práticas de ensino no ensino remoto, além de sentimentos de luto, abalo e ansiedade que se fizeram presentes nesse período, evidenciaram-se a importância e a necessidade do cuidado e do afeto na educação médica.

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de graduação em Medicina explicitam a necessidade de integrar à educação médica metodologias de ensino que prezam o protagonismo estudantil na construção de conhecimento⁸ e preconizam uma formação humanista, crítica, reflexiva e ética atuante nos diferentes níveis de atenção à saúde⁸. Desse modo, estratégias que promovem a expressão de sentimentos de forma livre, lúdica e criativa são práticas que promovem o cuidado e contribuem para uma formação humanista como preconizado nas DCN do curso de graduação em Medicina. Diante disso, o uso dos memes como uma forma de fortalecer o aprendizado e incentivar o cuidado e a amorosidade entre os discentes corrobora a perspectiva freiriana da educação e as DNC, e mostra-se, então, uma estratégia oportuna para a educação médica.

O objetivo deste relato é, portanto, compartilhar uma experiência bem-sucedida da utilização de memes para avaliação do semestre, como uma prática de cuidado e expressão de sentimentos, no componente curricular de Saúde Coletiva de um curso de Medicina em uma universidade federal brasileira.

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Este relato descreve a experiência de utilização de memes como ferramenta de feedback para a avaliação final do semestre do componente curricular de Saúde Coletiva III do curso de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Realizou-se a atividade durante a última aula do componente que, por causa da pandemia de Covid-19, foi adaptado e ministrado majoritariamente de maneira virtual pela plataforma Microsoft Teams. O acesso e a capacitação dos docentes para a utilização dessa plataforma foram garantidos pelo apoio da UFU.

Na medida em que a construção deste relato obedece aos critérios descritos no item VIII do artigo 1º da Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde, não é necessária a submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos⁹.

É importante destacar que o módulo teve como foco a aprendizagem dos principais conceitos relacionados à Promoção e Educação em Saúde, e uma das metodologias de ensino utilizadas foi a Aprendizagem Baseada em Equipes. Assim, no último encontro, o momento de feedback teve início com os alunos reunidos nas equipes com as quais haviam trabalhado ao longo do semestre. Nos encontros, os estudantes foram orientados a compartilhar mensagens salutogênicas em relação aos colegas, ou seja, cada aluno deveria pontuar as fortalezas e as contribuições dos colegas de grupo ao longo do semestre. É importante lembrar que a salutogênese é um conceito que se baseia na busca do bem-estar por meio dos ativos de saúde, sem focalizar a enfermidade do paciente, com o intuito de empoderar os indivíduos, por meio do conhecimento de suas próprias fortalezas, para que sejam ativos no processo de promoção de seu próprio bem-estar¹⁰. Essa dinâmica foi feita com o intuito de promover a amorosidade e uma mensagem de esperança entre os alunos. No contexto da educação popular em saúde, a amorosidade consiste em um princípio que permite uma prática educacional humanizada e fundamentada na capacidade crítica, sendo esse processo inspirado e baseado no amor, no afeto e no acolhimento. Sendo assim, ela contribui para o desenvolvimento de um espaço de bem-estar, escuta e emancipação no processo educacional, bem como permite a ampliação do diálogo nas relações de cuidado^{11), (12}. Com isso, buscou-se aplicar a esperança do verbo esperançar proposto por Paulo Freire - aquela que não está ligada ao esperar, mas ao esperançar que alude à ação, ao construir, ao levantar-se e levar ideias e princípios adiante¹³.

Em seguida, ainda nas pequenas equipes, os discentes foram orientados a criar memes que refletissem suas principais percepções acerca do módulo, ou seja, que destacassem os momentos mais marcantes e os aprendizados compartilhados ao longo do semestre. As figuras 1, 2 e 3 mostram alguns dos memes criados pelos estudantes. Além de trazerem descontração e cuidado para o ambiente pedagógico, eles foram uma forma de consolidar e aplicar alguns dos conceitos adquiridos com o módulo. Nesses três memes, por exemplo, os alunos trabalharam os conceitos de promoção de saúde, prevenção quaternária e salutogênese. Após a criação do meme, o grupo deveria eleger um “momento a-há”, ou seja, aquele que, na vivência dos estudantes do grupo, foi o mais marcante e transformador do módulo. A ideia de eleição desse momento (“a-há”) surgiu de atividade da qual participaram os docentes no Programa Faimer Brasil.

Fonte: Construído pelos estudantes da turma a partir de imagens de domínio público disponíveis na internet.

Figura 1 Meme sobre promoção de saúde. 

Fonte: Construído pelos estudantes da turma a partir de imagens de domínio público disponíveis na internet.

Figura 2 Meme sobre prevenção quaternária. 

Fonte: Construído pelos estudantes da turma a partir de imagens de domínio público disponíveis na internet.

Figura 3 Meme sobre salutogênese. 

Em seguida, a turma toda se reuniu por videochamada, e um representante de cada equipe fez o feedback apreciativo do semestre utilizando o meme criado, além de compartilhar o “momento a-há” elegido por sua equipe. A partir dessa troca de sentimentos, lembranças e experiências, desencadeou-se naturalmente uma conversa entre alunos e professores sobre os desafios vividos no momento de pandemia e de ensino remoto, e esse fechamento dialogado foi muito importante para o fortalecimento de laços e para a amenização de angústias expressas pelos estudantes. Por fim, o momento final do feedback consistiu no registro do encontro por meio de um print da tela.

DISCUSSÃO

Os memes são recursos concebidos para transmitir informações sobre um contexto cultural relacionável associado ao humor inteligente, características que os tornam um importante instrumento de comunicação no meio digital¹⁴. Na experiência compartilhada neste relato, os discentes aplicaram essa ferramenta nos aprendizados do módulo de Saúde Coletiva, os quais abordavam a problematização de conceitos de saúde com vista à melhor compreensão do processo saúde-doença, além de conceitos como promoção da saúde, salutogênese, modalidades de prevenção de agravos e educação popular em saúde. A partir disso, foi possível refletir a respeito do uso dos memes na educação e perceber como essa ferramenta didática promove uma abordagem engajadora e ativa, facilitando a aprendizagem.

Apesar de ser, ainda, um recurso pouco explorado, os relatos acerca do uso dos memes como estratégia de aprendizagem têm crescido, no entanto não foram encontrados exemplos do uso de memes na disciplina de Saúde Coletiva. Underwood et al.³ relataram uma atividade em que memes da internet são apresentados aos alunos, os quais são convidados a conectar as informações aprendidas no módulo ao meme, como uma forma de revisão de conteúdo para o exame final. Já Wells⁵ compartilha em seu trabalho uma experiência em que os estudantes são desafiados a criar o seu próprio meme relacionado ao cenário político dos Estados Unidos, com o intuito de promover o pensamento crítico. Os memes também já foram utilizados no curso de Farmácia⁴ e no aprendizado de fisiologia renal¹⁴.

Como a atividade proposta se desenvolveu em equipes, foi dada a oportunidade de os estudantes interagirem no processo de criação dos memes, o que demanda o entendimento dos conceitos apresentados no módulo e desenvolve uma comunidade de aprendizado, à medida que os alunos debatem tanto sobre os conceitos quanto sobre o conteúdo presentes nos memes criados. Ademais, quando se compartilhou o meme criado com o resto da turma, incorporaram-se a participação e o envolvimento dos estudantes na discussão, estimulando o sentimento de pertencimento, o qual desempenha um papel importante na vida escolar e é relacionado a um melhor desempenho acadêmico¹⁵. O sentimento de pertencimento pôde ser constatado, por exemplo, em um novo hábito curioso que surgiu na turma: a criação e o compartilhamento de memes entre os estudantes, como uma forma de comunicação sobre eventos cotidianos na faculdade, promovendo expressão criativa, respeitosa e, ao mesmo tempo, alívio e manejo do estresse no dia a dia. Percebeu-se que os estudantes conseguiram se integrar e se identificar mais como turma diante da significação do cotidiano por meio dos memes. Assim, foi interessante observar como o encontro promovido pelo módulo repercutiu nos estudantes para além do semestre letivo.

A abordagem do uso dos memes proposta neste relato, além de promover a revisitação dos conceitos aprendidos, permitiu que os alunos aplicassem os aprendizados do módulo e melhor compreendessem o conteúdo em discussão. De fato, os memes na educação são apresentados como uma ferramenta de recordação e de conexão de informações e de conceitos³, além de o elemento de humor presente nos memes adentrar como um atributo a potencializar esse aprendizado. Estudos já demostraram que o humor aumenta o engajamento dos alunos e facilita o aprendizado e a memória^{16)- (18}, ou seja, o ambiente acolhedor e lúdico desenvolvido nessa atividade pode ter contribuído para uma aprendizagem mais significativa.

A aprendizagem ativa é uma abordagem de instrução em que os discentes são chamados a fazer, colaborando ativamente para a construção de seu conhecimento, em vez de simplesmente assistir, ouvir e tomar notas¹⁹. A criação de memes, como um processo que demanda o estabelecimento de associações entre conceitos adquiridos no módulo e elementos já presentes na sua estrutura cognitiva, enquadra-se como uma postura ativa de aprendizado. Ademais, as evidências apontam o uso dos recursos ativos e centrados no aluno como metodologias capazes de potencializar a aprendizagem e o desempenho em avaliações²⁰.

Para Coll²¹, a construção de uma aprendizagem significativa se configura em um processo de continuidade, em que o discente relaciona o conteúdo aos conhecimentos prévios, e de ruptura, a partir de desafios que serão trabalhados pela análise crítica para solucionar problemas e ampliar as possibilidades de conhecimento. Diante disso, a criação de memes a partir dos conhecimentos adquiridos no módulo de Saúde Coletiva demandou um movimento de continuidade e ruptura, ao exigir que os discentes revisitassem os conceitos trabalhados e criassem novas associações mediante uma avaliação crítica. Assim, o estudante adquire um papel ativo e torna-se o protagonista do seu processo de aprendizado, construindo um conhecimento crítico e reflexivo.

Outra vantagem da utilização dos memes percebida durante a atividade relatada tem relação com o desenvolvimento de habilidades de feedback, uma ferramenta essencial à melhoria da educação médica. O feedback consiste em dar um parecer sobre as atitudes ou o desempenho de determinada pessoa em relação a alguma atividade²², e, no contexto da educação médica, seu intuito é orientar o desempenho futuro em ações semelhantes²². Essa ferramenta, quando bem utilizada, tem o potencial de melhorar tanto as habilidades clínicas quanto as habilidades de convivência dos estudantes e se mostra de fundamental importância em atividades que geram uma construção coletiva do conhecimento, como a Case-Based Learning (CBL) e outras metodologias ativas²³. Como o feedback deve ser realizado por toda a equipe para que seja mais eficiente, ele conta com uma autoavaliação, uma avaliação sobre a atividade em si, sobre os colegas de classe envolvidos e sobre a condução pelos docentes, e esses últimos também farão suas considerações sobre a sessão²³.

Percebeu-se que o conteúdo da fala dos professores impacta diretamente a ação dos alunos e que eles precisam de uma postura receptiva para que os estudantes se sintam confortáveis para falar²³. Ainda nesse sentido, uma pesquisa realizada entre estudantes de Medicina mostrou que o feedback não deve ser um processo passivo em que o aluno apenas ouve o que foi observado do seu comportamento, mas sim um momento ativo de trocas que permite a aquisição das habilidades necessárias ao seu aprimoramento, sendo um processo dialogado, e não uma ditadura de comportamento²⁴. Logo, percebe-se que o feedback baseado em memes cumpre esse papel, uma vez que promove um espaço mais ativo e autonômico aos discentes, permitindo a expressão de seus sentimentos e suas considerações sobre a experiência.

Durante a pandemia, o processo de realização de feedbacks se tornou mais difícil por causa do distanciamento social, de modo que foi preciso buscar novos meios para que essa prática continuasse a ser realizada²³. Diante dessa demanda, surgiu a estratégia de utilizar memes para os alunos expressarem aquilo que o módulo e suas atividades lhes proporcionaram, e, além do simples ato de ensinar, ela também se mostrou uma forma salutogênica de realizar o feedback por permitir a expressão livre e lúdica dos sentimentos. Assim, houve uma junção da salutogênese e do feedback, que é indispensável para a formação dos futuros profissionais, sendo nomeada por nós autores de “Aprendizagem Baseada em Memes”.

Dessa forma, a partir de nossa experiência, a “Aprendizagem Baseada em Memes” foi por nós definida como método de ensino-aprendizagem que, a partir de memes, permite o debate e a reflexão crítica sobre um determinado tema de relevância para a educação dos profissionais da saúde. Para seu bom funcionamento, os objetivos de aprendizagem devem ser claros e bem articulados com o uso desses recursos estéticos, e ela sempre deve terminar com a autoavaliação e feedback sobre o processo. Ademais, regras sobre o uso das imagens devem estar bem estabelecidas antes do início da atividade, evitando o uso de imagens que não sejam de domínio público e proibindo o uso de imagens ou discursos que de alguma forma possam constranger ou ofender os participantes da atividade e outras pessoas em geral.

Metodologias de ensino que prezam o protagonismo e o bem-estar dos alunos se mostram muito eficientes e efetivas para o aprendizado, o que demonstra a importância da participação efetiva dos discentes no processo de ensino-aprendizagem, em especial nas metodologias ativas⁸. Então, durante as sessões de feedbacks, o ato de ouvir o que os discentes têm a dizer para que o método possa ser melhorado para as próximas turmas que irão fazer a atividade está alinhado com a proposta das DCN, que visam proteger esse papel central do aluno na aprendizagem⁸. Ademais, a atividade proposta teve em vista o aluno como um todo, mostrando que o sucesso nos objetivos da atividade decorreu do fato de que a atenção dos docentes não estava apenas no processo de coconstrução de competências (conhecimentos, habilidades e atitudes), mas também no bem-estar coletivo, o qual tem grande interferência na aprendizagem.

Outro aspecto importante é a relevância da noção de cuidado no processo de ensino-aprendizagem, sobretudo no contexto atual, tendo em vista que a pandemia da Covid-19 é um momento que gera muito medo, abalo e, por vezes, luto. O isolamento social e a implantação do ensino remoto muitas vezes sobrecarregam alunos e professores, além de gerarem ansiedade por motivos variados²⁵, ou seja, métodos de ensino que permitam a construção de conhecimento de forma leve/lúdica são muito bem-vindos. Desse modo, o entendimento da educação como uma prática atenta às demandas dos alunos é de extrema importância, e o uso da inovação e de metodologias que prezam o bem-estar e o protagonismo do estudante em seu processo de aprendizagem é essencial.

A pedagogia freiriana entende que o conhecimento deve estar sempre alinhado à realidade vivida pelos estudantes, ou seja, a atenção dos docentes não deve estar apenas no processo de transmissão de conhecimento, mas também no bem-estar coletivo, que tem grande interferência na aprendizagem⁷. Afinal, como defendido por Paulo Freire, a educação é uma prática social consoante a uma realidade em transformação e deve ser, portanto, direcionada às demandas de seu público, pregando-se a inseparabilidade da pedagogia e do compromisso com a construção do mundo⁷.

Na educação médica, aplica-se tal concepção quando o ato pedagógico constrói o cuidar com os discentes, especialmente no contexto de pandemia, que evidencia a importância da educação como um ato de cuidado. Assim, estratégias que promovem a expressão de sentimentos de forma livre, lúdica e criativa são práticas que promovem o cuidado e contribuem para uma formação humanista, crítica e reflexiva, como preconizado nas DCN⁸. Por isso, entende-se que a “Aprendizagem Baseada em Memes” foi muito além do simples ato de ensinar, levando em conta as necessidades da turma e permitido que os alunos praticassem o feedback, uma atividade indispensável à formação, de uma maneira muito leve e lúdica.

CONCLUSÕES

A utilização de memes na sessão de feedback mostrou-se benéfica, criativa e salutogênica, além de ser uma estratégia que preza o cuidado e a expressão de sentimentos dos alunos, e, por isso, deve ser encorajada. Ademais, percebeu-se que muitas vezes a não eficiência do feedback se deve em grande parte à falta de preparo dos discentes em se expressar de forma clara, respeitosa e compreensiva ao mesmo tempo, o que necessita de modificações. A partir dessa experiência inicial, os docentes ampliam a utilização desse método, de modo a inseri-lo em momentos outros de avaliação por pares e autoavaliação, otimizar a expressão discente nos processos avaliativos e melhorar sua aplicação a partir do feedback discente.