SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.30 número63POLÍTICAS DE INCLUSÃO EM EDUCAÇÃO: DISCUTINDO A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO DE GESTORES PARA A DIVERSIDADEA REPRESENTAÇÃO DAS MASCULINIDADES NO LIVRO DIDÁTICO DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação: Teoria e Prática

versão impressa ISSN 1993-2010versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.30 no.63 Rio Claro  2020

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v30.n.63.s13771 

Artigos

POLÍTICAS PÚBLICAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA EDUCAÇÃO: BREVE ANÁLISE SOBRE A “IDEOLOGIA DE GÊNERO”1

PUBLIC POLICIES OF GENDER AND SEXUALITY IN EDUCATION: BRIEF ANALYSIS OF THE "GENDER IDEOLOGY"

POLÍTICAS PÚBLICAS DE GÉNERO Y SEXUALIDAD EN LA EDUCACIÓN: BREVE ANÁLISIS SOBRE LA "IDEOLOGÍA DE GÉNERO"

Jozimara Assunção Camilo Alves1 
http://orcid.org/0000-0001-9302-2177

Célia Regina Rossi2 
http://orcid.org/0000-0002-2903-4955

1Universidade Estadual Paulista, Araraquara, São Paulo – Brasil.

2Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, São Paulo – Brasil


Resumo

Este artigo se debruçou em poder entender e pesquisar, ainda que brevemente, a “Ideologia de gênero” partindo das políticas públicas educacionais, no que tange a gênero e sexualidade, iniciando esta análise pela década de 1990, momento histórico repleto de conquistas sociais, na qual o Brasil passava por um intenso movimento, principalmente com o advento da Constituição de 1988 e os movimentos sociais que ansiavam pelas reformas. A educação não ficou de fora dessa ânsia por reformas, e neste movimento temos a homologação da LDB (1996). Nossos objetivos neste artigo foram: investigar e analisar as políticas públicas educacionais no que tange os Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade, mais especificamente nos últimos projetos de lei que versam sobre os estudos gênero e sexualidade, apontando a compreensão do legislativo brasileiro sobre o tema, conhecido popularmente na sua vertente enviesada como “Ideologia de Gênero”. E, se há reflexos delas dentro das escolas, entendendo que a forma como a escola é organizada pode (ou não) levar a uma reflexão das suas práticas pedagógicas que podem produzir e reproduzir desigualdades, pois em suas normas, métodos e na própria estrutura física da escola pode ocorrer a naturalização dessas relações desiguais presentes na sociedade.

Palavra-chave Educação; Gênero; Sexualidade; Ideologia de Gênero

Abstract

This article aims to understand and research, even if briefly, the "Gender Ideology", starting from the public education policies regarding gender and sexuality. Starting this analysis from the 1990s, a historical moment full of social achievements, when Brazil experienced an intense movement, especially with the advent of the 1988 Constitution and the social movements that craved a reform. Education was not left out of this eagerness for reforms, and in this movement, we have the approval of LDB (1996). Our objectives in this article were: to investigate and analyze educational public policies regarding Human Rights, Gender and Sexuality, but specifically in the latest draft bills that makes references about gender and sexuality studies, pointing to the understanding of the Brazilian legislative about the subject, popularly known in its biased aspect as "Gender Ideology". Then, if there are reflexes of this issues inside the schools, understanding that the way the school is organized may (or may not) lead to a reflection about its pedagogical practices that can produce and reproduce inequalities, because in its norms, methods and the very physical structure of the school can occur the naturalization of these unequal relationships that are present in society.

Keywords Education; Genre; Sexuality; Gender ideology

Resumen

Este artículo se centró en poder entender e investigar, aunque brevemente, la "Ideología de género" partiendo de las políticas públicas educativas, en lo que se refiere al género y la sexualidad, iniciando este análisis por la década de 1990, momento histórico repleto de conquistas sociales, cuando el Brasil pasaba por un intenso movimiento, principalmente con el advenimiento de la Constitución de 1988 y los movimientos sociales que ansiaban por las reformas. La educación no quedó fuera de ese afán por reformas, y en este movimiento tenemos la homologación de la LDB (1996). Nuestros objetivos en este artículo fueron: investigar y analizar las políticas públicas educativas en lo que se refiere a los Derechos Humanos, Género y Sexualidad, pero específicamente en los últimos proyectos de ley que versan sobre los estudios sobre género y sexualidad, apuntando a la comprensión del legislativo brasileño sobre el tema, conocido popularmente en su vertiente sesgada como "ideología de género". Y, si hay reflexiones sobre estos temas en las escuelas, entender que la forma en que la escuela está organizada puede (o no) llevar a una reflexión sobre sus prácticas pedagógicas que pueden producir y reproducir desigualdades, porque en sus reglas, métodos y en la propia estructura física de la escuela puede ocurrir la naturalización de estas relaciones desiguales presentes en la sociedad.

Palabras clave Educación; Género; La sexualidad; Ideología de género

1 Introdução

Iniciaremos essa breve análise acerca da “Ideologia de Gênero” partindo das políticas públicas educacionais, no que tange a gênero, pela década de 1990, momento histórico repleto de conquistas sociais (pós-ditadura militar 1965-1985). O Brasil passava por um intenso movimento, principalmente com o advento da Constituição de 1988 e os movimentos sociais que ansiavam pelas reformas.

Neste período o Brasil tornou-se signatário de vários compromissos internacionais, os quais visavam à promoção de um sistema educacional mais abrangente e igualitário. Dentre os acordos assinados podemos citar as conferências de Jomtiem (1990) e Dakar (2000), e pensando na temática (Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos) temos eventos promovidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), como as Conferências de Amam e Istamadad no final da década de 1990. Nelas o Brasil assumiu compromissos de priorizar uma educação igualitária, como aponta Rosemberg (2001).

O Brasil foi signatário, também, de todos os compromissos internacionais relativos à igualdade de oportunidades educacionais a mulheres e homens resultantes de acordos multilaterais firmados nas Conferências Internacionais da década de 1990, também patrocinadas pela ONU. Tais acordos enfatizam a prioridade da educação das mulheres e justificam-na como estratégia de escola no combate à desigualdade social e ao subdesenvolvimento

(ROSEMBERG, 2001, p. 154).

As propostas eram de igualdade de tratamento, oportunidades, que para aquele momento histórico conturbado (pós-redemocratização) creditavam ao Brasil um ar de igualdade, de crescimento, de busca e fortalecimento dos direitos humanos, necessário ao crescimento e ao desenvolvimento democrático. Autores como Rosemberg (2001) projetavam um país educacional e politicamente mais igualitário. No campo dos estudos de gênero a perspectiva também era de mudanças quanto às relações entre homens e mulheres, tendo o respeito, a dignidade como passos para o avanço dos direitos humanos.

Passadas as décadas de 1990 e 2000, vemo-nos enquanto sociedade, submersos em propostas políticas cada vez mais conservadoras, fundamentadas em uma diretriz de ordem religiosa, na sua maioria cristã de vários segmentos ou de uma vertente da política de extrema direita.

Dentre as propostas que mais têm espaço midiático temos a “Escola sem Partido”, que teve sua origem em 2004. O movimento foi criado pelo advogado e procurador Miguel Nagib, em 2004, por entender, que há um suposto fenômeno de instrumentalização do ensino para fins político ideológicos, partidários e eleitorais, que em seu ponto de vista representam doutrinação e cerceamento da liberdade do estudante em aprender. Em 2014, o deputado estadual do Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro (PSC-RJ) pediu ao Miguel Nagib que escrevesse um projeto de lei com esse teor, intitulado Programa Escola Sem Partido. Ele foi o primeiro deputado a apresentar um projeto dessa envergadura no Rio de Janeiro, em 13 de maio de 2014. O Projeto que virou lei, no entanto, foi o n.º 867, de 2015, da Câmara dos Deputados, proposta pelo Deputado Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF). Outro ponto debatido desde 2014, a partir das discussões e votações do novo Plano Nacional de Educação (PNE) é a então “Ideologia de Gênero”, conceito que emerge de grupos religiosos mais tradicionais e de políticos de extrema direita.

Para essa discussão teremos um pequeno histórico de como aconteceram as modificações no PNE e o surgimento da “Ideologia de Gênero”, e finalizaremos com a PL nº867/2015 e o que desejam grupos sociais e de políticos partidários da direita, mais retrógrados, equivocados, adeptos a entrada, na educação básica, da “Escola sem Partido”.

2 Ideologia de Gênero

A Ideologia de Gênero começou a ser construída a partir da segunda metade dos anos 1990, mas tomou força no início deste século XXI, se alastrando por vários países do mundo.

Nos diferentes países em que ocorrem, costumam integrar essas investidas morais: estruturas eclesiásticas, organizações e movimentos religiosos e grupos ultraconservadores, aliados ou articulados a diversos setores sociais e forças políticas. Sob variadas formas de atuação, articulação, financiamento e graus de visibilidade, além da hierarquia religiosa e de setores desde o início engajados na ofensiva, envolvem-se organizações de juristas e médicos cristãos, movimentos e partidos políticos de direita e extrema-direita (e não apenas), profissionais da mídia, agentes públicos, dirigentes do Estado, entre outros

(JUNQUEIRA, 2018, p. 182).

No Brasil, a entrada da Ideologia de Gênero passa a tomar mais espaço midiático a partir de 2014, durante as votações sobre o conteúdo e o próprio PNE, que vigoraria no período de 2014-2024 a Lei nº 13.005/2014. Como observam Roseno e Silva (2017), “(...) foi um importante palco para as manifestações conservadoras presentes no congresso nacional, sendo a bancada fundamentalista cristã a protagonista” (p. 3).

Esse movimento incitou a retirada das expressões “Gênero” e “Orientação Sexual” do PNE, iniciando uma onda que respingou em alguns planos estaduais e municipais de educação. Em alguns municípios houve “(...) exclusão total de qualquer estratégia ou proposição que envolve temas relacionados a gênero e sexualidade” (ROSENO; SILVA, 2017, p. 3).

Tal ação, da retirada das expressões “Gênero” e “Orientação Sexual”, acaba desconsiderando e caminhando na contramão do que a Conferência Nacional de Educação – CONAE (2014) propõe para as instituições escolares de educação básica. A CONAE faz parte do debate para a construção de um documento nacional legal, contando com vários profissionais da educação num movimento intenso pelas necessidades educacionais de cada uma das regiões representadas do país.

No texto debatido na CONAE (2014) foram apresentados termos como Homofobia, Identidade de gênero, Lesbofobia, Machismo, Movimento Feminista, entre outros, conferindo ao debate dos/as educadores/as um alinhamento com as teorias de representação e direitos humanos, refletindo o que boa parte de seus participantes entendiam como importante de ser trabalhado e discutido dentro do ambiente escolar no próximo decênio.

Enquanto o documento estava em posse dos/as professores/as o cenário encontrado era diferente, como já mencionado anteriormente. A retirada de todos os termos acima citados contou com o apoio de várias instâncias religiosas e políticas, além de muitas famílias, que não entendiam e/ou não conheciam gênero e apoiaram estes grupos religiosos. Dentre elas uma nota da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB de 2015, apud Roseno; Silva, 2017), que apresenta os seguintes argumentos:

[...] a ideologia de gênero vai no caminho oposto e desconstrói o conceito de família, que tem seu fundamento na união estável entre homem e mulher. A introdução dessa ideologia na prática pedagógica das escolas trará consequências desastrosas para a vida das crianças e das famílias (p. 4).

A argumentação principal dos representantes religiosos é o “bem-estar” da família tradicional composta por mulher e homem (heterossexuais) e filhos, ignorando as mais diversas formas de configurações familiares, interpretando as teorias que trabalham com a temática como perigosas. Esta temática coloca em pauta as mais diversas formas de existência e a necessidade de representação social em todas as esferas da sociedade, sendo uma delas a instituição escolar.

A convenção de Dakar (2000)2 já apontava e orientava sobre as disparidades de tratamento entre meninos e meninas pelo mundo, demarcando datas para eliminação dessa discrepância pelos seus signatários como “[...] até 2015, atingir a igualdade entre os gêneros em educação” (UNESCO, 2001, p. 20).

Outras conferências, como a “Conferência Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher” (1994)3, orienta “[...] combater preconceitos e costumes e todas as outras práticas baseadas na premissa da inferioridade de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados para o homem e a mulher, que legitimem ou exacerbam a violência contra a mulher” (OEA, 1994 apud, REIS; EGGERT, 2017, p. 11). Essas orientações comungam com o entendimento de que neste último século os direitos humanos também primam e fazem referência à equidade de gênero, respeito às liberdades de vivências das sexualidades e de identidades de gênero.

Tanto a Organização das Nações Unidas (ONU) quanto a Organização dos Estados Americanos (OEA) têm aprovado declarações e resoluções afirmando que a orientação sexual e a de gênero também devem ser consideradas como direitos humanos [...] a ONU publicou recomendações para os Estados referentes às principais obrigações que estes Estados têm para com lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (pessoas LGBT) [...]

(REIS; EGGERT, 2017, p. 12).

As recomendações internacionais incluem no debate, para além das referências a sexualidades e gênero, formas de proteção às violências de gênero e contra a população LGBTT, pensando do desenvolvimento de medidas como leis protecionistas. Essas leis no Brasil foram aplicadas em textos como a Lei Maria da Penha (Brasil, 2006), Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres (Brasil, 2006; 2008; 2013) e Plano Nacional de Promoção da Cidadania e dos Direitos Humanos de LGBTT (Brasil, 2009). Esses documentos e leis são frutos das políticas de representação alicerçadas nos movimentos sociais de cada segmento. Muitas dessas lutas foram acentuadas pelo processo de redemocratização.

A existência dessas recomendações e leis não as torna efetivas em todas as esferas, na maioria das vezes, seu cumprimento não é levado a cabo. Verificamos isso ao observar as estatísticas da violência de gênero e violências LGBTTfóbicas. Reis e Eggert (2017) elencam os dados da violência contra as mulheres de 2015, na qual se apresenta que “[...] entre 1980 e 2013 foram assassinadas no país 106.093 mulheres” (p.14), e contra a população LGBTT, os dados são ainda mais alarmantes, principalmente relativos a pessoas Travestis e Transexuais.

[...] A organização não governamental europeia, Transgender Europe, monitora os assassinatos de travestis e transexuais registrados e noticiados mundialmente. Segundo a entidade, entre 2008 e 2014, o Brasil liderou o ranking mundial de assassinatos, com mais de 600 travestis e transexuais mortos, seguido pelo México, com menos de 200 no mesmo período

(Transgender Europe, 2015, apud REIS; EGGERT, 2017, p. 14).

Esses dados só nos mostram o quanto os direitos efetivos ainda estão distantes da realidade e, mesmo com o aumento da visibilidade em relação à diversidade, ainda faltam práticas que contribuam para a equidade social.

As diversas formas de existências tentam representatividade efetiva há algumas décadas, mas não é preciso recorrer a momentos históricos muito longínquos para se notar a repressão quando temas da diversidade ganham exposição que de alguma forma também se relacionam à escola, como na proibição de distribuição e efetivo trabalho do projeto “Brasil sem Homofobia”, o apelidado de “Kit Gay” em 2011, um dos marcos conservadores da última década. Nesse episódio em questão temos o estreitamento de relações políticas e o fortalecimento de algumas figuras públicas, como parlamentares, pastores, bispos e padres que se utilizaram da repercussão dos debates sobre o projeto para engajar mais pessoas nas frentes direitistas e conservadoras, sob o artifício de “proteção das crianças e das famílias”.

Os discursos criados pelos defensores de que a Ideologia de Gênero destruiria a família brasileira se sustentam em:

[...] dois objetivos explícitos: primeiramente, combater as mudanças culturais que ao longo das últimas décadas vêm sendo percebidas, como a conquista mínima de direitos fundamentais da população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Transgêneros e Travestis (LGBT’s), e a crescente formulação de políticas públicas transversais em gênero e sexualidade através dos organismos internacionais; o segundo objetivo é a perda de fiéis para as igrejas evangélicas, e dessa forma, o discurso da Igreja Católica assemelha-se com o conservadorismo expresso pelos evangélicos, a fim de manter os seus adeptos mais conservadores. Ao contrário dos católicos, a Frente Parlamentar Evangélica tem crescido consideravelmente na última década, demarcando bem o seu território e a imposição das suas ideias, mesmo diante do contexto de secularização4

(ROSENO; SILVA, 2017, p. 7).

Para esta análise, como se observa na citação, as mais fortes oposições às teorias que trabalham questões de gênero e sexualidade partem dos fundamentalistas religiosos, mas essa aversão não é assunto novo, como veremos no próximo subitem.

3 Crescente conservadorismo

Assim como exposto anteriormente, um dos principais opositores aos estudos de gênero e sexualidade no Brasil é o fundamentalismo religioso de origem cristã. Conforme Heywood (2010):

[...] O fundamentalismo religioso pode ser usado como um meio para alcançar uma abrangente renovação política, o que exerce especial atração sobre as populações marginalizadas ou oprimidas; como uma forma de sustentar um meio de fortalecer a identidade nacional ou étnica ameaçada (p. 81)

No Brasil o fundamentalismo se baseia neste mesmo tipo de raciocínio, mas atualmente está ligado também a uma direita conservadora que trava uma cruzada particular em nome da “Família Tradicional” (a formada somente por homem e mulher) e da moral Cristã. Então se criou uma direita cristã: “[...] termo abrangente que descreve uma ampla coalizão de grupos essencialmente preocupados com questões morais e sociais e que objetivam manter ou restaurar o que é visto como ‘a cultura cristã’” (HEYWOOD, 2010, p. 88).

Cultura cristã que entende como uma afronta a visibilidade midiática e de representação política de grupos como o Movimento Feminista, Negro e LGBTT, “[...] cujo fortalecimento ameaçava as estruturas sociais tradicionais [...]” (HEYWOOD, 2010, p. 89). Na primeira década dos anos 2000 no Brasil, como descrito anteriormente, houve um avanço significativo das Políticas Afirmativas, colocando as questões relativas aos Direitos Humanos das pessoas LGBTQIA+(s) como referência de trabalho para as próximas décadas, englobando também no que tange à educação.

Essa lógica cristã foi aplicada a um dos documentos principais da Igreja Católica, numa maneira de direcionar e alertar os Bispos sobre os estudos de gênero e sexualidade, redigido

[...] pelo até então cardeal Joseph Ratzinger, que um ano depois se tornou o papa Bento XVI. O documento foi publicado em julho de 2004, produzido pela Congregação para a Doutrina da Fé, o antigo Santo Ofício, conhecido pelos processos inquisitoriais na Idade Média e Moderna

(ROSENO; SILVA, 2017, p. 5).

Esse documento é “A carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no Mundo”, oferecendo subsídios para o fortalecimento do patriarcado, como um dos meios de preservação da família.

Assim, a construção da doutrina católica contrária ao gênero começou no pontificado do papa Wojtyla (João Paulo II), sob o comando do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Ratzinger, que em 2005 sucederia a Wojtyla no papado, adotando o nome de Bento XVI. A partir dos anos 2000, delineia-se com clareza o adversário a ser combatido: aquilo que no Brasil recebeu o nome de “ideologia de gênero”, mas que na França e na Itália costuma ser chamada de “teoria do gender” (“théorie du gender”, “teoria del gender”), com o uso do inglês como forma de marcar sua origem alienígena. Embora se apoiando superficialmente na literatura feminista e queer, “trata-se de uma invenção polêmica dos meios conservadores católicos que visa caricaturizar e, assim, deslegitimar um campo de estudos”

(GARBAGNOLI, 2014 apud ROSENO; SILVA, 2017, p. 6).

Ao deslegitimar os estudos de gênero e sexualidade, também atacam as ideias feministas, logo que tais estudos advêm do movimento social. A carta escrita por Ratzinger aos bispos foi uma reação imediata ao debatido na Conferência Mundial de Beijing, em 1995. Como Miskolci e Campana (2017) comentam, nessa conferência substitui-se o termo mulheres por gênero, “[...] reconhecendo que a desigualdade da mulher é um problema estrutural e só pode ser abordada de uma perspectiva integral de gênero” (p. 725).

Nesse mesmo sentido a igreja católica se posicionou contra as teorias feministas, chamando as mulheres que comungam desta fé a defender suas identidades femininas com um viés essencialista, convocando-as a assumir a maternidade e a heterossexualidade como essenciais. Como na “[...] Carta aos bispos, de 31 de maio de 2004, manifestou-se contra o discurso feminista, reiterando que a maternidade era um elemento chave da identidade feminina” (MISKOLCI; CAMPANA, 2017, p.727). Um discurso equivocado, colocando o feminismo como contrário à ideia de maternidade, sendo que o movimento feminista debate “o quando e se” a mulher deseja a maternidade.

Vários documentos são criados estabelecendo o posicionamento da igreja católica contra uma então chamada Ideologia de Gênero, tais como o “Documento de Aparecida” (2000), que chama a comunidade católica com foco na América Latina a proteger a família dessas ideias feministas; o documento criado a partir do “Conselho Pontifício para a família” (2000); e a “Congregação para a doutrina da Fé”. Todos esses documentos foram construídos na ideia do perigo às famílias que representam os estudos de gênero e defendendo a ideia da existência de uma “Ideologia de Gênero”.

[...] segundo a qual cada um pode escolher sua orientação sexual, sem levar em consideração as diferenças dadas pela natureza humana. Isso tem provocado modificações legais que ferem gravemente a dignidade do matrimônio, o respeito ao direito à vida e a identidade da família

(CELAM, 2007 apud MISKOLCI; CAMPANA, 2017, p. 728).

Pautando-se no determinismo biológico como a lógica para posicionar-se também contra o movimento LGBTT, invertendo o que os estudos de gênero desenvolveram, principalmente os estudos Butlerianos, como aponta Maciel, Silva e Brabo (2017): “[...] extrapola a origem e justificação da naturalização das identidades no binarismo de gênero feminino/masculino de matriz heterossexual que, impedindo e aglutinando as inúmeras identidades fluidas em todas as possíveis performances de gênero [...]” (p. 8).

Butler critica, nos anos 1990, as limitações do conceito de gênero, questionando o sujeito Mulher no feminismo e como os estudos da época estavam baseados no binarismo mulher/homem, sexo/gênero, dando uma nova leitura para essas questões, trazendo sexo como um produto cultural.

Outros conceitos passaram a ser trabalhados com a ideia de sexualidade, criando os estudos Queer, que dialogam sobre as relações de poder na vida social e desnaturalização das identidades, principalmente daquelas que destoam das expectativas de gênero estabelecidas socialmente. Todos esses conceitos visibilizam as desigualdades e abrem premissas para lutas por direitos.

Visibilidade esta que suscitou a união de opositores aos direitos LGBTT. Portanto, atualmente

[...] não é apenas a Igreja Católica e as organizações pró-vida que se reúnem em torno de seus preceitos religiosos as únicas instituições que lideram essa cruzada. Organizações evangélicas se uniram à “causa” e em vários países da região tiveram um enorme impacto para impedir o avanço dos direitos sexuais e reprodutivos. Somam-se a esses grupos, outros, os quais apoiam a batalha por razões não apenas religiosas, caso do Programa Escola sem Partido, no Brasil, criado em 2004 como reação às práticas educacionais que seus defensores definem como “doutrinação política e ideológica na sala de aula” e “usurpação do direito dos pais sobre a educação moral e religiosa de seus filhos”

(MISKOLCI; CAMPANA, 2017, p. 730).

Após a união das forças religiosas e políticas de fundamentação cristã, temos a entrada desses mesmos posicionamentos na escola por meio do PL nº 867/2015, a “Escola Sem Partido”. Como já mencionamos anteriormente, esse projeto visava impedir a “doutrinação” nas escolas. Entendendo como doutrinação os estudos de gênero, visões políticas fora do eixo direitista e os estudos também ligados à sociologia e filosofia. Todas as formas de inserção de um pensamento crítico foram colocadas como perigosas às futuras gerações. Em sua proposta a “Escola sem Partido” (ESP) tem o objetivo de: “[...] promover mudanças na estrutura jurídica de proteção ao direito à educação, de forma a limitar aprioristicamente a liberdade de ensinar, além de vedar o desenvolvimento de políticas públicas educacionais nos campos de gênero, sexualidade e formação cidadã” (XIMENES, 2016, p. 50).

Uma desvalorização do papel ativo dos alunos, enquanto sujeitos do processo de ensino-aprendizagem, centro do debate didático educacional das últimas décadas, como também o papel da escola de instrumentalizar seus estudantes com todas as discussões teóricas possíveis, para que eles tenham subsídios para entender a sociedade (na qual estão inseridos) de forma crítica e criar sua própria visão de mundo. Ao invés de vivermos um momento histórico de estímulo a debates sobre a educação, o que tem se “[...] disseminado é o medo e o controle ideológico sobre as escolas e docentes” (XIMENES, 2016, p. 51).

Nos meios midiáticos a proposta da escola sem partido se baseia numa “[...] pretensão de neutralidade [que] é nada mais que a empreitada em busca da manutenção de privilégios sociais, econômicos, políticos e culturais” (ROSENO; SILVA, 2017, p.9). A pretensa neutralidade do PL esbarra na fundamentação cristã dos envolvidos com o projeto, como o deputado Magno Malta e algumas autoridades religiosas. Como também nas bases jurídicas da própria construção da educação nacional, logo que,

[...] neutralidade não é um valor constitucional, já que é incompatível com a própria definição de estado democrático de direito, que tem no estabelecimento de objetivos políticos, como “construir uma sociedade livre, justa e solidária” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação [...]”

(XIMENES, 2016, p. 51).

A educação brasileira não pode ser compreendida como neutra. Na sua própria estrutura legal, presente na Constituição de 1988, pressupõe alguns valores e princípios, que além de assegurados por lei estão expressos nos pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário.

A ESP faz uma confusão entre educação formal, aquela que acontece em instituições oficiais, seguindo um currículo e regras quanto à avaliação, entre outras, para assegurar seu funcionamento e a não formal, que acontece principalmente em comunidade e na família. Ambas as

[...] modalidades de educação informal e não-formal devem ser respeitadas e protegidas pelo Estado, desde que não violem os parâmetros de direitos humanos e a integridade dos educandos. Já a modalidade formal, escolar, deve ser provida pelo Estado, diretamente ou através da regulação da oferta privada, como forma de assegurar a realização dos objetivos públicos na educação escolar

(XIMENES, 2016, p. 52).

A confusão aparece na proposta como se somente o interesse e valores dos pais e responsáveis pelos/as alunos/as fossem suficientes para compor um currículo escolar em que, como pressupõe a legislação brasileira, o pluralismo de ideias e concepções é fator essencial para uma educação de fundo democrático.

Nessa proposta da Ideologia de Gênero aparece:

[...] O poder público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos, nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento da sua personalidade, em harmonia com respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero

(Brasil, 2016 citado por Roseno; Silva, p. 10).

A ideia de ideologia de gênero limita as propostas que trabalhem sexualidade e educação sexual, enfatizando que famílias são formadas apenas da união de homem e mulher. O trecho acima ainda sugere que o debate de temas relativos à temática de gênero poderá suscitar em crianças um desenvolvimento não natural da sexualidade que, em outras palavras, poderá tornar um estudante homossexual ou até transexual, logo que no projeto é usado o termo: identidade biológica de sexo.

Os estudos de gênero assustam porque visibilizam indivíduos que a partir de seus corpos questionam e desconstroem “[...] os padrões de naturalidade e normalidade tão caros para a manutenção da heterossexualidade compulsória e para a heteronorma” (COLLING, 2016, p.65). Corpos que performam outras formas de existências, potências de vida que questionam a heteronormatividade, principalmente quando em espaços públicos.

4 Considerações finais

Com foco na problemática do texto que tanto as políticas educacionais, quanto a escola que reafirmaram as relações de gênero engessada na manutenção do poder e da heteronormatividade, deixando para fora do muro da escola a discussão sobre as vivências dissidentes, bem como o respeito a elas, a igualdade e a equidade, desconsiderando como estas discussões podem influenciar nas relações interpessoais dos e das estudantes, diminuindo drasticamente as violências.

Os Direitos humanos do século 21 apontam entre outras temáticas, para a primazia pela equidade de gênero e liberdade da vivência de todas as formas de sexualidade e de identidades e relações de gênero. Mas, ao voltarmos o olhar para a escola e as políticas que direcionam seu trabalho, nos deparamos com vários níveis de repressão e exclusão para aqueles que ousam sair das normas preestabelecidas e heteronormativas.

As instituições escolares, ainda utilizam a construção dos binários de masculino e feminino, que há diferenciação, como meninos mais fortes, meninas mais frágeis, meninas mais aptas ao português e os meninos mais aptos a matemática, impondo aos meninos e meninas em formação inicial, que existe um jeito certo para se construir e se constituir homem e mulher na sociedade, mostrando com esta norma, que só há duas maneiras, ser menina e ser menino, e que há diferenças entre eles e elas. Criando assim, as marcas e expectativas de gênero que se tornam complexas e problemáticas, não somente para aqueles que destoam delas.

As identidades dessas crianças estão se construindo a partir de experiências de repressão, misoginia, homofobia, desigualdade etc. Dentro deste quadro a escola se posiciona bem no centro, as crianças de modo geral passam grande parte do seu tempo na instituição escolar, suas práticas muitas vezes imprimem “[...] sua marca distintiva sobre os sujeitos. Através de múltiplos e discretos mecanismos, escolarizam-se e distinguem-se os corpos e as mentes” (LOURO, 1997, p.62). A falta de reflexão e discussão sobre as relações de poder, de gênero, sexualidade etc, termina por reforçar violências tanto de gênero, como também a indivíduos LGBTT.

1Este texto faz parte da dissertação de mestrado em Educação Sexual, elaborada pelas autoras.

2Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001275/127509porb.pdf. Acesso em: 17 set. 2018.

3Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1973.htm. Acesso em: 17 set. 2018.

4Secularização: perda da influência, da relevância da religiosidade, sobre as variadas esferas da vida social (Nota das autoras).

Referências

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado, de 2016, que inclui as diretrizes e bases da educação nacional, de que trata a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o “Programa “Escola Sem Partido””. Brasília: Congresso Nacional, 2016. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=125666. Acesso em: 19 nov. 2017. [ Links ]

COLLING, L. O que temem os fundamentalistas? Cult, n. 217, ano 19. out. 2016 [ Links ]

HEYWOOD, A. Ideologias políticas: do feminismo ao multiculturalismo. 1. ed. São Paulo: Ática. 2010. [ Links ]

JUNQUEIRA, R. D. Políticas públicas de educação: entre o direito à educação e a ofensiva antigênnero. In: RIBEIRO, P. R. C; MAGALHÃES, J. C; SEFFNER, F; VILAÇA, T. (org.). Corpo, gênero e sexualidade: resistência e ocupa(ações) nos espaços de educação. Rio Grande: Ed. da FURG, 2018. [ Links ]

LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva Pós-estruralista. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 1999. [ Links ]

MACIEL, T. S, SILVA, M. E. F; BRABO, T. S. A. M. Desafios à educação aos “novos” direitos humanos: a construção da categoria de gênero junto aos movimentos feministas e LGBTT. Intinerarius Reflections, v. 13, n. 2, 2017. p. 1-19. DOI: https://doi.org/10.5216/rir.v13i2.45424. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/rir/article/view/45424. Acesso em: 17 jun. 2017. [ Links ]

MISKOLCI, R.; CAMPANA, M. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Revista Sociedade e Estado. v. 32, n. 3, p. 725-748. set./dez. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/s0102-69922017.3203008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-69922017000300725&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 17 jun. 2017. [ Links ]

REIS, T; EGGERT, E. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de educação brasileiros. Educ. Soc, Campinas, v. 38, n. 138, p. 9-26, jan./mar. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/es0101-73302017165522. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0101-73302017000100009&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 17 jun. 2017. [ Links ]

ROSEMBERG, F. Políticas educacionais e gênero: um balanço dos anos 1990. Cadernos Pagu (16). Campinas. 2001 [ Links ]

ROSENO, C. P; SILVA, J. G. F. Políticas públicas educacionais em gênero e diversidade sexual: Atos de resistência diante do avanço do conservadorismo do movimento “Escola Sem Partido”. Itinerarius reflectionis, Porto Alegre, v. 13, n. 2., p. 5-22, jul./dez. 2017. [ Links ]

UNESCO. Conferência mundial sobre educação para todos: provendo serviços as necessidades básicas de educação. Declaração mundial sobre educação para todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem. Jomtiem, Tailandia, 1990. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0008/000862/086291por.pdf. Acesso em: 17 jun. 2017. [ Links ]

XIMENES, S. O que o direito à educação tem a dizer sobre “Escola Sem Partido”? In: AÇÃO EDUCATIVA, Assessoria, Pesquisa e Informação (org.). A ideologia do movimento “Escola Sem Partido”: 20 autores desmontam o discurso. Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação (org.). São Paulo: Ação Educativa. 2016. [ Links ]

Recebido: 04 de Dezembro de 2018; Aceito: 29 de Janeiro de 2019; Publicado: 28 de Agosto de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.