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Educação: Teoria e Prática

versión impresa ISSN 1993-2010versión On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.31 no.64 Rio Claro ene. 2021

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v31.n.64.s15293 

Artigos

“FÚRIA E PODER SOBRE RODAS”: QUESTÕES DE GÊNERO E EDUCAÇÃO NA SÉRIE “IRMÃO DO JOREL”

“FURY AND POWER ON WHEELS”: GENDER AND EDUCATION ISSUES IN THE IRMÃO DO JOREL TV SERIES

“FURIA Y PODER SOBRE RUEDAS": CUESTIONES DE GÉNERO Y EDUCACIÓN EN LA SERIE IRMÃO DO JOREL

1Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais – Brasil. E-mail: ddanipassos@gmail.com.

2Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais – Brasil. E-mail: alexandremariniam@gmail.com.

3Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais – Brasil. E-mail: isabellegpatrocinio@gmail.com.


Resumo

O objetivo deste artigo é analisar como a série televisiva Irmão do Jorel – em especial o episódio 25 da primeira temporada: “Fúria e Poder sobre Rodas” – ajuda entender as dinâmicas sociais que envolvem jovens e adultos na constituição de suas imagens. O episódio suscita questionamentos, como as várias manifestações de gênero existentes, além de confrontar a questão da identidade sexual como sendo algo que está em construção durante o desenvolvimento do ser. As diversas abordagens de temas como gênero e identidade, tratadas de forma inusual em um produto imagético de amplo acesso ao público em geral, ajuda a trazer à tona as dinâmicas sociais que envolvem jovens e adultos. A maneira lúdica de tratar temas complexos e delicados como esse traz novas formas de acesso e abordagens. O enfoque recai sobre como a construção social, relacionada com as questões de gênero, é abordada de forma sutil, representativa e capaz de causar reflexões sobre os processos constitutivos educacionais durante a infância e a juventude que influenciam e envolvem a construção identitária dos indivíduos.

Palavras-chave Gênero; Construção Social; Série; Desenho Animado; Educação

Abstract

The purpose of this article is to analyze how the TV series Irmão do Jorel – especially the 25th episode of the 1st season: “Fúria e Poder sobre Rodas” – helps to understand the social dynamics that involve young people and adults in the constitution of their images. The episode raises questions, such as the various manifestations of existing gender, in addition to confronting the issue of sexual identity as something that is under construction during the development of being. The diverse approaches to themes such as gender and identity, treated in an unusual way in an image product with wide access to the general public, helps to bring to light the social dynamics that involve young people and adults. The playful way of dealing with complex and delicate topics like this, brings new forms of access and approaches. The focus is on how social construction, related to gender issues, is approached in a subtle, representative and capable of causing reflections way on educational constitutive processes during childhood and youth that influence and involve the identity construction of individuals.

Keywords Gender; Social Construction; Series; Cartoon; Education

Resumen

El propósito de este artículo es analizar cómo la serie televisiva Irmão do Jorel – especialmente el episodio 25 de la primera temporada: “Fúria e Poder sobre Rodas” – ayuda a comprender la dinámica social que involucra a jóvenes y adultos en la constitución de sus imágenes. El episodio plantea preguntas, como las diversas manifestaciones de los géneros existentes, además de enfrentar el problema de la identidad sexual como algo que se está construyendo durante el desarrollo del ser. Los diversos enfoques de temas como el género y la identidad, tratados de manera inusual en un producto de imagen con amplio acceso al público en general, ayudan a sacar a la luz la dinámica social que involucra a jóvenes y adultos. La forma lúdica de tratar temas complejos y delicados como este, trayendo nuevas formas de acceso y enfoques. La atención se centra en cómo se aborda la construcción social, relacionada con las cuestiones de género, de manera sutil, representativa y capaz de provocar reflexiones sobre los procesos constitutivos educativos durante la infancia y la juventud que influyen e involucran la construcción de la identidad de los individuos.

Palabras clave Género; Construcción Social; Serie; Dibujo Animado; Educación

1 Introdução

Pensar os desenhos, filmes, séries (de TV e streaming) como expressão cultural e uma forma de educação faz parte, hoje, do processo de ensino e aprendizagem. A cultura fílmica tanto oferece imagens, figuras, ideias, histórias, personagens e modelos de ordem e rebeldia, como também é construída a partir da maneira como a sociedade se desenvolve. Podemos dizer que a cultura fílmica educa ao apelar para a emoção, a imagem, a fantasia. Filmes e, atualmente, séries têm se tornado instâncias formativas poderosas, provocando novas práticas e novos ritos urbanos com representações de gênero, relações étnico-raciais e de classes sociais (tanto as legitimadas quanto as marginalizadas) (LOPES, 2008).

Nas últimas décadas, novas leituras (além da análise técnica dos filmes) têm sido postas em pauta nas abordagens fílmicas, entre elas a perspectiva feminista. E, graças a essas análises, hoje é possível assistir a desenhos, séries, TV (em geral) com menos ingenuidade. Temas tabus são abordados nas telas, o que nos leva a pensar as questões de opressão, liberdade e resistência em uma dada sociedade. As transformações sociais se revelam nas telas.

E é nesse sentido, de analise social, especificamente na perspectiva de gênero, que esse artigo visa a abordar o episódio “Fúria e Poder sobre Rodas” da série infanto-juvenil Irmão do Jorel.

Juliano Enrico, o criador da série, ao publicar fotos de sua família no Fotolog1, notou que as pessoas que o acompanhavam, e que também compartilhavam as próprias fotos, pareciam ter uma história ou foto embaraçosa da família, como a mãe com cabelo bizarro, festas de aniversário constrangedoras e outras situações consideradas “estranhas”. Foi assim que Enrico decidiu desenhar histórias baseadas em fotos de família2. O material, que a princípio possuía formato HQ e com humor adulto, mudou o tom e o formato originais, passando a abranger também o público infanto-juvenil.

Em 2009, Enrico participou de um pitching (espécie de concurso para apresentar trabalhos a possíveis investidores) da Cartoon Network que procurava desenhos brasileiros. Com 200 inscrições, apenas cinco foram selecionados e, entre eles, Irmão do Jorel. A série foi lançada em 22 de setembro de 2014 e atualmente tem três temporadas. Entre as premiações estão: o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro como Melhor Série Brasileira de Animação e o Prêmio Quirino 2019 de Melhor Série de Animação Ibero-americana3.

As histórias acontecem nos anos 1980, no Brasil, sem que seja possível identificar exatamente em qual local reside a “excêntrica” família do Irmão do Jorel. Apesar de ser o personagem principal, Irmão do Jorel é um garoto tímido de aproximadamente 8 anos, filho caçula e não tem seu nome revelado em nenhum dos episódios. Sabemos que o personagem principal é irmão do incrível Jorel, um jovem de cabelos sedosos, pele bonita, popular e admirado por todos e todas. O Irmão do Jorel é uma criança em formação e ofuscado pela popularidade do seu irmão. Com o desenrolar da série, o personagem se vê em busca da sua própria identidade e ser alguém significante em sua família. As confusões pelas quais passa, mesmo que exageradas, são comuns nos ambientes familiares, refletem e permeiam a vida e o imaginário de muitos jovens.

Assim, este artigo visa a analisar como a série Irmão do Jorel ajuda entender as dinâmicas sociais que envolvem jovens e adultos na construção de suas imagens. Em especial, iremos abordar o episódio 25 da primeira temporada: “Fúria e Poder Sobre Rodas”. A abordagem recai sobre as pedagogias culturais dominantes, ou seja, o episódio questiona as várias manifestações de gênero existentes, além de confrontar a questão da identidade sexual como sendo algo que está em construção durante o desenvolvimento do ser.

“Fúria e Poder sobre Rodas”, a partir do olhar infantil (e um toque de comicidade), ajuda-nos a entender como existem grupos historicamente subordinados, focando em especial na questão feminina e como tais grupos (nesse caso, as mulheres – meninas) buscam afirmar seus valores, suas escolhas, sua estética e lutam pela possibilidade de representar a si mesmos, e, para isso tentam ocupar todos os espaços e instâncias possíveis.

2 Fúria e poder sobre rodas: as mulheres em ação

“Fúria e Poder sobre Rodas”, 25º episódio da primeira temporada, conta a história de um esporte coletivo extremamente competitivo e violento sobre patins, roller-derby, do qual apenas mulheres podem participar. Papéis construídos socialmente com base na separação pelo sexo biológico são discutidos no desenvolver da trama e expostos a partir das relações sociais, diálogos e interações que ocorrem entre os diversos personagens. Ora afirmados, ora colocados em perspectivas inversas ou contrastantes, vários são os momentos em que as questões de gênero, as relações de poder e os discursos presentes no cotidiano social são abordados frente ao caráter pretensamente “natural” que os constituem.

Conceitualmente, por gênero iremos trabalhar com a ideia de atribuição dos espaços sociais construídos de forma diferenciada para meninos e meninas e como tais processos conduzem à “naturalização” dessas diferenças (menino produz vs. menina reproduz), levando a discriminações e inúmeras violências, física e simbólica, entre os mais diversos sujeitos. De acordo com Joan Scott (2005), gênero é um conceito que se refere à construção social do sexo anatômico, elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos como modo de dar significado às relações de poder. Gênero é um termo importante para pensarmos as formas como se estruturam as relações sociais, pois estas envolvem rituais bastante distintos de aprendizagens e sociabilidades e, principalmente, a domesticação dos corpos em função daquilo que é considerado masculino ou feminino fundamentado nas diferenças biológicas num determinado contexto cultural, época e espaço geográfico.

Nesse episódio, o Irmão do Jorel e sua amiga Lara avistam um arco-íris. Ela sugere passarem debaixo dele, porém o Irmão do Jorel não parece muito animado e diz, demonstrando receio, estar escurecendo (enquanto a cena mostra o sol forte). Em seguida, transcorre a seguinte conversa:

Lara: Deixa de ser frangote

IJ: Você quer dizer que eu sou mulherzinha, por acaso?

Lara: Claro que não, Irmão do Jorel. Você chama alguém de mulherzinha quando a pessoa é incrível.

IJ: Mulherzinha é quem faz coisa de menina, Lara.

Lara: Ah, é? E o que seria uma coisa de menina?

IJ: Ah, sei lá... É... Brincar com pônei rosa miniatura, por exemplo?

Lara: Argh. Eu sou mulherzinha e não brinco de pônei rosa miniatura nenhum. Eu prefiro jogar bola.

IJ: Mas jogar bola é coisa de menino.

Lara: Quem disse?

IJ: É... Não sei. Alguém falou.

Lara: Então, já que você não gosta de jogar bola, você não é menino.

IJ: Sou sim, sou sim, sou sim...

Papéis e lugares sociais construídos e naturalizados fundamentam o diálogo dos personagens. O Irmão do Jorel procura se afastar das qualidades que entende como femininas, como a fraqueza, o medo e o gosto por “bobagens”. Ao mesmo tempo, Lara subverte a depreciação comum às mulheres, tornando-a qualidade: mulher é sinônimo de ser incrível.

Podemos dizer o que é ser homem e mulher tanto pela linguagem, como pelas formas culturais e políticas que nos circundam. Sob as formas culturais normatizadas pelo ideal do homem branco, hétero, cis, dominante, temos que:

(...) significações do que é ser homem e do que é ser mulher que a sociedade provê através dos mitos, da linguagem que usamos e que nos usa, dos meios de comunicações e dos sistemas de ensino, [são quase] todos eles infiltrados pela discriminação sexista

(FERNANDES, 1992, p. 39).

Assim, como a questão feminina é reduzida ao que é frágil, também a questão da “masculinidade tóxica” é apresentada a partir da abordagem do homem que não pode chorar, sensibilizar-se ou mesmo “brincar com o pônei rosa miniatura”, por exemplo. Percebemos, no diálogo entre Lara e Irmão do Jorel, que a construção do que é ser menino ou menina não acontece apenas pelo sexo biológico, estando também ligado aos códigos e normas culturais que imperam na sociedade e nos sistemas de ensino e de comunicação de uma determinada época política ou histórica.

Os papéis sexuais são construídos socialmente e, posteriormente, naturalizados. Em o “Segundo o Sexo” (1949), Beauvoir questiona o suposto caráter “natural” da subordinação feminina perante os homens ao afirmar que ela é decorrente das maneiras como a mulher é construída desde sua infância. E, nesse processo, a educação constitui-se fundamental, pois é por meio dela que somos apresentados culturalmente ao mundo, já construído socialmente antes de nascermos, algo presente na resposta do Irmão do Jorel quando diz não saber quem falou ou ensinou que aquilo que ele acreditava era verdade (distinguindo o que era coisa de menino e coisa de menina).

A postura e o posicionamento de Lara exemplificam uma das perspectivas inerente ao conceito de construção social: o que é construído pode ser modificado. Dessa forma, alterando a maneira como as mulheres são percebidas, seria possível mudar o espaço social por elas ocupado (PISCITELLI, 2009, p. 133). É nesse sentido que a Lara tenta descontruir as respostas “preconceituosas e naturalizadas” do Irmão do Jorel, no entanto novos arranjos discursivos podem carregar a reafirmação de antigos papéis. Quando Lara chama o Irmão do Jorel de frangote, ela o faz diante do medo ou receio dele frente ao desconhecido (no caso, o arco-íris4). Um sentimento comum a todos, o medo, é depreciado quando associado ao masculino: no ideário social, homens são corajosos, viris, fortes e não devem demonstrar sentimentos de fraqueza, como já sinalizado anteriormente.

O mesmo acontece mais à frente, mas de forma inversa: ao chegarem próximo ao arco-íris, apesar de ambos acharem o fenômeno lindo, o Irmão do Jorel procura reafirmar seu papel masculino demonstrando desinteresse ao dizer estar com vontade de jogar bola, esporte do qual, mesmo não sendo fã, sabe ser sinônimo comum de masculinidade (como anteriormente alertado pela amiga Lara). Posteriormente, durante a passagem pelo arco-íris, o Irmão do Jorel encontra, dentro da garupa da bicicleta de Lara, um pônei rosa. Rapidamente ela nega que o brinquedo seja dela, numa tentativa de manter-se longe dos pensamentos preconceituosos do Irmão do Jorel, pertencentes a uma sociedade que rotula os brinquedos de meninas e de meninos. Essa passagem ajuda a exemplificar dois pontos importantes: a) que as ações e os gostos são mediados e induzidos por coerções presentes nos espaços sociais e nas interações entre os sujeitos; b) que a simples recusa em assumir gostos e preferências não descontrói o que é socialmente construído (no caso da Lara e seu pônei), como também pode reforçar o que já está posto socialmente (no caso do Irmão do Jorel e o futebol).

Cabe ressaltar que pensar a temática gênero implica necessariamente rever as verdades estabelecidas e aprendidas por nós como sendo únicas, imutáveis e inquestionáveis. É importante refletirmos sobre quantas vezes já mudamos de ideia. Quantos conceitos diferentes podemos construir acerca de um mesmo objeto, quantos conceitos não podemos definir devido à complexidade do fenômeno que se apresenta num determinado momento? Isso nos faz pensar que o mundo está em constante transformação e, por isso, devemos estar atentos(as) ao que muitas vezes é fixado, essencializado, normatizado (MAGNABOSCO; TEIXEIRA, 2010). Assim, não corremos o risco de ver o mundo como algo pronto e acabado, como Lara e Irmão do Jorel nos apresentam no diálogo descrito.

De acordo com Daniela Auad (2006, p. 19), quando começamos a considerar as relações de gênero socialmente construídas, entendemos que uma série de características apontadas como “naturalmente” femininas ou masculinas corresponde às relações de poder. Essas relações vão ganhando a feição de “naturais” de tanto serem praticadas, contadas, repetidas e recontadas. Tais características foram, na verdade, construídas, ao longo dos anos e dos séculos, conforme as relações de poder entre homens e mulheres foram se engendrando socialmente.

Abordar questões de gênero e introduzir os conceitos em nossa prática faz que percebamos, primeiramente, nossos próprios preconceitos. E a construção dessa percepção começa quando nos implicamos com nossa história e as produções de sentido, principalmente em relação aos preconceitos que também produzimos (MAGNABOSCO; TEIXEIRA, 2010). Então, o que podemos fazer para reverter esse quadro? Talvez uma possibilidade seja aprender a criticar, questionar nossos valores e nossas verdades. E é isso que o episódio “Fúria e Poder Sobre Rodas” nos sugere.

Assim, voltando ao episódio, mais à frente, Lara e Irmão do Jorel chegam ao local de treinamento das “Trituradoras de Sonhos Mortíferos”: três meninas que jogam roller-derby5, esporte sobre patins com empurrões e cabeçadas considerado, pelas personagens, o jogo mais perigoso do mundo. Ao demonstrarem interesse em participar, Lara e Irmão do Jorel recebem o aviso de que o jogo é apenas para as “minas”. Lara consola o amigo, que ficou chateado com a situação, dizendo para que não fique triste, pois roller-derby é coisa de menina. Então o Irmão do Jorel diz que jogará bola, já definido antes como sendo “coisa de menino”, e vai embora. Em casa, durante o jantar, demonstra estar chateado e diz que deseja ser uma menina, o que chama a atenção de todos à mesa. Perguntado sobre a razão daquele desejo, explica querer jogar roller-derby e que se vê impedido pelo fato de ser menino. Sua mãe compartilha que já foi campeã desse jogo e sua vó Gigi (materna) foi treinadora, e assim iniciam a explicação das regras do jogo. O pai entra em cena e alega que tal proibição é inaceitável. O Irmão do Jorel concorda, mas diz que continua não podendo fazer parte do time. O pai discorda e sugere que ele se vista de menina, o que causa riso e deboche em alguns membros da família. Ele diz que nunca faria isso, mas Vovó Juju (paterna) diz que ele será uma moça linda.

Em uma sociedade “naturalmente” formada por homens e mulheres que enfatiza suas diferenças, qualquer situação que fuja a esse escopo dicotômico é vista sob o olhar da anormalidade. A formação identitária e sexual, nesse caso, é dada pela natureza. Há um essencialismo biológico determinado pelo órgão sexual: se nasce fêmea, é mulher; se nasce macho, é homem, incluindo todo o escopo esperado de cada um. Na cena do jantar, porém, ao contrário do esperado, a identidade de gênero não é percebida por parte da família do Irmão do Jorel pela subjetivação de ser masculino ou feminino, conforme os atributos, comportamentos e papéis convencionalmente estabelecidos socialmente. Ao desejar ser menina, o Irmão do Jorel o faz frente às oportunidades que lhe são retiradas ou se tornam inacessíveis pela sua posição de homem definida de forma arbitrária, e, assim, é entendido por parte de sua família.

A questão suscitada no jantar não é sobre definir-se menino ou menina a partir de uma transição ou mudança biológica, o rompimento com o próprio corpo, mas, sim, com os estereótipos que se prendem socialmente aos corpos. A possibilidade de ser e existir compreende as oportunidades oferecidas socialmente a cada indivíduo. Em outras palavras, a impossibilidade de ação, imposta mediante estereótipos masculinos e femininos, impacta a impossibilidade de ser e de agir. Ao contrário do que ocorre no episódio “Fúria e Poder sobre Rodas”, as impossibilidades são maiores e mais fortemente limitadoras às mulheres, não aos homens. A inversão, conforme ocorre nesse episódio, propiciada pela liberdade de criação, oferece outra perspectiva ao que está reiteradamente posto e naturalizado socialmente, potencializando a reflexão sobre o tema.

Durante o período de preparo do Irmão do Jorel para estar apto a jogar roller-derby, a avó (materna), enquanto faz movimentos de artes marciais com o quadro de um homem forte na parede (Steve Magal, em clara referência à Steven Seagal, ator e lutador de artes marciais) subverte o estereótipo feminino ao ensiná-lo que “mulheres são implacáveis. Você precisa de fúria e poder”, e que assim ele deveria agir. Ao mesmo tempo, a avó (paterna) ensina ao neto (Irmão do Jorel) que meninas andam com passos pequenininhos, ligando a mulher à questão da delicadeza. Nesse caso, as inversões não são necessariamente desconstruidoras, mas reiteradoras de papéis: mulheres “são”, ou seja, espera-se que ajam conforme determinada expectativa, numa idealização que é, portanto, também homogeneizadora. Nem todo homem ou toda mulher é implacável, nem todos/as são furiosos/as e poderosos/as, ou mesmo delicados/as.

Em nosso processo de socialização, o corpo é constantemente moldado através do aprendizado de diferentes gestos para diversas ocasiões sociais, de modo distintos de se comportar perante a família, de sentar-se com as pernas cruzadas ou não, de manter uma determinada postura corporal diante dos outros, de falar com determinados tons de voz, de baixar a cabeça ou mantê-la sempre ereta. Todos esses movimentos do corpo são aprendidos nas relações que inicialmente mantemos com nosso grupo de socialização primária, mediante valores, sua moral e sua forma de conceber homem [e mulher] no mundo

(MAGNABOSCO; TEIXEIRA, 2010, p. 32).

Apesar de feminino, o jogo de roller-derby apresentado no episódio carrega muito das expectativas de um esporte masculino, sobretudo quanto ao caráter violento. Durante o jogo, com os times empatados, Lara comete uma falta e é expulsa. Diante do juiz, ela utiliza uma desculpa muito comum aos homens quando eles se tornam socialmente violentos com as mulheres: “Desculpa aí, perdi o controle”. As desculpas não são dirigidas à vítima, mas ao juiz, e ocorrem em decorrência das consequências do seu descomedimento, como se a violência fizesse parte da natureza do jogo, portanto inerente às suas atuação e função como jogador(a), bastando controlar os exageros. A vergonha e as desculpas ocorrem pelo resultado imputado a si (expulsão), não pela violência praticada a terceiros.

No momento da expulsão de Lara, e sem jogadora reserva para substituí-la, o Irmão do Jorel aparece vestido de menina. Apesar da desconfiança das jogadoras, ele acaba sendo aceito e ganham o jogo com uma participação importante sua. Ao receber o troféu e erguê-lo, o inesperado acontece: enquanto a plateia ainda comemorava, o pai do Irmão do Jorel começa a gritar: “meu filho, filhão”, expondo o disfarce. A plateia reage de forma preconceituosa: “vestido de menina”, “tá errado’’, “tinha que ser, né?!”, “não pode, ele tá de saia”, “é um absurdo” são algumas das expressões do público. Abandonado pelas próprias colegas de time, ele se levanta, ajeita-se e ergue o troféu novamente. No meio do burburinho, um homem grita “Ah, não importa, é isso ai, cara!”, sendo então aplaudido por toda a torcida. Nesse momento, além de suas colegas de time, Lara se aproxima e diz “Que demais”, com olhos marejados e expressão de admiração, finalizando a história.

A parte final do episódio oferece um bom exemplo do sistema sexo-gênero, em que o primeiro é marcadamente biológico e o segundo, marcado pela construção cultural a partir das diferenças entre homens e mulheres. Gênero é, portanto, uma construção sempre e incessantemente negociada do que pode e do que não é aceito ou permitido. Para Butler (2015), gênero congrega performance, não havendo mais um única forma de ser mulher ou homem, mas inúmeras: o ato performático (Irmão do Jorel vestido de menina) é uma relação política num campo discursivo (no estádio, no esporte) e histórico das relações de poder, que inclui negociações (ser aceito no time) e, portanto, também um ato político, incidindo no julgamento de aceitação ou não dos demais sujeitos sociais (público do jogo).

“Fúria e Poder sobre Rodas” nos mostra como as relações sociais e pessoais são incorporadas nas nossas condutas diárias, como disciplina, respeito, obediência, ordem, competência, ludicidade etc. Esses modos são transmitidos simultaneamente pela linguagem, pelos gestos corporais e pelos contextos sócio-históricos culturais que os acompanham. Nesse sentido, aprendemos com o episódio que a educação não se dá apenas dentro da escola, está em todos os lugares, em todos os espaços, nas nossas vivências e experiências com os outros. Não é possível dizer, ao certo, onde e com quem aprendemos tais visões de mundo, pois o processo de aprender e ensinar se dá em todos os lugares e de maneira constante: na nossa relação com o mundo e com as pessoas é que nós construímos, aprendemos, repetimos.

3 Conclusão

Vistas como ondas, as conquistas feministas vêm ganhando escopo e espaço ao longo dos séculos, desconstruindo e proporcionando mudanças nas relações entre homens e mulheres. “A primeira onda” do movimento feminista, conhecido como sufragista, ocorreu no final do século XIX e início do XX. Esse primeiro momento de mobilização aconteceu na Europa ocidental, na América anglo-saxônica e em alguns outros países, impulsionado principalmente pela ideia de “direitos iguais à cidadania”. As feministas sufragistas reivindicavam poder votar, ter acesso à educação e poder ter posses e bens (PISCITELLI, 2009, p. 126).

A segunda onda do movimento feminista, que aconteceu entre as décadas de 1960 e 1970, foi marcado pela “desnaturalização do ser mulher”, ou seja, com a categoria de gênero enfatizou-se a construção social da diferença sexual. O gênero passou a ser analisado enquanto fenômeno histórico, determinado e produzido ao longo do tempo. Ao considerar o caráter construído da dimensão do termo gênero, o feminismo da segunda onda também permitiu a concepção de pluralidade de femininos e masculinos. Nesse sentido, alargou as articulações de feministas e a interseção com múltiplas demandas, como o combate ao racismo e à heteronormatividade (HEILBORN; ARAÚJO, BARRETO, 2010, p. 49).

Assim, gênero pode ser também considerado consequência do olhar feminista que coloca em foco a diversidade de experiências, os discursos, a diversidade. O próprio episódio “Fúria e Poder sobre Rodas” é fruto disso: a crítica ao machismo, à heteronormatividade, ao patriarcalismo não apenas é consequência desse processo, como ainda permanece atual e importante, pois afeta negativamente a formação dos indivíduos até hoje.

Tanto a Lara quanto o Irmão do Jorel não entendem como certas regras existem, quem as criou e por que se perpetuam: ambos dialogam sobre o que seria coisa de menina ou de menino e, ao final, não conseguem ter respostas concretas. As situações vividas pelos personagens demonstram que determinadas regras e definições sociais congregam arbitrariedades e parâmetros excludentes.

Ao interrogar regras socialmente construídas, esse episódio permite repensar as dinâmicas sociais sobre que o é ser homem ou mulher. Questiona o que é definido (ou não) como os lugares e papéis sociais esperados para menina e menino nas brincadeiras e nas relações sociais, exemplificando, de maneira sutil e lúdica, como construções heteronormativas ocorrem de forma difusa, porém coercitiva, nos mais diversos espaços e em toda nossa formação como indivíduos. Nas instituições familiares e escolares, nos espaços educacionais formais e informais, os papéis sexuais são afirmados e reafirmados, e o que foge ao estereótipo dicotômico entre homens e mulheres pode ser visto como fora do padrão. Nesse sentido, Fúria sobre Rodas também critica a educação homogeneizadora e padronizadora de corpos, limitadoras de ações e oportunidades, reforçada por controles coercitivos presentes nas relações sociais.

Cabe ressaltar que as construções são enfatizadas no episódio com personagens com idades diferentes (crianças, jovens e idosas) e trazendo consigo questões sobre empoderamento da mulher, educação, construção das identidades e o desafio de adotar um olhar mais reflexivo sobre preconceitos. As desigualdades de gênero, são questões de grande importância em nosso cotidiano. Questionar as relações de gênero e as diversas sexualidades nos possibilita compreender como a produção das diferenças tem influenciado a constituição dos sujeitos e, assim, tentar promover uma sociedade mais igualitária.

1Site para hospedagem de fotografias no qual usuários podiam compartilhar suas fotos armazenadas com pessoas de seus círculos. Surgido em 2002, encerrou suas atividades em 2019.

3Em 2019 foi indicada ao Emmy Internacional Kids na categoria Animação. O vencedor foi ZOG, uma comédia de animação originária do Reino Unido.

4A questão do arco-íris também vem carregada de simbologia no episódio. O arco-íris, para a comunidade LGBTQI+, traz a ideia de diversidade e inclusão, em que as diversas formas de sexualidade (de ser e expressar) são consideradas fundamentais aos direitos humanos.

5“A primeira versão do esporte surgiu em meados da década de 1930 nos Estados Unidos. Visto como um esporte de resistência, a principal ideia era dar muitas voltas em torno de uma pista, mas, após alguns anos, perceberam que o momento mais excitante era quando dois patinadores se chocavam. Foi aí que as regras mudaram: o roller derby se tornou um esporte de mais contato, competitivo e, em vez de focar apenas na resistência, seria promovido como um esporte de equipe, numa pista inclinada, com ataque e defesa (Aguilera, 2019, p. 1)”. Segundo Aguilera, o esporte continua majoritariamente feminino, com 90% das praticantes mulheres.

Referências

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Recebido: 29 de Julho de 2020; Revisado: 17 de Novembro de 2020; Aceito: 03 de Março de 2021; Publicado: 15 de Março de 2021

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