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Educação: Teoria e Prática

versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.29 no.60 Rio Claro jan./abr 2019  Epub 01-Set-2019

https://doi.org/10.18675/1981-8106.vol29.n60.p140-161 

Artigos

DESAFIOS NA FORMAÇÃO DOCENTE EM DIVERSIDADE SEXUAL

CHALLENGES IN TEACHER EDUCATION IN SEXUAL DIVERSITY

DESAFÍOS EN LA FORMACIÓN DOCENTE EN DIVERSIDAD SEXUAL

Cristiano Figueiredo dos SantosI  1
http://orcid.org/0000-0001-8619-1140

Rosimeire Martins Regis dos SantosII 
http://orcid.org/0000-0001-5744-4778

I Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso do Sul - Brasil. E-mail: professor.cristiano.biologia@gmail.com.

II Universidade Católica Dom Bosco, Mato Grosso do Sul - Brasil. E-mail: profarosimeireregis@hotmail.com.


Resumo

Considerando a inclusão cada vez maior das diversidades nos debates do campo da educação, o objetivo deste artigo é evidenciar os desafios encontrados na efetivação da formação docente em diversidade sexual. A opção metodológica foi por um estudo bibliográfico de abordagem qualitativa. Assim, apresentamos o texto dividido em três partes que discutem a diversidade sexual enquanto componente de um currículo da diferença, as relações entre sexualidade, educação e aspectos políticos e, por fim, a formação docente em diversidade sexual com especial enfoque para as ciências biológicas. Nossas análises indicam que pouca atenção tem sido dispensada a perspectivas não-heteronormativas no campo formativo. Em grande parte, a formação docente em diversidade sexual tem sido comprometida e/ou impedida em função de investimento ativo de um grupo conservador majoritariamente com ideais religiosos fundamentalistas que se opõem a direitos humanos e agendas inclusivas na educação. Ao se pensar sobre currículos, artefatos culturais e discursos investidos na formação docente, é imprescindível pensar também na inclusão de abordagens que não excluam perspectivas das minorias sexuais.

Palavras-chave: Sexualidade; Formação de professores; Currículo.

Abstract

Considering the growing of diversities in discussions related to education, this article aims to highlight the challenges found in the effectiveness of teacher education in sexual diversity. The methodological option was for a qualitative bibliographical study. Therefore, we present a text divided in three parts discussing sexual diversity as a component of a difference curriculum, relations between sexuality, education and political aspects, and, ultimately, teacher education in sexual diversity with an emphasis on Biological Science. Our analyses indicate that insufficient attention has been given to non-heteronormative perspectives in the field of education and training. Teacher training in sexual diversity has been compromised and/or obstructed by a high investment from a mainly conservative group with fundamentalist religious ideals, which oppose to human rights and inclusive education agenda. When thinking about curriculum, cultural artifacts and speeches imbued with teacher education, it is essential to also think on the addition of approaches that don’t exclude the perspectives of sexual minorities.

Keywords: Sexuality; Teacher education; Curriculum.

Resumen

Considerando la inclusión cada vez mayor de las diversidades en los debates del campo de la educación, el objetivo de este artículo es evidenciar los desafíos encontrados en la efectividad de la formación docente en diversidad sexual. La opción metodológica fue un estudio bibliográfico de abordaje cualitativo. Así, presentamos el texto dividido en tres partes que discuten la diversidad sexual como componente de un currículo de la diferencia, las relaciones entre sexualidad, educación y aspectos políticos y, por fin, la formación docente en diversidad sexual con especial enfoque en las ciencias biológicas. Nuestros análisis indican que se ha dedicado poca atención a perspectivas no heteronormativas en el campo formativo. En gran parte, la formación docente en diversidad sexual ha sido comprometida o impedida en función de la inversión activa de un grupo conservador mayoritariamente con ideales religiosos fundamentalistas que se oponen a derechos humanos y a agendas inclusivas en la educación. Al pensar en currículos, artefactos culturales y discursos invertidos en la formación docente, es imprescindible pensar también en la inclusión de enfoques que no excluyan perspectivas de las minorías.

Palabras clave: Sexualidad; Formación de profesores; Currículo.

Introdução

A constatação do caráter padronizador, homogeneizador e monocultural da educação cresce tanto quanto a percepção da necessidade de rompimento deste paradigma e da construção de práticas educativas em que a questão da diferença e do multiculturalismo se façam mais presentes (CANDAU, 2013). Na luta por uma educação cidadã, conceitos como diversidade, diferença, igualdade e justiça social se configuram como uma preocupação para educadores (CANEN; XAVIER, 2011).

Este entendimento é derivado do reconhecimento de que alguns grupos sociais - negros, mulheres e homossexuais, por exemplo - tem sido alvo de discriminações inaceitáveis e, em consequência, se rebelado e conquistado espaços de afirmação de seus direitos e cidadania (MOREIRA; CÂMARA, 2013). O objetivo deste artigo é evidenciar os desafios encontrados na efetivação da formação docente em diversidade sexual.

Segundo Louro (2016) a sexualidade somente tornou-se uma questão nos dois últimos séculos e, desde então tem sido alvo de vigilância e controle. Para ela, a maior visibilidade atual das minorias sexuais tem efeitos contraditórios porque alguns setores passam a demonstrar aceitação da pluralidade sexual enquanto outros renovam e recrudescem seus ataques. ParaCarrara et al. (2018) nas últimas duas décadas houve expressiva consolidação e expansão do campo dos estudos da sexualidade e gênero, cujos efeitos refletem não somente transformações sociais relacionadas a mulheres e pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais), mas também investidas e reações que se organizam contra essas mesmas mudanças.

Nesse contexto, a formação de professores para a diversidade é um desafio para as instituições envolvidas nesse processo, embora também seja um lócus privilegiado para a discussão e reflexão dessas questões (CANEN; XAVIER, 2001). Entendemos, assim, a perspectiva multiculturalista como um importante instrumento de luta política e, comoSilva (2017), assumimos que o gradiente da desigualdade em matéria de educação e currículo ocorre em função de outras dinâmicas, como as de gênero, raça e sexualidade, por exemplo, que não podem ser reduzidas à dinâmica de classe.

Ao pretendermos, ao longo do texto, evidenciar os desafios encontrados na efetivação da formação docente em diversidade sexual, apresentaremos três seções nas quais trazemos apontamentos: (I) sobre a diversidade sexual frente a outras diversidades; (II) sobre a relação entre sexualidade - e mais especificamente questões da diversidade sexual - e educação, com ênfase no contexto escolar e sobre os vieses políticos em que se arvoram esses processos; e (III) sobre a formação docente nas licenciaturas, especialmente nas ciências biológicas, no que concerne à sexualidade. Por fim, são arroladas algumas considerações provisórias. O trabalho foi desenvolvido a partir de uma pesquisa essencialmente bibliográfica, qualitativa, elaborada com materiais já publicados em livros, periódicos científicos e bibliografia de autores que possuam obras relacionadas ao objeto de estudo.

Diversidades e diversidade sexual

A universalidade dos direitos sociais, sem discriminação de qualquer espécie, é explicitada na Constituição Federal, que apresenta a diversidade como valor social (DINIZ, 2008). Contudo, o diverso não pode ser visto apenas como uma condição a ser aceita, incorporada a uma matriz hegemônica, ou mesmo celebrada em espaços próprios, particulares, é preciso relacionar o diverso com seu entorno, com a cultura. Tomaz Tadeu da Silva argumenta que

Uma política pedagógica e curricular da identidade e da diferença tem a obrigação de ir além das benevolentes declarações de boa vontade para com a diferença. Ela tem que colocar no seu centro uma teoria que permita não simplesmente reconhecer e celebrar a diferença e a identidade, mas questioná-las (SILVA, 2014, p. 100).

Ainda que as diversidades tenham, ao longo dos últimos anos, ganhado algum destaque nas discussões sobre educação, escola e currículo, um recorte especial de um tipo delas, talvez pelo seu histórico como um tema tabu, parece não ter tido a mesma atenção: trata-se da diversidade sexual. Rios e Santos (2008, p. 327) afirmam que “a diversidade sexual é, de modo geral, dotada de uma dignidade menor e um estatuto inferior diante de outras preocupações e necessidades”.

Esse aspecto “menor” da diversidade sexual frente a outros temas que poderiam ser considerados multiculturais fica claro quando, em uma análise sobre o Programa Nacional do Livro Didático, Roger Raupp Rios e Wenderson Rufino dos Santos constatam que

Concepções e práticas acerca do gênero, dos direitos e de cidadania, da representação positiva de pessoas com deficiência, da população negra e dos direitos da criança já podem ser verificadas nos livros didáticos. No entanto, igual avanço não se observa no tratamento da diversidade sexual .... Ao privilegiar o modelo heteronormativo, os livros didáticos não deixam espaço pra outras expressões da sexualidade, em dissonância com o princípio segundo o qual a educação pública deve pautar-se pelos ideais democráticos da autonomia, da não-discriminação, da dignidade humana e da privacidade, inclusive na esfera da sexualidade (RIOS; SANTOS, 2008, p. 338-341).

Ao discutir a importância de algumas representações, Furlani (2007) afirma que os livros não são somente integrantes curriculares, são também artefatos culturais e seus textos, verbal e ilustrativo, produzem e veiculam representações de gênero e sexualidade, que ensinam modo(s) de ser masculino e de ser feminino, ensinam também formas (ou a forma) de viver as sexualidades. Lionço e Diniz (2008, p. 309), quando falam do posicionamento problematizador, em livros, no quesito diversidade, apontam que “o mesmo movimento crítico de revisão ética de nossos padrões de desigualdade e opressão no campo das relações raciais e de gênero não se estendeu ao tema da diversidade sexual”.

Conquanto aparentemente o debate sobre a diversidade sexual esteja atrasado em relação a outras diversidades nos artefatos e nos discursos educacionais, ironicamente essa discussão parece ser cada vez mais acalorada na seara legislativa e/ou regulamentária com decisões que visam justamente impedi-la ou dificultar seu progresso na arena educacional. Como indicam Facchini et al. (2013, p. 164), se existe nos âmbitos do Executivo e do Judiciário federal, “o Poder Legislativo, no entanto, não apresenta avanços proporcionais”.

Cabe destacar que embora o foco deste trabalho não seja uma discussão mais ampliada sobre gênero e sexualidade, ao pretendermos discutir a questão da diversidade sexual na formação docente com toda a complexidade envolvida nesta problematização, não negamos o estreitamento existente no Brasil entre os estudos de gênero e sexualidade evidenciado por Facchini et al. (2013) e, de forma semelhante, optamos por assumir e manter certa ambiguidade ao tratar de diversidade sexual enquanto um espectro das discussões sobre sexualidade e explicitar que não se trata de simples confusão na escrita deste artigo.

Desde o início dos anos 2010 parece ter havido sérios retrocessos no desencadeamento das discussões sobre sexualidade e diversidade sexual no contexto educacional. Ivan Amaro evidencia que

Dentre os retrocessos, diversos estados e municípios têm aprovado leis que proíbem qualquer discussão sobre gênero e diversidade sexual nas escolas públicas. Um exemplo é a Lei nº 4.576, de 15 de fevereiro de 2016, do município de Nova Iguaçu, que veda a distribuição, exposição e divulgação de material didático contendo orientações sobre diversidade sexual nos estabelecimentos de ensino da rede pública do município, o que inclui a proibição de qualquer ação que vise ao combate da homofobia. Além disso, há projetos e leis que procuram proibir professores e professoras de fazer qualquer menção a gênero ou sexualidade no desenvolvimento de seu trabalho (AMARO, 2017, p. 141-142).

O posicionamento de setores contrários ao avanço da educação inclusiva, através do enfrentamento das questões da diversidade sexual, pode, eventualmente, ter como base a própria constituição da escola brasileira que, segundo Rogério Diniz Junqueira, foi estruturada em normas e crenças que reduziam a posição do “outro” dentro de padrões que supostamente eram (ou deveriam ser) unívocos.

Ao longo de sua história, a escola brasileira ... estruturou-se a partir de pressupostos fortemente tributários de um conjunto dinâmico de valores, normas e crenças responsável por reduzir à figura do “outro” ... todos aqueles/as que não se sintonizassem com os arsenais cujas referências eram e ainda são centradas no adulto, masculino, branco, heterossexual, burguês, física e mentalmente “normal” (JUNQUEIRA, 2010, p. 211).

Construída sobre este modelo de clientela, fica menos difícil entender algumas das razões pelas quais o debate sobre a inclusão de minorias demorou (e ainda demora) a entrar na escola, seja através do currículo, seja através da formação do profissional docente. Felizmente, as pautas das diversidades têm ganhado cada vez mais espaço, ainda que, por vezes, de forma rasa e pouco problematizada e, no caso da diversidade sexual, quase sempre retardatária e de forma quase renegada.

A pauta do direito à diferença e do combate à desigualdade vendo invadindo a cena pública, gerando tensão entre posições mais ou menos conservadoras e/ou vanguardistas. Os direitos humanos e o direito à diferença, ao contrário do que poderia se pressupor, causam polêmica e estranhamento. Essa tensão aumenta significativamente se o direito humano em questão está relacionado à seara dos direitos sexuais e reprodutivos. (VENCATO, 2015, p. 16).

Trata-se de um jogo de poder, já que o discurso é construído a partir de um polo, que pode, livremente, destinar ao “outro” o posto de inferior/diferente/menor. Nessa lógica, grupos de não heterossexuais foram (e provavelmente ainda sejam) negligenciados no trato das diversidades, justamente porque não compuseram (possivelmente ainda não componham) posições centrais - e porque não dizer, ao menos, igualitárias - de representação.

Os grupos sociais que ocupam as posições centrais, “normais” (de género, de sexualidade, de raça, de classe, de religião, etc.) têm possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros. Eles falam por si e também falam pelos “outros” (e sobre os outros); apresentam como padrão sua própria estética, sua ética ou sua ciência e arrogam-se o direito de representar (pela negação ou pela subordinação) as manifestações dos demais grupos (LOURO, 2000, p. 67).

Neste jogo, é destaque a influência que grupos religiosos fundamentalistas têm exercido nas políticas públicas educacionais especialmente àquelas que se relacionam com gênero e diversidade sexual. Esses grupos são considerados como uma ameaça aos direitos humanos, sexuais e reprodutivos e com potencial para modular ódio e preconceitos às minorias (TAQUETTE, 2013; SANTOS; SOUZA, 2015; VENCATO, 2015; TOLOMEOTTI; CARVALHO, 2016; SANTOS; SILVA, 2017).

De forma geral, o campo dos estudos de gênero e sexualidade no Brasil tem sido atacado e questionado em seu próprio fazer científico. Os discursos acionados neste tipo de estratégia de ataque incluem aqueles que imputam uma suposta ideologia ou opinião que dispense o rigor lógico, conceitual e metodológico na produção do conhecimento científico, a exemplo do que acontece na recente luta contra a ‘ideologia de gênero’, que mobiliza particularmente lideranças cristãs (CARRARA et al., 2018). Esses discursos, contudo, como indica Biroli (2018, p. 86), são fundados em uma “noção pouco sofisticada de objetividade para questionar o caráter do conhecimento produzido, a autonomia do campo científico e a responsabilidade coletiva envolvida nos processos educacionais”.

A ‘ideologia de gênero’ emerge como uma categoria pública que estaria envolvida com pânicos morais relacionados com a pedofilia e a sexualização de crianças e adolescentes. Carrara et al. (2018, p. 77) indicam que a “falácia da ‘ideologia de gênero’ responde a uma estratégia política de conferir ao estatuto de crença religiosa ou de posicionamento moral particular ao conhecimento científico produzido a partir de seus singulares métodos”.

Assistimos a uma crescente disseminação de pânicos morais, desde a decisão da Presidente Dilma Rousseff de suspender em 2011 o projeto Escola Sem Homofobia após pressão e protestos de parlamentares moralmente conservadores e/ou vinculados às chamadas bancadas religiosas no Congresso Nacional até as investidas mais recentes que resultaram na eliminação das referências a gênero, diversidade e orientação sexual dos Planos de Educação em todo país em 2015. Já no governo de Michel Temer, em 2016 e 2017, acompanhamos os debates sobre a chamada “Escola sem Partido” e a própria supressão pela Câmara dos Deputados da expressão “perspectiva de gênero” do documento que orienta a competência do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (atualmente renomeado para Ministério dos Direitos Humanos). Certa ansiedade paranoica, amplificada pelas redes sociais, alastra-se em direção à proibição de expressões artísticas e manifestações contra intelectuais, como aconteceu com a exposição Queer Museu, em Porto Alegre, e com a vinda da professora Judith Butler ao Brasil, em 2017. Estigmatiza-se a chamada ‘ideologia de gênero’ como um suposto plano para ‘sexualizar’, corromper ou perverter crianças inocentes e destruir ‘a’ família. Tal plano teria sido deliberado e concertado por movimentos sociais e seus aliados na academia, em instituições da sociedade civil e até no próprio governo (CARRARA et al., 2018, p. 77).

Retomaremos o ponto sobre a intersecção dos movimentos sociais com o Governo enquanto instância de geração de políticas de caráter inclusivo mais adiante e por ora, consideramos importante destacar que, embora a discussão sobre diferenças e diversidade seja hoje em dia considerada um componente importante dos currículos da formação docente e também pauta de discussões sobre educação, é preciso reconhecer que, aparentemente, existem “diversidades” que são preteridas. Nessa lógica, é preciso questionar as razões pelas quais isso ocorre.

Sexualidade, educação e política

A atenção com a sexualidade na escola remonta ao século XVIII na Europa e em suas colônias e no Brasil desde os anos 1920 e 1930 (ALTMANN, 2001; DINIS; CAVALCANTI, 2008; CÉSAR, 2009). Contudo, é só nos anos de 1990, com a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) - e seu volume de orientação sexual - que o ensino sobre sexualidade na educação básica ganha legitimidade no Brasil (PEREIRA; MONTEIRO, 2015).

Ainda que muitas vezes negada ou silenciada, a sexualidade tem muita relação com a vida de todas as pessoas. Durante muito tempo as escolas e os espaços educativos, em geral, colocaram-se à distância desse tema em algumas situações.

... as nossas escolas também parecem propor um acordo tácito de silêncio, dissimulação e negação a respeito da sexualidade .... Por muitos anos, mesmo afirmando que essa ‘dimensão’ da educação dos sujeitos cabia prioritariamente à família, as escolas preocuparam-se, cotidianamente, com a vigilância da sexualidade de seus meninos das suas meninas (LOURO, 2000, p. 47).

Segundo Furlani (2007), é possível que as temáticas que envolvam os sexos, as sexualidades e os gêneros se constituam em verdadeiros bichos-de-sete-cabeças para muitos professores, professoras, pessoas da direção da escola, pais e mães. A relação entre família e escola é um fator que interfere diretamente na prática escolar e as tensões causadas pelos posicionamentos de familiares, líderes políticos e religiosos ocasionam medo e insegurança a docentes que, muitas vezes, preferem o silêncio sobre estes temas até mesmo por medo de alguma sanção administrativa.

Por outro lado, educadoras/es que desejam desenvolver discussões sobre essas temáticas, às vezes, sofrem retaliações por parte da direção da escola ou de colegas docentes como observado na pesquisa de Borges e Meyer (2008), em que algumas professoras da escola foram advertidas por dialogarem com discentes sobre diversidade de gênero e sexual e acusadas de contagiarem os/as discentes para uma sexualidade “anormal”. (SANTOS; SOUZA, 2015, p. 212-213).

Como tem sido argumentado neste artigo, assim como proposto por Facchini et al. (2013, p. 169), a temática da sexualidade e, portanto, da diversidade sexual, quando comparada com outras temáticas merecedoras de atenção, parecem ter maior fragilidade política, social e acadêmica, de modo que a simpatia pública volta-se mais “por temas como direitos humanos, de forma genérica, e promoção da igualdade das mulheres em relação aos homens, ao passo que a sexualidade, apesar dos significativos avanços nas últimas décadas, figura como um tema tabu em muitos aspectos”.

É no contexto de tabus, contudo, que projetos como o da criminalização da homofobia apresentam potencial para instaurar o que Natividade (2013, p. 39-40) nomina de explosão discursiva no campo religioso, já que “Desde o início de sua tramitação, esse projeto (PL-122/2006) originou respostas religiosas tanto no legislativo, como em púlpitos, na mídia, na cena pública”. As estratégias para barrar o projeto incluíram diversas ações que variavam desde instâncias da fé (orações, jejuns, vigílias) àquelas que passavam pelo plano da mobilização coletiva virtual (envio de e-mails, abaixo-assinados, disponibilização de links do tipo “clique aqui e envie sua mensagem”) e presencial (passeatas) (NATIVIDADE, 2013).

No campo discursivo, a estratégia utilizada foi o acionamento do pânico moral, alinhavando a construção do homossexual como um indivíduo perigoso com a suposta ameaça de restrições das instituições religiosas, a destruição da ‘família brasileira’ e a associação entre pedofilia e homossexualidade.

A invocação “da” família contra o fantasma da subversão moral é, segundo Biroli (2018), um elemento transnacional da ofensiva contra a agenda de gênero e da diversidade sexual. Se os discursos religiosos sobre as supostas ‘causas’ da homossexualidade passam pelo apelo a uma família desestruturada (NATIVIDADE, 2013), vale observar o que indica Vencato (2015, p. 17) ao afirmar que “nem para a psicologia, nem para as ciências sociais existe família desestruturada. Isso porque o contrário também não existe. A noção de família mudou ao longo do tempo e da história.”.

Nesse cenário, discursos religiosos evidenciam a demonização da diversidade, quando referem dois tipos possíveis de educação sexual: a da besta e a de Deus (NATIVIDADE, 2013). A primeira estaria orientada por valores laicos e defendendo a igualdade entre homens e mulheres e a segunda seria norteada pela religião.

A “educação de Deus”, feita em escolas religiosas ou pelos pais ‘em casa’, “protegeria” as crianças da “influência negativa”, que ‘afastam’ de Deus. A educação formal, sob a tutela dos pais, norteada pela religião e sem interferências de instituições e normas laicas, seria o único meio de evitar prejuízos à criança (NATIVIDADE, 2013, p. 41-42).

Um dos elementos que consideramos importante destacar neste ponto da discussão e que é explorado por Biroli (2018) é o Movimento Escola sem Partido enquanto elemento da atual reação conservadora. Essa organização que se apresenta sob o manto da neutralidade política foi fundada em 2014 no Brasil e alinha-se em diferentes países da América Latina contra a agenda de gênero. As diretrizes desta vertente ideológica têm sido apresentadas em várias casas de lei na forma do denominado Programa Escola sem Partido e apresenta o entendimento de que é preciso incluir nas normas educacionais o direito dos pais educar seus filhos de acordo com seus valores morais e crenças religiosas.

Contudo, apesar de ser constituído sob o mote da neutralidade política na educação, o projeto rejeita claramente o comunismo, o marxismo e o que é nominado como “ideologia de gênero”, já tangenciada neste texto.

Para além do uso retórico das noções de comunismo e de “ideologia de gênero”, fica claro que a parcialidade combatida é aquela que traria para a sala-de-aula perspectivas críticas ao sistema de propriedade vigente e às desigualdades sociais; na segunda vertente, por sua vez, o combate é dirigido a perspectivas críticas às desigualdades de gênero e às formas de violência ancoradas no sexismo e heteronormatividade (BIROLI, 2018, p. 86).

Parte da insegurança de docentes para tratar de assuntos desta seara pode advir também do desconhecimento de documentos que norteariam e respaldariam o trabalho docente. Ainda que os PCN figurem como marco da discussão sobre sexualidade na educação, autores como Altmann (2001; 2013), Dinis (2008) e Junqueira (2009) apontam que muito ficou de fora do texto, como é o caso das homossexualidades, transgeneridades e minorias sexuais.

É diante desse cenário que Pereira e Bahia (2011, p. 53), afirmam “continuam atuais os desafios à escola, postos pelos PCNs”. Se por um lado os PCN apresentam lacunas para questões que talvez em sua época de publicação não estivessem tão em evidência, por outro lado, uma série de outros documentos respalda a ação docente no que tange gênero, sexualidade e diversidade sexual. Santos (2017) arrola uma série de documentos que podem nortear e salvaguardar a prática docente que esteja atenta à diversidade sexual e de gênero, entre estes a própria Constituição Federal (CF), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), o Programa Nacional de Direitos Humanos II, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, os Planos Nacionais de Políticas Públicas para as Mulheres, o Programa Brasil sem Homofobia, o texto base da Conferência Nacional para Políticas LGBT e o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e dos Direitos LGBT.

Com exceção da CF e da LDBEN, todos os documentos citados anteriormente ganharam vigência no período compreendido entre 2002 e 2009, o que nos leva a destacar o contexto social em que se situam essa série de documentos importantes para a discussão de gênero e sexualidade. Como indica Biroli (2018), as instâncias de participação previstas na CF tiveram incremento a partir dos anos 2000 e isso tem relação com a chegada de um partido cujas bases históricas estiveram nos movimentos sociais (Partido dos Trabalhadores, PT) à Presidência da República, permitindo uma permeabilidade inédita do Estado a movimentos como o feminista e LGBT.

É justamente esta articulação entre os movimentos sociais, Organizações Não-Governamentais (ONGs) e o Poder público que ganhará contornos de um arranjo perigoso no discurso religioso, segundo Natividade (2013).

A instituição de uma política pública nacional voltada para minorias sexuais era motivo de preocupação, que ensejava uma forte reação em defesa dos “valores cristãos” e da “família”. Um artigo de um escritor evangélico apresenta este tom ao denunciar que o então Presidente Lula e seus seguidores no governo insistiam em inverter valores, “lutando contra o bem e protegendo o mal”, oferecendo ao término do texto, uma oração para que fiéis orassem pela quebra desta ‘maldição’ no país (NATIVIDADE, 2013, p. 41).

Contudo, ainda que avanços expressivos no campo do gênero e da sexualidade resultantes deste arranjo não possam ser negados, Machado (2016) indica que, diferentemente dos anos 1970 ao ano 2000, ao meio da primeira década do novo milênio, os movimentos feministas e LGBT passaram a ser demonizados não pelos evangélicos e católicos, mas pelos líderes políticos da Bancada Evangélica no Congresso e por políticos que atuam como católicos conservadores. A tensão que mudou os termos de negociação entre feminismos e Estado teria tido sua gênese na troca de moedas políticas entre governo e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em 2005/2006 no contexto de denúncia do mensalão.

Pela força atual das lideranças políticas dessa posição neoconservadora que o governo Lula a partir de 2005/2006 e os dois governos Dilma (2011/2014 e o iniciado em 2015) ficaram bloqueados no tocante a manter determinadas políticas propostas e concertadas no início da década com as movimentações feministas (MACHADO, 2016, p. 26).

Ainda que a implantação de diversas políticas nesse período seja louvável, alguns pontos de fragilidade são apontados especialmente no tocante àquelas que remetem a temas da sexualidade, das minorias sexuais e das pessoas LGBT. No caso do Programa Brasil sem Homofobia (BSH), importante instrumento de formação docente, Daniliauskas (2011) destaca a ausência de uma unidade de gestão inicial e a fragilidade do financiamento dos recursos, feitos principalmente por meio de emendas parlamentares, enquanto Facchini et al. (2013) põe em relevo a disparidade entre os programas de direitos humanos e os planos nacionais de políticas para as mulheres, aprovados por meio de decretos, contra o BSH e o Plano Nacional LGBT, que denotando uma cautela política, foram apenas publicados e divulgados pelo Governo Federal.

Contudo e de alguma forma, felizmente esse ciclo de políticas parece ter reverberado em espaços educacionais, incluindo aí as Universidades. Estes locais têm sido convocados a discutir e formar pessoas nos temas marginalizados, excluídos ou esquecidos. Tanto o currículo da formação docente quanto o da educação básica precisam ser pensados e atravessados pela lógica da transversalidade da diversidade sexual. Se por um lado é possível que a escola e os espaços educacionais sejam receosos em tratar da diversidade sexual, por outro caberia questionar se as Universidades são diferentes, especialmente nas formações em licenciaturas.

Formação docente em diversidade sexual

A formação docente que contemple a diversidade sexual parece estar, assim como o debate sobre esta temática, atrasada em relação a outras diversidades, se considerarmos o que tem sido demonstrado em alguns trabalhos. Moreira (2001) ao avaliar a produção científica sobre currículo e multiculturalismo entre 1995 e 2000 já identificava que dos 46 textos analisados, somente um relacionava-se com homossexualidade, contra 18 sobre etnia e três sobre gênero, por exemplo, reconhecendo como limitado o número de trabalhos no Brasil quando comparado com a produção em países anglo-saxônicos. Ana Canen e Giseli Pereli de Moura Xavier, em uma análise sobre a formação de professores para a diversidade, apontam que

... nessa categoria de trabalhos periódicos, não se verificou, em nenhum dos dois periódicos no período em tela, qualquer menção a estudos de gênero que abordassem a perspectiva da identidade coletiva homossexual, ao contrário da literatura internacional, na qual os denominados queer studies (teoria queer) têm embasado olhares sobre a questão (CANEN; XAVIER, 2011, p. 652).

O cenário apontado por pesquisas não demonstra desempenho eficaz das instituições de formação de professores no que se refere à difusão de saberes sobre sexualidade e diversidade sexual. São exemplos postulados como “os dados obtidos podem sugerir que ainda é incipiente a preocupação com a formação de professores/educadores para o trabalho com Educação Sexual” (SILVA; NETO, 2006, p. 190), “a formação obtida no curso pode apontar para dois caminhos: ou ela não foi suficiente para que os/as formandos/as se sintam capazes de falar sobre esses conteúdos, ou ... não se sentem confortáveis para falar desses temas” (SOUZA; DINIS, 2010, p. 130), “professores/as, funcionários/as, famílias não têm recebido formação para trabalhar com a temática da sexualidade e diversidade de forma adequada. Esta falha está presente tanto na graduação quanto na formação continuada” (ROSSI et al., 2012, p. 11-12), “frequentemente há uma omissão, por parte das agências formadoras, não fornecendo subsídios para uma conduta que futuramente será exigida no cotidiano de trabalho na escola” (OLIVEIRA et al., 2013, p. 39), “No Brasil não são todos os cursos universitários de formação docente que contemplam em seus currículos disciplinas que priorizam os campos teóricos das sexualidades e gêneros” (XAVIER FILHA, 2017, p. 219).

Diversidade sexual parece ser também um tema menos presente nas discussões sobre ensino de biologia do que outras lacunas existentes nas ‘margens’. Barzano (2016) faz uma análise dos trabalhos nesta área e vê com otimismo as “janelas que estão se abrindo” pela inclusão de alguns temas nos encontros regionais de ensino de biologia, embora sexualidade e diversidade sexual não tenham sido contempladas nessa abertura. Dinis e Cavalcanti (2008, p. 104) também apontam para a ausência desses estudos e para “a necessidade de serem destinados mais momentos para as discussões sobre sexualidade, diversidade sexual e gênero dentro da universidade”. Pereira e Bahia (2011, p. 67) seguem a mesma direção quando destacam que sua pesquisa “mostra que os professores admitem ter pouco conhecimento sobre homossexualidade (o que abre a “deixa” para políticas públicas de esclarecimento) e isso se reflete nas respostas que eles deram aos questionamentos”.

... não é novidade nos cursos de licenciatura a ausência, para a formação de docentes, de subsídios que lhes proporcionem a construção de um arcabouço teórico-metodológico que os ajude a lidar com as diferenças. Essa ausência se amplia ainda mais quando a diferença refere-se a questões de gênero e das sexualidades - ou orientações sexuais, terma mais comumente (re)conhecido na arena das políticas públicas (VENCATO, 2015, p. 17).

Talvez essa ausência de (in)formação sobre diversidade sexual tenha relação com o grande interesse pelo eixo temático de Educação na I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais em 2008. Dados apresentados por Daniliauskas (2011) dão conta de que este eixo foi o que reuniu o maior número de pessoas e o quarto maior número de propostas aprovadas, cujas resoluções serviriam de base para a construção do Plano Nacional LGBT que, na prática, avança em relação a e substitui o BSH.

Já na implementação das primeiras ações do BSH, ou seja, o lançamento dos editais de financiamento de cursos de formação de professores/as voltados a diversas entidades, “começam a surgir também resistências que foram relatadas por diversos entrevistados. Entre elas destacam-se aquelas realizadas por fundamentalistas religiosos pertencentes à sociedade civil, à Câmara dos Deputados, bem como por funcionários/as do próprio MEC” (DANILIAUSKAS, 2011, p. 120). Segundo o autor, grupos organizados evangélicos da sociedade civil ou do legislativo federal e da Conferência dos Bispos do Brasil figuravam como adversários do BSH desde a criação do programa.

Geralmente, independentemente da formação inicial ou continuada, quando a temática da diversidade sexual se faz presente na escola, uma de suas portas de entrada é pelas disciplinas de ciências e biologia, em função de sua relação com temáticas de reprodução humana. Coelho e Campos (2015, p. 895) nos lembram de que “Os professores de ciências são, muitas vezes, os únicos profissionais reconhecidos como aptos a abordar temas relacionados à sexualidade com os alunos”. Contudo, Dinis e Cavalcanti (2008) em um trabalho com foco sobre docentes destas disciplinas, relatam que a maioria das(os) alunas(os) afirma que diversidade sexual não foi um tema abordado.

Uma visão estritamente biologizante da sexualidade leva a perdas irreparáveis uma vez que, como bem destaca Altmann (2013, p. 77), “quando concebidas de uma perspectiva biológica de corpo, práticas educativas sobre sexualidade têm dificuldade de contemplar a diversidade sexual”. No ensino de ciências, argumenta Santina Célia Bordini, a lógica cientificista apreende o corpo em um discurso onde ele é

visto como resultado final de um processo de evolução biológica das espécies e consequentemente este corpo é tomado como universal. A sexualidade é concebida como derivada da Fisiologia resultante da ação de hormônios sexuais, ou seja, a educação para a sexualidade, ensinada pelo viés da disciplina de Ciências, é considerada como a reunião de diferentes saberes científicos vindos principalmente da Medicina, da Biologia e da Fisiologia (BORDINI, 2012, p. 69).

Talvez tenha sido essa visão universalista do corpo que tenha permitido que também uma visão de sexualidade - a heterossexualidade - tenha inscrito suas marcas na educação, nas práticas e discursos docentes de forma tão profunda. Como indica Louro (2011, p. 66), o majoritário silêncio reinante sobre o tema da diversidade sexual pode dizer muito sobre que tipo de abordagem da sexualidade é possível fazer, a da heterossexualidade, e ainda que “o campo da Educação opera, muito expressivamente, na perspectiva da heteronormatividade - ou seja, dentro da norma heterossexual, quer dizer, no entendimento de que todo mundo é, ou deveria ser, heterossexual”. A perspectiva heteronormativa, como constata Bortolini (2011), atravessa todo o currículo e prática pedagógica, até mesmo nos projetos e programas que trabalham com sexualidade na escola. Este entendimento é compartilhado por Nilson Fernandes Dinis, que evidencia que

O pressuposto da heterossexualidade encontra-se explicitamente exposto nas aulas de Ciências que abordam a sexualidade pelo viés reprodutivo, pelos livros de literatura que abordam apenas o viés romântico heterossexual, e também pelo modelo da família nuclear que é constantemente reproduzido nos livros didáticos. Esse cenário de exclusão apela para que o tema da diversidade sexual e de gênero seja incluído no currículo de formação de novas professoras e professores para que possam futuramente desenvolver estratégias de resistência ao currículo heteronormativo (DINIS, 2011, p. 48).

Mesmo artefatos culturais como os livros de biologia e ciências, por exemplo, são permeados pela lógica heteronormativa.

Os livros de biologia do ensino médio, ao discutirem a reprodução humana e os sistemas genitais feminino e masculino, apresentam uma definição de vagina como órgão genital feminino receptor do pênis no ato sexual e por onde sai o bebê no momento do parto, evidenciando a naturalização tanto da heterossexualidade quanto do estereótipo de gênero que associa linearmente a mulher à maternidade. ... Não há espaço nos livros de biologia de ensino médio para o corpo como um indicativo de performances sociais e de gênero ou para práticas sexuais além do coito heterossexual. ... É nesse contexto que a sexualidade se resume à apresentação das potencialidades reprodutivas de corpos masculinos e femininos. (LIONÇO; DINIZ, 2008, p. 313-317).

O estranhamento da lógica heteronormativa como ordem social é indicado por Miskolci (2009) como impulso para a emersão da Teoria Queer nos Estados Unidos no final dos anos 1980, em oposição crítica a Sociologia. A partir de luzes lançadas sob a perspectiva Queer, teóricos passaram a compreender a sexualidade como um dispositivo histórico de poder e foi Eve Sedgwick que primeiro empreendeu o entendimento “de que a ordem social contemporânea não difere de uma ordem sexual. Sua estrutura está no dualismo hetero/homo, mas de forma a priorizar a heterossexualidade por meio de um dispositivo que a naturaliza e, ao mesmo tempo, torna-a compulsória.” (MISKOLCI, 2009, p. 156). Assim, em 1991, Michael Warner cunha o termo heteronormatividade para esse sistema.

É importante destacar a marcante presença desta lógica heteronormativa no contexto educacional porque talvez ela contribua para que, na formação ou na atuação docente, profissionais da educação minorem os efeitos da discriminação e/ou preconceito em razão de identidades sexuais e de gênero. Embora homofobia e bullying homofóbico minem as oportunidades educacionais e de aprendizagem, reduzam a frequência escolar, possam provocar abandono escolar precoce, queda do desempenho e do rendimento acadêmico e diminuição das aspirações educacionais, evidências mostram menor probabilidade de intervenção de professoras(es) em casos de bullying homofóbico do que em outros tipos de bullying (UNESCO, 2013).

Vencato (2015, p. 13) verificou que, se por um lado a ideia de que é necessário se posicionar quando uma diferença se evidencia na escola é clara, por outro é rara a compreensão de que o debate acerca do respeito às diferenças é parte do trabalho docente e que “deve acontecer de modo contínuo, independente de existirem sujeitos da escola que se identifiquem ou que sejam identificados como ‘fora da norma’”.

Dinis e Calvancanti (2008, p. 104) problematizam ainda mais a questão quando concluem que algumas respostas de participantes de pesquisas sobre educação e sexualidade podem escamotear a realidade através de respostas “politicamente corretas” no plano teórico, ainda que, algumas vezes, “efetivamente não condigam com a prática”.

A formação docente, inicial ou continuada, diante desse cenário se coloca como um terreno fértil de investimentos onde as mais variadas sementes do multiculturalismo poderiam, ao serem lançadas, contribuir para a reversão desse contexto. Contudo, há que se observar que, especificamente no que concerne a questões relativas à formação docente no campo da sexualidade, e diversidade sexual, portanto, e seu imbricamento com temáticas de gênero, existe um ativismo conservador no cenário nacional que mobiliza casas legislativas, púlpitos, governos, instâncias midiáticas e aciona pânicos morais. O engajamento deliberado e pernicioso de determinados grupos se opõe à incorporação desta discussão na escola e se utiliza de diversas estratégias para isso, incluindo aí algumas cinicamente apresentadas como neutras. Biroli (2018, p. 90) adverte que, neste cenário, “a criminalização de profissionais e o questionamento dos fundamentos de sua competência ultrapassa, no entanto, escolas e universidades”.

Cabe salientar que a formação docente em diversidade sexual sob este prisma passa necessariamente por questões que extrapolam pura e simplesmente a formação inicial nas Universidades ou que perpassa planos, ementas e currículos de cursos de licenciaturas. Parte desta formação se aloca em contextos políticos enquanto espaços de disputas e de exercícios de poder.

Considerações provisórias

O delineamento assumido neste texto foi no sentido de expor argumentos que sustentem a ideia de que a diversidade sexual merece atenção na formação docente. As reflexões apresentadas não têm por intenção colocar a diversidade sexual em uma “queda de braço” com outros temas da diversidade e sim evidenciar a necessidade da inclusão desta temática na formação docente frente aos desafios existentes.

Apesar do pouco investimento que, aparentemente, se faz sobre diversidade sexual na formação inicial docente, é necessário desarticular as discussões sobre sexualidade de uma visão estritamente biologizante, uma vez que a suposta complementariedade entre homens e mulheres, fundamentada em critérios anatômicos e morfológicos, poderia servir de suporte para a tentativa de justificar uma única forma de expressão da sexualidade, neste caso a heterossexualidade. Assim, ao se pensar sobre currículos, artefatos culturais e discursos investidos na formação docente, é imprescindível pensar também na inclusão de abordagens que não excluam perspectivas das minorias sexuais.

Merece destaque, neste contexto, ressaltar que o combate a discriminações e outras formas de violência em função de identidade sexual e/ou de gênero faz parte do trabalho docente, além de ser uma obrigação moral e prevista em diversos instrumentos jurídicos e normativos que balizam o exercício da profissão e o ideal de educação que contribui para uma nação democrática e socialmente justa.

A (re)ação ofensiva conservadora fundamentalista que tem por inspiração ideais religiosos é digna de atenção, já que constitui ameaça a efetivação de direitos humanos e do próprio direito à educação. Ao lançar mão de diferentes estratégias de ação, impedem o avanço da formação docente em diversidade sexual e campos correlatos, questionando o conhecimento científico acumulado e criminalizando profissionais ao mesmo tempo em que se utiliza de falácias, engodos e falsa neutralidade política.

A demonização da diversidade reverbera nos mais variados graus de tentativa de criação e de execução de políticas públicas, incluindo as de formação docente e combate à exclusão, mas também em processos mais amplos como, por exemplo, em trocas políticas com Governos visando alteração ou influência em processos de gestão do Estado.

Pensar em formação docente para diversidade sexual é, portanto, ultrapassar, necessariamente, instâncias de espaços escolares e universitários.

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Notas:

1Bolsista FUNDECT (Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul).

Recebido: 17 de Fevereiro de 2018; Revisado: 29 de Agosto de 2018; Aceito: 10 de Setembro de 2018

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