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Educação: Teoria e Prática

versão impressa ISSN 1993-2010versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.30 no.63 Rio Claro  2020

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v30.n.63.s14380 

Artigos

ALGUMAS REFERÊNCIAS FILOSÓFICO-RELIGIOSAS DE MIKHAIL BAKHTIN

SOME MIKHAIL BAKHTIN PHILOSOPHIC-RELIGIOUS REFERENCES

ALGUNAS REFERENCIAS FILOSÓFICAS RELIGIOSAS DE MIKHAIL BAKHTIN

1Universidade Estadual Paulista, Marília, São Paulo – Brasil. E-mail: dagoberto.arena@unesp.br.


Resumo

Este artigo elege a pesquisa sobre pensamentos religiosos de Bakhtin como tema, uma vez que são pouco comentados no meio acadêmico, tendo sido eles, e não os de natureza política, os responsáveis pela sua prisão. Os objetivos orientam para a relevância da influência de companheiros e de organizações em sua formação religiosa-filosófica e para a contestação de uma declaração do próprio Bakhtin em entrevista a Botcharov de que teria se aproximado do espiritismo. A metodologia consistiu em analisar obras que cuidam de sua vida pessoal, entre as quais as que incluem duas entrevistas concedidas por ele a Botcharov e a Duvakin, as análises de Sériot, de Depretto, de Dennes, de Ollivier, e em confrontar trechos, declarações e informações. Os resultados revelam um Bakhtin formado, desde a juventude até a morte, em movimentos de pensamentos cristãos de um lado e, de outro, de distanciamento dos princípios que alimentam lutas marxistas revolucionárias ou mesmo de princípios contrarrevolucionários. Bakhtin revelou-se apegado à moral cristã, um defensor de preceitos vinculados ao espiritualismo, mas não ao espiritismo.

Palavras-chave Bakhtin; Religiosidade em Bakhtin; Espiritualismo em Bakhtin

Abstract

The article elects aspects of Bakhtin's religious thought as theme, few commented in the academic environment, but it was they and not those of a political nature responsible for his arrest. The objectives point to the relevance of the influence of peers and organizations in their religious-philosophical formation and to the contestation of a statement by Bakhtin himself in an interview with Botcharov that he had approached spiritism. The methodology consisted of analyzing works that take care of his personal life, among which include two interviews given by him to Botcharov and Duvakin, the analyzes of Sériot, Depretto, Dennes Ollivier, and to confront excerpts, statements and information. The results reveal a Bakhtin formed from youth to death in movements of christian thoughts, on the one hand, and on the other, distancing itself from the principles of revolutionary Marxist struggles or even counterrevolutionary principles. Bakhtin was attached to the christian morals, an advocate of precepts tied to spiritualism but not to spiritism.

Keywords Bakhtin; Religiosity in Bakhtin; Spiritualism in Bakhtin

Resumen

Este artículo elige la investigación acerca de los pensamientos religiosos de Bakhtin como tema, puesto que son poco comentados en el mundo académico, pero fueron ellos, y no los de naturaleza política, los responsables de su arresto. Los objetivos apuntan a la relevancia de la influencia de sus pares y organizaciones en su formación religiosa filosófica y a la contestación de una declaración del propio Bakhtin en una entrevista con Botcharov de que se había acercado al espiritismo. La metodología consistió en analizar obras que cuidan su vida personal, entre las que se incluyen dos entrevistas que le dio a Botcharov y Duvakin, los análisis de Sériot, Depretto, Dennes, Ollivier, y en confrontar extractos, declaraciones e informaciones. Los resultados revelan un Bakhtin formado, desde la juventud hasta la muerte, en movimientos de pensamiento cristiano por un lado y, por otro, de aislamiento de los principios que alimentan luchas revolucionarias marxistas o mismo de principios contrarrevolucionarios. Bakhtin se ha revelado adherido a la moral cristiana, un defensor de los preceptos vinculados al espiritualismo, pero no al espiritismo.

Palabras clave Bakhtin; Religiosidad en Bakhtin; Espiritualismo en Bakhtin

1 Introdução1

Os primeiros anos deste século viram repercutir temas polêmicos em torno da autoria de obras de Mikhail Bakhtin (1895-1975), notadamente a respeito das atribuídas inicialmente a Valentim Volóchinov (1895-1936) e a Pável Medvedev (1892-1938). A publicação de Marxismo e Filosofia da Linguagem no Brasil, inicialmente derivada da tradução francesa, acompanhada de apresentação e prefácio de Marina Yaguello e de Roman Jakobson, semeou dúvidas e incertezas sobre outro aspecto – os motivos da condenação de Bakhtin à prisão por cinco anos. Olhares apressados sobre o livro editado no Brasil entenderam que Volóchinov teria sido um pseudônimo. Mas nem tudo é assim tão claro. Depretto (1997) revela as zonas de sombra que rondam a vida de Bakhtin:

É verdade que com ele tudo era inabitual: sua vida continua mal conhecida e comporta sempre zonas de sombra. Neokantiano, cristão ortodoxo, detido no fim dos anos vinte por suas ligações com os círculos religiosos de Leningrado, ele conta, em seu entorno, com duas figuras oficiais, P. Medvedev e V. Volochinov, que dividem visivelmente as orientações sociológicas da época e que teriam lhe servido de codinomes.

(DEPRETTO, 1997, p. 10)2

Na esfera religiosa, a autora o situa, ainda na juventude, em movimentos da igreja ortodoxa russa e na filosofia de Immanuel Kant (1724-1804). Esses dois eixos, longe de serem contraditórios, encontram-se juntos na questão moral que vai acompanhar parte de sua obra. Os motivos reais de sua prisão foram as suas atividades ligadas ao cristianismo ortodoxo, a sociedades espiritualistas e ao ensino religioso a grupos de jovens. Teria sido essa militância que o levara à prisão, mas não a sua militância política (DUVAKIN, 2008). Não foi nem marxista militante, como declarou em entrevistas na velhice (DUVAKIN, 2008), nem participante de movimentos contrarrevolucionários. Sua militância persistente esteve vinculada a preleções, palestras e aulas de natureza aparentemente religiosa, ligadas ora a um, ora a outro movimento (BOTCHAROV, 1997; SÉRIOT, 2010).

Minha atenção foi atraída para essa temática pela primeira vez quando me deparei com a leitura da entrevista dada a Botcharov (1997). Entre as perguntas que eu me fazia estava a que se referia aos motivos de sua prisão. Surpreso, vi que, em uma das respostas dadas ao entrevistador, Bakhtin afirmava ter se interessado pelo freudismo e pelo espiritismo:

  • M.M., o senhor não foi seduzido em algum momento pelo marxismo?

  • Não, jamais. Eu me interessei, como a muitas outras coisas, pelo freudismo e mesmo pelo espiritismo. Mas eu nunca fui, de maneira alguma, um marxista. (BOTCHAROV, 1997, p. 191. Tradução minha)3

Não é possível saber se a tradutora francesa da entrevista usou o termo espiritismo na acepção corrente na França concernente à doutrina espírita organizada por Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), cujo pseudônimo é Allan Kardec, ou se se trata de uma tradução próxima ao conceito de espiritualismo. Essa é apenas uma das referências que indicariam a religiosidade em Bakhtin, a maioria delas relativas à Igreja Ortodoxa ou a movimentos considerados de natureza ocultista. Meyer, um dos mais referenciados por ele, teria sido detido na mesma época em que fora processado e condenado (BRONCKART; BOTTA, 2012).

Tive minha atenção atraída por essa sua afirmação porque o espiritismo, conjunto doutrinário organizado por Kardec, espalhou-se por muitas esferas das sociedades francesa e brasileira nos séculos XIX e XX, enquanto todas as outras referências relacionadas a Bakhtin se circunscreveram a outros movimentos próprios dos contextos social, religioso, cultural e político da Rússia. Com o intuito de tentar melhor compreender o universo religioso por onde transitou o autodenominado filósofo Mikhail Bakhtin (DUVAKIN, 2008), decidi me enveredar por caminhos percorridos por alguns autores e por algumas obras em busca de pequenas referências e detalhes escondidos. Há informações ou comentários que se repetem, mas nenhum autor aprofunda essa discussão, porque, suponho, não interesse ao Bakhtin filósofo, pesquisador, professor. Como vida e obra, e palavra e vida, não vivem apartadas, retomo essas discussões para incluir na área da Educação alguns aspectos pouco divulgados.

Qual é o Bakhtin que se revela ao conhecimento? Vários, como afirma Depretto (1997):

[...] Bakhtin é apresentado como uma personalidade fervente, tanto como um adepto do sociologismo; é visto indiferentemente como um pensador cristão, um neokantiano, um clássico do pensamento russo, um tradicionalista, um ultramodernista, um relativista absoluto... Cada um o toma de acordo com o que lhe convém e se deixa a generalizações abusivas.

(DEPRETTO, 1997, p. 108)

O Bakhtin que interessa aqui é o que não consta na lista acima: o que participa de círculos e de debates nas fronteiras das tradicionais religiões, notadamente a Ortodoxa, em grupos de estudo que se metem nas profundezas da espiritualização humana. É um Bakhtin que concilia, no início, a filosofia kantiana e o espiritualismo e que, mais tarde, envereda para a visão estética da vida.

Para cumprir a tarefa a que me proponho, recortei trechos de pesquisadores para revelar o que eles afirmam e, vez ou outra, foi preciso recorrer a consultas no mundo digital a respeito de nomes de líderes de movimentos e de sociedades russas que tocam em temas religiosos. Minha hipótese é a de que Bakhtin não se filiara fielmente a alguma organização, mas delas recortara a sua essência, a moral, que ele fez aproximar-se da filosofia kantiana, em sua juventude, e aos princípios do cristianismo (BAKHTIN, 2010) desde a juventude até os seus últimos anos.

O percurso aqui não obedeceu à cronologia de sua vida. A decisão foi a de tomar como ponto de partida as suas econômicas declarações dadas a dois de seus entrevistadores, Botcharov (DEPRETTO, 1997) e Duvakin (2008). Em seguida, foram recortados alguns trechos de seus comentadores com o intuito de evidenciar a sua infidelidade aos movimentos e o vínculo persistente com a questão moral que parece ser o fundamento cristão por ele destacado. No caso do espiritismo, a moral formaria o tripé de sua constituição: filosofia, ciência e moral (KARDEC, 2012). O espiritismo valoriza o específico e faz recortes dos evangelhos, com ênfase no aspecto moral dos seus ensinamentos. Bakhtin, todavia, parece não ter se dedicado ao espiritismo tal como é conhecido no Brasil pelas obras de Alan Kardec (2012; 2013), mas ao espiritualismo, conceito genérico atribuído ao que transcende a vida material.

2 A moral cristã em Bakhtin

O motivo pelo qual os princípios morais-religiosos de Bakhtin são tão dispersos e pouco conhecidos se deve a ele próprio, a seu modo evasivo, o mesmo modo empregado nas polêmicas sobre a autoria das obras consideradas disputadas. Pistas foram deixadas pelos seus rastros e por seus escritos, por vezes truncados, inacabados, inconclusos, repetitivos ou contraditórios. No que diz respeito à religiosidade ligada à estética, especificamente, Botcharov afirma que:

O aspecto religioso da estética de Bakhtin é profundo mas escondido, é por isso que ele é profundo, íntimo, como um tema não expresso. Visivelmente, não somente por razões exteriores que havia na época. É dissimulado, como se Bakhtin não se permitisse decidir definitivamente essas questões.

(BOTCHAROV, 1997, p. 199)

Botcharov o provoca na entrevista para obter manifestações objetivas a respeito do tema, remetendo-o à obra que escrevera sobre Dostoiévski. Bakhtin revela que não queria falar das coisas essenciais, as filosófico-religiosas que teriam atormentado o escritor e que sobre elas não fora muito a fundo, mas expressara, pelo menos, seu distanciamento em relação à Igreja, supostamente a ortodoxa:

As questões filosóficas, aquilo que atormentou Dostoiévski toda a sua vida, foi a existência de Deus. Eu era constantemente forçado a me virar, de um lado a outro. Era preciso que eu me contivesse, mal meu pensamento começava a deslanchar, era preciso pará-lo. [...] Eu mesmo fiz reservas ao olhar da Igreja.

(BOTCHAROV, 1997, p. 181)

Julia Kristeva (1941- ), nas palavras de Botcharov, “deu uma descrição eloquente, embora pouco condescendente, da linguagem de seu Dostoiévski, linguagem humanista e ‘mesmo surdamente cristã’” (BOTCHAROV, 1997, p. 197). Mesmo contido ao analisar o escritor, seus dramas pessoais e sua relação com Deus, Bakhtin desfia outros enfrentamentos nessa mesma temática ao dialogar com um artigo de Elena Sergueevna Boulgakova (1893-1970) que analisava um Cristo de tradição espiritualista, situado na Idade Média, e as relações livres de autoridade e de submissão entre homens e Deus. Para Botcharov,

A temática espiritualista era próxima a Bakhtin, que gostava de repetir que a verdade e a força são incompatíveis, que a verdade existe sempre em uma imagem de submissão, que todo poder, todo triunfo são perigosos e que a expressão ‘vitória da verdade’ é um contradictio in adjecto’. É por causa dessa ligação da tradição espiritualista que o Cristo de Boulgakov interessava a ele.

(BOTCHAROV, 1997, p. 183)

Aqui o importante para Bakhtin é a visão espiritualista de Cristo, que a ele toca profundamente, mas não a do espiritismo de Kardec. A força, a imposição e a vitória pela força se distanciam da verdade, ela própria resultante da consciência, da decisão pessoal, da escolha que faz o homem quando livre da imposição de dogmas. Ele deixa entrever o aspecto moral que atrai a sua atenção e o vincula à verdade e à liberdade. Há, todavia, uma análise de Dennes (1997, p. 88) que vê o deslocamento das atenções de Bakhtin, que se distancia das questões da metafisica e da religião:

Deus se encontraria remetido ao domínio da fé e a filosofia parecia não ter nada a fazer com a metafísica. Compreende-se, a partir de então, a rejeição à metafísica e à religião que Bakhtin proclama quando ele desenvolve sua caminhada aos fundamentos filosóficos.

(DENNES, 1997, p. 89)

Tal como afirmara Depretto (1997), os seus pensamentos esgueiram-se por áreas nebulosas. Embora alimentem rejeições, os estudiosos de sua obra encontram aqui e ali traços que o encaminham para uma relação entre a moral kantiana e a moral espiritualista ou cristã. Esses traços impregnam, como apontam seus analistas, a sua primeira obra, Para uma filosofia do ato responsável (2010), incompleta como outras, escrita por um Bakhtin jovem, com pouco mais de 20 anos, banhado pela espiritualidade russa e pela influência marcante do kantismo nessa fase inicial de sua vida intelectual. O interessante é que Dennes (1997) articula os escritos finais de Bakhtin com essa obra iniciante, como se, próximo ao desencarne, ele tivesse promovido um retorno às suas origens como pensador envolvido pelos ensinamentos morais cristãos e pelo amor incondicional no núcleo dessa moralidade:

[...] mas no final de sua vida, seus escritos são de conteúdo mais filosófico remetendo ao que escrevera em Para uma filosofia do ato, quando ele vivia em uma atmosfera cultural impregnada não somente de influências ocidentais, mas também de interesses marcados pela espiritualidade russa. Nos seus primeiros trabalhos, ela indicava uma vida de renascimento das tradições russas antigas privilegiando as qualidades de fidelidade e de amor.

(DENNES, 1997, p. 103)

A respeito desse clima composto por estudos sobre a espiritualidade que envolvia a sociedade russa nos anos pós-revolução, Bakhtin declarou em entrevista a Duvakin (2008), quando estava com 78 anos, em 1973, que participara de associações, movimentos ou círculos, comuns à época, de caráter filosófico-religioso:

Bakhtin: [...] Mas eu participava de alguns círculos. De círculos pós-revolucionários.

Duvakin: De quais círculos? Círculos literários? Filosóficos?

Bakhtin: Filosóficos, de caráter filosófico-religioso, e de estudos literários, não oficiais.

[...]

Bakhtin: [...] É preciso deixar claro que não simpatizava muito com essa Vol’fila. [...] era uma espécie de, sabe ... oratória, principalmente de caráter liberal-democrático....

Duvakin: ... e ao mesmo tempo de um certo ideal-misticismo...

Bakhtin: ... e em parte de caráter ideal-místico. Participei também das reuniões da associação filosófico-religiosa. Essa, porém, era algo mais significativo.

Duvakin: Tinha Merenkovski, certo?

Bakhtin: Sim, tinha Merenkovski... Então, Karrachev era presidente dessa associação. Merenkovski, Gippius.... bem, e depois ainda [Dimitri V.] Filósofo que teve papel importante.

(DUVAKIN, 2008, p. 73)

Bakhtin não revela fidelidade a esse ou àquele círculo, embora tenha sido condenado por sua participação em um deles. Convém destacar a estreita ligação entre religião e filosofia, ou espiritualidade e filosofia, mas não propriamente a uma religião sistemática e de tradição. O adjetivo empregado na tradução do trecho acima é ideal-místico, mas a palavra místico pode revelar aspectos da espiritualidade ou da vida além da morte do corpo, porque esse mesmo tema se tornaria objeto de palestras de Bakhtin em Nevel (SÉRIOT, 2010), cidade em que se abrigou durante a crise econômica e onde participaria de círculos de estudos e debates.

Ao analisar os estudos sobre Bakhtin na década de 1980 nos Estados Unidos, Ollivier (1997) dedica especial atenção aos trabalhos de Clark e Holquist, que não escaparam das críticas de Bronckart e Botta (2012), que acusam os dois de terem colaborado para a mitificação de Bakhtin no Ocidente. Ollivier, apoiando-se nesses dois autores, destaca, entre outros temas, a religiosidade, mas é importante evidenciar a defesa que fazem da autoria de Bakhtin da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem e o esforço em conciliar as atividades dele, aparentemente religiosas, com princípios marxistas. Parecem ignorar o que ele mesmo dissera em suas poucas e evasivas respostas a seus entrevistadores ao repudiar sua filiação ao marxismo (DUVAKIN, 2008). Nas palavras de Ollivier (1997, p. 138),

Mas sobretudo Clark e Holquist defendem que Bakhtin é o autor. Rejeitando as objeções de pesquisadores para quem Bakhtin não poderia ter escrito textos marxistas, eles afirmam que as ideias religiosas de Bakhtin não eram incompatíveis com o marxismo, que os membros dos círculos religiosos que conheciam Bakhtin no início dos anos vinte queriam aliar a verdade cristã à sociologia marxista, reconciliar Cristo e o comunismo, e que a sua meditação neokantiana sobre as relações do eu e o outro tinham já um caráter social.

A obra de Clark e Holquist não escapa também de outras críticas, notadamente em relação ao exagerado destaque dado a uma certa “teologia disfarçada” (OLLIVIER, 1997) espalhada pelas obras bakhtinianas, mesmo entre aquelas de autoria disputada. Se a vida de Bakhtin parece nebulosa, as publicações a seu respeito não são menos conflitantes e polêmicas; entretanto, nesse mar de contradições e de informações, não há espaços, pelo menos em Bakhtin, para conciliar o marxismo com seu pendor para o mundo além da carne, porque seus próprios atos e suas próprias declarações o aproximavam de movimentos religiosos e o afastavam de preocupações político-marxistas.

3 As conferências e os debates em Nevel

Em 1918, com 23 anos, Bakhtin chegou a Nevel a convite de um de seus amigos, Pumpianski [1893-1940], para fugir da crise que varria Petrogrado. “É lá que Vološinov conhece M. Bakhtin e um grupo de jovens refugiados talentosos, entre os quais o filósofo Matvej Kagan, o filósofo e especialista em literatura L. Pumpjanskij e a pianista, Judina” (SÉRIOT, 2010, p. 21). Nessa pequena cidade de 10 mil habitantes situada na rota dos trens que iam da Rússia em direção à Polônia, Bakhtin fez parte, com outros que ali chegaram pelo mesmo motivo, entre os quais Volóchinov, de um conjunto de intelectuais em torno da figura de Kagan (1889-1937), kantiano que estudara em Magdeburgo, na Alemanha (TILKOWSKI, 2012). Esse círculo, como tantos outros, fora formado em torno de um tema central. Em Nevel, o pensamento de Kant era, com Kagan, o tema articulador. Judif Kagan, filha de M. Kagan, publicou, em 1981, um artigo, sob pseudônimo, em que

ela destaca o papel de seu pai Matvej Kagan na organização em 1918, em Nevel, do ‘seminário kantiano’ do qual participaram Bakhtin, Vološinov, Pumpiankskij, a pianista Marija Judina, o poeta, escultor e arqueólogo Boris Zubakin.

(TILKOWSKI, 2012, p. 21)

Os estudos já feitos em Petrogrado em outros círculos de natureza filosófico-religiosa não foram, entretanto, deixados à margem dos debates. Alguns estudiosos de Bakhtin relatam esses acontecimentos dentro dos limites do que puderam descobrir em jornais publicados nessa época, porque nada foi encontrado de documentos, artigos, anotações ou apontamentos. Entre os estudiosos há destaque para as pesquisas feitas diretamente em documentos por Sériot (2010), para as de Bronckart e de Botta (2012) e, ainda, para as de François (2012).

Em longa citação, Sériot (2010) recupera parte de um noticiário de um jornal revolucionário, o Molot, que jocosamente comenta uma noite de palestras dedicadas a temas religiosos ou que remetiam a discussões sobre a vida além da morte, em que não havia, segundo o autor da matéria, líderes tradicionais, mas novos líderes com as mesmas ideias do período anterior à revolução. Pumpianski se declarou cristão ortodoxo, não socialista, e discorreu sobre a relação entre o novo regime em formação e a Igreja. Bakhtin, por sua parte, defendeu a religião – chamada pelo articulista de “mordaça obscurantista” – e admitiu apreciar o socialismo, abordou a necessidade de esse movimento não abandonar a reflexão sobre a morte do corpo, portanto sobre a sobrevivência do espírito, sob pena de ser julgado pelo povo no futuro. As críticas do Molot foram ácidas e irônicas:

A bem da verdade, ouvindo-o discorrer, tinha-se a impressão de que estava prestes a se erguer e a ressuscitar o exército de mortos que jazem e apodrecem nas tumbas, e que eles iam varrer da superfície da Terra todos os comunistas e o socialismo que eles promovem.

(Nevel’skaja, 1979: 274, apudSÉRIOT, 2010, p. 33)

Sériot não tece comentários a respeito dessa performance de um Bakhtin que contava 23 anos, impregnado pelos círculos filosófico-religiosos de Petrogrado e pelo pensamento kantiano. Supostamente, seria a sua veia ocultista ou espiritualista que ainda podia ser publicamente exposta, cujas consequências viriam a se manifestar em 1928 com a sua prisão. Poder-se-ia estabelecer um elo entre a declaração dada por ele a Botcharov, de que se preocupara com o espiritismo, e esses primeiros debates públicos em Nevel, uma vez que o espiritismo de Kardec aborda não o conceito de ressureição, difundido pelo cristianismo, mas o de reencarnação e seu vínculo com o desenvolvimento moral e progressivo dos espíritos, ocupantes periódicos dos corpos humanos, como registra Kardec (2012, p. 121):

132. Qual é o alvo da encarnação dos Espíritos?

“Deus a impõe com a finalidade de fazê-los chegar à perfeição. Os Espíritos passam pela experiência da encarnação visando a objetivos; para uns é uma expiação; para outros, uma missão. Mas, para chegar a essa perfeição, devem sofrer todas as vicissitudes da existência corporal. Esta é a expiação. A encarnação tem também outro objetivo, que é o de colocar o Espírito em condições de cumprir sua parte na obra da criação. É para executá-la que, em cada mundo, toma um corpo, constituído de sua matéria essencial, a fim de nele cumprir as ordens de Deus. Desta forma, concorre ele à obra geral, avançando progressivamente.”

A ação de seres corpóreos é necessária à marcha do Universo, mas Deus, em Sua sabedoria, quis que, nessa mesma ação, encontrassem um meio de progredir e de aproximar-se Dele. É assim que, por uma lei admirável da Providência, todas as coisas estão inter-relacionadas e tudo é solidário na Natureza.

Como já alinhavei antes, no entanto, todas as relações mantidas por Bakhtin o afastam do espiritismo e o aproximam de um espiritualismo sincrético, disperso, estreitamente vinculado ao que há na tradição do cristianismo da Igreja Ortodoxa russa. Esses acontecimentos em Nevel (TILKOWSKI, 2012) foram também citados, mas sem comentários, por Todorov (1981) e retomados por François (2012) e Bronckart e Botta (2012) com base em Sériot (2010).

4 Os homens e as associações filosófico-religiosas

Com a intenção destacar a diversidade das referências religiosas de Bakhtin desde a sua juventude e para registrar o seu distanciamento do espiritismo, informação por ele fornecida a Botcharov (conforme a tradução para o francês), incorporo aqui registros de nomes e de sociedades com os quais ele manteve, por algum tempo, alguma ligação. Para isso me servirei, primeiramente, de suas duas entrevistas aqui citadas e de outros estudiosos que fizeram esforços para desvelar essas zonas sombrias. Dennes (1997, p. 82) reafirma a relevância em destacar “certas correspondências entre os princípios que orientaram a obra de Bakhtin e certos dados da tradição espiritual da Rússia. Nós podemos ver aqui uma das razões que o levaram a privilegiar o contexto social e o dialogismo”.

Entre as pessoas, igrejas e sociedades com as quais manteve relações próximas, nenhuma foi tão marcante e tão longa quando a de Alexandre Meyer, porque com ele Bakhtin esteve em Petrogrado, nos primeiros anos, depois em Nevel e novamente em Petrogrado, quando ambos foram condenados pelo stalinismo, acusados de promover reuniões religiosas, campo condenado pelo regime (SÉRIOT, 2010). Botcharov (1997) declara ter ouvido do próprio Bakhtin, em entrevista de 1972, referências de destaque a Meyer, cujos dados em nota de rodapé dessa obra, fornecidos pelo tradutor do russo para o francês, informam:

A.A. Meyer (1875-1939), pensador religioso, anima nos anos vinte em Leningrado o círculo “Ressurreição”. Preso em 1929 e condenado a dez anos no campo Solovki, depois no canal do Mar Branco-Báltico (Beilbatlag). Liberado em 1935, morre de câncer do fígado em 1939. (NdT).

(BOTCHAROV, 1997, p. 202)

Convém notar que ambos nasceram em 1875, portanto Meyer não tinha ascendência ao amigo por sua idade, mas por ser líder de um movimento. Bakhtin, inicialmente também condenado a 10 anos, cumpriu apenas cinco, graças à sua doença crônica nos ossos de uma perna, amputada nos finais da década de 1930. Esteve em situação melhor que a de Meyer, inicialmente condenado à morte (BOTCHAROV, 1997). Bakhtin disse a Botcharov que Meyer advogava a ideia de que era preciso “evitar misturar espiritualidade e política” e que, para Bakhtin também, a “política não é uma esfera que esclarece a verdade” (BOTCHAROV, 1997, p, 202-203). Se há elos entre os dois, há também divergências, como aponta Botcharov, notadamente em relação à metafísica:

Os itinerários de Bakhtin e de Meyer são paralelos como suas filosofias, mas com diferenças significativas: de um lado, a metafísica declarada de Meyer, de outro, em Bakhtin, uma atividade dramática se completava em um meio de uma grande densidade humana, uma ontologia de mundo empírico com uma rejeição aberta à metafísica, mas esclarecida teologicamente, deixando entrever perspectivas metafísicas.

(BOTCHAROV, 1997, p. 203)

Quando estavam em Petrogrado, antes de ir para Nevel, tinham ambos perto de 22 anos. Suas preocupações religiosas estavam em comunhão com outros movimentos e círculos que engrossavam as discussões naquele período sobre a existência de Deus e o papel da religião na sociedade socialista em construção. Em Duvakin (2008), todavia, Bakhtin tenta se distanciar um pouco de Meyer, apesar de não negar a admiração que a ele dedicara:

E ali ensinava Meier [Instituto Legaft] e gozava de grandíssimo sucesso e influência entre os estudantes. Essencialmente era uma figura extraordinária. Extraordinária. E como pessoa era excepcional. [...] Conhecia-o muito bem, ele esteve em minha casa (eu nunca na sua), mas não dividia suas opiniões. [...] Aleksandr Aleksandrovich Meier era uma pessoa boníssima, honestíssima, que certamente não era capaz de fazer mal a uma mosca, mas tinha uma certa fórmula, que não justificava a violência, mas de algum modo... [...] se resignava à violência, à violência revolucionária.

(DUVAKIN, 2008, p. 91-92)

Poucos anos antes da prisão, em carta de 1926 enviada a Kagan, que se encontrava então em Moscou, Pumpianski revela proximidade entre eles, porque continuavam juntos no círculo de Meyer: “Todos estes anos, mas sobretudo neste, nós nos ocupamos com perseverança de teologia. O círculo de nossos amigos os mais próximos é o mesmo: M.B. Youdina, M.M. Bakhtin, M. I. Toubianski e eu mesmo” (TODOROV, 1981, p. 15). Do círculo de Meyer, chamado Ressureição, não faria parte Bakhtin, segundo as notas das conversas em Duvakin (2008), mas todos eram muito próximos e dele participavam amigos comuns, desde Nevel, como Iudina e Pumpianski. Há, pois, contradição entre o que dizia a carta de Pumpianski e as notas registradas na obra de Duvakin, baseadas nas declarações de Bakhtin, embora a carta não explicite de que círculo se tratava. Meyer deixou uma obra importante, publicada em Paris, em 1982, em que aborda questões de filosofia. Ele não era a única referência de Bakhtin nesses temas nos anos 1920, mas as demais, nomeadas mais adiante, tinham algo em comum, a saber, segundo Dennes (1997, p. 103), o debate em torno

do modo particular de ser da Rússia no Cristianismo, e, pelo Cristianismo, no mundo e na história. Não somente se criticava o mundo, determinado pelo homem tomando o lugar de Deus, mas opunha-se também a esse mundo um espaço em que a cultura se fazia depositária de valores religiosos tradicionais e juntava os homens em uma via de espírito. Os escritos de Meyer sobre a pesquisa de um novo tipo de comunicação entre os homens, baseado no diálogo e ação, fizeram eco às preocupações de Bakhtin na mesma época e remetem a essa linha diretriz que poderia permitir envolver toda a obra de Bakhtin.

(DENNES, 1997, p. 103)

Essa observação de Dennes atribui a Meyer não apenas influências de natureza religiosa, mas também filosóficas, que forneceriam a Bakhtin, como a Volochinov e a Medvedev, as fontes para a elaboração do conceito de dialogia, o de troca, que superaria o restrito conceito de comunicação no universo do estruturalismo. Certamente não foi uma fonte única nem a fundamental, porque todos eles bebiam nas águas de estudiosos da linguagem como Baudoin de Courtenay (1845-1929) e L. Iakubinskij (1892-1945), professores de Volóchinov, especificamente sobre o dialogismo.

5 Homens, organizações e sociedades religiosas

Apesar de as discussões na organização Ressurreição liderada por Meyer terem exercido destacada influência na formação de Bakhtin, os pesquisadores encontraram outros nomes e outras organizações por onde ele passou, ou de quem e de quais pessoas se aproximou, principalmente nos anos que antecederam a prisão e o exílio. Embora muito citadas, não há, nas obras por mim consultadas, explicações a respeito da palavra “ressurreição”.e da sua escolha para dar nome a um círculo. Há, de forma notória, a visão da Igreja a respeito da ressureição do Cristo como um renascimento para a vida terrena. Novamente tomando como referência a declaração de Bakhtin de que fora próximo ao espiritismo, observa-se clara contradição que pode explicar uma possível tradução equivocada da obra de Botcharov, porque o espiritismo não defende o princípio da ressurreição. Kardec revisita os evangelhos para apontar um equívoco no entendimento do conceito de reencarnação como ressurreição:

A reencarnação fazia parte dos dogmas dos judeus, sob o nome de ressurreição. [...] Designavam pelo termo ressurreição o que o Espiritismo, mais judiciosamente, chama reencarnação. Com efeito, a ressurreição dá ideia de voltar à vida o corpo que já está morto, o que a Ciência demonstra ser materialmente impossível, sobretudo quando os elementos desse corpo já se acham desde muito tempo dispersos e absorvidos. A reencarnação é a volta da alma ou Espírito à vida corpórea, mas em outro corpo especialmente formado para ele e que nada tem de comum com o antigo.

(KARDEC, 2013, p. 68)

Essa distinção feita pelo espiritismo estabelece claramente a linha fronteiriça entre os princípios da organização a que se vinculava Bakhtin sob o nome de Ressureição e os preceitos do espiritismo. Em ordem mais ou menos cronológica, as obras pesquisadas fazem referência a uma gama variada de nomes, líderes religiosos antigos, também antigas e novas organizações, todos vinculados aos movimentos cristãos ortodoxos e suas fissuras, com os quais Bakhtin de alguma forma manteve contato. São essas referências que serão apontadas nos próximos parágrafos.

Duas confrarias são citadas por Dennes (1997): uma que se chamava Santa Sofia, outra São Serafim de Sarov, além da de Meyer já comentada, mas nada há que ilumine ou dê ao leitor informações sobre as duas primeiras.

Buscas no mundo digital informam que Santa Sofia refere-se a templo construído na Turquia, onde se deu o cisma do qual se originou a Igreja Ortodoxa. O nome é uma adaptação para o latim da palavra grega sabedoria e representa homenagem ao logos encarnado em Cristo. Esse dado estreita os vínculos de Bakhtin a segmentos da Igreja Ortodoxa russa. Por outro aspecto, Sofia, considerada uma santa do catolicismo, nasceu em Roma, por volta do ano 130 d.C., e ainda jovem se converteu ao cristianismo. O outro personagem, São Serafim, nasceu com o nome de Prokhor Moshnin (1759-1833) e foi monge em uma cidade chamada Sarov, na Rússia. Canonizado pela Igreja Ortodoxa em 1903, teria se tornado um mestre espiritual, acompanhado por estudantes, após ter tido uma visão de Maria. Registros de diálogos com seus seguidores deixam entrever o que pensava sobre a devoção ao cristianismo:

A oração, o jejum, as vigílias e outras atividades cristãs, tão boas quanto possam parecer em si, não constituem a finalidade da vida cristã, ainda que ajudem a chegar a ela. O verdadeiro objetivo da vida cristã consiste na aquisição do Espírito Santo de Deus. Quanto à oração, ao jejum, às vigílias, à esmola, e qualquer outra boa ação feita em nome de Cristo, são apenas meios para a aquisição do Espírito Santo. ( https://www.ecclesia.com.br/biblioteca/hagiografia/s_serafim_de_sarov.html ).

Foi por essas portas que Bakhtin entrou aos 21 anos, em 1916, no mundo mais próximo das sociedades religiosas e filosóficas agregadas à Igreja Ortodoxa, portanto longe de qualquer princípio do espiritismo. Dennes (1997), apoiando-se nos pesquisadores Clark e Holquist, refere-se ainda, nessa mesma época, a um outro nome: Merejkovski. E quem seria ele e por que dele se aproximara Bakhtin? Dados sobre a biografia de Dmitry Sergeyevich Merezhkovsky indicam ter nascido em 1866 e morrido em 1941 no exílio, em Paris. Foi poeta, novelista, crítico literário e pensador religioso, autor de romances histórico-filosóficos, indicado algumas vezes para o prêmio Nobel. Exilado duas vezes, a segunda vez entre 1918 e 1931, se autodeclarara profeta com uma visão cristã apocalíptica. Em 1916, tinha 60 anos e Bakhtin, 21. A governanta alemã de sua família lhe contava contos de fada e também histórias de vida de santos, motivo por que desenvolveu uma fervorosa fé religiosa. Entre 1900 e 1903, organizou um grupo chamado Reuniões Religiosas-filosóficas para encontrar alternativas aos princípios da igreja oficial. Em 1907 fundou a Sociedade Religiosa-Filosófica. Merezhkovski apoiava-se, entre tantos outros princípios, em um que preconizava ser a revolução espiritual a que devia estar sempre à frente da revolução social. Mas havia ainda outro filósofo-religioso na vida do Bakhtin jovem e de seus companheiros nos círculos por eles frequentados. Era Zubakin.

Boris Mixajlovic Zubakhin (1894-1937) participou, com Volóchinov e Bakhtin, dos debates em Nevel, para onde fora antes dos dois amigos. Zubakin é descrito por Sériot como “bispo da igreja de São João, cabalista, quiromante hierofante, [...] poeta, escultor, anarco-místico, livre-pensador e cristão” (SÉRIOT, 2015, p. 66). Foi membro da Maçonaria e da Rosa-Cruz, onde se encontraria com Volóchinov para estudar ciências ocultas. Organizou uma biblioteca sobre ocultismo, magnetizou doentes e, quando os amigos foram para Nevel, lá fundou uma comunidade espiritual, que sonhava ser a dos Cavaleiros do Espírito, planejada com Volóchinov em Petrogrado, para onde voltou logo depois. Mesmo preso, teve autorização para ir ao enterro de Volóchinov em 1936, mas em 1938 foi fuzilado durante o expurgo stalinista em que morreria também Medvedev (SÉRIOT, 2015, p. 66).

6 Conclusão

As minhas intenções, como registrei na introdução deste trabalho, tinham o objetivo de responder a perguntas que eu mesmo me fazia quando me deparava com as controvérsias a respeito da vida de Bakhtin, tanto no campo da autoria quanto no campo que dizia a respeito à prisão e também no de suas atividades em sociedades filosóficas, religiosas e políticas. Essas perguntas não me eram próprias, porque eram também compartilhadas por colegas e alunos em rodas de discussão de grupos de pesquisa. Dois outros objetivos orientaram a elaboração deste artigo. O primeiro teve como fio condutor a contestação da própria afirmação de Bakhtin de que esteve ligado ao espiritismo, e o segundo, decorrente do primeiro, de evidenciar que seus elos sempre foram com organizações e pressupostos que se mostravam como alternativos em relação às tradições da Igreja Ortodoxa russa.

A hipótese que rondava o primeiro objetivo, e que parece se confirmar, é de que houve uma opção de tradução para o emprego da palavra espiritismo em vez de espiritualismo, porque essa distinção somente é feita com muita clareza pelos estudiosos do espiritismo. Ao destacar as divergências, com as citações e referências de pesquisadores, creio ter esclarecido o equívoco causado pela tradução do russo para o francês, porque não houve mesmo preocupações em delimitar as fronteiras entre um conceito e outro.

As respostas ao segundo objetivo se encontraram com as minhas perguntas e, talvez, com as de outros leitores interessados por esse Bakhtin meio religioso, entre tantos outros desvelados por outros pesquisadores. O que inicialmente eu queria descobrir era esse Bakhtin pouco conhecido e suas ligações com as organizações de Santa Sofia, de São Serafim, de Meyer, de Merenkovski e de Zubakin, e qual teria sido a herança religiosa de que se apropriara entre os seus 20 e 35 anos, reprimida por Stalin, e que resultou em sua prisão.

1Os nomes sofrem variações porque foram escritos de acordo com as obras citadas. Quando não, foram usadas as grafias comuns em português brasileiro.

2Todas as traduções de citações derivadas do francês são de responsabilidade do autor.

3Em francês: – M.M., vous avez peu-être séduit um moment par le marxisme? – Non jamais. Je m’y suis interesse, comme à beaucoup d’autres choeses – au freudisme et même au spiritisme. Mais je n’ai jamais été, em aucune façon, um marxiste.

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Recebido: 29 de Agosto de 2019; Revisado: 09 de Dezembro de 2019; Aceito: 16 de Dezembro de 2020; Publicado: 14 de Dezembro de 2020

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