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Educação: Teoria e Prática

versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.28 no.58 Rio Claro maio/mai 2018  Epub 01-Jan-2019

https://doi.org/60.18675/1981-8106.vol28.n58.p339-356 

Artigos

VOCAÇÃO, RESSONÂNCIA DO SER-AÍ

VOCATION, A RESONANCE OF DASEIN

VOCACIÓN, UNA RESONANCIA DEL DASEIN

João Cardoso de CastroI 

Murilo Cardoso de CastroII 

I Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro - Brasil. E-mail: joaocardosodecastro@gmail.com

II Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro - Brasil. E-mail: joaocardosodecastro@gmail.com


Resumo

Como entender a vocação? Faz ainda algum sentido pensar em talento, vocação, dom? A partir do pensamento de Heidegger, investiga-se a vocação como possibilidade existencial, como ressonância do ser-aí. Retomamos também o pensamento grego antigo no que tange a virtude, relacionando-a com a vocação. Consideramos o entendimento da vocação como fundamental no atual sistema de trabalho que tanto valoriza qualificações e aptidões. Todavia, a questão da vocação parece não ter mais sentido na sociedade moderna, especialmente nos países desenvolvidos, onde se conjuga uma diversidade de atividades humanas como nunca vista na história da humanidade, uma ampla gama de possibilidades de formação educacional e um prestígio salarial muito insidioso para algumas profissões. Talvez esse seja mais um sintoma do “esquecimento do ser” e até de seu abandono a partir da Modernidade. Não havendo reconhecimento e valorização do “aí-ser”, em que somos, em que se é, não há a escuta necessária ao chamado, à vocação por ser o que se é, não só como si-mesmo, mas também, em decorrência, como mim-mesmo.

Palavras-chave: Vocação; Ser-aí; Heidegger; Virtude; Dom

Abstract

What is vocation? Is there any sense in thinking about talent, vocation, gift? From Heidegger’s thought, vocation is investigated as an existential possibility, as a resonance of Dasein (German for “being there”). We also resume ancient Greek thought regarding virtue, relating it with vocation. We consider the vocation understanding as fundamental in the current working system, which values qualifications and skills so much. However, the issue of vocation seems to have no meaning in modern society, especially in developed countries, where there is a diversity of human activities unprecedented in human history, a wide range of educational possibilities and a very insidious salary prestige for some professions. Perhaps this another symptom of the “forgetting of being” and even of its abandonment since the beginning of Modernity. Without recognizing and valuing the Dasein in which we are, where one is, there is no necessary listening to the call, to the vocation to be what one is, not only as oneself, but also, as a result, myself.

Keywords: Vocation; Dasein; Heidegger; Virtue; Gift.

Resumen

¿Cómo entender la vocación? ¿Sigue siendo cierto pensar en el talento, vocación, don? Desde el pensamiento de Heidegger, se investiga la vocación como una posibilidad existencial, como la resonancia del Dasein. Se retoma también el pensamiento griego antiguo con respecto a la virtud, relacionándola con la vocación. Consideramos la comprensión de la vocación como fundamental en el sistema de trabajo actual que valora las cualificaciones y habilidades. Todavía la cuestión de la vocación parece no tener más sentido en la sociedad moderna, sobre todo en los países desarrollados, que combinan una variedad de actividades humanas como nunca vista en la historia de la humanidad, una amplia gama de oportunidades de educación y de un prestigio salarial muy insidioso para algunas profesiones. Tal vez esto sea más un síntoma del “olvido del ser” y hasta su abandono en la Modernidad. Si no hay reconocimiento y valoración de la “Dasein”, en lo que somos, en lo que lo es, no hay la escucha necesaria a la llamada, a la vocación de ser lo que es, no solo como uno mismo, sino también como resultado, como yo mismo.

Palabras clave: Vocación; Dasein; Heidegger; Virtud; Don

Introdução

A questão da vocação parece não ter mais sentido na sociedade moderna. Dadas as condições de organização do trabalho que vigoram em nosso tempo, este tema costuma ser rechaçado como uma fantasia romântica de outras eras. A multiplicidade da atividades humanas somadas a exorbitante desigualdade salarial entre as profissisões catalizam o desprestígio da vocação enquanto vértice de nossa atividade e excelência de nossa "ocupação" profissional. Entendemos que este arranjo é mais um dos sintomas daquilo que ficou conhecido, desde o pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger, como o “esquecimento do ser” (Seinsvergessenheit) e cujos desdobramentos configuram o seu abandono a partir da Modernidade. Diante deste cenário, não há reconhecimento nem valorização do ser no aí, em que somos, em que se é, não havendo possibilidade de nos colocarmos à escuta do chamado, o apelo à vocação por ser o que se é, não só como si-mesmo, mas também, em decorrência, como mim-mesmo, conforme vamos discutir no decurso deste artigo.

Entendemos “vocação”, no sentido etimológico do termo latino vocatio1, o que chama, apela a ser. Em seu original, podemos arriscar como o ter-a-ser, essência do ser-aí, este ser-e-ente que o somos a cada vez nós-mesmos e que se relaciona ele-mesmo a seu ser. Enquanto ente desse ser, ele é remetido à, responde à, se entrega à responsabilidade de assumir seu próprio ser. “Ser é o que nesse ente está sempre em jogo” (HEIDEGGER, 2006, p. 85).

Nesses termos é que nos dispomos a repensar a “vocação” como ressonância, vibração no ser-aí. Assim, como elaborar uma tentativa de repercutir o que for alcançado nesse pensar a vocação, sobre uma questão muito em voga nos tempos atuais, qual seja, o talento, ou o dom, para se ser o que se é. Questão levada ao extremo, quando se aplica, por exemplo, ao dom, ou talento para exercer uma profissão. Tomaremos como exemplo dessa análise a profissão de médico, por tudo que demanda enquanto ser humano, muito mais do que saber humano.

Utilizaremos, como principal referência, interpretações de leituras do pensamento grego antigo, em particular de Platão, e eventualmente dos pré-socráticos e Aristóteles. Complementaremos essa referência maior nos pondo à escuta de Heidegger (2006), em Ser e Tempo, especialmente do quinto capítulo da primeira seção (§§ 28-34) e de alguns de seus principais comentadores.

Vocação e ser-aí

O ser-aí enquanto ser é abertura, enquanto ente é o que somos nós mesmos, o que sou, cujo ser é sempre meu; um ente que necessariamente se relaciona com seu ser; assim, sendo, é essencialmente existência. O ser desse ente, o ser-aí, é para cada um de nós “meu” (jemeinig). Essa característica da existência, que a faz “minha”, , leva Heidegger (2006, p. 86) a dizer que o ser-cada-vez-meu (Jemeinigkeit) é um caráter geral de todo ser-aí que justamente me permite pronunciar sempre: “eu sou”, “tu és”.

Desde o princípio de sua existência, meu ser me é imposto como um ter-de-ser (Zu-sein). Enquanto o ser-aí é, ele realiza o seu ser. Essa tarefa não permanece uma meta exterior a cumprir, mas ela já é sempre realizada em cada um dos comportamentos, em cada uma das atitudes e das atividades do ser-aí: é uma tarefa à qual não pode escapar. É isso que significa a expressão ter-de-ser (Zu-sein). A maneira pela qual essa tarefa é reconhecida e assumida por cada um de nós, decide sobre a propriedade ou impropriedade, ou sobre a autenticidade ou inautenticidade, de nosso ser 2 .

Este ser-cada-vez-meu, “-sendo”, tem peso e função, e uma carga de “sempre-meu” consideráveis. E é assim que se fundamenta a importante distinção entre duas maneiras do ser-aí, ou modos de ser, que Heidegger (2006, p. 86) denomina existência própria e existência imprópria, ou autenticidade e inautenticidade. Entretanto, qualquer que seja sua maneira de ser, o ser-aí é sempre meu e se relaciona com seu ser como a sua possibilidade própria. Vale dizer que o ser-aí é sempre sua possibilidade, mas não a ‘possui’ como uma propriedade enquanto um ser-simplesmente-dado (Vorhandenheit). Sendo sua possibilidade, o ser-aí pode se perder ou se alcançar, ser autêntico ou inautêntico, próprio ou impróprio, ou ainda, ser ou não ser seu ser. Segue que, se o ser-aí é, em sua ipseidade, relação ao ser mesmo, reforça-se a ideia de que é o ser, ele mesmo, que é sempre meu.

A neutralidade específica do título ‘ser-aí’ é essencial porque a interpretação deste ente deve ser realizada antes de qualquer concreção fática. O ser-aí em sua neutralidade não é indiferentemente ninguém e todo mundo mas a positividade e o poder originários da essência. (HEIDEGGER, 1984, p. 136)

O ser-aí neutro não é, portanto, jamais tal ou tal existente encarnado de fato, mas a possibilidade de toda existência encarnada que se pertence a ela mesma. Não podendo, consequentemente, se confundir com a individualidade ôntica fática, o ser-aí não é, no entanto, a concreção indiferente de uma essência pretendidamente universal, a afirmação da neutralidade, equivalendo aqui àquela da individuação mais radical: a ipseidade (Franck, 1986, p. 33).

O ser-aí enquanto ipseidade, si-mesmo 3 , é o que cada um de nós é de modo próprio, autêntico. Autenticidade essa que se dá pela sintonia ser e no si-mesmo, e que dita a vocação, cujo eidos configura, uma vez contemplado, e orienta o “fazer” (poiesis) e o “atuar” (praxis), que compõem a vita activa. O ser-aí, a abertura do ser, é, portanto, “des-encobrimento” da verdade (aletheia) do ser. E assim cada um pode vir a ser o que é, o que tem vocação para ser, em plena justiça. Essa é a vocação primal de ser humano, a partir da qual clama o chamado por ser si-mesmo e por ser mim-mesmo, na constituição fundamental do ser-aí, qual seja, ser-no-mundo.

Vocação e Sorge

Todas essas considerações anteriores sobre vocação e ser do ser-aí devem doravante se entender com base em sua constituição fundamental - ser-no-mundo -, enquanto um fenômeno unitário constituído de momentos estruturais, mas não de simples partes reunidas. Heidegger adianta toda a problemática ligada à investigação de uma unidade estrutural não identitária para o fenômeno complexo da ipseidade, utilizando a expressão “ser-no-mundo”. Isto se dá porque estamos no campo da interioridade do ser humano, embora falando de mundo, que passa a ser a questão de exame enquanto fenômeno, até alcançar tanto a totalidade referencial, denominada mundo circundante (Umwelt), quanto a mundanidade (Weltlichkeit). Podemos resumir que o ser-no-mundo é a clareira do ser, em que somos, em que se é, em que os entes são. Nesse ser-aí, Sorge (cura), conceito nevrálgico do pensamento heideggeriano, é a vocação de conectar e manter conexo o que nessa clareira do ser se dá, vem ao encontro.

A totalidade existencial de toda a estrutura ontológica do ser-aí deve ser, pois, apreendida formalmente na seguinte estrutura: o ser do ser-aí diz anteceder-a-si-mesmo-no-já-ser-em-(no mundo)-como-ser-junto-a-(os entes que vêm ao encontro dentro do mundo). Esse ser preenche o significado do termo cura, aqui utilizado do ponto de vista puramente ontológico-existencial. Fica excluída dessa significação toda tendência ôntica como cuidado ou descuido. (HEIDEGGER, 2006, p. 259-260, grifo nosso)

Nesste sentido, o equívoco comum é o de utilizar o pensamento de Heidegger em apoio a uma visão insistente, desde a Idade Média, e definitiva a partir de Descartes, de “sujeito agente”. Essa noção de “sujeito” e ainda mais de “agente de meus atos” só admite algum sentido pelo pensamento heideggeriano, se devidamente enquadrada, contextualizada e relativizada, na sua condição de desdobramento último da cadeia do ser, em ser-aí, em si-mesmo, em mim-mesmo. O “” do ser não é um “fulano” ou um “beltrano” (por exemplo, um profissional de saúde ou um paciente). Ser-aí é a abertura do ser, em sua constituição clareira do ser, onde Sorge é a vocação por chamar a, convidar a, atrair a, ser o que somos enquanto ser-no-mundo, em que somos (como o ente “fulano”), em que mundo é horizonte, em que entes intra-mundanos são segundo modos de ser (ser-à-mão - Zuhandenheit, ser-subsistente - Vorhandenheit, co-presença - Mitdasein); em resumo, a constituição fundamental do ser-aí é a clareira do ser, em que se é por vocação.

A constituição fundamental do ser-aí é então ser-no-mundo, enquanto unidade de momentos estruturais, e jamais ser como ente dentro de um mundo, como ente maior. No , reflete o ser como ser-a ou ser-em, como ser-com, como ser-junto, dando-se na mundanidade, reflexões que são e estão no mundo; brilho do ser na clareira do ser, constituição fundamental ser-no-mundo. O “conhecimento” é dado nessa mesma condição unitária e unitiva de ser-no-mundo, e não obtido ou adquirido por um sujeito conhecedor sobre um objeto conhecido. Não há qualquer relação sujeito-objeto em que se dê o conhecimento, mas apenas seu dar-se nesta condição ser-no-mundo.

Da mesma maneira, a Sorge evidencia-se na clareira, nessa antecipação ou ser-lançado, que acompanha o ser-no-mundo que caracteriza a “preocupação” (Fürsorge) que o ser-aí sendo guarda em seu sendo no ser-Aí . Nessa existência fática do ser-aí, uma “projetada potencialidade-por-ser-no-mundo”, dá-se a absorção na Sorge ao mundo. “Do ponto de vista ontológico, porém, ser para o poder-ser mais próprio significa: em seu ser, o ser-aí já sempre antecedeu a si mesmo.” (ibid., p. 258) Enquanto totalidade originária de sua estrutura, a Sorge se acha, do ponto de vista existencial-a priori, “antes” de toda “atitude” e “situação” do ser-aí, o que significa dizer que ela se acha em toda atitude e situação fática como a vocação de ser humano, ser si-mesmo e ser mim-mesmo, no limite situacional dado.

Porque, em sua essência, o ser-no-mundo é cura, pode-se compreender, nas análises precedentes, o ser junto ao manual ;Zuhandenheit; como ocupação ;Besorgen; e o ser como co-presença ;Mitdasein; dos outros nos encontros dentro do mundo como preocupação ;Fürsorgen;. O ser-junto a é a ocupação porque, enquanto modo de ser-em, determina-se por sua estrutura fundamental, que é a cura. A cura caracteriza não somente a existencialidade, separada da facticidade e decadência, como também abrange a unidade dessas determinações ontológicas. A cura não indica, portanto, primordial e exclusivamente, uma atitude isolada do eu consigo mesmo. A expressão “cura de si mesmo”, de acordo com a analogia da ocupação e preocupação, seria uma tautologia. A cura não pode significar uma atitude especial para consigo mesma porque essa atitude já se caracteriza ontologicamente como anteceder-a-si-mesma; nessa determinação, porém, já se acham também colocados os outros dois momentos estruturais da cura, a saber, o já ser-em e o ser-junto-a. (HEIDEGGER, 2006, p. 260)

Engana-se a interpretação da cura como algo “bom”, em grande parte devida às traduções em outras línguas das obras de Heidegger, por exemplo, o inglês care, que significa em geral cuidado. Cura (personagem da mitologia romana; latim cura = ânsia), segundo a fábula de Higino proposta por Heidegger, é um deus demiurgo que modela o ser humano da argila da Terra. Assim, na fábula, Saturno só lhe concede o “tempo” devido, por sua apropriação da argila e fabricação do humano (no tempo), e, por conseguinte, indica esse fazimento do homem por Cura, a ânsia de seu apego e aderência à matéria, enquanto viva na forma humana temporal estiver habitada pelo espírito soprado por Zeus. Temos uma vocação às avessas, uma pseudo-vocação nessa ânsia de apego e aderência à matéria caracterizada Sorge, em sua decadência no ser-lançado do ser-aí.

Heidegger assim esclarece a Sorge como a própria essência do ser-aí, sua vocação que clama a ser-no-mundo, e, por conseguinte, podendo servir a autenticidade ou não do ser-Aí . Resumindo, a Sorge heideggeriana nada tem em comum com o “cuidado” de um ser humano qualquer, um profissional de saúde, por exemplo, pois de fato é a essência de todo ser-aí, ou seja, de qualquer ser humano, de qualquer profissional ou até mesmo de um terrorista, por mais chocante que isto possa parecer. A Sorge (a cura) é a condição de possibilidade da Besorge (ocupação) e da Fürsorge (preocupação), quaisquer que sejam elas.

O sentido fundamental da atividade fática da vida é a cura (curare). No “estar-ocupado-em-algo” está presente o horizonte dentro do qual se move a cura da vida: o mundo que a corresponde em cada ocasião. A atividade da cura se caracteriza pelo trato que a vida fática mantém com seu mundo. O até-onde da cura; e o com-que do trato; Umgang;. O significado do ser real e efetivo e o significado da existência do mundo se funda e se determina a partir de seu caráter: como o assunto mesmo do trato próprio da cura. O mundo está aí como algo do que já sempre e de alguma maneira nos curamos. O mundo se articula, em função das possíveis direções que adota a cura, como mundo circundante; Umwelt;, mundo compartilhado; Mitwelt; e mundo do si-mesmo; Selbstwelt;. Correlativamente, o curar-se expressa a preocupação pelos meios de subsistência, pela profissão, pelos prazeres, pela tranquilidade, pela sobrevivência, pela familiaridade com as coisas, pelo saber acerca de, pela consolidação da vida em seus fins últimos. (HEIDEGGER, 2002b, p. 35)

A Sorge (cura) é a estrutura de base da constituição fundamental do ser-aí, o ser-no-mundo, donde decorrem os outros existenciais elaborados na analítica existencial de Ser e Tempo. A Sorge vocaliza e dita o como a existência (ec-sistência) e “o sempre meu” se dão em um si-mesmo que desdobra em ocupação (Besorge) e preocupação (Fürsorge). Por esse desdobramento, a Sorge não se torna aparente a si mesma, pois em um primeiro momento é ocupação ou preocupação: é capturada pelo ente que vem ao encontro diretamente, permanece apegado e absorvido nesse ente, do qual sua própria estrutura tornou possível a aparição. A ocupação é o fato de tornar presente, o que faz da Sorge a raiz da mundização, do vir ao encontro de entes intramundanos, da vocação de cada ser-aí, sendo-no-mundo.

Eis por que ser frequentemente si-mesmo não pertence ao gênero de ser que é o nosso, pois nada é mais próprio, mais autêntico, à nossa existência, que se deixar tomar pelo movimento disto que nos ocupa: e é precisamente nesta tensão entre o que leva pelo apego às coisas a não ser si-mesmo e a possibilidade de vir a si-mesmo (genesthai = vir-a-ser?; converter-se?), que somos sempre questão para nós mesmos. Com toda a inquietude que assim anima o foro interior se faz constante a questão “quem sou eu?” ou “que sou eu?”. Mas ser si-mesmo não é encontrar uma suposta identidade autêntica ou própria, nem se afundar nas vertigens da introspecção, mas, a princípio, se manter resolutamente aberto ao que nos está presente, de maneira a lhe dar lugar em toda amplitude de seu sentido, e por aí sustentar e manter essa abertura do ser que é o foro mesmo de nossa existência. Tal é o movimento próprio da Sorge (ARJAKOVSKY et al., 2013, p. 684).

Exemplo: médico, uma vocação?

Alguns dos tratados do Corpus hippocraticum são especialmente consagrados à deontologia médica. Dentre eles consta um curto texto denominado “Lei” (JOLY, 1964, p. 207- 210), cuja origem é muito obscura e, embora fazendo parte da coleção de escritos ditos de Hipócrates, é tardio e possivelmente influenciado pelo estoicismo. Desse manifesto do médico "perfeito", extraímos esta valiosa citação para o que vamos doravante tratar:

Aquele a quem é destinado adquirir conhecimentos reais em medicina tem necessidade de reunir as condições seguintes: disposição natural, ensinamento, lugar favorável, instrução desde a infância, amor ao trabalho, tempo. Antes de tudo, há necessidade de disposições naturais. Tudo está em vão quando a natureza aí se opõe; mas quando ela põe ela mesma na melhor via, então começa o ensinamento da arte. O aluno deve apropriá-la pela reflexão, o aluno tomado desde a infância e posto em um lugar próprio à instrução. É preciso além do mais se consagrar ao trabalho um longo tempo, a fim de que o ensinamento, lançando profundas raízes, traga frutos felizes e abundantes. (ibid., p. 208-209)

A questão da vocação para ser médico deve contemplar condições, dentre as quais, citada em primeiro, as “disposições naturais” (gr. genesthai physios). Porém, qualquer profissão, incluindo a medicina, é, enquanto profissão, um professar, é um proferir, um pronunciar em fatos e atos humanos a excelência de ser humano, ou seja, uma vocação ou um vocacionar, ou uma nunciação. Cabe, portanto, nos indagarmos sobre o sentido dessas “disposições naturais”, e, tomando como exemplo, a “profissão” de médico.

Heidegger (2004, §25), em seu curso do semestre de inverno de 1920-1921, Introdução à Fenomenologia da Religião, aborda esta questão de genesthai (Gewordensein). Em seu comentário, Luiz Hebeche (2005, p. 102) opta por traduzir Gewordensein com as expressões “haver-se tornado” ou “tornar-se” (preferimos “vir-a-ser”), porém reconhece que nessa tradução perde-se o caráter “essencial-dinâmico” do alemão e mesmo do grego genesthai, do verbo grego genethenai, que tem a mesma raiz das palavras genesis e gignomai, com o significado de “a ação de tornar-se por oposição a ser”.

Na vida, segundo Heidegger (2004, p. 66), genesthai não é apenas qualquer incidente que se aprecie. Em vez disso, é incessantemente co-experienciada, e de fato, de tal maneira, que seu ser (Sein) agora é seu Gewordensein. Seu “haver-se tornado” é seu ser-aí. Nesse sentido, a genesthai é uma dechesthai ton logon, uma “aceitação da proclamação”, ou, como entendemos, uma aceitação da chamada, do apelo da vocação. O que nos leva a entender, num primeiro momento, as “disposições naturais” para ser médico, como um “vir-a-ser natural”, um “haver-se tornado naturalmente”, que enfatiza a physis enquanto eclosão, desabrochar, ser. Afirma também “ação de tornar-se por oposição a ser”, que é a condição mesma de estar-lançado (Geworfenheit), do ser-aí, ou de fundamentação deste , que nos faz lembrar a existencial disposição (Befindlichkeit, “encontrar-se”) e a tonalidade-afetiva (Stimmung 4 ). “Na medida em que traz originariamente o Dasein em seu Da, o ser-aí em seu , a Stimmung realiza, de fato, ‘a revelação primária do mundo’” (AGAMBEN, 2015, p. 73).

Este “encontrar-se” nada tem de espacial, mas muito de “afecção”, de um “achar-se” que facilmente decorre em “sentir-se”, o que nos leva ontologicamente ao que experienciamos: o humor, a “tonalidade afetiva” (Stimmung, Gestimmtsein), graças a qual estamos mais ou menos acordados ou desacordados a uma situação determinada (HEIDEGGER, 2006, p. 193). Essas traduções servem aqui apenas como ponteiros para uma aproximação de termos de difícil transposição para outras línguas. Assim é que Michel Haar (1975, p. 466) afirma: “para traduzir verdadeiramente Stimmung seria preciso poder de qualquer maneira adicionar em uma só palavra: vocação, ressonância, tom, ambiência, acorde afetivo subjetivo e objetivo”.

Marco Antonio Casanova esclarece, em nota de rodapé, à sua tradução da Introdução à Filosofia (2008, p. 7), o sentido corrente da palavra alemã Beruf que pode ser simplesmente traduzida por “profissão”, mas que ele prefere fazer notar o sentido do verbo rufen, que significa literalmente “chamar”. Beruf não designa, portanto, uma mera profissão, mas uma profissão que nasce da escuta a um chamado específico, a uma vocação. É desta maneira que esta citação de Heidegger (ibid.) faz todo o sentido, dentro do que vimos elaborando:

Por vocação profissional ;Beruf; não entendemos a sua alocação em uma classe social determinada e quiçá elevada. Por vocação profissional compreendemos a tarefa interna que o ser-aí reserva para si no todo e no essencial de sua existência. O efeito histórico e fático da vocação profissional carece sempre de uma posição social exterior. No entanto, essa posição continua tendo, em primeira e última escalas, um sentido secundário.

Vocação e virtude

“Ser o que se é”, “o virtuosismo no pleno exercício de seu dom próprio”, eis a ideia clara do que é a justiça tanto no indivíduo como na cidade (Annas, 1994). O exame da justiça na cidade (polis), que em termos modernos deveria ser entendida como um Estado-nação, segundo Annas, é o caminho para se ter acesso ao exame da justiça no indivíduo. Sócrates busca desvendar os elementos essenciais na existência de uma polis, examinando o processo natural de constituição de uma cidade (República Livros III e IV5). O fundamento de uma polis, diz ele, é uma associação de pessoas que repousa sobre a necessidade (369 b-c). As pessoas não se bastam a si mesmas, têm necessidades variadas. Assim se introduz o que Annas denomina o “Princípio da Especialização”, a saber a ideia que a uma única pessoa cabe uma só tarefa.

Platão não afirma somente que a divisão do trabalho é necessária à eficácia e ao desenvolvimento econômicos. Ele visa a eficácia somente no seio de uma associação na qual as vidas das pessoas dependem umas das outras, e onde elas não se limitam a “se alimentar umas ao lado das outras como animais”, assim como dirá Aristóteles mais tarde. Deixando de ver os outros como rivais em competição consigo mesmo pelo necessário, e se pondo em cooperação a fim de atender suas necessidades, torna-se imperativa a especialização das tarefas, para que as necessidades todas sejam satisfeitas da melhor maneira.

Sócrates afirma que a especialização do trabalho é natural (physis), declarando, em 370b, que “cada um de nós é naturalmente, no princípio, não de todo feito semelhante a cada um, mas de uma natureza (physis) diferente, um dotado para a realização de uma função, e outro, para uma outra”. A justiça da polis está na realização de sua missão própria entre as cidades, pelo preenchimento de suas necessidades enquanto associação humana, pelo exercício da função natural, o dom de cada membro desta polis, e, por conseguinte, a efetiva justiça do indivíduo.

Segundo Annas (1994, p. 96), Platão formulava o “Princípio da Especialização” dizendo que cada um deveria ta heauton prattein, “ocupar-se de seus próprios afazeres”. Aí todo cuidado é pouco, pois essa expressão, hoje em dia, se entende como dizendo que cada um deveria viver o gênero de vida que livremente escolheu, em lugar de modelar sua existência segundo os desejos e expectativas dos outros. Essa conotação moderna se dá evidentemente sobre um pano de fundo no qual a justiça, na polis e no indivíduo, é totalmente deixada de lado, quanto mais sua íntima dialética.

Por outro lado, o crescimento da polis pelo acréscimo indefinido das necessidades de seus membros só pode conduzir a uma “cidade de luxo acometida de febre”, uma “cidade de porcos”, como contrapõe Glaucon à Sócrates, e este concorda. O antídoto para tal está na “especialidade” dos Guardiões, e sua paideia filosófica. A sociedade ideal pode assim vir a ser uma realidade, pela atuação dos Guardiões e pela governança do Rei-filósofo, que vai garantir a depuração que desembaraçará a cidade do luxo de seus elementos insanos.

Em seu estudo sobre A Arete como possibilidade extrema do humano (2002), António Caeiro assim define a excelência (arete) de cada coisa, com base no diálogo Górgias (505e1) de Platão: “a ‘excelência’ de cada coisa é arranjada e posta numa ordem (kosmos) através de uma estrutura organizativa (taxis)” (ibid., p. 27). Afirma ainda: “Quando uma excelência está presente, em virtude de uma ordenação (kosmos), cada coisa obtém a possibilidade de se tornar autenticamente nela própria, isto é, de se realizar plenamente” (ibid., p. 27-28). Em cada ente, portanto, seja artefato, corpo vivo, existência humana, ou vivente, a excelência é estruturalmente a mesma. Em cada ente, reluz um mesmo eidos que se constitui não por acaso, mas pela presença de três elementos intrínsecos, a “ordenação” (kosmos), a “correção” (taxis) e a capacidade de “uso” (em seu duplo sentido; gr. khreia), que são doados a cada um deles, ou seja, configuram o “dom” que cada um dispõe.

Entre os questionamentos que abre, a partir desta definição, Caeiro levanta (ibid., p. 28): “como é que todos os entes podem tornar efetivas as potencialidades de que dispõem?”; “como é que cumprem, autêntica e genuinamente, as suas funções específicas?” A fórmula que define a excelência exprime a possibilidade, em cada ente, de adequação e aptidão entre si de cada elemento particular que o compõe. O modo e o sentido são, no entanto, diferentes para cada região de entes. Ou seja, uma casa, enquanto ente da região de artefatos, cumpre sua função se as suas partes forem bem organizadas estruturalmente (taxis) e bem ordenadas constitutivamente (kosmos). A ordenação e o princípio organizativo que fazem a casa funcional estão além da própria casa na sua essência. A excelência (arete) da casa eleva sua funcionalidade ao caso extremo de sua possibilidade de ser o que é (ibid., p. 29).

No caso da psyche, que Caeiro6 (ibid., p. 31) traduz como “lucidez humana”, a compreensão do sentido da excelência depende da presença da justificação e da justiça (dikaiosyne), da consciência tranquila (sophrosyne = temperança), da perseverança (andreia) ou da sanidade perfeita (osiotes) e da possibilidade de exposição a si própria da excelência, trazida pelos termos “saber” (episteme) ou “consciência” (phronesis). Afirma-se assim, como em Platão, pensa-se a possibilidade da constituição da excelência, enquanto a realização plena de cada ente. Esta possibilidade é sempre contrastada com seu oposto, a “perversão” (kakia), a in-versão do que se é no que não se é (ibid., p. 32).

A excelência de cada ente corresponde a um determinado trabalho (ergon), à concretização de uma possibilidade (ibid., p. 34). A cada ente assiste o desempenho de uma função específica. A excelência (arete) possibilita a um determinado ente realizar o seu trabalho (ergon). Isto é, tendo em vista a excelência (arete), enquanto possibilidade máxima que qualquer coisa tem em se tornar naquilo mesmo que ela pode ser, o seu trabalho (ergon) corresponde ao pleno desenvolvimento e à concretização excelente dessa possibilidade (ibid., p. 35). “O sentido do trabalho (ergon) é idêntico ao que nós entendemos por função” (ibid., p. 36). Ou seja, há um eidos do trabalho específico de qualquer coisa, que deve ser contemplado para dar expressão do que nele se manifesta estruturalmente: “o trabalho de cada coisa é o que produz algo somente, ou o que o produz o melhor possível” (República 353a10).

Caeiro (ibid., p. 38-39) lembra também que quando a psyche “está privada da sua excelência peculiar, também se torna impossível que ela execute bem as suas funções” (República 353e). De qualquer modo, quer a psyche se torne naquilo em que ela se pode tornar, realizando ao máximo a sua possibilidade extrema, quer não, tudo isso é experimentado em um outro nível para além do simplesmente vivido. Esse outro nível é aquele da dimensão em que se decide se cada um passa bem ou mal pelas situações da existência (praxis). Ainda aqui há um eidos regente, uma vocação a ser o que se é.

Neste ponto, vale tomar a reflexão de Danielle Montet (1990, p. 69-78) sobre a noção de eidos nos diálogos de Platão. A começar por sua consideração sobre a techne (arte) como abarcando um campo mais amplo que aquele da poiesis (fazimento), Montet leva em conta que há saberes que não se reduzem a um saber-fazer, mas alcançam um saber-empregar: “o Eutidemo já distinguia as artes ligadas a um fazer (poiein) e aquelas que decorrem de um uso (khresthai)” (ibid. p. 69). No primeiro caso, é considerando o eidos como modelo, sobre o qual trabalha o artífice; no segundo, é princípio o saber do usuário, do khresimos.

É uma necessidade absoluta que aquele que se serve de uma coisa seja o mais experimentado e que venha a dizer ao fabricante quais efeitos, bons ou maus, produz ao uso o instrumento do qual se serve. Por exemplo, o tocador de flauta informa o fabricante sobre as flautas que lhe servem para tocar, e é ele que dirá como é preciso fazê-las e o fabricante lhe obedecerá. (República X, 601e)

“O que é” significa, deste modo, “aquilo a que isto serve”. Assim a beleza, a excelência (arete), a retidão de uma ação, de um vivente, de um instrumento, de uma ferramenta, que residem no cumprimento de seu ser que se atesta e se determina em seu emprego, em seu uso. “A beleza é disposição, conformidade ao uso” (MONTET, 1990, p. 70). É nesse sentido, que Heidegger (2006, p. 133) afirma: “Indicou-se constituição instrumental do manual como referência. O para quê de uma serventia (Wozu) e o em quê (Wofür) de uma possibilidade de emprego delineiam a concreção possível da referência.” O que condiz com o eidos no sentido de uso, khreia, quer dizer “habilidade manual”, posto que pertence ao mesmo campo semântico que he kheir, a mão, ou khesthai, manejar, segurar com a mão, empregar, usar, deixando isto que se usa se desenvolver segundo seu ser, segundo uma resposta que se adapta (MONTET, 1990, p. 70).

Nesse uso que responde à injunção do “é preciso que assim seja”, Heidegger (2002a, p. 433) distingue três níveis: 1) a khreia estabelece uma questão de deleite (alemão Brauch), de desfrute no uso que deixa ser o que é; 2) este desfrute é somente uso e não usura; 3) a guarda da usura atende a um chamado, um apelo, pois no uso oculta-se uma recomendação, um mandamento. “O uso é portanto um desfrute que guarda sob a injunção de um apelo” (MONTET, 1990, p. 71). Entramos assim progressivamente em consideração de um ser-aí, de uma abertura de ser, em que fabricante é, em que instrumento é, em que usuário é, em que uma apropriação em uso pode, ou não, ser própria ou imprópria, autêntica ou inautêntica, atender ou não a uma vocação. Cabe lembrar que essa referência de “em que”, neste caso, não pode indicar de forma alguma algo dentro de outro, mas sim “ter morada”, “habitar”.

A khreia implica um saber-usar que salvaguarda e abriga aquilo que pode ser usado, este sendo desdobramento do ser no duplo sentido do genitivo. A qualidade do instrumento se revela através do bom uso que dele é feito por aquele que sabe dele tirar o melhor. Mais que o modelo ou o paradigma, termos que geralmente traduzem eidos, esse determina o uso, a maneira de se usar, a função a ser devidamente empregada pela competência do usuário. A competência, referida frequentemente por Platão (Górgias 447d-448c), implica em qualificação (mimetes 7 ), que abre também à questão da imitação (mimesis). De qualquer modo, a língua grega denomina os detentores de um saber-fazer a partir daquilo que eles fazem uso, razão pela qual se busca como nomear o sofista no diálogo O Sofista. “Toda techne destaca-se de um saber que não outro senão um saber da eidos, interpretada a partir da khreia, do uso” (MONTET, 1990, p. 72). Platão se volta frequentemente, portanto, a exemplos tomados às práticas artesanais: saber é sinônimo de saber-usar, utilização, uso correto e competente.

Conclusão

Concluímos, comungando com Maxence Caron (2005, p. 932-933), que esse chamado, a vocação, aquilo que con-voca a si-mesmo, ao seu poder mais próprio, ao seu poder-ser-si-mesmo mais próprio, é uma pro-vocação (vocação para “adiante”) do ser-aí a suas possibilidades mais próprias. O chamado não tem som, não conta com palavras, não tem conteúdo, não diz o que fazer, nada diz, ou melhor, diz o nada, o silêncio do ser que se recolhe enquanto se dá como ente.

Esse nada conatural à ipseidade é assunção da abertura na qual a ipseidade é tecida, em meio a mim-mesmo, qualquer outro, todo ente intramundano, na clareira do ser.

O tema da vocação é absolutamente fundamental para a educação se a compreendermos no sentido grego de paideia. Segundo Danielle Montet (1990, p. 187-210), paideuein significa “melhorar” o indivíduo pela paideia e, consequentemente, a polis (cidade), pela arte política (techne politike). O termo “melhorar”, aqui, deve guardar seu sentido original do latim melior, “melhor”, referindo-se não à pessoa em si mesma, mas à “situação humana”, como tradução do grego praxis. Ou seja, “melhorar” no sentido de “dispor em uma melhor situação humana”, em uma “melhor praxis”. É justamente nesse horizonte da situação humana (praxis) que se poderá alcançar o “melhor”, que se poderá encontrar e realizar a sua possibilidade extrema, a excelência (arete), respondendo à vocação de cada ser humano. A vocação em ressonância com o que Heidegger (Ano) denomina o apelo (Ruf) é, assim, um grito silencioso que ressoa no interior do , como um eco vindo de longe. Mas como se colocar à escuta deste apelo? Como "silenciar" o falatório no interior do e permitir-se ouvir o apelo que vem do longínquo para o longínquo? Eis o grande desafio da educação, enquanto paideia.

Referências

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NOTAS:

1 Utilizamos itálico para as palavras estrangeiras e para os termos chaves do pensamento de Heidegger. Isso fica mais evidente, quando no itálico do “ser”, a que nos referimos na acepção muito própria de Heidegger, de um verbo substantivado que sempre guarda todo seu “movimento verbal”.

2 “Claramente devemos compreender essa unidade da existência Dasein como um modo de seu ser. Os acima mencionados modos de propriedade Eigentlichkeit e impropriedade Uneigentlichkeit se tornam importantes para clarificar esse fenômeno da unidade da existência, e ainda mais, eles interceptam com os modos de autenticidade Echtheit e inautenticidade Unechtheit. Há uma inautêntica propriedade unechte Eigentlichkeit, ou seja, a existência pode ser um inautêntico ser-com-si-mesmo; e há uma autêntica impropriedade echte Uneigentlichkeit, ou seja, um autêntico se perder a si mesmo que cresce da existência concreta em questão.” (HEIDEGGER, 2010, p. 190)

3 “O si mesmo e a propriedade não são o ‘eu’, eles são aquele ser-aí no qual se funda a relação do eu com o tu, do eu com o nós e do nós com o vós.” (HEIDEGGER, 2007, p. 213)

4 “A palavra Stimmung, como é evidente por sua proximidade com Stimme, voz, pertence originalmente à esfera acústico-musical. Ela está ligada semanticamente a palavras como as latinas concentus e temperamentum e a grega harmonia, e em sua origem significa entonação, acorde, harmonia.” (AGAMBEN, 2015, p. 72)

5 Usamos em todas as citações às obras de Platão, a tradução francesa de Luc Brisson (2011).

6 Todas as traduções dos termos gregos encontrados neste parágrafo são de autoria de António Caeiro.

7 Significa o imitador, por exemplo, o médico, o flautista, enquanto qualificações que dotam de certa competência.

Recebido: 31 de Outubro de 2016; Revisado: 08 de Maio de 2018; Aceito: 04 de Junho de 2018

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