SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.29 número61POLÍTICA DE AMPLIAÇÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL: A CRIANÇA INGRESSANTE E SUA EDUCAÇÃO NOS DOCUMENTOS OFICIAISCARTÕES MESADA PARA CRIANÇAS E JOVENS: UMA PEDAGOGIA AOS MOLDES DO TEATRO NEGRO? índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação: Teoria e Prática

versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.29 no.61 Rio Claro maio/ago 2019  Epub 18-Dez-2019

https://doi.org/10.18675/1981-8106.vol29.n61.p440-460 

Artigos

CRIANÇAS, NATUREZA E FOTOGRAFIA: UMA EXPERIÊNCIA NO CERRADO

CHILDREN, NATURE AND PHOTOGRAPHY: AN EXPERIENCE IN CERRADO

NIÑOS, NATURALEZA Y FOTOGRAFÍA: UNA EXPERIENCIA EN EL CERRADO

Gabriella Pizzolante da SilvaI 
http://orcid.org/0000-0001-9808-2611

Carolina Rodrigues de SouzaII 
http://orcid.org/0000-0002-7826-1011

Sandra Fagionato-RuffinoIII 
http://orcid.org/0000-0002-9691-3626

IUniversidade Federal de São Carlos, São Paulo - Brasil. E-mail: gabriellapizzolante@gmail.com

IIUniversidade Federal de São Carlos, São Paulo - Brasil. E-mail: carolinasouza@ufscar.br

IIIPrefeitura Municipal de São Carlos, São Paulo - Brasil. E-mail: fagionato.sandra@gmail.com


Resumo

Este trabalho objetivou analisar a relação de crianças com a natureza, a partir de imagens obtidas por instrumentos tecnológicos, e as narrativas por eles construídas. A intenção principal é revelar possíveis olhares e relações dessas crianças com a experiência que foram convidadas a vivenciar. A metodologia, centrada na concepção de criança como sujeito de direitos, valoriza a autoria e a lógica infantil e, inicialmente, combinou três momentos de relação das crianças com a fotografia: a tomada de imagens em uma trilha de cerrado, a análise dessas imagens e sua categorização. Posteriormente, inseriu-se também a análise dos desenhos produzidos pelas crianças, para identificar sua visão sobre a visita ao cerrado. Constatou-se a diversidade de olhares infantis sobre a natureza e sua relação com ela. As imagens retratam bem o cerrado e seus elementos, em diferentes ângulos, distâncias, enquadramentos, focos, propósitos e sentidos; as crianças se colocaram nas fotos e desenhos e compartilharam, como num jogo de negociação e poder, a autoria de algumas fotografias.

Palavras-chave: Crianças; Natureza; Fotografia

Abstract

This work aimed to analyze the relationship of children with nature from images obtained by technological instruments and the narratives constructed by these tools. The main intention is to reveal possible perspectives and relationships of these children with the situation they were invited to experience. The methodology is centered on the idea of children as subjects of rights, values the authorship and the children's logic. Initially three moments of relation of the children with the photography was combined: the taking of images in a trail into Cerrado; the analysis of these images and their categorization. Subsequently, the drawings produced by the children was also analyzed, aiming to identify their vision about the visit to the Cerrado. The diversity of children's views on nature and their relation with it was verified. The images portray well the Cerrado and its elements, in different angles, distances, frames, focuses, purposes and senses; the children put themselves in the pictures and drawings and shared, as in a game of negotiation and power, the authorship of some photographs.

Keywords: Children; Nature; Photography

Resumen

Este trabajo objetivó analizar la relación de niños con la naturaleza a partir de imágenes obtenidas por instrumentos tecnológicos y las narrativas que construyen. La intención principal es revelar posibles miradas y relaciones de esos niños con la experiencia que fueron invitados a vivir. La metodología, centrada en la concepción del niño como sujeto de derechos, valoriza la autoría y la lógica infantil e inicialmente combinó tres momentos de relación de los niños con la fotografía: la toma de imágenes en una senda de cerrado, el análisis de esas imágenes y su categorización. Posteriormente, se insertó también el análisis de los dibujos producidos por los niños para identificar su visión sobre la visita al cerrado. Se constató la diversidad de miradas infantiles sobre la naturaleza y su relación con ella. Las imágenes retratan bien el cerrado y sus elementos, en diferentes ángulos, distancias, marcos, focos, propósitos y sentidos; los niños se colocaron en las fotos y dibujos y compartieron, como en un juego de negociación y poder, la autoría de algunas fotografías.

Palabras clave: Niños; Naturaleza; Fotografía

1 Reflexões iniciais sobre a criança e a natureza

O projeto A natureza sob a ótica da criança, desenvolvido em uma Universidade Federal do estado de São Paulo, tem como objetivo captar as interpretações feitas por crianças, por meio de registro fotográfico realizado e interpretado por elas, durante o caminhar em meio à natureza. O desenvolvimento deste trabalho busca possibilitar maior contato das crianças com ambientes naturais a partir da principal forma com que se relacionam com o mundo: a brincadeira e a exploração.

A experiência aqui analisada ocorreu nesse projeto com uma turma de 16 crianças, de 4 e 5 anos de idade, que produziram fotografias em uma área de cerrado. Ela foi pensada a partir do reconhecimento do contexto de recentes mudanças teóricas e legislativas sobre a Educação Infantil, a criança e a infância, ocorridas principalmente a partir de 1990. Dentre elas, destacamos a atual concepção de criança como sujeito de direitos, que produz cultura, constrói significados e representações particulares a respeito do que vive, exigindo que os espaços coletivos institucionais promovam uma infância de qualidade, pautada no brincar (FARIA e PALHARES, 1999).

Se recuperarmos a trajetória da Educação Infantil no Brasil, observamos que ela é marcada por intensas lutas e movimentos sociais, inicialmente garantindo o direito das mães trabalhadoras a creches e pré-escolas e, após a Constituição Federal de 1988, configurando-se como direito da criança e caracterizando o trabalho educativo nesses espaços a partir de sua função indissociável de cuidar, educar e propiciar o brincar (CERISARA, 2002), o que nos remete à complexidade da prática pedagógica na Educação Infantil, que não poderia mais ser entendida somente a partir de uma concepção assistencialista. Neste ponto, surge um novo desafio: a compreensão do caráter educativo da educação infantil.

Sobre essa questão, Souza (2008, p. 2), afirma que

[...] o problema apontado pelos estudiosos da infância está relacionado ao dilema cuidar, educar e ensinar e a respectiva concepção de educação para as crianças pequenas. A maioria de projetos e trabalhos voltados para a educação infantil, propostos a partir de áreas específicas do conhecimento, têm sido pensados e concebidos em uma perspectiva bastante disciplinar, voltada a introduzir as crianças em alguns conhecimentos já sistematizados e colocando muitas vezes em risco o processo de educação, vivência e experimentação importantes na infância.

Isso pode ser percebido, por exemplo, quando se trata de projetos e propostas de Ciências e de Educação Ambiental para as crianças pequenas, nos quais é recorrente o objetivo de formar cidadãos para atuarem no futuro. Para Souza (2008), a base dessas propostas é uma concepção psicológica pautada no desenvolvimento da criança como sujeito que virá a ser adulto e, portanto, precisa aprender conhecimentos e lógicas do mundo adulto através de percursos reprodutores e fragmentados.

Contudo, se recorremos a uma perspectiva sociológica, podemos compreender a infância como uma construção social, histórica e cultural, demarcada por contextos específicos nos quais as crianças, como atores desta categoria, produzem cultura e constroem suas subjetividades (GOBBI, 2010). Daí a importância de as práticas pedagógicas e as pesquisas acadêmicas valorizarem as representações e as linguagens infantis.

Assim, reconhecemos que os espaços de Educação Infantil possuem particularidades, tempos e lógicas que diferem das demais etapas da educação básica, percebidos principalmente pelas maneiras como as crianças, nesse espaço, vivenciam as experiências, que não podem ser pautadas na sua disciplinarização antecipada (SOUZA, 2008). Por isso, a preocupação em refletir e desenvolver com elas experiências que rompam com essa lógica.

Como este projeto envolve também a temática ambiental, buscamos subsídios que pudessem contribuir para refletir sobre essa questão. Tiriba (2005), ao falar da relação criança-natureza nos espaços institucionais de Educação Infantil, aponta que o distanciamento da natureza é tido como valor, tal que muitas propostas e projetos para as crianças pequenas tomam a natureza como objeto de estudo que deve ser explorado, com função meramente decorativa ou somente instrumental, como recurso pedagógico, e quase nunca de exploração livre.

Essas propostas pautadas em uma perspectiva disciplinar valorizam os conhecimentos sistematizados, com referência à aprendizagem de noções em sala de aula e apenas verificadas no meio externo (TIRIBA, 2005), deixando de lado os processos de experimentação e vivência tão importantes na infância (FAGIONATO-RUFFINO; SOUZA; SOUZA, 2015).

As crianças permanecem muito tempo no interior dos prédios; passam pouquíssimo tempo em áreas ao ar livre, configurando uma rotina em que as horas que elas ficam em salas de aulas são, quase sempre, muito superiores aos momentos em que podem brincar e se expressar com a natureza. Esses aspectos contrariam o discurso de que a educação ambiental, a preservação da natureza e a consciência ambiental são necessárias e importantes.

Nesse sentido, enfatizamos a necessidade de pensar propostas e projetos em que a relação criança-natureza esteja pautada pela experiência, com espaço para recriação da cultura por parte da criança, de forma a recuperar o pertencimento à natureza, que foi sendo esquecido no processo de construção da modernidade.

Inseridas nesse debate, nos interessa pensar nas relações que as crianças têm estabelecido com a natureza, mais especificamente com as áreas naturais, plantas e animais. Que olhar tem aparecido nas relações criança-natureza? Interessa-nos discutir aqui a criança ao realizar as fotografias, sua relação com os objetos tecnológicos, as imagens produzidas e as suas interpretações sobre o ambiente, a fim de revelar os olhares e as relações estabelecidas por elas com a natureza que lhes foi apresentada. O desenvolvimento desta experiência, como parte do projeto, nos dá indícios de como refletir sobre essa questão.

2 Caminhos trilhados: os registros das crianças

Para o desenvolvimento desta experiência, que envolveu registros fotográficos, recorremos aos estudos de Luttrell (2010). Para ela, a fotografia, como meio de captação do que a criança quer representar, é um instrumento midiático muito rico de exploração e de expressão. Segundo a autora, dar a câmera fotográfica nas mãos das crianças é torná-las participativas, dando-lhes poder individual e coletivo em relação ao que está posto socialmente sobre o controle das imagens, dos discursos e dos comportamentos e, portanto, como protagonista dessa experiência.

A metodologia proposta por Luttrell (2010) para o trabalho com fotografia e crianças envolve três etapas: a primeira, “Tirando fotografias” (Picture taking), refere-se à manipulação e à exploração livre da câmera fotográfica, sendo a intervenção adulta a menor possível; a segunda, “Visualização de imagens” (Picture viewing), corresponde à etapa em que as crianças veem as fotos e participam da seleção, da escolha e da análise das fotografias, envolvendo momentos individuais e coletivos de explicação e discussão, que evidenciam a natureza relacional, os diversos significados das fotografias, as vozes de cada criança; e, por fim, a terceira etapa, “Análise do conteúdo das imagens” (Picture content analysis), que envolve a categorização dos dados coletados nas etapas anteriores e dedica-se à análise dos conteúdos das fotografias produzidas através de categorias criadas pelos adultos envolvidos, professores e/ou pesquisadores, considerando-se os relatos das crianças.

Em nosso trabalho, a primeira etapa, “Tirando fotografias”, foi realizada por meio do uso de equipamentos, tais como máquinas fotográficas, tablets e celulares1. Antes da visita ao cerrado, os equipamentos foram disponibilizados às crianças, a fim de que conhecessem os aparelhos que seriam posteriormente levados para lá. A intenção desse momento inicial da atividade era a de que, durante a visita, a novidade não fosse tanto o equipamento, e sim o ambiente visitado. As crianças ligaram e desligaram os aparelhos, descobriram funções de jogos e multimídia, trocaram entre si, fotografaram seu entorno, exploraram e fotografaram os espaços da unidade (saguão, corredores, biblioteca); brincaram e produziram imagens.

Esta etapa aconteceu em uma área na borda do cerrado, bastante antropizada, porém de fácil acesso, localizada ao norte da Universidade, o que permitiu que as crianças chegassem ao local com o ônibus interno da Universidade. Já na trilha, as crianças receberam os equipamentos, bem como lanternas e binóculos, que foram introduzidos a fim de possibilitar a todas o uso de equipamentos durante a visita, já que não havia aparelhos fotográficos suficientes para todo o grupo. Com os equipamentos em mãos, iniciaram seus registros e interações, tendo sido combinado rodízio para uso dos equipamentos: ocorreriam trocas dos aparelhos entre as crianças e, algumas vezes, foi necessária a intervenção das adultas que participavam da vivência, considerando o tempo como critério para as trocas. O tablet foi o equipamento mais desejado e, vez ou outra, durante o percurso, algumas crianças se divertiram com os jogos e não utilizaram a câmera.

A caminhada foi breve (em torno de 30 minutos) e o trecho curto (aproximadamente 300m), com retorno pelo mesmo trajeto. Durante a visita, as crianças andaram em fila indiana nos trechos de trilha e em grupos nos aceiros.

Como a intenção era que elas se apropriassem daquele espaço à sua maneira, tendo como recurso apenas os equipamentos de que dispunham, foram feitas poucas intervenções ao olhar das crianças. Em alguns casos, foi compartilhado com o grupo algum elemento, um formigueiro ou uma planta, por exemplo, encontrado e fotografado por uma das crianças. Ao final do trajeto, elas foram instigadas por uma das acompanhantes adultas a observar uma árvore queimada e um urubu em uma árvore.

Terminado o trajeto, os equipamentos foram guardados para que as fotos fossem descarregadas pela equipe. A experiência realizada no cerrado foi anotada em diário de bordo e registrada em vídeo pelas pesquisadoras.

Posteriormente, na segunda etapa da pesquisa, durante a “Visualização de imagens”, as fotos resultantes da visita foram apresentadas às crianças por meio de projeção, sem nenhum tipo de seleção prévia. Suas falas e comportamentos, nesse momento, foram registrados em vídeo e diário de bordo.

As crianças não demonstram tanto interesse em fazer a análise das imagens, o que acarretou mudança de estratégia metodológica.

Leite e Leite (2014, p. 84) refletem sobre o pesquisar com crianças e imagens e traduzem esse processo como uma espécie de caminhar, “se colocar em um caminho porvir”, sem ter um caminho a priori. Para os autores, isso não significa dizer um caminho qualquer e sim um “caminho criança”, em que pesquisar se faz por experiência, por formas de experimentar.

Com isso, foi dada continuidade ao planejado e iniciou-se a realização da última etapa, “Análise do conteúdo das imagens”. A categorização das fotos foi realizada em parte tomando como base as falas das crianças na etapa anterior e em parte pautada na visão das próprias pesquisadoras.

A esta metodologia foi acrescentada ainda a análise dos desenhos realizados pelas crianças logo após a visita. Esta inserção nos pareceu adequada, pois o desenho também é uma importante linguagem infantil, sendo considerado uma das formas de representação das culturas infantis, nas quais há produção simbólica da interpretação do mundo e, neste caso, de sua relação com a natureza na experiência vivida. Além disso, “a análise, e não a interferência nos desenhos infantis, pode fornecer pistas muito interessantes para compreender as representações que a criança faz do mundo” (SOUZA, 2008, p. 116) e, neste caso, da natureza.

O registro pelas crianças ocorreu no mesmo dia da visita, ao chegar da trilha, e foi realizado em sala de aula, após a professora da turma solicitar um desenho sobre o passeio ao cerrado. Das 16 crianças presentes na visita apenas 13 fizeram o desenho, pois as demais já tinham ido embora da Unidade. Conforme iam terminando, as crianças foram identificando e nomeando o que haviam desenhado e a professora foi anotando essas informações no próprio desenho da criança.

3 “Tirando fotografias” - a relação das crianças com os equipamentos e o ambiente

Conforme já mencionado, durante o caminhar no cerrado as crianças iam trocando de equipamentos. Identificou-se a preferência delas pelo tablet, talvez por causa dos jogos, já que muitas vezes percebíamos que estavam jogando, em vez de fazerem fotos, mas podemos também creditar essa preferência à facilidade de uso, ou à inovação tecnológica que ele representa, fato talvez já identificado pelas crianças. Os celulares, que eram antigos, pouco as atraíam, e a dificuldade para chegar à câmera do aparelho, por vezes dificultava seu uso, sendo necessário recorrer aos adultos para encontrá-la. Quanto às câmeras propriamente ditas, não apresentaram dificuldade alguma. Um dos tablets, cujo recurso de câmera era apenas para selfie, não despertou nas crianças o mesmo interesse e não foi utilizado a todo momento.

À medida que andavam, as crianças iam fazendo fotos (Figuras 1 e 2); era comum que, ao observar algum elemento (um buraco no chão, um formigueiro ou um fruto), as crianças chamassem atenção umas das outras, o que resultava em várias fotos de um mesmo elemento. Durante o trajeto, pode ser que algumas fotos tenham sido acidentais, sem intenção da criança, como, por exemplo, algumas fotos do chão. No entanto, não podemos afirmar que não tenha havido intencionalidade em alguns dos registros por elas realizados. Observamos ainda que poucas vezes as crianças tentaram sair da trilha para fazer foto mais de perto de algum elemento.

Fonte: Acervo do projeto

Figura 1 Foto feita no trajeto 

Fonte: Acervo do projeto

Figura 2 Foto feita no trajeto 

3.1 Os registros gráficos das crianças após a visita

Analisando os desenhos em conjunto com a linguagem falada das crianças, que foi registrada a partir das verbalizações, podemos perceber a presença de vários elementos observados por elas durante a visita. As crianças representaram a natureza de onde estiveram, principalmente com desenhos de árvores: do total de 13 desenhos realizados, sete representaram árvores verdes, e em dois deles há a representação do urubu visto em campo (Figuras 3 e 4); um desenho representou uma árvore seca (Figura 5) e em dois desenhos apareceu uma árvore queimada. Também representaram o sol em um céu azul, que inclusive foi fotografado.

Fonte: Acervo do projeto

Figura. 3 Urubu na árvore 

Fonte: Acervo do projeto

Figura 4 Desenho da árvore com o urubu 

Fonte: Acervo do projeto

Figura 5 Desenho representando uma árvore seca 

O chão é representado em cinco desenhos, em alguns casos com a cor verde e de forma a parecer grama (Figura 6), e em três desenhos, pintado de marrom, representando a terra e as folhas secas do caminho (Figura 7) - duas situações também observadas na visita.

Fonte: Acervo do projeto

Figura 6 Desenho da grama no chão 

Fonte: Acervo do projeto

Figura 7 Desenho da terra no chão 

Como é possível já observar nos exemplos anteriormente apresentados, em oito desenhos há representação da figura humana, ora sozinha e ora no coletivo, sendo que quatro crianças se representaram no desenho e outras quatro desenharam os colegas, mas não se incluíram na representação. Apenas uma criança desenhou uma das adultas que participou da caminhada. Em quatro desenhos é possível notar a figura humana que representa a criança segurando um aparelho, e também em quatro deles é possível notar que a figura humana usava algo na cabeça: chapéu ou boné.

Além disso, há também um registro que destacou o ônibus utilizado para chegar até o início do cerrado e um desenho que representou o percurso da caminhada, aproximando-se de um mapa.

Nesse sentido, podemos dizer que os desenhos, como linguagem e produção infantil, expressam uma maneira própria de representar o mundo; neste caso, através da ilustração dos elementos - desde os naturais aos culturais - presentes no ambiente visitado. Podemos refletir sobre o desenvolvimento da espacialidade das crianças, sua apropriação, percepção e representação dos espaços, salientando a importância do desenvolvimento de atividades em que a criança apareça como sujeito ativo, que produz cultura, constrói significados e representações a respeito do que vive.

Com o debate da construção do sentimento de pertencimento à natureza pelas crianças, ao analisar seus registros e os elementos neles presentes, fica a dúvida se as crianças se colocam no desenho porque se consideram parte do ambiente naquele momento, configurando uma ideia de criança na natureza, incorporada a ela, e não somente da natureza como algo externo, abstrato e longe; ou apenas porque se veem como parte do processo da visita realizada.

3.2 “Visualização de imagens” - a relação das crianças com as imagens produzidas

A projeção das fotos, realizada uma semana após a visita, foi um momento em que as crianças puderam ver, comentar, lembrar, observar novos detalhes - enfim, reviver a experiência e interpretar as imagens. Participaram desse momento nove crianças, sendo apenas uma menina, que pouco falou a respeito das fotografias. Nessa apresentação, as crianças demonstraram bastante euforia e atração pelo equipamento de projeção, brincando com as luzes e as sombras.

Esse foi um momento também de relação entre imagem, criança e linguagem, de construção de narrativas, de recriação. As crianças encontravam-se a si, a seus colegas e às adultas nas fotos, reconhecendo-os por detalhes como uma roupa, um sapato, um boné.

Para Luttrel (2010), a narrativa é um discurso específico de muitas vozes, em que os significados são produzidos, compartilhados, contestados e atribuídos de acordo com cada experiência. Nesta, em particular, compreendemos a análise das fotos com as crianças como um espaço de diálogo, autoria, pertencimento cultural e alerta, visto que elementos da lógica infantil aparecem em suas narrativas.

O volume de fotografias feitas foi grande (272 fotografias), e o conjunto de imagens era composto por fotos desfocadas, distantes, algumas bem próximas, outras para cima, muitos pés e chãos, fotos de espécies herbáceas, arbustivas e arbóreas, dos colegas, dos adultos, de frutos. E, por não querer desvalorizar nenhuma das autorias, não foi feito nenhum tipo de seleção para apresentar às crianças. Talvez por se tratar de uma grande quantidade de fotos, o processo de projeção durou menos que o esperado, visto que as crianças passaram a não demonstrar tanto interesse pelas fotos depois de decorrido certo tempo de projeção.

Durante essa apresentação, observamos ainda o compartilhar de autoria de algumas fotografias, como um jogo de negociação e poder entre as crianças e em razão dos diversos sentidos construídos. Leite e Leite (2014) já discutiram sobre a autoria de uma mesma foto ser tomada por várias crianças.

Observamos ainda que as crianças demonstraram atração pelos detalhes de algumas imagens que diferem do óbvio, uma vez que elas possuem modos peculiares de significar o mundo e são diferentes dos adultos, produzindo sentidos e lógicas próprias, numa contextualização cheia de possibilidades, fantasias e negociações. Por exemplo, quando, logo no início da apresentação, uma criança ao falar de uma foto disse se tratar de cocô; a partir daí, para várias outras fotos falavam o mesmo, ora adjetivando como cocô de cavalo, ora de cachorro. Ao serem questionadas pelas pesquisadoras se no cerrado tinha cavalo ou cachorro, uma das crianças falou que era cocô de formiga, já que formiga as crianças tinham visto por lá. Para outra foto, que também diziam ser cocô de formiga (Figura 8), a pesquisadora pediu que observassem bem, e uma criança disse serem folhas.

Fonte: Acervo do projeto

Figura. 8 Foto do chão com pequenas folhas 

Provavelmente a criança que inicialmente falou em cocô não acreditava ser cocô. No entanto, como o fato ganhou força entre as crianças, o argumento foi sustentado, buscando indicar de quem seria. E, após serem questionadas pela adulta, retornaram para a interpretação mais visual da imagem.

Durante essa vivência também foi percebida a troca de conhecimentos entre as crianças que, ao observarem a imagem de um buraco (Figura 9), falaram ser do “tatu buraqueiro”, de “coruja” e de “formiga”; uma das crianças, porém, corrige: “coruja buraqueira!”, e a partir daí não falaram mais sobre isso.

Fonte: Acervo do projeto

Figura 9 Foto de um buraco 

3.3 “Análise do conteúdo das imagens” - o que fotografaram as crianças?

Como já afirmado anteriormente, foram feitas 272 fotos2 na trilha de cerrado. Com base nas falas das crianças, essas imagens foram por nós categorizadas como: fotos do chão, de pessoas (dos amigos e das adultas participantes), do estrato herbáceo, da paisagem, do céu e de roupas e acessórios, como chapéu. Fotos tremidas e com dedos que impediam a interpretação foram categorizadas como não identificadas.

Chamamos de paisagem as fotos tomadas de certa distância dos elementos, em paralelo ao corpo e que não continham pessoas. As fotos de céu não necessariamente representavam apenas o céu, mas frequentemente também o topo das árvores. Foram assim categorizadas por apresentar focos apontados para cima. As fotos do estrato herbáceo eram aquelas que apontavam para baixo, na direção de alguma planta, mas não exatamente para o chão.

Fonte: autoria própria com base nas 272 fotos.

Gráfico 1 Categorização das fotografias feitas pelas crianças 

Tal como já observado pelas crianças no processo de projeção, as fotos do chão chamam a atenção por ser a maioria; em alguns casos, essas fotos mostram os pés das crianças, e muitas podem ter sido tiradas ao acaso, mas, na maioria delas, parece que a criança autora da foto buscou realmente retratar aquilo que via: folhas, solo nu, buraco. Como destaca Leite em entrevista3 a Giovana Botti (2014), muitas vezes o instrumento utilizado para fotografar é tido pela criança como uma extensão de seu próprio corpo, revelando uma não intencionalidade na ação de fotografar e levando à produção de muitas imagens em que isso fica evidente, tais como as que mostram os pés e o chão em uma espécie de continuidade.

Por outro lado, observamos muitas fotos de paisagem, com um enquadramento bem feito e poucas fotos em que não se podia compreender a imagem. Percebemos que captar o céu, com o olhar para o alto, é o enquadramento aparentemente mais difícil para as crianças. Se retomarmos o processo na trilha, vemos que isso ocorreu a partir do momento em que as adultas que acompanhavam chamaram a atenção para uma ave no alto de uma árvore, apresentando assim a possibilidade de fotografar também o que estava mais acima.

Podemos, dessa forma, dizer que o trabalho gerou, em maior ou menor quantidade, uma diversidade de imagens das crianças e da natureza, ou mais especificamente do cerrado e seus elementos, em diferentes ângulos, distâncias, enquadramentos, focos, propósitos e sentidos.

Fonte: Acervo do projeto

Figura 10 Herbácea do cerrado 

Fonte: Acervo do projeto

Figura 11 Crianças na trilha 

Fonte: Acervo do projeto

Figura 12 O chão 

Fonte: Acervo do projeto

Figura 13 A trilha 

A categorização aqui exposta objetivou facilitar a apresentação desse trilhar das crianças pelo cerrado, com o uso de recursos fotográficos, agora na ótica dos adultos envolvidos, mas concordamos com Leite (apud BOTTI, 2014) que, em seu trabalho sobre crianças e imagens, diz que essas “podem não representar nada claramente, mas nos afetam, nos sensibilizam e assim, nos levam a produzir sentidos que não estão explícitos”.

4 Algumas considerações sobre a experiência

A premissa inicial deste trabalho era a de aproximação da criança com a natureza, sem tomá-la como recurso pedagógico. No entanto, no momento da análise nos demos conta de que mais uma vez se tratou de uma atividade pontual, em que a natureza é tida como um objeto, neste caso para ser fotografado. Constituiu-se como uma atividade que levou as crianças a construírem uma visão do ambiente natural como distante, já que elas foram apenas uma vez ao local, deveriam andar apenas na trilha (por motivos de segurança e cuidado com o ambiente) e fotografar de longe. Como podemos, a partir disso, dizer que elas encontraram na atividade possibilidade de construção do sentimento de pertencimento?

Por outro lado, diferentemente do que ocorre com visitantes de trilhas interpretativas, as crianças não foram guiadas no sentido de realizar a interpretação do ambiente, na perspectiva de quem elaborou a trilha, mas sim a partir de suas próprias perspectivas. Pudemos captar as interpretações feitas pelas crianças, por meio dos registros fotográficos e desenhos realizados por elas, durante o caminhar no trecho do cerrado, colocando-as numa posição não mais de espectadoras e receptoras da informação, mas sim de autoras de sua experiência.

Portanto, essa experiência possibilitou maior contato delas com o ambiente natural, a partir da principal forma com que se relacionam com o mundo: a brincadeira e a vivência. Mostrou-nos que as crianças constroem ideias coerentes sobre ambientes naturais, sem que seja necessário ouvir uma explicação sobre ele, abrindo assim novos caminhos para se pensar a interpretação ambiental com elas. Ir até o cerrado, fotografá-lo e desenhá-lo permitiu que as crianças sentissem a natureza, interagissem com ela e registrassem seus olhares, inventando novas maneiras de conhecer o mundo e a si mesmas. Tanto nas fotografias como nos desenhos feitos por elas, há a presença das figuras humanas em meio aos elementos daquele ambiente, colocando-se como pertencentes a ele, o que nos leva mais uma vez a refletir sobre a importância de que os trabalhos na Educação Infantil busquem a interação criança-natureza da forma mais natural possível, permitindo que façam elas próprias suas interpretações.

Mediadas pelos equipamentos, as crianças construíram ideias sobre a natureza, representando os diferentes estratos e elementos do ambiente: o chão, ora com solo nu, ora com gramíneas, herbáceas, alguns arbustos, árvores; e as pessoas que visitavam o local e que naquele momento faziam parte da paisagem.

Assim, podemos dizer que a estratégia se mostrou eficiente como forma de construção própria de conhecimento sobre o ambiente de cerrado, rompendo assim com o atual paradigma moderno de racionalidade que impõe a ideia de que as relações com a natureza não são importantes e interessantes (TIRIBA, 2005).

Observamos que as produções de imagens (fotografias e desenhos) feitas pelas crianças no ambiente visitado e sobre ele demonstraram a diversidade de olhares infantis sobre a natureza e sua relação com ela. Imagens que expressam seus tempos, suas lógicas e maneiras diferentes e particulares de vivenciar, olhar e registar o espaço. Isso fica explícito, por exemplo, ao perceber os diferentes elementos escolhidos pelas crianças para serem registrados, a diversidade de ângulos, foco e distanciamento, além do interesse em fazer a foto ou em utilizar o jogo do tablet. Na análise das fotografias com as crianças, pudemos identificar sua maneira peculiar de ver as coisas e o quanto isso se distancia da lógica adulta. Por exemplo, quando as pesquisadoras questionam quem fez as fotos, o que essas esperavam era mostrar para as crianças que elas haviam feito muitas fotos do chão, mas, ao apontar para a pesquisadora como responsável, é possível que a criança esteja nos dizendo que o problema não era exatamente a quantidade de fotos do chão, mas sim a forma como organizamos a apresentação com tantas dessas fotos.

Sobre a opção metodológica do uso da fotografia como possibilidade de dar voz às crianças, concordamos com Luttrell (2010) que o objetivo não foi o de pesquisar causalidades e sim um novo olhar para as pesquisas com crianças, em que essas sejam parte integrante do processo investigado.

Trilhar com as crianças os percursos desta pesquisa foi também experimentar outros espaços-tempo, sem a certeza prévia dos caminhos que seriam percorridos, com interrupções no percurso proposto, a fim de atender às expectativas das crianças. Exemplo disso foi a interrupção na interpretação das fotos, juntamente com as crianças, após os comentários e as demonstrações de cansaço, situação essa que nos instigou a refletir sobre as limitações da proposta metodológica proposta por Luttrell (2010) para pesquisas com crianças nos espaços da educação infantil, utilizando o recurso da fotografia.

O trabalho realizado pela pesquisadora foi elaborado e utilizado com crianças maiores de dez anos. Interpretar fotos com crianças é buscar nelas a intencionalidade, porém, como nos aponta Leite (apud BOTTI, 2014), com as crianças da educação infantil nem sempre existe uma intencionalidade; pelo menos uma intencionalidade que perdure do momento em que a foto é realizada até o momento da análise ou outros. O pesquisador afirma: “Eles pegam as câmeras e saem disparando, produzindo” e, por isso, o produto final não é tão potente quanto o processo de produção, que nem sempre se dá a partir das três etapas do processo metodológico propostas pela autora.

Nesse sentido, vamos mais na direção encontrada por Leite e Leite (2014), quando eles afirmam que, ao trabalhar com fotografias, as crianças não perdem a oportunidade de explorar (as imagens produzidas, os equipamentos tecnológicos, o espaço fotografado), produzem sentidos e reinventam esses mesmos sentidos. Além disso, é aí que a criança pode, de fato, sentir-se participante da ação - sentir-se autora.

Referências

BOTTI, G. Crianças na produção de imagens. In: COMKIDS. Novidades. Cultura da Infância. 2014. Disponível em: Disponível em: http://comkids.com.br/criancas-na-producao-de-imagens/ . Acesso em: 18 jun. 2017. [ Links ]

CERISARA, A. B. O Referencial Curricular Nacional Para a Educação Infantil no contexto das reformas. Educ. Soc., Campinas, v. 23, n. 80, set. 2002. [ Links ]

FAGIONATO-RUFFINO, S.; SOUZA, C. R. de; SOUZA, A. P. G. de. “Não pise na grama!”. O lugar da criança e da natureza no currículo escolar. In: SANTOS, R. M. dos (Org.). Educação ambiental na escola. Tupã: ANAP, 2015. p. 15-26. [ Links ]

FARIA, A. L. G. de; PALHARES, M. S. (Org.). Educação Infantil pós-LDB: rumos e desafios. São Carlos: EdUFSCar, 1999. 112 p. [ Links ]

GOBBI, M. Múltiplas linguagens de meninos e meninas no cotidiano da Educação Infantil. Brasília: MEC, 2010. Disponível em: Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=6678-multiplaslinguagens&category_slug=setembro-2010-pdf&Itemid=30192 . Acesso em: 2 jun. 2015. [ Links ]

LEITE, C. D. P.; LEITE, A. R. I. P. Imagens como epígrafe: imagens lúdicas de experiência infantil. RevistAleph, Niterói, ano XI, n. 22, dez. 2014. DOI: http://dx.doi.org/10.15448/1981-2582.2015.2.17764. Disponível em: Disponível em: http://revistaleph.uff.br/index.php/REVISTALEPH/article/viewFile/86/79 . Acesso em: 16 abr. 2018. [ Links ]

LUTTRELL, W. T. A camera is a big responsibility: a lens for analysing children’s visual voices. Visual Studies, v. 25, n. 3, p. 224-237, 2010. Disponível em: Disponível em: http://www.wendyluttrell.org/files/2012/09/Luttrell-A-Camera-Is-A-Big-Responsibility.pdf . Acesso em: 2 jun. 2015. [ Links ]

SOUZA, C. R. de. A ciência na Educação Infantil - uma análise a partir dos projetos e reflexões desenvolvidos por educadores infantis. 2008. 152 f. Tese (Doutorado em Educação) - Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2008. [ Links ]

TIRIBA, L. Crianças, natureza e educação infantil. 2005. 249 f. Tese (Doutorado em Educação) - Centro de Teologia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. [ Links ]

1Os equipamentos utilizados foram obtidos por empréstimos de outros projetos já desenvolvidos pelas pesquisadoras, por doações de colegas da Universidade ou faziam parte do material da instituição de educação infantil.

2Foram feitas outras 70 fotos em uma câmera que foi derrubada, e as imagens não puderam ser identificadas. Por esse motivo foram retiradas da análise.

Recebido: 23 de Maio de 2018; Revisado: 23 de Janeiro de 2019; Aceito: 08 de Abril de 2019

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons