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Educação: Teoria e Prática

versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.29 no.61 Rio Claro maio/ago 2019  Epub 18-Dez-2019

https://doi.org/10.18675/1981-8106.vol29.n61.p321-335 

Artigos

A PERSPECTIVA POLÍTICO-PEDAGÓGICA NA EDUCAÇÃO POPULAR DE PAULO FREIRE E A RELEVÂNCIA DE SEU PENSAMENTO

POLITICAL-PEDAGOGICAL PERSPECTIVE ON POPULAR EDUCATION OF PAULO FREIRE AND THE RELEVANCE OF HIS THOUGHT

LA PERSPECTIVA POLÍTICO-PEDAGÓGICA EN LA EDUCACIÓN POPULAR DE PAULO FREIRE Y LA RELEVANCIA DE SU PENSAMIENTO

IUniversidade Comunitária da Região de Chapecó, Santa Catarina - Brasil. E-mail: battestin@unochapeco.edu.br

IIUniversidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Câmpus de Frederico Westphalen, Rio Grande do Sul - Brasil. E-mail: ceniow@san.uri.br


Resumo

O artigo é resultado de um ensaio bibliográfico de caráter qualitativo. Como objetivo buscou-se destacar a relevância do pensamento de Paulo Freire para pensar a educação popular. Compreende-se que a práxis freireana contribui na potencialização das práticas educativas de caráter progressista e popular. A postura crítica em relação aos métodos tradicionais autoritários na educação brasileira, apontam para uma perspectiva democrática, libertadora e igualitária, fecundada pelo diálogo, no processo de construção do conhecimento. Freire pensa a educação com e a partir das classes populares. Entende-se que a centralidade de seu pensamento continua vigente e que o diálogo e a participação ativa dos sujeitos podem auxiliar a perceber as contradições e a realidade social na qual, em busca de transformação, educandos e educadores estão inseridos.

Palavras chave: Paulo Freire; Educação Popular; Práxis; Transformação

Abstract

The article is the result of a qualitative bibliographic essay. The objective was to highlight the relevance of Paulo Freire's thinking to think about the popular education. It is understood that the praxis of Paulo Freire contributes to the enhancement of educational practices of a progressive and popular character. The critical posture regarding traditional authoritarian methods in Brazilian education points to a democratic, liberating and egalitarian perspective, fecundated by dialogue, in the process of knowledge construction. Freire thinks about education with and from the popular classes. The centrality of his thinking continues in force and the dialogue and the active participation of the subjects can help to perceive the contradictions and the social reality in which, searching for transformation, learners and educators are inserted.

Keywords: Paulo Freire; Popular Education; Praxis; Transformation

Resumen

Este artículo es el resultado de una investigación bibliográfica que visa mostrar la relevancia del pensamiento de Paulo Freire para pensar en la educación popular. Se entiende que la praxis freireana contribuye a la mejora de las prácticas educativas de carácter progresista y popular, ya que las contribuciones del autor permean la fecundidad dialógica del proceso de construcción del conocimiento. Freire tiene una categorización importante en este proceso, con el proposito de pensar en una educación caracterizada con y a partir de las clases populares, favoreciendo la liberación de lo proceso de opresión experimentado. Sin embargo, el carácter central de su pensamiento sigue vigente y el diálogo y la participación activa de los sujetos pueden ayudar a percibir las contradicciones y la realidad social en la que, en busca de transformación, se insertan los estudiantes y educadores.

Palabras clave: Paulo Freire; Educación popular; Praxis; Transformación

1 Introdução

A história (oral e escrita) recente testemunha o contexto de profundas mudanças e transformações políticas, econômicas e sociais ocorridas, especialmente a partir do início do século vinte. Nada menos que duas grandes guerras mundiais (1914 e 1945) mexeram, significativamente, nas complexas relações de poder continentais. A partir do fim da Segunda Guerra Mundial (1945), o mundo todo vivencia as consequências da implementação do período histórico denominado Guerra Fria, marcado por disputas estratégicas entre Estados Unidos e a União Soviética (1991). Na prática verifica-se uma disputa pela demarcação de territórios, de um lado sob a domínio da ideologia liberal capitalista, liderada pelos norte-americanos (EUA) e do outro lado pela ideologia Socialista / Comunista, sob a liderança dos russos (URSS). Nesta verdadeira guerra por espaços e mercados (novos clientes e consumidores) as práticas liberais ampliaram o seu domínio, tanto em extensão quanto em intensidade, para todos os continentes. Como decorrência desse movimento, a queda do muro de Berlim (1989) demarca um novo tempo histórico, unindo uma nação (Alemanha - Ocidental e Oriental) que fora separada no acordo do pós-guerra de 1945.

Em termos regionais, o século vinte ficou marcado, na América Latina, por sucessivos golpes militares, característico em sociedades que não alcançaram a sua autonomia e independência frente às investidas do império (Hardt, Negri, 2001) como também pelos donos do poder (Faoro, 2001) local. De fato, a perspectiva dominadora externa tem representado um dos principais desafios para o desenvolvimento da sociedade brasileira no contexto contemporâneo. Para Fernandes (1995), o Brasil ainda não se libertou do jugo colonial. “A dominação externa é um dado permanente na nossa sociedade, não que a história seja permanente, mas é um dado permanente da nossa história essa submissão à dominação externa” (p. 195). Tal herança conservadora explica em boa parte, a produção e reprodução dos históricos privilégios das elites e as desigualdades sociais no mundo contemporâneo. No entanto, Bourdieu (2012) alerta que não basta somente constatar as desigualdades sociais, é preciso explicitar os mecanismos que sustentam tal realidade, e como esse funcionamento impede a construção de projetos alternativos. Freire (2000) entende que cabe a educação popular denunciar as situações de injustiça e anunciar possibilidades de construção de uma sociedade mais bonita.

No atual cenário brasileiro, profundamente marcado pela má distribuição de renda e poder, projetos alternativos de vida em sociedade encontram sua fonte de inspiração na pedagogia freireana, quiçá pelo fato de Freire compreender a politicidade da educação em que a leitura da palavra implica leitura do mundo. Segundo o autor, este tipo de leitura requer a ação para transformar o mundo através da desocultação e desvelamento (2015) da dominação, no sistema capitalista de produção.

A obra de Freire evidencia e explicita as complexas práticas e estratégias de (re)produção da opressão do capital sobre o mundo do trabalho, bem como as diferentes formas de manutenção das redes que comprometem a prática da justiça social. Neste âmago, o autor inaugura a pedagogia do oprimido “que tem que ser forjada com ele e não para ele (...) que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação” (1983, p. 32). A conscientização é um conceito fundante para a superação da situação de não ser, em busca da recuperação da humanidade.

Entende-se que a Educação Popular representa efetivamente “um nadar contra a correnteza” (Freire, 2015, p. 118), apontando possíveis caminhos para os desafios do nosso tempo por ser um tipo de educação comprometida com os interesses dos setores populares. Por isso, a proposta do artigo fundamenta-se na concepção de que a pedagogia freireana continua sendo uma perspectiva político-pedagógica importante na busca da realização de um mundo mais igualitário, mais fraterno, onde as pessoas sejam consideradas e respeitadas em suas diferenças. Entende-se que a metodologia freireana continua inspirando educadoras e educadores progressistas, em suas práticas sociais de caráter emancipatórias com sujeitos que ainda não estão em condições de dizer a sua palavra1.

O trabalho é resultado de um ensaio bibliográfico de caráter qualitativo, desenvolvido a partir de diálogos realizados no grupo de pesquisa Estudos Pedagógicos: formação docente e gestão educacional, tendo por objetivo destacar a relevância da práxis freireana para pensar a educação popular no contexto contemporâneo. Pressupõe-se que esta concepção de mundo e de educação potencializa práticas educativas de caráter progressista e popular. A postura crítica de Freire frente aos métodos tradicionais e autoritários no campo da educação, aponta para uma perspectiva democrática, libertadora e igualitária, fecundada pelo diálogo, no processo de construção do conhecimento.

2 Pensando a Educação Popular com Paulo Freire

O surgimento e afirmação da Educação Popular está associado às intensas mobilizações e lutas pela transformação da realidade política, econômica, social brasileira e latino-americana, num contexto de profundas desigualdades sociais, marcado por altos índices de analfabetismo, oferta de serviços educacionais para poucos, alto grau de concentração de renda e poder.

Essas lutas, em especial pela democratização do ensino brasileiro, foram ganhando força com o processo de desvelamento produzido por parte da população sobre as causas que levaram à insuficiência de um sistema educacional que tinha a possibilidade de se estender a toda a população. Historicamente, a instituição escolar foi um lugar segregado, que somente os indivíduos advindos de classes argentárias poderiam frequentar. Considerando a realidade educacional francesa das primeiras décadas do século vinte, Bourdieu (2012, p. 41) afirma: “Um jovem de camada superior tem oitenta vezes mais chance de entrar na Universidade que o filho de um assalariado agrícola e quarenta vezes mais que o filho de um operário...”. Por isso é preciso reconhecer que o direito de adentrar no espaço escolar é uma conquista das classes populares, porém a escola permaneceu sob o domínio e a influência da elite.

A figura de Paulo Freire está associada diretamente ao Movimento de Base, fundamento da Educação Popular no Brasil. Com a experiência do chamado método de alfabetização, tornou-se conhecido em todo o país. Essa experiência começou na cidade de Angicos (1963), na qual 300 trabalhadores rurais foram alfabetizados em 45 dias, e que seria implantada em todo o país através dos chamados Círculos de Cultura2, no entanto a ditadura militar interrompeu essa intensa luta pela democratização do ensino no país via educação.

Na década de 1960 ocorre uma significativa virada no movimento de reformulação da Educação Popular que está, diretamente, relacionado ao fazer político-pedagógico do grupo liderado por Freire. Este propõe um novo modo de alfabetização de adultos cujas técnicas centravam-se em elementos de conscientização. Nesse movimento, ocorre a crítica à concepção bancária de educação que converte o sujeito em depósito de informações, e se propõe uma educação problematizadora. Essa educação proposta freireana marcou fortemente os debates na década de 60 e 70. Freire critica as concepções que colocam opressor e oprimido fora do contexto de luta. Para ele, tanto o oprimido como o opressor são impedidos de ser plenamente humanos, porém não estão condenados à desumanização, pois a reflexão sobre a opressão auxilia no engajamento da luta pela libertação. Essa libertação é possível quando o sujeito descobre, desvela e desoculta os mecanismos que geram a opressão, realidade que pode ser modificada. Nesse processo de desvelamento e conscientização o ato educativo dialógico pode ser decisivo para o desenvolvimento de um tipo de educação emancipatória. Porém destaca que “a desocultação não é de fato tarefa para educadores a serviço do sistema” (Freire, 2015, p. 116).

A identificação da pedagogia freireana com as práticas dos movimentos sociais fundamenta-se nas possibilidades reais de transformação do mundo, uma tarefa de sujeitos que buscam uma perspectiva de vida melhor pela organização, força política do movimento. A transformação está contida na superação das situações limite destacando o inédito viável. As situações limites são entendidas aqui como a opressão que faz com que os sujeitos tenham uma posição passiva frente à exploração a que são submetidos. A capacidade de indignar-se frente às injustiças é uma virtude necessária superar limites.

Para o sociólogo Florestan Fernandes (1995, p. 194), há dois tipos de projeto em constante disputa no campo político (brasileiro): o projeto da elite procurando manter o monopólio do poder na medida que “sabotam a educação, a reforma agrária, os direitos dos trabalhadores, bloqueiam a passagem das populações excluídas, sem classe, para o setor classificado”; e o nosso projeto, segundo o autor, que busca “criar um sistema de poder alternativo, que comece a funcionar para todo o país, que tenha a capacidade de integrar a nação para que outros processos que promovam a integração nacional se desencadeiem”.

O que significa na atualidade o processo de sabotagem que a elite pratica na educação? De que forma os interesses da classe dominante estão presentes, conectados com determinados projetos como “Escola Sem Partido”, em discussão no parlamento brasileiro? A quem interessa o processo de despolitização do ato educativo? Quais razões justificam a diminuição de parcela significativa de recursos do orçamento destinados à educação no momento atual? Como explicar para a sociedade a Reforma do Ensino Médio, que tornou optativas disciplinas de humanidade (Filosofia, a Sociologia e Artes), que tem contribuído para o desenvolvimento da educação integral dos jovens e no desvelamento das desigualdades sociais no contexto brasileiro? Tudo isso só pode ser analisado e compreendido no âmbito do movimento de interesses do capital internacional em comunhão com os grupos econômicos locais. Estes influenciam as instituições e a tomada de decisões em diferentes ambientes e âmbitos, principalmente nos processos políticos eleitorais, através de financiamento de candidaturas que defendam seus projetos. Dessa forma sequestram os três poderes do Estado (executivo, legislativo e judiciário) para direcionar recursos. Nesta perspectiva os interesses populares são desconsiderados.

Compreender e assumir a pedagogia freireana no contexto atual significa não adaptação a esta situação que desumaniza. É fundamental não perder a esperança na capacidade de indignar-se e abrir-se para a necessária organização coletiva e, reescrever sua história na perspectiva dos oprimidos. Ao superar a posição passiva frente aos acontecimentos, o ser humano percebe-se sujeito histórico destacando o inédito viável e transformando a realidade opressora. Freire ressalta que a vida dos sujeitos está marcada por possibilidades e por situações a serem problematizadas por eles, enquanto pertencentes a classes oprimidas.

A obra de Freire destaca a importância da superação da educação bancária por considera o sujeito como receptor passivo de informações e ressalta a importância da participação ativa de todos os sujeitos, enfatizando que a transformação de uma determinada realidade social não pode ser realizada por um grupo de intelectuais que pensam sobre os sujeitos das classes populares. Na opinião dele, esses têm outro papel, que é o de auxiliar os sujeitos a, por meio da análise crítica das situações realizadas, ampliar sua consciência e potencializar sua prática.

A Educação Popular é constituída no bojo dos movimentos de luta das classes populares em diferentes momentos históricos, regados de luta por uma educação de qualidade, capaz de atender os interesses e necessidades das classes populares. Pensar a educação na concepção freireana, significa realizar um trabalho de leitura crítica do mundo. Ao realizar esta leitura, as pessoas se tornam agentes de transformação da realidade, auxiliando na formação cidadã dos sujeitos, bem como no crescimento de sua politicidade.

A Educação Popular encontra em Paulo Freire um de seus pilares fundantes por ele ter desenvolvido uma teoria e prática capaz de ir ao encontro dos interesses e necessidades das classes populares. Sua postura era de escuta e de humildade, mas, ao mesmo tempo, crítica e dialógica, buscando sempre a transformação da realidade opressora. A Educação Popular traz à tona as experiências e o conhecimento das classes populares, capaz de reinventar, transformar e potencializar os caminhos que levam a uma educação transformadora. Fiori apud Freire (1983, p. 3), observa que “Paulo Freire é um pensador comprometido com a vida: não pensa ideias, pensa a existência”.

Na perspectiva freireana, a Educação Popular é a educação construída pelo povo a partir de uma concepção libertadora, capaz de reconhecer no sujeito um ser pensante e agente de transformação. É “substantivamente democrática, jamais separa do ensino dos conteúdos o desvelamento da realidade (...) que estimula a presença organizada das classes sociais populares na luta em favor da transformação democrática da sociedade...” (Freire, 2015, p. 118), com o intuito de superar as injustiças sociais. Essa participação se realiza enquanto exercício de direito e cidadania do cidadão, o qual tem voz e participação ativa e atuante. Esta participação exige um diálogo, entendido não como uma simples conversa, mas como uma ideia capaz de potencializar-se entre iguais e antagônicos, sem o domínio de um sujeito sobre o outro, pois somente o conhecimento partilhado poderá vir a ser um ato político.

Na ótica de Freire, a educação precisa superar a visão tradicional de educação bancária, que se resume em depositar o conhecimento no educando. Para ele, é preciso ir ao encontro de uma educação progressista, que viabiliza a libertação, que coloca o conhecimento e a experiência das classes populares em discurso, explicitando seus desafios, problematizando e potencializando a prática. A pedagogia freireana requer conhecimento da realidade local para a prática educativa. Conhecer significa compreender como pequenos fatos se ligam a um todo maior. Logo, a partir dessa perspectiva se compreende que os fenômenos sociais estão interligados a uma estrutura e que é necessário lançar um olhar crítico sobre ela, desvelando suas intenções e contradições para poder transformar a realidade opressora. Essa compreensão da realidade não ocorre de maneira isolada, mas sim, na relação entre os sujeitos e desses com o mundo. Na prática educativa, isso supõe perceber como o educando sente a realidade para fazer dessa percepção uma construção coletiva que objetiva a leitura crítica dessa mesma realidade.

A Educação Popular no Brasil passou por diferentes espaços e formas de expressão. Inicialmente, esteve presente nos Círculos de Cultura, enquanto práticas educativas onde todos os saberes são reconhecidos e respeitados. O educador é um mediador do diálogo entre o grupo e desse com o mundo. Nesse âmbito, compreendia-se que só era possível auxiliar a desenvolver uma educação libertadora por meio da igualdade, da participação, da criatividade e da solidariedade. Nos Círculos de Cultura, segundo Brandão (2002), o diálogo deixa de ser uma simples técnica de grupo para ocupar o centro da prática educativa auxiliando o sujeito a dizer a sua palavra.

O processo de alfabetização também se constituiu em uma forma de expressão da Educação Popular, não significando apenas aprender a ler e escrever, mas aprender a ler o mundo. Isso requer aprender com um processo dialógico entre os sujeitos, diálogo concebido como processo dialético-problematizador (Freire, 1983).

Uma terceira forma de expressão da Educação Popular na pedagogia freireana é a Educação de Adultos, a qual pode auxiliar o sujeito a se libertar da opressão. Toda a prática pedagógica voltada para educação de adultos implica a leitura crítica do mundo desenvolvida via conscientização. Essa educação percebe o sujeito não como objeto, mas como sujeito de ação, partindo da realidade concreta e a problematizando para perceber suas contradições e possibilidades, podendo, assim, transformá-la.

Em meados de 1980, começaram a ser evidenciados alguns novos conceitos como globalização, neoliberalismo e modernização, supostamente objetivando o desenvolvimento do país com promessas de progresso e de avanços científicos, que não se concretizaram na perspectiva do campo popular. A pedagogia crítica freireana ensina que, para além dos discursos, é preciso conectá-los às vivências cotidianas das pessoas para desvendar as contradições. Na prática são momentos de desenvolvimento econômico sob a orientação política dos detentores do capital e poder, mas que há alternativas, não é algo do destino. Freire (2002, p. 142-143) observa: “Fala-se, porém, em globalização da economia como um momento necessário da economia mundial e que, por isso mesmo, não é possível escapar”.

Nesse contexto, pode-se perceber que os meios de comunicação de massa exerceram um papel fundamental na sustentação da ideia de que a globalização era um caminho natural da economia e, em contraponto aos movimentos populares, e as teorias que discutem esse suposto caminho natural adotam discursos como o fim da história (Fukuyama, 1992), o fim das utopias. Imagens de marginalidade aliada aos grupos populares e seus movimentos de luta e reivindicação são estratégias utilizadas pela elite para justificar seus interesses.

A Educação Popular passou por uma fase de (re)fundamentação quando incorporou novas referências sobre o sujeito, educação, conhecimento, dentre outros. A cultura popular deixou de ser interpretada apenas como classe social para tornar presente uma série de manifestações e formas de expressão presentes na população. Hoje, a ideia de classe popular, além de conter formas de dominação do passado, também busca compreender as formas de opressão na contemporaneidade. Na perspectiva de Freire (2002, p. 375), “Educação popular não quer dizer exclusivamente educação da classe pobre (...). Assim como não há nenhuma razão para que se eduque o rico e não o pobre, que razão há para que se eduque o pobre e não o rico? Todos são iguais”.

Nesse sentido, Educação Popular, como conhecemos hoje, é aquela que rompe espaços formais de educação, aproximando saberes de diferentes culturas. Tal aproximação é compreendida como troca e partilha de conhecimentos. A partir dessa concepção, só pode haver uma pedagogia que valoriza os diferentes conhecimentos trazidos pelos educandos se ela se libertar de esquemas rígidos e fechados da escola tradicional onde só se realiza aquilo que as circunstâncias permitem.

3 Desafios da Educação Popular Hoje

A Educação Popular enfrenta o caminho de recriar-se perante uma realidade em constante transformação pela via do fenômeno de globalização e da diversidade cultural. Porém, é preciso observar que a educação popular desenvolveu-se pela indignação com os processos de desumanização que condenavam a população a condições precárias de sobrevivência. Essa realidade de exploração ainda não foi superada. Pesquisas realizadas pelo estudo da ONU-Habitat, divulgados no 5° Fórum Urbano Mundial da ONU, no Rio de Janeiro, mostraram que a metade da riqueza brasileira está sob o domínio dos 10% mais ricos, enquanto para o restante da população sobram apenas 0,8% dos recursos do país. Nesse sentido, evidencia-se que as razões da existência da Educação Popular enquanto ferramenta de luta por uma sociedade mais justa, humana e sem exclusão, ainda encontra sentido.

No cenário de mundo globalizado, Zitkoski entende que a “Educação Popular é algo estratégico para a América Latina (...) e, constitui-se em caminho alternativo para a nossa afirmação autêntica na história universal enquanto culturas distintas e próprias. (ZITKOSKI, 2000, p. 31). O autor evidencia que este tipo de educação é uma das contribuições mais significativas do campo educacional surgido na América Latina, desenvolvida a partir da realidade e necessidade de sua gente. Nesse âmbito, o autor faz crítica ao amplo destaque dado à cultura norte-americana nos meios de comunicação de massas, à valorização dos autores e obras produzidas no primeiro mundo nas universidades, bem como ao pouco tempo dedicado ao estudo e compreensão dos processos educativos surgidos na América Latina. Esse fenômeno também é causa do subdesenvolvimento que deixa os países periféricos cada vez mais dependentes dos grandes centros tecnológicos e países considerados desenvolvidos.

Sobram razões que justificam a pertinência do que Zitkoski (2000, p. 32) afirma: “em termos de avanços pedagógicos e reinvenção do mundo a partir da reinvenção da cultura e da sociedade, a Educação Popular é o nosso grande legado cultural”. E mais, “enquanto sonho coletivo, ela nos oportuniza a façanha de, em cooperação, construirmos um poder imenso através do imaginário crítico e criativo de milhões de cidadãos em busca de futuro”.

Em nível mundial, no que se refere à educação, tem se revelado uma suposta preocupação em relação à educação de qualidade e inclusão, ou seja, é preciso preparar os sujeitos para enfrentar as mais complexas relações da realidade atual. Porém, é preciso perceber que, muitas vezes, essa preocupação evidenciada busca delegar à educação a resolução de problemas da estrutura da sociedade. Isso revela uma pedagogia carente para lidar com as diversidades e a falta de preparo dos profissionais. Também se percebe que, cada vez mais, a sociedade vem depositando na educação as esperanças de resolução das mazelas sociais.

No cenário atual de complexos desafios e exigências, a educação pouco consegue fazer dentro das estruturas hegemônicas e de poder que constituem a sociedade. Almeja-se que a educação Popular possa auxiliar a reconstruir e a repensar concepções e conceitos capazes de compreender as demandas vigentes, bem como recolocar os interesses e necessidades das classes populares. “O desafio que se coloca mais uma vez para a educação popular no contexto atual é explicitar e distinguir a intencionalidade dos projetos político-pedagógicos que estão em jogo o tempo todo” (WEYH, 2011, p. 149). Esta é uma forma concreta que contribui para as lutas populares resultam em projetos emancipatórios, não apenas no campo da educação.

Por isso, cabe sempre de novo perguntar sobre qual é o contexto atual da ação da educação popular. Para Carrillo (2013, p. 19-20), a educação popular se constitui enquanto concepção pedagógica e prática social pela sua alta sensibilidade aos contextos políticos, sociais e culturais onde atua. “Sua razão se define pelo permanente processo de questionamento e resistência às realidades injustas e por sua articulação com as lutas e movimentos populares” incorporando “como prática permanente a realização de leituras críticas dos contextos locais, nacionais e continentais em que se desenvolve”. (2013, p. 19-20).

Eis, pois o contínuo desafio da educação popular no momento atual, em todos os lugares e espaços em que são desenvolvidas práticas que buscam a superação de situações que causam o processo de desumanização nos diferentes ambientes da vida social.

Para melhor compreensão da concepção da pedagogia freireana e que são essenciais para pensarmos no diálogo enquanto processo político e ontológico na educação popular, Oscar Jara (2012) considera fundamentais: o diálogo em Freire não é uma técnica ou procedimento, é ontológico. É o jeito de fazer, de nos constituir enquanto humanos pensantes que somos. Para tanto, é preciso ter rigorosidade metódica, o que significa ser rigoroso, seguir regras, significa acima de tudo coerência ética, tendo como ponto de partida, a escuta, o diálogo, os objetivos que queremos alcançar e o método que se quer implantar. Por isso, podemos reinventar a ética, os métodos, os programas. O diálogo como processo político-pedagógico na ótica da educação popular é político como substantivo, ético e coerente. Deve haver articulação entre o processo e a finalidade no contexto da educação. A prática pedagógica pode nos permitir chegar aonde almejamos. É preciso coerência entre a reflexão e a ação para construir o inédito viável, para construir novos cenários. Não há nada acabado, totalmente pronto. A própria história é um tempo de possibilidades e não de determinismos. A perspectiva desenvolvida na pedagogia freireana está grávida da esperança de vida melhor para os povos oprimidos, os desclassificados da terra.

Com Freire afirmamos que se a educação não pode tudo, mas algo ela pode. Este algo é fundamental para potencializar a difícil e necessária transformação da realidade na sociedade brasileira. Entendemos que a educação popular tem um caráter libertador, gera em nós a capacidade de romper com aquilo que amarra. Por isso, a educação popular nos constitui sujeitos com capacidade de transformar a nós mesmos, enquanto transformamos a realidade.

4 Considerações conclusivas

A educação é entendida como um processo de formação permanente e continuada. Neste sentido e por coerência metodológica, entende-se que a Educação Popular pensada por Freire é uma mediação fundamental para o desenvolvimento de práticas libertadoras no campo da educação. Trata-se de priorizar um enfoque que venha contribuir decisivamente na qualificação daqueles que buscam uma formação comprometida com os sujeitos e interesses das classes populares.

Freire apresenta uma importante contribuição nesse processo, pois estimula o surgimento de educação pensado com e a partir das classes populares, favorecendo a construção e desenvolvimento de práticas educativas emancipatórias. Sua proposta de educação está centrada no diálogo e na participação ativa dos sujeitos, auxiliando-os a perceberem as contradições da realidade social na qual estão inseridos para irem em busca da transformação.

A Educação Popular é um dos caminhos possíveis para ajudar a pensar o processo educativo integral por considerar a realidade na qual o educando está inserido, problematizar contextos e textos, incentivar o pensar coletivo e a dialogicidade do ato educativo. Essas são mediações didático-metodológicas que auxiliam a potencialização da prática educativa.

É preciso lembrar que a amorosidade, a alegria e a poesia são categorias ‘vivas’ da educação popular freireana. O labor do educador é ser artista. O ponto de partida está onde o educando está. O educador tem que ser sensível, tem que respeitar, romper o silêncio, encontrando o caminho certo. Para isso, deixar o aluno falar é fundamental.

Para tanto, o contexto cultural, político e social é o ponto de partida do educador para sua ação docente. O educador é artista: precisa dançar e cantar o mundo. É preciso mirar outros mundos, recriando a educação para construir poder, para construir esperança. Educação que traça um caminho para o amanhã. Conforme Freire, é preciso ter uma paciência impaciente, porque a espera não pode ser passiva.

Referências

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1As manifestações políticas lideradas pela oposição no Brasil no início do ano de 2016, evidenciam que Freire continua “latente” desconfortando os que não querem pensar na historicidade e na transformação do sistema social, gerando intolerância, desrespeito e fascismo.

2Os Círculos de Cultura, bem como em sua obra em geral, revelavam a importância de uma educação dialógica, que respeitou os conhecimentos populares. A palavra é a condição para que aconteça educação libertadora, sem a qual não é possível transformar.

Recebido: 27 de Abril de 2016; Revisado: 24 de Junho de 2018; Aceito: 07 de Maio de 2019

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