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Educação: Teoria e Prática

versión impresa ISSN 1993-2010versión On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.30 no.63 Rio Claro  2020  Epub 01-Jul-2020

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v30.n.63.s14052 

Entrevista

ENTREVISTA COM CIRCE BITTENCOURT1

1Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Dourados, Mato Grosso do Sul – Brasil. E-mail: diogosr@yahoo.com.br.


1 Apresentação

Em dezembro de 2017, a professora Circe Bittencourt aceitou participar do projeto: Biografias intelectuais: trajetórias de pesquisadoras pioneiras nos estudos históricos brasileiros, concedendo-nos uma entrevista – que se segue abaixo na íntegra. O projeto foi contemplado pelo Edital nº 013/2015 – Memórias Brasileiras: Biografias, da Capes, com vigência entre nov./2016 e nov./2019, auxílio nº 2003/2016. Seu principal objetivo é identificar algumas das profissionais que foram pioneiras nos estudos históricos brasileiros, cuja obra foi de fundamental importância para pensarmos e repensarmos a história do Brasil republicano. A obra de Circe Bittencourt, como os leitores e leitoras veem abaixo, no questionário respondido que ela nos encaminhou em março de 2018, faz parte deste rol de estudiosas, em função de seus estudos e de suas contribuições, para repensarmos na história do Brasil republicano. Com pesquisas voltadas para o estudo de instituições educacionais; a composição, conteúdo, usos e divulgação do livro didático; a formação de nossas tradições cívicas; a história e cultura indígena; e as metodologias e fundamentos do ensino de História, seus estudos nos fornecem meios para avançarmos sobre a história do Brasil republicano. Ao resumir sua trajetória intelectual, Bittencourt assim a define:

Possui graduação em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP (1967), pós-graduação em Metodologia e Teoria de História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP (1969), mestrado em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP (1988) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1993). Atualmente é professora do programa de pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da USP e da Pontifícia Universidade Católica- SP. Tem experiência na área de história das disciplinas e currículos escolares e educação indígena. Desenvolve pesquisas atualmente sobre a história dos livros didáticos, mantendo a organização do banco de dados LIVRES referente aos livros didáticos brasileiros de 1810 a 2007, sobre ensino de história e história da educação, em especial história da educação indígena.

Ao lado de profissionais como Circe Bittencourt, também foram feitos entrevistas e estudos sobre a trajetória de Selva Guimarães, Katia Abud, Elza Nadai, Joana Neves, Ernesta Zamboni e Maria Auxiliadora Schmidt, estudiosas pioneiras na história do ensino de história no Brasil, especialmente do período republicano.

O projeto será divulgado em três volumes (que se encontram em fase de edição). No primeiro volume, intitulado: “As mulheres e a pesquisa acadêmica: as pioneiras nos estudos históricos brasileiros”, que foi organizado por Diogo Roiz, Rebeca Gontijo e Tânia Zimmermann (assim como os outros dois), desta forma foram resumidos os principais objetivos do projeto:

Nessa linha, propõe-se elaborar um conjunto de biografias intelectuais de estudiosas da história do Brasil que foram pioneiras, a partir dos anos 1930, na delimitação de campos de pesquisa, na institucionalização de cursos de graduação e de programas de pós-graduação na área e na renovação dos estudos históricos brasileiros, especialmente os do período republicano. Nossa meta será simultaneamente com a proposta de elaboração destas biografias, a de fazer um conjunto de entrevistas com historiadoras (educadoras e cientistas sociais) ainda atuantes em nosso meio ou recém-aposentadas, e que possam ser úteis para futuras pesquisas sobre o período republicano e a formação do ofício de historiador no Brasil. Além disso, também foram produzidos pequenos ensaios autobiográficos por parte de algumas estudiosas. Essa pesquisa contempla, portanto, três tipos de textos: a) pequenos ensaios biográficos; b) pequenos ensaios autobiográficos; c) entrevistas temáticas.

O objetivo geral desta pesquisa foi elaborar um conjunto de biografias com pesquisadoras que foram pioneiras nos estudos históricos no Brasil, e cujo foco de suas pesquisas ajudaram a promover uma renovação nos estudos sobre o período republicano brasileiro. Ao lado deste objetivo geral, encontram-se outros dois específicos: a – Elaborar um conjunto de biografias intelectuais de estudiosas da história do Brasil; b – Elaborar um conjunto de entrevistas e autobiografias com profissionais ainda em atuação ou recém-aposentadas.

Com essas questões em mente, que procuramos nos deter sobre a trajetória de algumas estudiosas, muitas delas pioneiras em seus campos de estudo e pesquisa da história do Brasil republicano.

2 Entrevista

(Diogo Roiz) 1- Professora Circe Bittencourt, gostaríamos de agradecer o seu apoio em nosso projeto, e é um enorme prazer tê-la aqui conosco. Poderia começar nos falando um pouco sobre por que escolheu fazer o curso de História na USP? Como eram as aulas e os professores? Quais autores eram mais estudados no curso nos anos 1960, algum lhe marcou nesse momento? Quando iniciou suas pesquisas?

(Circe Bittencourt) 1. Escolhi estudar história ao terminar o curso Clássico em 1963, porque desejava ser professora. Inicialmente desejava ser professora de filosofia – aulas que me fascinavam pelas diversas abordagens, da Lógica à Psicologia –, mas, sobretudo, pela História da Filosofia. A opção pelo curso de história da USP se deu finalmente por causa das aulas de uma jovem professora, que, nos últimos dois anos escolares, ofereceram outra visão da história brasileira, e que agora posso entender seu alcance. Foram aulas muito diferenciadas, em que a professora Cecilia nos introduziu em estudos sobre problemas econômicos e sociais do Brasil, por meio de métodos de pesquisa, com atividades em grupo, em que líamos Caio Prado Jr., Celso Furtado para apresentações de “seminários”, e lembro-me que coube ao meu grupo o estudo sobre a economia cafeeira. Esse último ano escolar tornou-se, assim, definitivo em minha trajetória profissional, porque fui aluna, desde o primário, de uma escola confessional em São Paulo, no bairro da Liberdade. Era uma escola com um viés bastante conservador, e bastante rígido e eficiente quanto ao ensino das letras e das línguas - latim, francês etc. -, que permitia enfrentar o vestibular sem grandes problemas. Naquela época, início da década de 1960, os vestibulares eram específicos para cada área: de humanas (Direito, Filosofia, História, Geografia etc.), ou exatas (Politécnica, Arquitetura, Física, Medicina etc.). Na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (e acredito que nas demais também), os exames vestibulares eram de responsabilidade dos próprios professores, por intermédio de provas escritas e orais. Na banca de história do Brasil, meu arguidor foram simplesmente o prof. Sérgio Buarque de Holanda, para língua e literatura brasileira, e o prof. Fernando Novaes. Enfim, entrei no Departamento de História da então FFCL da USP, em 1964. Eram tempos de movimentos estudantis que se avolumaram a partir do golpe de primeiro de abril de 1964 (o golpe não ocorreu no dia 31/03/64, como dizem os militares). A partir de então começou minha formação como historiadora e professora, assim como minha formação política. Vivíamos em um momento de grandes debates e estudos sobre o Brasil. A vida cultural de São Paulo e da Universidade ampliava nossos horizontes de forma intensa. Havia peças teatrais, especialmente do teatro de Arena com o incrível Arena Conta Zumbi, no teatro Oficina, em que conheci Brecht, e o inesquecível Rei das Velas. Os filmes apresentados pelo Grêmio Estudantil da Rua Maria Antônia, como Os Companheiros de Mario Monicelli; do cinema novo brasileiro, com Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol, acompanhados de intensos debates que nos revelavam novas realidades sociais e políticas. E ainda os inesquecíveis festivais de música, vendo e ouvindo Chico Buarque, Nara Leão… enfim, o acompanhamento de uma arte que sensibilizava e com a qual aprendíamos de forma intensa sobre a diversidade e as desigualdades da vida do Brasil dos anos de 1960, em meio ao projeto político do poder pós-64 que tentava paralisar nossa história de lutas sociais.

Como estudante universitária, posso dizer que tive privilégios, sem dúvida! No curso de História, fui aluna de professores catedráticos e de jovens assistentes que se tornaram famosos historiadores e historiadoras, como Maria Odila, Fernando Novaes, Istvan Jacobson, Carlos Guilherme Mota, apenas para citar alguns deles. Os docentes eram de diversas tendências e essa condição foi extremamente significativa em minha formação. Fui aluna do catedrático de História da Civilização Americana, prof. Manoel Nunes Dias, que, dentre outras características, era um ardoroso amante do presidente português Salazar atribuindo a ele a condição de ser o maior líder político do século XX. E, contrastando, na cadeira de História Ibérica, o professor era o historiador Joaquim Manuel de Barradas, que havia se exilado no Brasil por perseguição da ditadura salazarista e nos oferecia um curso primoroso pela erudição e inovação interpretativa sobre as navegações marítimas dos portugueses e seu significado em relação ao renascimento científico europeu.

Havia também uma oferta de cursos optativos muito significativos pela qualidade de seus professores, e dois deles, em certa medida, foram marcantes em meus estudos futuros: o de Antropologia, o professor João Baptista Pereira, e o de Arqueologia, o professor Ulpiano Bezerra de Menezes, que, na ocasião, organizava o Museu de Arqueologia no novo prédio da História e Geografia da Cidade Universitária. O que aconteceu na História de Gordon Childe foi uma obra marcante lida no curso de Arqueologia e para o curso de História Antiga, e essa obra acredito ser ainda uma leitura necessária para pensarmos sobre o próprio conceito de história sob uma perspectiva marxista para além do capitalismo.

Os cursos eram exigentes quanto às atividades e leituras, mas, sobretudo, era fundamental a organização dos estudos por intermédio de seminários, nos quais enfrentávamos a tarefa de análise de fontes diversas e específicas sobre uma determinada temática, com base em uma densa bibliografia de apoio, sendo que havia poucas obras traduzidas, o que nos obrigava a leituras nos originais-inglês, francês, espanhol.

O curso do professor Sérgio Buarque foi marcante por várias razões. Inicialmente pela sua erudição e pela sua capacidade de nos apresentar, sem nenhuma preocupação didática, uma história da cultura densa e múltipla. Em uma aula, logo após uma estadia nos Estados Unidos, apresentou-nos uma variedade de piadas que havia recolhido em arquivos americanos sobre o presidente George Washington, e, assim, aprendemos o valor do humorismo para os estudos históricos. Marcou também sua preocupação em nos conduzir ao trabalho em arquivo. E tivemos algumas aulas no Arquivo do Estado de S. Paulo, onde, junto de Maria Odila, então sua assistente, nos ensinou a investigar a sociedade da época da independência, pelos registros das igrejas – casamentos, batismos etc. –, de determinadas vilas e paróquias da província de São Paulo. No curso da professora Emília Viotti do 1º ano, Metodologia de História, também, frequentávamos o Arquivo do Estado de São Paulo, mas o mais marcante foi o curso que ela nos proporcionou no 4º ano, de Teoria de História, em que tivemos uma iniciação a leituras de Marx (18 Brumário e Ideologia alemã, especialmente). Foi possível entender, naquele momento, como a professora Emília concebia os estudos marxistas pela sua tese de livre docência: Aspectos econômicos, sociais e ideológicos da desagregação do Sistema escravagista da transição do trabalho servil para o trabalho, defendida em 1964, e que em 1966 foi publicada com o título Da senzala à colônia, pela Difel. Os fundamentos marxistas eram apresentados e deveriam ser utilizados de forma específica, sempre de maneira crítica e sem dogmatismo, nos advertia a professora Emilia, uma vez que o capitalismo no Brasil no século XIX foi marcado pelo trabalho escravo e por um incipiente grupo de trabalhadores livres. Tais condições e contextos históricos, nos advertia sempre, deveriam estar presentes nas formas de incorporação de teorias elaboradas em outro espaço e sob outras condições sociais, políticas e culturais. Para mim, ficou evidente que o curso de Teoria de História fundamentava-se em uma concepção, por intermédio da qual era essencial situar as condições específicas da nossa realidade histórica, apresentar os acontecimentos históricos no tempo e no espaço para poder analisá-los e interpretá-los. Assim, líamos as diferentes abordagens sobre os acontecimentos do abolicionismo (conteúdo base da reflexão) e, como trabalho final de curso, fizemos pesquisa sobre a geração dos abolicionistas, tema a que Emilia se dedicava com particular atenção, naquela época, para entender o papel dos intelectuais na política, em suas opções liberais ou conservadoras, dependentes ou não de sua classe social, de origem e dos contextos históricos de suas vivências. Lembro-me que coube a mim o estudo sobre Joaquim Nabuco.

Em meio a essa formação como Bacharel em história, nos últimos anos, tivemos os cursos de licenciatura, em que apenas foi significativo o estágio realizado no Colégio de Aplicação da USP, sob a supervisão da professora Sylvia Magaldi. As inovações metodológicas vivenciadas por nós, licenciandos junto dos alunos, eram não apenas eficientes e atrativas, quanto aos seus resultados no ponto de vista do domínio dos conhecimentos escolares, mas também quanto às formas de socialização e organização dos alunos. Além do uso constante de documentos nas aulas, de análise de filmes, de peças de teatro, havia os estudos do meio em que os alunos participavam e se integravam de forma inovadora. Veio daí minha quase “fixação” pelas práticas de estudos do meio. E, depois deste marcante estágio, terminei o curso de Licenciatura, em 1967, e mantive meu sonho de ser professora de História.

2- (DR) Como foi a experiência de estudar os movimentos grevistas em São Paulo na Primeira República, sendo orientada pela professora Emília Viotti da Costa, no final dos anos 1960? De que maneira estudou as fontes, definiu procedimentos, usou conceitos e teorias nessa pesquisa? Como avaliaria os resultados desse trabalho hoje?

(CB) 2- A partir de 1968, integrei o grupo de pesquisa da professora Emília Viotti, lembrando que, diferentemente do atual modelo de pós-graduação, não havia exigências de créditos, cursos com disciplinas etc. Desenvolvíamos um projeto temático de pesquisa, em equipe, e nos reuníamos semanalmente com a orientadora para seminários de estudos teóricos e de produção historiográfica sobre um tema comum a todo o grupo. Nesses encontros, apresentávamos o levantamento das fontes encontradas nos arquivos, a partir dos quais fazíamos debates sobre os procedimentos metodológicos para análise dos documentos. Nosso grupo (acho que éramos seis alunos) dedicava-se à pesquisa sobre o operariado em São Paulo nas primeiras décadas do século XX. Meu tema específico era sobre a imprensa no movimento grevista de 1917, e compartilhávamos documentos com os demais colegas – sobre legislação trabalhista ou sobre a atuação dos operários nas greves, no movimento tenentista de 1924 e a própria constituição da classe operária paulista. Fazíamos leituras sobre a industrialização paulista, sobretudo pela produção dos sociólogos Otavio Ianni e Roberto Simonsen. Debatíamos uma bibliografia básica sobre referenciais teóricos e metodológicos proveniente de Marx, mas também de autores como Jean Paul Sartre (Questão de método), Georg Lukács (História e Consciência de classe), Lucien Goldman (Ciências Humanas e Filosofia), Os Parceiros do Rio Bonito (Antônio Cândido). Foram textos fundamentais para a compreensão da constituição específica dos trabalhadores livres em nosso país, mas sob o domínio de uma burguesia nascida e submetida aos princípios das oligarquias agrárias. Com esses autores, aprendi a ler artigos dos jornais elaborados por diferentes agentes e a identificar as diferentes interpretações sobre os mesmos acontecimentos. E, sobretudo, ao aprender sobre os diferentes sujeitos presentes nos acontecimentos históricos, também pude apreender sobre os tempos históricos das ações das greves, da constituição dos operários paulistas (nem todos eram estrangeiros), da criação das fábricas pelos empresários, em suas relações com os interesses dos cafeicultores e de seus representantes políticos, no poder do estado e do país, dos bancários e as relações internacionais do movimento cambial etc. Entendi, principalmente, como era fundamental não só analisar o capitalismo como sistema econômico, mas também como social e político. Pude então compreender também por que Marx escreveu O Capital.

3 – (DR) É muito interessante que, após quase vinte anos de dedicação ao ensino fundamental e ao médio (antigos primeiro e segundo graus), você retornou nos anos 1980 para fazer uma outra pesquisa de mestrado, com a orientação da professora Raquel Glezer, que foi sua colega de turma nos anos 1960. Como foi a sua experiência com o ensino fundamental e médio, nesse período, e o que a motivou a desenvolver essa pesquisa nos anos 1980? Diferente do trabalho anterior, “Pátria, civilização e trabalho”, se tornou uma referência em nossa historiografia educacional, para não dizer um modelo de como fazer esse tipo de investigação: a que se deveu tamanho êxito? Como foi o processo de transformação da dissertação em livro? Como avaliaria os resultados desse trabalho hoje?

(CB) 3 - 1970 foi um ano de rupturas e amarguras diante de um futuro muito nebuloso e me afastei da universidade depois do processo e da aposentadoria compulsória da professora Emília, além de outros professores da USP, e era doloroso acompanhar notícias de prisões e mortes de colegas e amigos.

Optei, então, por tornar-me professora de História do ensino secundário. Fiz concurso para professora de História da rede pública do Estado de São Paulo em 1970, pouco antes da Lei nº 5.692/71 que introduziu os Estudos Sociais, e enfrentei os embates para a permanência das disciplinas, uma vez que, nos exames vestibulares, ao menos nas universidades paulistas, História e Geografia permaneciam como conteúdos obrigatórios. Iniciei meu trabalho em uma escola pública da periferia da cidade, ao mesmo tempo em que era professora de uma escola particular judaica, na região paulistana dos Jardins. Passei a conviver, diariamente, assim, em dois mundos que jamais se encontravam, apesar de existirem na mesma cidade: de um lado, alunos de uma classe média abastada que viviam dentro de uma rede bastante restrita, em apartamentos bem protegidos, e, do outro lado, atravessando o rio Tietê, estavam alunos trabalhadores que frequentavam a escola à noite. O convívio com esses alunos tão diferentes foi marcado por experiências difíceis, mas muito desafiantes. Evidentemente estava preparada para ser professora dos alunos dos Jardins; era muito difícil ensinar História em meio a salas lotadas, mal iluminadas, sem ventilação e outras tantas necessidades, com jovens cansados, mas querendo aprender, querendo muito frequentar uma escola para melhorar um pouco seu cotidiano.

Nos anos que se seguiram, dediquei-me a meus filhos e continuei enfrentando e aprendendo a tarefa de ser professora de História em meio às lutas contra o arrocho salarial e acabei por trabalhar em uma escola pública em que, com um grupo de professores, tive a oportunidade em desenvolver, ao final dos anos de 1970, vários projetos interdisciplinares. Nesse período, já havia malogrado totalmente a proposta do 2º grau profissionalizante e, apenas para situar historicamente essa pobre experiência, sua essência pedagógica era muito semelhante ao atual projeto da BNCC para o ensino médio: simplesmente preparar alunos para o “mundo do trabalho”. A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo começou, no final dos anos de 1970, em um processo de abertura “lenta e gradual”, a elaborar propostas para a renovação do 2º grau, que incluía o retorno da História e da Geografia, e percebemos, então, que tínhamos possibilidades de retomar projetos do período do Colégio de Aplicação da USP e das escolas Vocacionais dos anos de 1960. Dentre as inovações, foi possível realizar Estudos do Meio, com uma experiente colega de Geografia, a professora Nídia Pontusckha, e com colegas brilhantes de Língua Portuguesa, com as quais, dentre outros trabalhos, analisamos muitas obras literárias integrando-as à história brasileira e latino-americana. Estendemos também esses projetos para alunos do curso noturno, criando-se assim uma experiência ampliada com vários professores e, de maneira inédita, com o professor de Química, Mansur Lutfi. Organizamos grupos de estudos de docentes, e a escola acabou por se tornar um polo bastante interessante com o curso de Magistério, que também estava se renovando. Pela proximidade da escola com a Cidade Universitária/USP, passamos a receber muitos alunos estagiários, e, em particular, tive uma aproximação com a profa. Elza Nadai, professora de Prática de Ensino de História da Faculdade de Educação da USP, na organização dos estágios. Nossos projetos de interdisciplinaridade passaram a se tornar conhecidos em encontros de professores da rede pública e em eventos acadêmicos, incluindo o nascente Encontro de Práticas de Ensino (atual ENDIPE). A ANPUH, com a abertura de participação de professores secundários, também se tornou importante para os debates sobre o retorno da História, e fui uma das primeiras representantes como professora secundarista a integrar o Conselho da ANPUH, por volta de 1979/1980. Nesse contexto, passei a me interessar em voltar à universidade e fazer como outros colegas da escola, que ingressaram em cursos de pós-graduação na área de ensino na UNICAMP. Na USP, acompanhei, por razões familiares (sou casada com um professor de Física da USP), a constituição de um curso de Pós-Graduação de Mestrado em Ensino entre o Instituto de Física da USP e a Faculdade de Educação - FEUSP. Essas perspectivas de constituição de um campo de pesquisa na área de ensino me incentivaram a propor algo semelhante sobre a História escolar, e passei, então, a formular projetos de pesquisa em ensino de História. Minhas preocupações estavam relacionadas, evidentemente, ao retorno da História aos currículos, mas indagava qual História deveria ser reintroduzida nas escolas de 1º e 2º graus. Decorridos dez anos da implementação dos Estudos Sociais pela Lei nº 5692/71, muitas mudanças haviam ocorrido nas escolas e na formação dos professores pelas licenciaturas curtas, cursos que estavam bastante distantes do que ocorria com a renovação historiográfica dos anos de 1970. A renovação proporcionada pela História social e cultural estava, no entanto, distante da maioria dos docentes vindos dos cursos de licenciaturas curtas, que sequer conhecia uma história marxista estruturalista, conforme contatava na vivência escolar. Foi, portanto, a partir de indagações sobre qual história ensinar, que se deu o retorno da disciplina com a qual organizei o projeto sobre uma história do ensino de História. O problema centrava-se no percurso do ensino de História a partir da identificação de seus agentes de produção curricular, e na base de quais critérios políticos e culturais, formulava-se a seleção dos conteúdos. Buscava compreender o sentido eurocêntrico dessa seleção que tem caracterizado a disciplina e que, naquele momento, início dos anos de 1980, já estava sendo questionada. Inicialmente apresentei o projeto para Elza Nadai, na FEUSP, uma vez que ela havia me inspirado, pela sua dissertação de mestrado e palestras, a enveredar pela história da escola e seus saberes. Apesar do seu interesse pelo tema, Elza não se achou em condições de assumir, naquela ocasião, uma orientação de pesquisa em uma área nova, centrada em problemas epistemológicos de uma disciplina e muito inovadora para o campo da história da educação, área na qual ela estava vinculada na pós-graduação da Feusp. Apresentei então a proposta para minhas antigas colegas da pós-graduação dos anos 60, e que haviam ingressado no Departamento de História nos cursos de Metodologia e Teoria de História. A proposta da pesquisa foi acolhida com precaução quanto às questões metodológicas inerentes ao tema, mas, também com entusiasmo, por ser uma reflexão que consideravam pertinente para o momento. Desta forma, Raquel Glezer, em 1984, tornou-se minha orientadora em História Social depois de vários acertos, considerando-se a ambição do projeto inicial, sendo então possível defender a dissertação de mestrado Pátria, civilização e trabalho, que tratava do ensino de História nas escolas paulistas (1917-1939), pelo programa de pós-graduação em História Social da FFLCH/USP.

Essa pesquisa teve, como referencial, leituras iniciais da história social e cultural, especialmente de Hobsbawan e E. Thompson, para o entendimento de uma história do ensino de História nas escolas primárias, portanto, para alunos de diferentes condições sociais, aí incluindo as escolas anarquistas e também as escolas secundárias, então em fase de crescimento, mas destinadas à formação das futuras elites. A pesquisa buscou identificar a atuação contraditória dos diversos sujeitos envolvidos na construção de um currículo em que a História se apresentava como uma matéria importante da educação escolar ao tornar-se veículo para a constituição da complexa articulação entre Estado/nação/povo e que serviria para consolidar a república nascente sob o signo de um país coeso, fruto de um passado único, homogêneo e harmônico, no interior de uma história apresentada como “genealogia da Nação”, conforme anunciava Furet em sua obra A Oficina da História. Por desconhecer referenciais sobre história das disciplinas, utilizei um conceito que me pareceu apropriado, o de cultura escolar, para esclarecer aspectos mais complexos do currículo escolar: a História e as demais disciplinas escolares integraram projetos educacionais moldados na uniformização de uma cultura escolar (Pátria, civilização e trabalho, p. 27). Esse conceito ficou esclarecido para mim, posteriormente, pela leitura das pesquisas de Andre Chervel, a partir da minha estadia na França entre 1988 e 1990, já, então, desenvolvendo pesquisa de doutorado. Os debates com André Chervel, em seminários no INRP e leitura de sua tese de doutorado e seus textos, em especial o artigo L’Histoire des disciplines scolaires, publicado em 1988, na Revue de Histoire de L’Éducation, (traduzido em português, em 1990), conduziram-me a outros autores, especialmente, Ivor Goodson (School subjets and curriculum change, 1983), e ao curso e seminários de Henri Moniot, em Paris VII, sobre Didática da História, que possibilitaram situar a minha própria pesquisa anterior e aprofundar, a partir de então, as questões sobre o conhecimento histórico em suas relações e distinções entre o acadêmico e o escolar. Inicialmente, acho que esse trabalho provocou certo desconforto entre colegas historiadores que consideravam como indiscutível ser a história escolar um conhecimento pedagógico decorrente e determinado pelo acadêmico. Mas creio que essa questão tem sido sempre um debate salutar e que acabou por incentivar novas pesquisas sobre a história das disciplinas, em particular da História. E acredito que esse debate epistemológico merece ser retomado para enfrentarmos, com fundamentos teóricos articulados às experiências histórico-escolares, as investidas das atuais reformulações curriculares contra as disciplinas escolares e que atingirão tanto o ensino escolar básico como o universitário.

4 – (DR) Talvez até mais que “Pátria, civilização e trabalho”, foi o êxito de seu trabalho seguinte, resultado de seu doutorado, que foi “Livro didático e conhecimento histórico”. Antes mesmo de ser publicado, o texto circulava em fotocópias gerando grande inspiração em trabalhos como o de Décio Gatti Jr., que, com razão, lhe demarca o pioneirismo e a solidez. Como foi realizar essa pesquisa – escolha do objeto, definição do problema, organização dos procedimentos e apresentação dos resultados? Como foi o processo de transformação do texto em livro (que, aliás, esgotou-se rapidamente no mercado)? Como observou a repercussão do texto na historiografia educacional do livro didático e quais avaliações e/ou revisões faria ao texto hoje?

(CB) 4) No período da publicação do livro “Pátria, civilização e trabalho” em 1990, que decorreu do empenho da minha colega, Raquel Glezer, estava envolvida na pesquisa de doutorado sobre a história do livro didático, também sob orientação da Raquel. Inicialmente o projeto de doutorado centrava-se na continuidade da história do ensino de História a partir da 2ª Guerra Mundial, investigando a influência francesa, tanto curricular quanto na produção didática no Brasil. No levantamento de fontes para a pesquisa na Bibliothèque National de France (BNF), encontrei em seu acervo de “obras raras” uma série de livros brasileiros editados na França que me fez repensar o tema da pesquisa. Na dissertação de mestrado, havia me empolgado um pouco com os livros didáticos, ao utilizá-los como fonte de pesquisa para o ensino de História, pela sua variedade e possibilidades de informações que fornecem. Os livros didáticos de História, Geografia, Aritmética, as cartilhas, livros de leitura etc. do século XIX, e que se estendiam em várias edições até o século XX, no entanto, despertaram uma curiosidade enorme sobre questões da história da educação brasileira na fase monárquica, cuja bibliografia, produzida até então, indicava um ensino escolar muito reduzido nesse período. No entanto, deparei-me com livros variados e com muitas edições que, evidentemente, fizeram parte de uma educação escolar bem mais complexa e diversificada. Esses livros se tornaram, então, meu novo objeto de pesquisa e, em parte, também serviriam para o estudo no ensino de História, mas em período anterior ao republicano. As pesquisas de Alain Choppin sobre a história do livro didático na França, desenvolvidas no INRP, foram providenciais. A perspectiva de uma análise mais abrangente e histórica sobre o livro didático fez com que Alain Choppin incorporasse uma reflexão complexa desse objeto que, até então, era entendido e pesquisado apenas quanto ao seu caráter ideológico. De imediato fui atraída pela diversidade dos livros escolares de diferentes níveis de ensino e principalmente por suas peculiaridades em relação aos demais livros, sendo que na época havia um interesse pela história dos livros, como os volumes da Histoire de l’Edition Française de Roger Chartier e Henri-Jean Martin, de1986, e, mesmo no Brasil, com destaque à obra de Hallewell, O Livro no Brasil- sua história, de 1985. Desta forma, foi possível perceber a importância desse material no conjunto editorial brasileiro a partir do século XIX, assim como do peso econômico representado por esse setor nos últimos dois séculos. O livro didático, ao tornar-se objeto e fonte da pesquisa, determinou procedimentos de análise criteriosos, na medida em que tinha acesso a essa produção dispersa pelo nosso país. A delimitação do tempo histórico se deu em função de sua origem entre nós pela Impressão Régia em suas primeiras obras destinadas à Escola Militar, em 1809/1810, até tornar-se um livro de circulação nacional, com editoras próprias para atender a crianças e jovens em plena expansão da rede escolar, por volta dos anos de 1910. As dificuldades, ao voltar ao Brasil, foram sempre de localização e acesso às obras, sendo que a maioria delas não era encontrada em bibliotecas e, para a organização do acervo, tiveram que realizar “um trabalho semelhante ao do arqueólogo, buscando os objetos escondidos em diferentes “sítios”. Acrescenta-se também a essas dificuldades uma complexa dependência e limitação ao acesso aos documentos das empresas editoriais, uma vez que o livro passou a ser analisado em todas suas dimensões – objeto fabricado, com diversas autorias- do editor ao autor-, dependente das políticas públicas, dos currículos determinados pelo Estado (estados e municípios) e, no nosso caso, também pela Igreja, pela sua comercialização e formas de circulação. A organização das fontes também foi instigante, ao me propor a situá-los nas salas de aula, junto aos seus principais usuários - professores e alunos. Foi providencial, nesse período, o contato com a obra de Carlo Ginzburg, em especial, o texto Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. Mas mantive, nessa pesquisa, os princípios teóricos e metodológicos que havia aprendido com a professora Emilia Viotti: para compreender qualquer fato histórico, no caso, o livro didático brasileiro em seus primeiros cem anos de vida, busquei todos os sujeitos envolvidos em sua produção, comercialização e consumo, ou seja, das ações do Estado aos professores e alunos nas salas de aula. E, considero esse método abrangente de abordagem do livro didático como responsável pela difusão da pesquisa e por tornar-se uma espécie de referência no país para outras investigações sobre esse material até então discriminado e desprezado pela historiografia educacional. Por uma série de circunstâncias, no entanto, foi um trabalho difícil de ser publicado e, de maneira inexplicável, quando a publicação ocorreu em 2008, teve uma edição bastante limitada. Continuo, ainda atualmente, a receber solicitação de como ter acesso ao livro ou à tese e gostaria de uma nova publicação mais fiel à pesquisa, para que se pudesse também incluir os diferentes documentos inseridos no texto original, no qual existem fontes indiciárias do que tenho concebido como “obras raras didáticas”. Preciso acrescentar que, em decorrência da tese, pela dificuldade de acesso aos livros (visitei muitas bibliotecas pelo Brasil e em vários países, além de muitos sebos), dediquei-me e ainda me dedico à organização de uma Biblioteca do Livro Didático, junto ao Serviço de Biblioteca da Faculdade de Educação da USP, para a preservação desse conjunto de documentos, e também organizei, com apoio de vários colegas, dentre eles, Alain Choppin, o Banco de Dados dos livros didáticos brasileiros – LIVRES - que mantém diálogos e integram pesquisas com os demais Bancos de Dados de outros países europeus e latino-americanos.

5 – (DR) Após concluir essa etapa de formação, você foi responsável pela organização de “O saber histórico em sala de aula”, livro que reconhecidamente gerou um modelo para se pensar em tópicos da história da educação no Brasil, além de contribuir diretamente com a formação de professores. Como foi o planejamento desse trabalho coletivo e o planejamento da coletânea?

(CB) 5- Este livro, O saber histórico na sala de aula, faz parte de uma interessante história dos encontros do Ensino de História, iniciados em 1988. Nesse período, em decorrência das propostas curriculares de História, que estavam sendo debatidas e contestadas em várias instâncias, incluindo a imprensa (o Estado de São Paulo iniciou uma polêmica sobre o que considerava como uma perversa introdução, pela SE, da “história marxista nas escolas”), Elza Nadai e eu decidimos organizar o encontro Perspectivas do Ensino de História para ampliar a discussão com especialistas da área de educação, historiadores e professores da rede de ensino. O evento foi emblemático, pelo número de participantes de todas as regiões do país, e demonstrou a necessidade de continuidade de encontros sob a temática educativa e historiográfica. Em 1996, organizei, após o falecimento da Elza, o 2º Perspectivas do Ensino de História, em que novamente se buscou manter a articulação entre a produção em ensino de História (já com mestrandos e doutorandos da área), a produção historiográfica e a da área educacional, principalmente de especialistas em currículos. Em decorrência desse 2º encontro do Perspectivas do Ensino de História, em que se constatava a ampliação dos estudos e práticas renovadoras da área, selecionei conferências, mesas-redondas e cursos apresentados no evento, de 11 autores que abordavam temáticas centrais do encontro: as renovações curriculares e as linguagens no ensino de história, que foram a base da publicação do Saber histórico na sala de aula, também pela editora Contexto. E inclui um maravilhoso texto de Carlos Vesentini, História e ensino: o tema da fábrica visto através de filmes. Uma homenagem póstuma a um querido colega, com quem compartilhei muitos cursos de formação continuada de professores, organizados pela Secretaria de Educação do estado de São Paulo.

Curiosamente, devo assinalar que este pequeno livro permanece, ainda, como um referencial significativo, ao longo dos últimos vinte anos, sem nunca ter tido edição atualizada.

6 – (DR) Por outro lado, com Marcos Silva, Ernesta Zamboni, Selva Guimarães, Elza Nadai e Katia Abud, vocês formam a base sobre a qual houve o desenvolvimento, desde os anos 1980, dos estudos sobre o ensino de história no Brasil. Poderia nos contar um pouco dessa história: aproximações e distanciamentos, projetos em comum, participações em bancas (de concurso e defesas), discussões e críticas?

(CB) 6- A preocupação com pesquisas sobre o ensino de História não foi absolutamente um fato isolado, mas fruto da trajetória da história educacional não apenas no Brasil, mas em vários outros países europeus e americanos, conforme apontei anteriormente, e que pude constatar pelos estágios de pós-doc que fiz na França. Em São Paulo, em particular, o grupo de pesquisadores surgiu, como foi assinalado, no interior dos debates sobre o retorno da História como disciplina integrante dos currículos no final dos anos de 1980, e creio que também foi semelhante em vários outros centros universitários. Na USP, “a descoberta do ensino como um campo de pesquisa” ocorreu em diversos institutos e faculdades da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e na FEUSP. No Departamento de História, o professor Marcos Silva havia organizado, em 1984, o livro Repensando a História, pela ANPUH/SP, em que reuniu textos de historiadores e professores com abordagens importantes sobre a renovação da produção historiográfica e do ensino de História. As pesquisas sobre ensino de História começaram a ter espaço de debates na ANPUH nacional, com apoio significativo de Dea Fenelon, e em São Paulo, com a criação do GT de ensino de História, após a inclusão de professores da rede de ensino como sócios da entidade, este que foi importante para fomentar novas problemáticas de pesquisas sobre formação de professores.

Na FEUSP, a partir de 1988, Elza Nadai deu início a orientações de dissertações e teses junto ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação, dentre elas, a de doutorado de Ernesta Zamboni, então professora de Prática de Ensino na UNICAMP, com a temática sobre livros paradidáticos de História. Nesse mesmo contexto, Marcos Silva foi orientador de Selva Guimarães, professora da Universidade Federal de Uberlândia, sobre currículos de História de São Paulo e de Minas Gerais, mestrado publicado em 1992 (Caminhos da História Ensinada), e, em seguida, também orientou seu doutorado sobre vidas de professores de História. Em 1993, sob a iniciativa de Marcos Silva e Selva Guimarães, foi organizado o I Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de História - ENPEH-, que passou a ser considerado o marco inicial das pesquisas da área. Nesse mesmo período, com o aumento de demandas de estudantes interessados em pesquisas de ensino de História na USP, teve início uma proposta para a constituição de uma pós-graduação interinstitucional entre o Departamento de História da FFLCH e o de Metodologia e Práticas de Ensino da FEUSP (EDM), seguindo o modelo da Pós-Graduação em Ensino de Física. Elza Nadai e eu seríamos representantes da FEUSP, e Marcos Silva, Raquel Glezer, Maria Helena Capelato, Marlene Suano, Ulpiano Bezerra de Menezes, dentre outros professores, seriam os representantes do Departamento de História. Esse projeto, apenas esboçado, foi interrompido após o falecimento de Elza Nadai, em janeiro de 1995, uma vez que, como única professora, não teria condições de oferecer, sozinha, os cursos de pós-graduação a serem ofertados pela FEUSP, e assumir um número elevado de orientações. Acabamos por manter intercâmbios, dependendo das temáticas das pesquisas e eventuais coorientações. Mantínhamos contatos também por ocasião da participação em bancas na USP, UNICAMP, PUCSP, UNIFESP, sendo que Katia Abud, a partir de 1996, tornou-se professora da FEUSP, onde compartilhamos o curso de Prática de Ensino de História, embora sem desenvolvermos pesquisas em conjunto na Pós-Graduação.

Na UNICAMP, Ernesta Zamboni dedicou-se inicialmente a pesquisas sobre noções de tempo histórico especialmente com alunos das séries iniciais que, com a saudosa professora Maria Carolina Galzerani, mantiveram um grupo de pesquisa com abordagens variadas sobre história local, livros didáticos e currículos, lembrando da significativa tese de Maria do Carmo Martins, A História prescrita e disciplinada nos currículos escolares: quem legitima esses saberes?, em que analisa, por meio de importantes fontes, o poder de políticos e de historiadores na configuração dos currículos de História no período da ditadura militar.

Nesse processo de ampliação de pesquisadores, no caso paulista, foi se constatando clivagens entre concepções e abordagens das pesquisas na FEUSP e no Departamento de História. Considero que uma das questões divergentes residia na concepção das especificidades do conhecimento histórico acadêmico e no conhecimento histórico escolar. Na FEUSP, continuei as pesquisas sobre ensino de história nos pressupostos das especificidades do conhecimento histórico escolar, e não como era concebido pela maioria dos historiadores, como um saber decorrente e adaptado do conhecimento acadêmico. Nesse sentido, as pesquisas de ensino de História sempre estiveram articuladas a conceitos de aprendizagem e métodos de ensino, em suas relações com os conteúdos selecionados e com sistemas avaliativos que proporcionavam a identificação dos diferentes sujeitos envolvidos na produção da disciplina escolar, notadamente, de professores e alunos.

O aumento das pesquisas, suas temáticas e referenciais teóricos puderam ser acompanhados pela continuidade dos encontros Perspectivas do Ensino de História e pelo ENPEH- Encontro Nacional de Pesquisadores de Ensino de História - ENPEH. As diferenças, quanto aos pressupostos teóricos das pesquisas, tornaram-se evidentes pelos contatos com pesquisadores de outros países, em particular, da Argentina, França, Grã-Bretanha, Espanha, Portugal, com os quais passamos a manter intercâmbios por intermédio de bolsas sanduíches e de pós/doc. Nesse contexto, as tendências e referências teóricas começaram a se delinear com mais precisão entre os pesquisadores e passaram a ser determinantes na organização dos eventos e publicações da área. Ressalto que, em meio a tais divergências, houve efetivamente um crescimento e importante avanço de pesquisas na área de ensino de História que se apresentam sob uma variada bibliografia indicativa da consolidação desse campo de pesquisa.

7 – (DR) Falando agora mais especificamente de sua trajetória profissional, como foi sua experiência em orientar outras pesquisas na FE/USP? Depois dessa experiência, você passou a lecionar na PUC/SP; como foi o processo de organização e consolidação de grupos de pesquisa nessa instituição, dos quais a professora faz parte?

(CB) 7- A partir de 1994, minhas pesquisas centraram-se na organização da Biblioteca do Livro Didático junto ao Centro de Memória da FEUSP e, a partir de estágios de pós-doc na França, com Alain Choppin em 1994, iniciei a organização de um Banco de Dados sobre livros didáticos brasileiros. Organizei cursos de pós-graduação sobre História dos currículos e das disciplinas (não apenas de História), e, com meus orientandos, formamos dois grupos de pesquisa. Havia “herdado” alunos da Elza Nadai que, então, desenvolviam pesquisas sobre a formação dos professores sob o referencial da tese de livre docência Educação como apostolado: história e reminiscência de professores, e obriguei-me a concluir uma pesquisa financiada pelo CNPq, por ela coordenado, sobre memórias de professores. Um dos meus primeiros orientandos sobre ensino de História, Antônio de Almeida, pesquisou a história ensinada no período ditatorial, utilizando depoimentos de professores, como uma de suas fontes principais, visando identificar, dentre outros aspectos, a militância dos professores de História no período ditatorial. Populações negras e indígenas nos livros didáticos de História, História nos exames vestibulares e Concursos de professores de História foram temas pesquisados, e, ainda, dentre as pesquisas desenvolvidas, foram relevantes as que abordaram a história ambiental em projetos interdisciplinares. As pesquisas sobre formação de professores também foram importantes, destacando a de Geraldo Pereira de Carvalho sobre as experiências de ensino de História de professores da rede pública, que foram publicadas em um significativo periódico, Bolando Aula de História, organizado por um grupo de educadores da Baixada Santista. No final dos anos de 1990, tive o prazer de orientar, em suas pesquisas de doutorado, novos grupos compostos por colegas de outras universidades que trabalharam com os currículos de História dos seus respectivos estados. Destaco a pesquisa de Raimundo Nonato sobre currículos de formação de professores de História do Rio Grande do Norte e a de Ubiratan Rocha sobre as experiências curriculares de professores de História do Rio de Janeiro articuladas ao importante projeto dos CIEPs organizado sob o governo de Brizola, sendo ambos os trabalhos publicados.

No início do século XXI, com a organização do Projeto Temático Educação e Memória: organização de acervos de livros didáticos, financiado pela FAPESP (2003-2007), o grupo de pesquisadores ficou centrado na história dos livros didáticos, mas se diversificou com a inclusão de história dos livros escolares de outras disciplinas, com estudos comparados e com integração com outros projetos internacionais sobre a história dos livros didáticos e história dos currículos. Com minha aposentadoria da FEUSP, ingressei na pós-graduação do Programa Educação: História, Política, Sociedade da PUCSP, onde continuei, com Kazumi Munakata, a oferecer disciplinas e orientações sobre história dos livros didáticos e dos currículos. Nesse período, dediquei-me com mais intensidade à questão da educação indígena e dos quilombolas, incluindo também pesquisas que abordavam os desafios para implementação das leis nº 10.639/03 e 11.645/08. Nos anos de 1990 e início do século XXI, trabalhei como assessora na organização curricular, em especial sobre o ensino de História, para escolas indígenas de diferentes etnias – Terena (MS), Timbira (Maranhão/Tocantins), Guarani (São Paulo), tendo participado também de cursos de formação de professores indígenas, na FEUSP. Essas experiências e o convívio com várias comunidades indígenas e seus professores me levaram a lutar com eles pelos seus direitos à continuação de estudos em cursos de pós-graduação. A oportunidade se deu pelo EHPS/PUCSP, por intermédio de financiamento de pesquisas da fundação Ford de 2007 a 2009, e, posteriormente pelo Projeto da CAPES-Observatório da Educação Escolar Indígena, em convênio com SECADI/MEC, entre 2010 a 2014. No desenvolvimento desse projeto, orientei professores indígenas do Amazonas, Amapá, Mato Grosso do Sul e também professores de escolas quilombolas, e tais pesquisas se inseriram em um projeto mais amplo sobre História dos currículos e diversidade e tem me conduzido a aprofundar estudos sobre história das sociedades indígenas articulada à história da educação indígena do Brasil e da América.

8 – (DR) Como foi a experiência de organizar o “Dicionário de datas da história do Brasil”? Que relações foram estabelecidas entre acontecimentos, conjunturas e estruturas, ao longo dos textos do dicionário?

(CB) 8 - Ao relembrar a experiência sobre a organização do Dicionário de datas da História do Brasil de 2007, dei-me conta das diversas questões sobre os fundamentos teóricos e metodológicos vinculados às pesquisas e ao ensino de história que envolveram essa produção. Um problema central inerente à concepção de história que sempre esteve presente em meu trabalho relaciona-se à noção de tempo histórico. No percurso como professora do ensino fundamental e médio aos cursos de pós-graduação e orientação das pesquisas, sempre considerei fundamental o entendimento da relação tempo/espaço. E, ao relembrar o processo de elaboração do Dicionário, considero que talvez tenha sido esta constante preocupação com o “problema do tempo histórico” a responsável pelo convite de Jaime Pinsky, como editor da Contexto, para organizar essa obra sui generis, lançada em 2007. Entendo que os motivos, pelos quais Jaime Pinsky me escolheu como organizadora, estavam ligados a outros estudos que havia realizado e já haviam sido publicados pela própria editora. Os trabalhos As “Tradições Nacionais” e o "Ritual das Festas Cívicas" são outros, frutos da renovação do curso de Prática de Ensino com Elza Nadai, Repensando a Noção de Tempo Histórico no Ensino, que integraram o livro O ensino de História e a criação do fato, publicado em 1986 (depois revisado e atualizado em 2009), e, neles, se evidencia a importância que sempre atribuí à noção de tempo histórico para o ensino, e também como base para a formulação dos currículos de História. Naquele momento tratava de desmontar os argumentos e as justificativas dos Estudos Sociais para alunos até 11/12 anos, pelos quais, com base em Piaget, até essa faixa etária, não haveria condições de desenvolver operações cognitivas sobre a noção de tempo em sua dimensão mais complexa e, portanto, a compreensão dos alunos limitava-se ao concreto e ao vivido. Os argumentos baseados nessa interpretação de Piaget sobre a noção de tempo serviram, então, para manter um ensino cujo passado da nação limitava-se a estudos sobre a ação de figuras históricas atemporais cujos feitos eram representados em festas cívicas, tal qual analisei em Tradições Nacionais e o ritual das festas cívicas (1988). A questão central, no entanto, a ser repensada, era o entendimento de que a limitação dos estudos históricos decorria do ensino de uma história cronológica que, invariavelmente, trazia dificuldades aos alunos ao situarem os acontecimentos no período Antes de Cristo - A.C. e Depois de Cristo - D.C.. Assim, essa incompreensão ou dificuldade dos alunos estava, na realidade, relacionada a noções do tempo operatório matemático e não se relacionava a uma compreensão do tempo vivido ou dos acontecimentos vividos em curta duração, ou mesmo, das conjunturas e das estruturas. Um texto de Andre Segal que utilizava em minhas aulas, Pour une didactique de la durée de 1984 (cuja tradução merece ser publicada), formulava exatamente essa questão para o ensino da história e indicava possíveis métodos a serem introduzidos nas aulas para se trabalhar pedagogicamente com o tempo braudeliano. E, tais questões tornaram-se o eixo e os fundamentos que alicerçaram efetivamente a elaboração dos verbetes do dicionário: a data cronológica, como “ponta de um iceberg”, em que os outros tempos constituem o corpo inteiro de um complexo passado, repleto de muitos sujeitos que poderiam participar de ações heroicas, muitas vezes, mas não míticas. Assim, o Dicionário foi um projeto de Jaime Pinsky, e aceitei pela total liberdade que me ofereceu para selecionar as “datas” e autores dos verbetes. Os limites dados limitaram-se ao formato dos verbetes - quatro páginas, no máximo -, nas quais se incluíam as referências bibliográficas. Foi efetivamente bastante complexo, mas também instigante, estabelecer critérios determinantes de datas significativas para a nossa sociedade diversificada e plural e que pretendia também abranger todas as regiões do país e, em seguida, escolher os autores dos verbetes. Foram elaborados mais do que os 65 verbetes que constam do Dicionário, mas limites de tempo para produção e especificidades desse trabalho de pouca importância para avaliações acadêmicas justificaram a seleção temática da nossa história. Mas creio que essa obra tem importância por ter sido destinada a atender a um público diversificado, para além dos historiadores e professores.

9 – (DR) O seu livro “Ensino de História: fundamentos e métodos” se tornou uma referência nesse campo de estudos, e dificilmente se encontra uma disciplina nessa área, em qualquer curso de graduação ou pós-graduação, que não o inclua em sua bibliografia. Como o texto foi planejado e quais os pontos positivos e negativos que destacaria hoje sobre o texto publicado?

(CB) 9 - O livro Ensino de História: fundamentos e métodos resultou de um projeto do editor Cortez para a elaboração de uma coleção ampla – Coleção Docência em Formação – destinada à formação inicial e continuada de professores de todos os níveis e áreas, e visava situar os docentes em relação à LDB de 1996. O planejamento e redação dessa obra foram precedidos por seminários entre autores e os coordenadores da Coleção, Joaquim Severino e Selma Garrido, entre 1999 e 2000, mas consegui finalizar o livro apenas em 2003, depois de ter me aposentado da FEUSP, e o livro teve sua primeira edição em 2004. A obra teve como eixo o Programa do curso de Metodologia de Ensino de História na FEUSP, acrescido de questões relativas ao ensino de História para séries iniciais, mas, nesse aspecto, esses tópicos, no livro, estão apresentados de forma muito sintética e creio que seria necessária uma obra exclusivamente dedicada a esse nível de ensino e necessário abordar com maior densidade as especificidades dos currículos de Pedagogia. Creio que seria relevante situar com mais profundidade o lugar da História no processo de alfabetização e letramento, em particular nos cursos de EJA, das escolas indígenas e quilombolas. Seria importante apresentar a variedade de experiências sobre história de vida, do cotidiano do trabalho, da história das comunidades e dos deslocamentos regionais e mesmo internacionais, pensando na alfabetização de adultos incluindo os imigrantes de outros países e dentro de políticas de inclusão.

Na organização dos diversos capítulos, o princípio básico foi situar a relação ensino/pesquisa como essencial do processo formativo dos professores e, desta forma, busquei incorporar as pesquisas de meus orientandos e de outros colegas da área, tanto brasileiros como os do exterior. Para atender aos objetivos propostos, também me pareceu essencial apresentar experiências dos estagiários como introdução às pesquisas sobre práticas em salas de aula, considerando-as como projetos inovadores tanto na forma como nos conteúdos. Da mesma forma, são apresentados projetos sobre interdisciplinaridade, como o caso das experiências da história e meio ambiente. E, esta preocupação possibilitou (ou era essa a intenção) situar os problemas metodológicos do ensino e da aprendizagem, em particular, o entendimento de experiências fundamentadas em métodos dialéticos nas salas de aula. Essa é uma questão que considero prioritária e que merece ser aprofundada para que se possa diferenciar métodos inovadores instrucionais (como uso de novas tecnologias e das mídias) e métodos dialéticos de aprendizagem ou métodos dialógicos freirianos. Daí a sugestão de se introduzir, como base curricular, as representações sociais dos alunos sobre os diversos objetos de estudo sob a concepção de Henri Lefebvre e do psicólogo social Serge Moscovici. E, destaco que o propósito central do livro sempre teve por princípio apresentar a necessária articulação entre conteúdo e método.

Ao pensar sobre os pontos negativos ou incompletos da obra, a questão dos conteúdos parece ter ficado em segundo plano, e sempre considerei o Capítulo História nas atuais propostas curriculares insatisfatório. A abordagem sobre os recentes currículos de História centrou-se mais sobre concepções de uma história temática em contraposição a dos eixos temáticos propostos pelos PCNs e em como poderiam substituir os conteúdos selecionados, cuja base era determinada por uma história cronológica. Entendo agora que na época ainda estava na defensiva contra colegas que insistentemente criticavam os PCNs e sentia-me diretamente atingida por ter sido uma de suas elaboradoras e apontada por colegas como a principal responsável por um currículo de caráter neoliberal e, portanto, unificador e determinista. Por outro lado, a partir de 2003, com a inclusão obrigatória da história da África, da cultura afro/brasileira e da história indígena pelas Leis nº 10.639/03 e a 11.642/08, o problema a ser enfrentado relacionava-se ao aprofundamento sobre a concepção de conteúdos significativos e seus critérios de seleção. Nos intensos debates que se seguiram às leis, surgiram várias obras, artigos em periódicos etc., cujo tópico central era a necessidade de repensar sobre a organização dos conteúdos curriculares pela fundamentação eurocêntrica. Dentre algumas leituras inspiradoras, nessa perspectiva, têm sido o último livro de Jack Goody, O roubo da História, Como os europeus se apropriaram das ideias e invenções do Oriente e Renascimentos- um ou muitos? e do Orientalismo- o Oriente como invenção do Ocidente de Edward Said. Em 2018, foi possível, então, atualizar e refazer, em uma 5ª edição, o capítulo III - História nas atuais propostas curriculares, em que os conteúdos e seus critérios de seleção estão apresentados de forma mais consistente e articulada tanto em relação aos objetivos e métodos, quanto em sua relação com a produção e renovação historiográfica.

10 – (DR) Em 2014, a professora publicou dois livros, “A escola como objeto de estudo” e “História do ensino de leitura e escrita”; poderia nos contar um pouco sobre a história por trás desses dois livros – planejamento, pesquisa e escrita?

(CB) 10 - Em 2014, foram publicados dois artigos de minha autoria, mas esclareço que não participei da organização das obras em que estão inseridos. O artigo de Alain Choppin e seu legado como historiador e educador integram o livro História do ensino e da leitura organizado por Maria do Rosario Mortatti e Isabel da Silva Fradee; o outro artigo, Reflexões sobre currículos e diversidade cultural, integrava os textos da obra A escola como objeto de estudo. Escola, desigualdade, diversidades. Tais publicações foram resultantes de minha participação em eventos organizados, o primeiro, pelo II SIHELE- Seminário Internacional sobre História do Ensino, Leitura e EscritaMétodos e material didático na história do ensino inicial de leitura e escrita no Brasil, que ocorreu em 2013, na Universidade Federal de Minas Gerais, e, o segundo, pela apresentação na mesa-redonda Escola e diversidades, apresentada no IV Seminário Internacional - A escola como objeto de estudo-escola, desigualdades e diversidades, promovido pelo Programa de Pós-Graduação Educação: História, Política, Sociedade da PUCSP, em 2013.

No evento História do ensino de leitura e escrita, minha apresentação foi uma homenagem ao saudoso historiador do livro didático, Alain Choppin, falecido em 2009. Nesse texto, apresento o percurso de suas pesquisas e publicações sobre a história do livro didático e sua atuação no INRP em Paris. Trata-se de reflexões sobre o legado desse intelectual com quem tive a oportunidade de compartilhar parte de suas pesquisas, destacando sua importância em entender este objeto complexo, mas aparentemente banal, chamado livro didático. Destaco ainda a importância das pesquisas sobre livro didático que realizou em conjunto com a história da educação escolar e história das edições, além de sua atuação para formulação das políticas públicas sobre esse material didático, tendo sido assessor do PNLD em seus primórdios. E, destaco ainda sua contribuição para a constituição de um banco de dados, o EMMANUELLE, uma referência fundamental para o recenseamento de livros didáticos que torna possível o acompanhamento da “duração da vida da obra escolar”. Esse foi o referencial para o Banco de Dados LIVRES e de muitos outros com os quais mantemos contato em escala internacional.

O artigo Reflexões sobre Currículo e diversidade cultural foi decorrente da mesa-redonda que compartilhei com a apresentação: A escola frente à diversidade cultural de Anton Costa Rico, um importante educador da Galícia. Nesse artigo, situei o contexto político educacional do aparecimento da Lei nº 11.645/03 relacionada à Lei nº 10.639/03 e seu significado como base curricular inédita na história da educação brasileira. Destaco suas origens políticas, como parte das lutas de movimentos sociais dos afrodescendentes e dos indígenas, mas também seu sentido epistemológico quanto à exigência de se introduzir paradigmas da diversidade cultural na educação da nossa sociedade. E, particularmente para a História escolar, essas leis desafiam a unidade de um ensino organizado para sedimentar uma história branca e explicam as reações dos setores conservadores da nossa sociedade, temerosos de qualquer tipo de igualdade democrática e da possibilidade de se dar um sentido humanístico à educação brasileira.

11 – (DR) Para encerrar, gostaríamos de perguntar quais são seus projetos atuais e quais são suas perspectivas de trabalho e de pesquisas para o futuro.

(CB) 11 - No percurso da escrita deste relato sobre minha trajetória acadêmica e profissional, neste início de 2019, tomei a decisão de me demitir do EHPS/ PUCSP, não, por qualquer problema ou desentendimentos com companheiros que sempre foram mais do que colegas e com os quais compartilhei cerca de 11 anos de trabalho e, menos ainda, por querer me distanciar de alunos dedicados e comprometidos com as pesquisas de história e de educação, mas, porque o tempo me alcançou. Os últimos anos têm sido intensos e tristes, evidentemente, diante da nova política exterminadora de utopias e esta minha nova “aposentadoria” pretende se entrelaçar a novos projetos que nada mais são do que concluir alguns trabalhos e compromissos que considero importantes, mas que ainda estão incompletos.

Tenho participado de projetos internacionais sobre livros didáticos, e o temor pelo futuro das nossas universidades e seu acervo me conduziram novamente a trabalhar com a BLD na FEUSP, para a preservação das obras didáticas, e com o Projeto LIVRES, inserindo-o em novas formas de intercâmbio, tanto em relação ao Banco de dados como para a divulgação de pesquisas em nível acadêmico. Mas tenho compromisso em divulgar também para um público mais variado, sobretudo de estudantes e professores das redes de ensino, muitas das nossas reflexões e pesquisas. Um último trabalho foi a organização da exposição - Mostra Dal Brasile all’Agro romano – Scuole come Capanne- Libri come opere d’Arte no Museo della Scuola e del Libro per l’Infantizia, realizadacom Paolo Bianchini, da Università de Turim e com Pompeo Vagliani, director do MUSLI – Museo della Scuola e del Libro per l’Infanzia, na cidade de Turim. Foi uma exposição de livros produzidos para escolas indígenas pelos professores e comunidade indígena e, para grande surpresa, a mostra foi inaugurada em 2017 e, além de ter grande público, serviu também para cursos de formação de professores italianos em todo o decorrer de 2018. Esse é um caminho que ainda pretendo continuar a trilhar, além de concluir uma publicação sobre a História das edições escolares.

E mantenho também um compromisso de sistematizar melhor as minhas experiências e principalmente as vivências com vários povos indígenas com os quais aprendi muito mais do que ensinei e, dentre esses compromissos, pretendo organizar uma obra sobre História da educação indígena, com meus queridos ex-orientandos indígenas e não-indígenas.

Circe Fernandes Bittencourt
São Paulo, março de 2019.

1O roteiro de questões foi apresentado a Circe Bittencourt em dezembro de 2017 e nos foi entregue respondido em março de 2019. O questionário integra o projeto: “Biografias intelectuais: trajetórias de pesquisadoras pioneiras nos estudos históricos brasileiros”, contemplado no edital 013/2015 – Memórias Brasileiras: Biografias, lançado pela Capes em 2014, com vigência entre nov./2016 e nov./2019. (Circe Bittencourt) Inicio com um agradecimento pelo convite para participar de um projeto sobre uma trajetória peculiar na historiografia brasileira produzida por duas gerações de historiadoras. Nada mais honroso do que compartilhar percursos do fazer histórico integrando, ao mesmo tempo, uma história de mulheres brasileiras que, de diferentes lugares e formas, buscaram e, ainda buscam, contribuir para a construção de um pensamento histórico diversificado e plural sobre nossa sociedade nas últimas décadas do século XX e primeiras do século XXI.

Referências

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Recebido: 12 de Abril de 2019; Revisado: 26 de Agosto de 2019; Aceito: 20 de Maio de 2020; Publicado: 30 de Junho de 2020

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