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Educação: Teoria e Prática

versión impresa ISSN 1993-2010versión On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.31 no.64 Rio Claro ene. 2021

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v31.n.64.s14902 

Artigos

EDUCAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DISCURSIVA IDENTITÁRIA DE TRABALHADORES RURAIS SINDICALISTAS DE VICÊNCIA/PE

EDUCATION AND DISCURSIVE IDENTITY CONSTITUTION OF UNIONIST RURAL WORKERS IN VICÊNCIA-PE

EDUCACIÓN Y CONSTITUCIÓN DE IDENTIDAD DISCURSIVA DE LOS TRABAJADORES DE LA UNIÓN RURAL EN VICÊNCIA-PE

Aurenéa Maria de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0003-1033-4015

Maria da Conceição dos Reis2 
http://orcid.org/0000-0001-5447-5069

Joel Severino da Silva3 
http://orcid.org/0000-0002-4371-2732

1Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco – Brasil. E-mail: aurenea@hotmail.com.

2Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco – Brasil. Email: cecareis@hotmail.com.

3Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco – Brasil. E-mail: joelsilva.educar@gmail.com.


Resumo

A partir do século XX, vários movimentos e sindicatos no campo uniram forças contra as péssimas condições de trabalho. Assumindo que neste processo há uma dimensão pedagógica de aprendizagens políticas, esta pesquisa teve o objetivo de analisar como os processos educativos do movimento sindical de trabalhadores rurais do município de Vicência/PE repercutem na construção da identidade política de sindicalistas. O estudo se baseou na concepção de discurso desenvolvida pela Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe e na perspectiva de identidade de Stuart Hall. Metodologicamente, fez uso da análise de discurso de Michel Pêcheux e de Eni Orlandi, visando observar como os indivíduos, a partir de posições de sujeito, relações de lugar e de força, elaboram suas falas. Os resultados apontaram para uma noção de identidade política-cidadã atrelada à luta por conquistas de direitos sociopolíticos, por parte desses trabalhadores, e para o antagonismo patronal, limitando conquistas destes sindicalistas.

Palavras-chave Identidade; Sindicato rural; Educação não formal

Abstract

From the 20th century onwards, several rural movements and unions joined forces against the terrible working conditions. Assuming that this process implies a pedagogical dimension of political learning, this research aimed to analyze how educational processes of the rural workers’ union in the municipality of Vicência, Pernambuco, affect the members’ political identity construction. This study was based on Ernesto Laclau’s concept of discourse, Chantal Mouffe’s (1985) Discourse Theory (DT), and Stuart Hall’s perspective of identity. The means through which individuals elaborate their discourses according to subject positions and relations of place and power was analyzed in the light of the Discourse Analysis (DA), formulated by Michel Pêcheux and Eni Orlandi (2013). The results point to a notion of political-citizen identity linked to the struggle for conquests of sociopolitical rights on the part of these workers, as well as to the antagonism of employers, thus limiting unionists’ achievements.

Keywords Identity; Rural union; Non-formal education

Resumen

A partir del siglo XX varios movimientos y sindicatos en el campo unieron fuerzas contra las terribles condiciones de trabajo. Suponiendo que en este proceso existe una dimensión pedagógica del aprendizaje político, esta investigación tuvo como objetivo analizar cómo los procesos educativos del movimiento sindical de trabajadores rurales en el municipio de Vicência-PE impactan en la construcción de la identidad política de los miembros del sindicato. El estudio se basó en la concepción del discurso desarrollada por la Teoría del Discurso de Ernesto Laclau y Chantal Mouffe (TD) (1985) y en la perspectiva de identidad de Stuart Hall. Metodológicamente, hizo uso del Análisis del Discurso (AD) de Michel Pêcheux y Eni Orlandi (2013), con el objetivo de observar cómo los individuos, desde posiciones de sujeto, relaciones de lugar y fuerza, elaboran sus discursos. Los resultados apuntaban a una noción de identidad político-ciudadana vinculada a la lucha por la conquista de los derechos sociopolíticos, por parte de estos trabajadores, y al antagonismo de los empleadores, lo que limita los logros deestos miembros del sindicato.

Palabras clave Identidad; Unión rural; Educación no formal

1 Introdução

Esta pesquisa teve como objeto de estudo a constituição de identidades dos trabalhadores rurais sindicalistas através de processos educativos não formais. Considerou-se, portanto, como campo pedagógico, as lutas e organizações coletivas destes sujeitos, suas resistências e seus confrontos contra as hegemonias, sobretudo a patronal, que historicamente têm explorado trabalhadores do campo, negando e/ou limitando direitos mínimos de dignidade.

Em contraponto às péssimas condições de trabalho e à ausência de direitos básicos de sobrevivência no campo, os trabalhadores rurais das regiões do Brasil se articularam em vários movimentos, unindo força política contra seus oponentes (RIBEIRO, 2010). Dentre estas organizações, iniciadas em meados do século XX, temos os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, regulamentados em 1962 no governo Goulart, após vários processos de lutas da categoria (LIMA, 2005).

Segundo Lima (2005), no caso de Pernambuco, tal regulamentação só veio a acontecer em 1963, no governo Arraes, em função da forte greve dos trabalhadores do corte da cana-de-açúcar, em contestação às péssimas condições de trabalho, aos salários irrisórios e à não efetivação do salário mínimo – firmado na década de 1930 e “garantido” no artigo 90 do Decreto-Lei nº 3.855/1941 (Estatuto da Lavoura Canavieira) – e do direito às férias, que desde 1943 haviam sido assegurados pela Consolidação das Leis do Trabalho, nos artigos 76 e 129, respectivamente. Tal regulamentação ampliou os antagonismos na relação de força política com a classe patronal, que passou a perseguir e até matar trabalhadores rurais (LIMA, 2015).

Ainda segundo a autora, a fronteira antagônica que limitava a regulamentação sindical advinha de duas instituições de poder: primeiro, da própria legislação trabalhista; segundo, dos “barões de açúcar” que, além de exercerem o poder repressivo, controlavam as instituições políticas (LIMA, 2015).

Diante do poderio patronal, da dominação política e cultural, Lima (2005) sublinha que os trabalhadores rurais passaram a perceber, sobretudo a partir de 1960, que só os discursos e mobilizações não eram suficientes para fazer o trabalho expandir. Necessitavam, portanto, de um processo de formação de identidade política. Neste sentido, o movimento sindical da categoria se articulou com outros movimentos e instituições, como a Igreja Católica, que passou a desempenhar um papel importante de formação de sindicalistas. Posteriormente, a partir de 1980, o Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais, assim como outras categorias sociais, (re)significam boa parte de suas demandas, não só em torno das questões classistas vinculadas ao mundo do trabalho, mas, sobretudo, pelo reconhecimento identitário. Para tanto, este reconhecimento fora concebido como usufruto de um amplo exercício de cidadania.

Conforme aponta Jacobi (1989), os movimentos sociais buscam, por meio de um processo pedagógico de educação política, a reafirmação de identidades dos sujeitos a partir de suas demandas. Este modelo de educação, que independe dos espaços escolarizáveis, conceitua-se como não formal. Segundo Gohn (2010), o “não formal” corresponde a um processo que envolve a formação e a conscientização sociopolítica dos sujeitos, com vista a constituí-los em cidadãos do mundo e no mundo, envolvendo aprendizagens quanto às diferenças culturais, à relação intercultural, à construção de identidade etc.

Diante desta concepção sociopolítica de educação não formal, que, conforme defende Gohn (2010), envolve a formação de identidade política a partir da realidade histórica de exploração dos trabalhadores rurais, nos inquietamos em saber como o movimento sindical desta categoria trabalha a identidade política destes sujeitos, para além da dicotomia de classe demarcada pelo marxismo.

Considerando a complexidade que envolve o conceito de identidade, teoricamente, a pesquisa se deu num viés pós-estruturalista. Adotamos esta concepção epistemológica porque, no contexto atual, sabe-se que apenas as relações de classes, numa leitura marxista, não são suficientes para a análise de constituições identitárias, o que exige outras categorias analíticas que possibilitem observar antagonismos e lutas de modo mais complexo.

2 A teoria do discurso de Laclau e Mouffe

A Teoria do Discurso (TD), elaborada pelos teóricos pós-estruturalistas e pós-marxistas Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2015), fundamenta-se no princípio de análise do social, cultural e político como ontologicamente discursivo. Isso porque nesta teoria a realidade e o discurso são inseparáveis, uma vez que é o discurso que a constitui simbolicamente, conferindo-lhe significado nas relações sociais (OLIVEIRA, 2016). Nesta perspectiva teórica, o social é o lugar onde existe um conjunto infinito de significantes e a competição por significados se dá em processos de disputas hegemônicas que se estabelecem nas relações sociais.

No entanto, “hegemonia”, para Laclau e Mouffe (2015, p. 213), não significa fixidez, pois, “num sistema fechado de identidades relacionais, no qual o significado […] é absolutamente fixo, não há qualquer lugar para hegemonia”. Se as relações organizadas no social constituíssem um sistema no qual as diferenças fossem absolutamente reguladas e bem-sucedidas que impossibilitassem significados outros, seria impossível qualquer articulação e não haveria nada a hegemonizar.

Neste sentido, diante de um sistema social de diferenças flutuantes que não se cristalizam, os autores não aceitam em sua concepção teórica a ideia de universalidade/totalidade – o que seria o fim dos sujeitos e da história. Em contraponto, desenvolvem uma série de conceitos pelos quais analisam toda tentativa de construção de hegemonia apontada para uma ausência de totalidade (PINTO, 1999). Um destes conceitos é o de significante vazio, que visa dar conta da produção de sentidos e colocar o projeto de constituição do social e das identidades no campo da possibilidade, pois este tem a função de articular os elementos, eliminando provisoriamente as diferenças. Tal busca parte da ideia de que a concepção de universal/totalidade é um centro aberto, vazio, que nunca se preenche. Neste aspecto, um significante vazio (discurso sem nenhuma representação social) só pode ser significado parcialmente, na relação com outros significados (discursos constituídos) precários e contingenciais.

Contudo, neste processo faz-se necessário que pontos nodais se estabeleçam entre as diferenças, ou seja, consensos contingenciais e provisórios se articulem em torno de projetos comuns com o intuito de fixar ideologias e hegemonizar discursos. Em efeito, é preciso que os elementos – quer dizer, as diferenças que não estão discursivamente articuladas – se transformem em momentos, isto é, que as posições diferenciadas, através de pontos nodais de equivalências, articulem-se no interior destes discursos – ainda que parcialmente – para poder dar sentido ao significado em disputa. Esta articulação reverbera em práticas que estabelecem relações entre elementos; porém, a articulação de um elemento não impossibilita sua articulação em outro discurso (LACLAU; MOUFFE, 2015). Isso ocorre porque, no interior destas práticas de articulação, as diferenças não são anuladas, pois elas não desaparecem, e sim articulam-se para permitir o funcionamento do social (LACLAU; MOUFFE, 2015).

Neste aspecto, a identidade nunca é exaurida pela oposição, porque, se assim fosse, teríamos a plenitude constitutiva do sujeito, e para os autores em tela isso é impossível. Neste aspecto, igualmente ao social, as identidades são ambíguas, incompletas e constituídas em processos de disputas antagônicas. Cabe salientar que “antagonismo”, nesta perspectiva teórica, é a fronteira entre diferenças que se negam e coexistem simultaneamente, portanto, dependem uma da outra para existir.

Logo, a identidade – além de ser, obviamente, uma posição política constituída pelo antagônico, o outro que me impede de ser totalmente eu mesmo (MENDONÇA, 2007) – transforma-se na fronteira essencialmente ambígua e instável, sujeita a constantes deslocamentos (LACLAU; MOUFFE, 2015). Para os autores, “deslocamento” é a pluralidade de posições que um sujeito ocupa nas sociedades contemporâneas. É também uma identificação, ainda que parcial, com elementos que em dado momento se articulam em torno das ideologias que comungam. Isso se torna mais evidente no contexto atual, em que o sujeito se depara com uma pluralidade de ideias que põem em questionamento paradigmas antes inquestionáveis.

Neste aspecto, para Hall (2011), a constituição de identidade do sujeito não é fixa, dotada de razão e centralidade, como se supunha no Iluminismo; pelo contrário, ela é fluida, contingente e descentrada, caracterizada por diferenças. Por isso, nunca se cristaliza. Contudo, é essa concepção aparentemente perturbadora que permite nesta teoria a constituição de identidade do sujeito (re)fazer-se mediante pontos nodais de articulação (LACLAU, 1990 apudHALL, 2011).

Diante disto, faz-se necessário refletirmos, a partir dessa concepção de Hall (2011), sobre este processo de deslocamento e descentramento das identidades e como essas se articulam discursivamente.

2.1 Movimentosindicale identidade dos trabalhadores rurais

A TD entende que o processo de constituição de identidades dos trabalhadores rurais, assim como qualquer outra, implica analisar os processos de articulação de seus elementos particulares. Como se trata de uma categoria política, demarcada pela fronteira com a categoria patronal, se faz necessário priorizar nesse processo as demandas e os antagonismos. Demandas aqui são necessidades, focos de interesses, reivindicações. Segundo Araújo (2015), quando estas são frustradas, ou seja, não resolvidas, unem-se a outras na mesma situação, estabelecendo relações de equivalências, isto é, de semelhanças, no intuito de unir forças em uma luta política.

Isso quer dizer que as articulações transformam as demandas particulares (podemos dizer, micro) em demandas maiores, ampliando também a cadeia de equivalência. Contudo, “quanto mais estendida for a cadeia de equivalência, menos a demanda que assume o papel de representar a cadeia como um todo vai manter um vínculo estrito com o que a constitui originariamente como particularidade” (ARAÚJO, 2015, p. 49), ou seja, estas demandas precisam se despojar de seus significados individuais, em prol de significados coletivos. Chegamos mais uma vez à concepção de antagonismo, posto que, nestas lutas políticas e nos processos articulatórios, diferenças entram em choque à medida que se sentem de algum modo perturbadas por outras que as impedem dese constituírem como tal.

Como estamos tratando neste trabalho da identidade dos trabalhadores rurais, faz-se interessante tomarmos notas das próprias palavras de Laclau e Mouffe (2015, p. 202, grifo dos autores), que, quando procurando exemplificar o conceito de antagonismo, expõem a fronteira antagônica dacategoria camponês:

a presença do outro me impede de ser totalmente eu mesmo […]. É porque um camponês não pode ser um camponês porque existe um antagonismo com o proprietário que o expulsa da terra. Na medida em que há antagonismo eu não posso ser uma presença plena para mim mesmo.

Esta incompatibilidade concebida pelos autores, trabalhador versus patrão, tira o primeiro da condição de vendedor de força de trabalho e o coloca numa dimensão de sujeito, para além da dicotomia de classe como supõe o marxismo. Sobre isso, Pinto (1999) coloca que o antagonismo só seria possível na relação entre aquele que vende sua força de trabalho e aquele que compra tal força se a primeira categoria resistisse ao fato de a segunda obter a mais-valia do fruto do trabalho realizado. E isso não se dá. O que acontece é: os trabalhadores organizados em lutas sindicais comumente lutam apenas por um reajuste salarial baseado em um percentual tabelado. Isso não é necessariamente um contraponto a outra parte que fica com a mais-valia. Neste sentido, é a categoria resistência que constitui o sujeito/trabalhador antagônico à classe patronal, e não sua condição de vendedor de força de trabalho.

Em contraponto à fronteira patronal, os trabalhadores rurais, a partir do início da segunda metade do século XX, se organizam em sindicatos e estes são regulamentados em 1962 no governo Goulart (RIBEIRO, 2010). A partir daí, lutam de forma articulada por melhorias salariais e condições dignas de trabalho e vida. Entretanto, tal regulamentação ampliou ainda mais a resistência patronal, que naquele contexto, além de exercer o poder repressivo, controlava as instituições políticas. Mediante a hegemonia patronal, política e cultural, os trabalhadores rurais visibilizaram, sobretudo nos anos 1960, potencializar a organização coletiva contra estas hegemonias, obrigando seus organizadores a “desenvolver iniciativas condizentes com a cultura dos camponeses, para chamar [sua] atenção” (LIMA, 2005, p. 41).

Neste aspecto, ocorreu que os trabalhadores rearticularam suas demandas particulares não resolvidas a outras demandas reivindicadas por outras organizações também não satisfeitas ou que vinham, de certa forma, perdendo força política. Uma delas foi a Igreja Católica, que, desde sempre aliada a setores dominantes, se viu a partir de 1945, diante das mudanças no sistema produtivo, obrigada a alterar sua estratégia. Neste sentido, “aliou-se” aos setores dominados na esperança de recompor sua força política e ideológica. Assim, incentivou vários movimentos no campo, dentre eles o sindicato rural, que se tornou um intenso instrumento de resistência e luta, inclusive, mais forte que as Ligas Camponesas (LIMA, 2005). Segundo Lima (2005), a Igreja potencializou o sindicalismo rural com ações educativas, criando em 1961 o Serviço de Orientação Rural de Pernambuco (SORPE), cujo objetivo foi o de organizar os trabalhadores em torno de cooperativas sindicais com formação destes sujeitos para liderança da organização.

Soma-se a esta ação pedagógica o processo educativo histórico, subjacente no próprio ato político da ação coletiva dos trabalhadores rurais que empregaram em suas lutas, sobretudo pós-1980, as questões de identidade. Este processo educativo não escolarizável, segundo Gohn (2010), tem como intencionalidade a formação política do sujeito.

3 Metodologia

No cuidado em conciliar a perspectiva teórica à metodológica, trabalhamos com a análise de discurso (AD) elaborada por Pêcheux (1997) em sua terceira fase, na qual são desfeitas as ideias fixas de interpretação, o que possibilita seu encontro com a TD. Assim, nesta terceira fase admite-se a desestabilização de certas concepções sócio-históricas, teóricas e metodológicas mais ou menos fechadas para interpretar a realidade. Apoia-se sob a ideia de que o corpus de investigação está em constante movimento, pois, “todo enunciado é intrinsicamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para desviar para outro” (PÊCHEUX, 1983, p. 53, apudORLANDI, 2013, p. 11). Neste aspecto, a AD busca compreender, a partir do discurso, como este é produzido e produz sentidos para o sujeito simbólica e ideologicamente.

Orlandi (2013) aponta que, para se compreender esta produção de sentido, se faz necessário considerar a relação intrínseca entre discurso e interdiscurso, pois, enquanto o primeiro versa sobre a exterioridade ideológica da linguagem, o segundo versa sobre a memória discursiva na qual se encontra todo tipo de saber discursivo – já significado e que torna possível todo dizer: “O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada” (ORLANDI, 2013, p. 31). Isso acontece mediante paráfrase e polissemia – o mesmo e o diferente –, o dizer e o que já está dito. É assim que o sujeito e os sentidos se movimentam, pois é necessário que o que é dito por alguém, particularmente em algum momento, se apague na memória para que, indo para o anonimato, possa fazer sentido nas palavras daquele que está a falar.

Segundo Orlandi (2013), isso é possível em função de dois esquecimentos presentes no discurso: esquecimento número dois, da ordem da enunciação; esquecimento número um ou ideológico, da instância do inconsciente, resultante da forma como somos afetados pela ideologia. Daí o sujeito quando fala “ter a ilusão de ser a origem daquele dizer, quando na verdade está retomando sentidos pré-existentes” (ORLANDI, 2013, p. 34).

Por isso a AD, enquanto método, não se preocupa com o que é dito, mas como este dito se forma e significa; por quem é dito, como, onde e em que circunstâncias. Assim sendo, busca compreender na produção discursiva as ideologias (relações de sentido), percebíveis através das relações de lugar e de força (ORLANDI, 2013). Segundo Orlandi (2013), as relações de sentido são onde se constituem os discursos. Estes são flutuantes, pois “não há começo absoluto, nem ponto final para o discurso. Um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis” (ORLANDI, 2013, p. 39). Estas relações sinalizam para as ideologias, presentes nos enunciados, e que se batem (relações de força). Sobre isso, vale salientar que na relação de força o lugar do sujeito é o ponto principal da análise. Isso porque tal relação é respaldada pelos vários poderes (ideológicos, simbólicos etc.) que o sujeito ocupa na sociedade, estando presentes os conflitos entre os grupos – representados ideologicamente.

Por sua vez, as relações de lugar buscam dar conta do lugar imaginário que o sujeito ocupa simbolicamente na sociedade, e do lugar, também imaginário, que ele supõe que o outro ocupa socialmente. Elas são igualmente chamadas de relações imaginárias (ORLANDI, 2013). É por isso que, para a AD, o discurso está relacionado ao percurso histórico, político e ideológico trilhado pelo sujeito. Daí o fato de ele estar em contínuo processo, aberto e em movimento.

Foi com base neste caráter aberto do discurso e de produção de sentido que trabalhamos com a AD no intuito de compreendermos como os trabalhadores rurais do movimento sindical, mediante as relações de força, sentido e lugar, elaboram seus discursos acerca de suas concepções de identidades políticas, aprendidas e/ou constituídas no próprio movimento. Assim, a pesquisa foi realizada no Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município de Vicência/PE com oito trabalhadores rurais sindicalistas, organizados conforme o Quadro 1.

Quadro 1 Participantes da pesquisa. 

Categoria de sujeito Trabalhador Trabalhadora Total
Total 4 4 8
Líderes 1 1 2
Sindicalista mais velho 1 1 2
Sindicalista mais novo 1 1 2
Outros sindicalistas 1 1 2

Fonte: Elaborado pelos autores (2018).

Para garantirmos o sigilo dos sujeitos e facilitarmos a identificação, criamos as seguintes siglas: AM (associado masculino); AF (associada feminina); LM (líder masculino); LF (líder feminina); MO (mais velho); MA (mais velha); JM (jovem masculino); JF (jovem feminina).

O estudo foi de abordagem qualitativa, uma vez que, segundo Bogdan e Biklen (1994), dentre outras coisas, a preocupação não é o resultado ou o produto, e sim o processo. Interessa, sobretudo, saber como diferentes pessoas dão sentidos às suas vidas. As entrevistas foram feitas no modelo semiestruturado, pois, conforme Richardson (2008), este possibilita a construção de inferências.

Todas as entrevistas foram gravadas com autorização dos participantes e, primeiramente transcritas, foram depois organizadas para análise das falas à luz da AD e da TD. Posteriormente, organizamos os dados colhidos em três blocos de questões, a saber: 1) questões relacionadas à constituição de identidades; 2) às aprendizagens políticas-cidadãs; e 3) ao antagonismo entre os sindicalistas e a classe patronal, buscando entender até que ponto limitam e/ou possibilitam a constituição de identidades dos trabalhadores rurais.

4 Discussão e análise

Foi com base no caráter metodológico aberto de interpretação da AD3 que investigamos o processo de constituição de identidades dos trabalhadores rurais. Consideramos nesse processo, reiteramos, as relações de força, sentido e lugar. Estas relações, juntamente com a noção de discurso flutuante e contingencial da Teoria do Discurso de Laclau e Mouffe (2015), nos ajudaram a entender nas falas dos entrevistados seus discursos políticos e ideológicos e como estes afetam e/ou constituem suas concepções de identidade política-cidadã.

Assim, diante do exposto, identificamos através do bloco 1 que alguns entrevistados, a partir da posição política, ideológica e simbólica que ocupam, exibem discursos que tendem a negar suas identidades numa concepção coletiva. Isso ficou evidente quando perguntamos aos líderes se seus companheiros sindicalistas tinham/têm participação assídua. Nas respostas, referiam-se ao outro como externo a si, como podemos visualizar nestes recortes de falas: “hoje, os associados não estão mais com o interesse de estar na organização como tinham antes” (LM); “a maioria, infelizmente não tão nem aí” (LF).

Como expomos na discussão teórica, a identidade do indivíduo pode ser entendida como uma exterioridade exibida a partir da relação entre o “eu interior” e o “eu exterior” (HALL, 2011). E isso não se viu nos recortes de falas apresentados. Contudo, este discurso não foi unanimidade. Em outras posições de sujeitos, o discurso sobre a assiduidade, embora com o mesmo jogo de linguagem dos líderes, teve outra direção. Isso só é possível em função do processo polissêmico existente em todo dizer, de modo que, ao falarmos, mexemos numa “rede de filiação dos sentidos, no entanto, falamos com palavras já ditas” (ORLANDI, 2013, p. 36). Vejamos este processo na fala a seguir:

A maioria não participa […] uma ingratidão da maioria dos sindicalistas, porque a maioria é aposentado, aí ficam em casa, não liga para isso nem para aquilo, e isso não devia ser feito. Deviam estar ali, contribuindo no serviço do sindicato, porque o sindicato somos nós. (MA)

Verifica-se nesta fala que a entrevistada faz a crítica aos demais sindicalistas, mas considera a relação de pertencimento, enquadrando, nesse sentido, a noção de identidade constituída na relação com o outro.

Quanto ao segundo bloco de questões, que versam sobre o processo educativo do movimento sindical, elaboramos três perguntas buscando identificar as ações sociopolíticas e como estas reverberam sobre a vida dos atores sociais envolvidos neste movimento, a saber: a) quais ações políticas o sindicato desenvolve e como estas ajudam os trabalhadores rurais?; b) que mudanças se tem percebido nos sindicalistas?; c) o que se aprende neste movimento?

Em relação à primeira pergunta, a lógica hegemônica observada nos discursos dos sujeitos exibe, reiteradas vezes, a presença de ideologias classistas demarcadas pelo antagonismo patronal: “O sindicato, ele luta pelo direito de salário, do direito à terra, direito à saúde no campo” (LM); “a aposentadoria da mulher, que também é uma bandeira de luta do movimento sindical, auxílio-reclusão” (LF); “o sindicato trabalha com a política agrária. Política para os jovens rurais. Políticas de assalariados rurais” (MO). Já em relação à segunda parte da mesma questão, exibiram ideologias assistencialistas, como podemos visualizar nesta fala: “Ajuda assim, se adoece alguém da família, aí ele manda o transporte vir buscar. Se tem uma consulta no Recife, aí eles mandam o transporte levar, trazer, é uma boa ajuda” (AF).

Quanto à segunda questão, identificamos a presença de um discurso hegemônico afirmando que, embora haja mudanças na vida dos associados, estes precisam se engajar mais na luta coletiva: “O sindicato tem grande influência; agora, o povo hoje não quer mais participar […]. Hoje em dia o povo não participa. A gente não vê o povo querendo aquilo que queria antes” (LM); “a gente sempre precisa que o sindicalizado também esteja preparado para enfrentar essas políticas, essas mudanças que falei. […] muitos não estão preparados” (MO).

Verifica-se nestas falas o resgate da memória operando a constituição destes discursos, pois, segundo Orlandi (2013), é na memória discursiva que opera o interdiscurso, tornando possível a constituição de todo dizer, já dito e já esquecido noutros momentos. Estas falas, portanto, referem-se à ideologia de luta dos trabalhadores rurais noutros momentos históricos.

Já na terceira questão, ficou nítida a presença da aprendizagem política-cidadã no sindicato estudado. Como sublinha Gohn (2010), a educação não formal tem como intencionalidade a formação sociopolítica do sujeito, objetivando torná-lo cidadão do mundo, e o educador é o outro, envolvido nesse ato da ação coletiva. Isto foi visto de forma hegemônica nas falas dos sujeitos, como podemos verificar nas falas destas entrevistadas: “Aprendi muito, principalmente com a companheira dona Iraci. Ela me trouxe para essa luta. Aqui conheci e aprendi a lutar pelos meus direitos e de minhas companheiras, pois tem muitas que nem sabem quais os direitos que têm” (LF); e

O que eu aprendo, são muitas coisas. Aprendo, por exemplo, a conhecer sobre os direitos dos trabalhadores, que eles têm direitos que o patrão não pode negar, até porque é lei. Aprendo que nós devemos lutar por questão de educação, saúde, trabalho decente, ou seja, digno. (JF)

A partir da TD, observa-se nestes discursos a concepção de cidadania como ponto aglutinador das demandas destes trabalhadores, ou seja, um ponto nodal, que permite diferentes discursos, como saúde, educação e trabalho, e estabelecer relações de equivalências com o propósito de suturar o significado de cidadania que almejam, ainda que precariamente.

Destarte, quando a entrevistada JF aciona o termo “dignidade” – expresso na frase “trabalho digno” –, embora possa ser que ela não tenha noção da precariedade que envolve este termo, não se trata de uma relação na qual de um lado estão os direitos (como ela mesma diz, garantidos em lei) e, do outro, a opacidade, permitindo a objetividade do significado de cidadania que disputa. Neste aspecto, para Laclau e Mouffe (2015), a significação nunca alcança a plenitude; inclusive, a própria garantia dos direitos realiza-se pelas condições de emergência, e não pela objetividade.

A objetividade está na ordem do discurso, na relação com a negatividade, pois o “real” é constituído por certas formas discursivas, que por meio da lógica da equivalência anulam toda objetividade do objeto e dão existência à negatividade como tal (LACLAU; MOUFFE, 1987 apudARAÚJO, 2015). Assim, a lógica da equivalência e da diferença realça o dinamismo que caracteriza a constituição das fronteiras entre elementos diferentes que disputam discursos políticos, como se estabilizam ou enfraquecem (ARAÚJO, 2015).

A lógica da equivalência e da diferença, ainda que uma pressuponha a outra, exibe como uma ou outra diferença adquire maior ou menor significação. Neste sentido, as identidades se constituem na medida em que, visando à hegemonização de suas particularidades num sistema de significação, estabelecem entre suas diferenças relações de equivalência.

5 Considerações finais envolvendo percepções de identidade política-cidadã dos trabalhadores rurais de Vicência/PE

Mediante as entrevistas, verificarmos a presença de discursos hegemônicos de percepções de identidade política-cidadã dos sujeitos entrevistados, constituída na tensa relação entre demandas e antagonismos. Para entendermos esta constatação empírica, se faz necessário retomarmos brevemente a concepção de antagonismo e hegemonia elucidada por Laclau e Mouffe (2015).

O primeiro (antagonismo) é o limite, a impossibilidade da plena constituição das identidades. Neste aspecto, estas são constituídas através de articulações discursivas que se dão em função do próprio corte antagônico, ou seja, da presença do outro – discurso que num jogo de relação de forças ameaça os elementos provisoriamente articulados – hegemonizado em torno de determinados discursos (ARAÚJO, 2015). Enquanto o antagonismo é o limite de uma saturação última das identidades, a hegemonia de qualquer identidade se elabora em campos constituídos por antagonismos. Supõe-se, portanto, fenômeno de equivalência e efeito de fronteiras, pois, para Laclau e Mouffe (2015), hegemonia não é um campo de estagnação dos significados em disputa, e sim, provisório e contingencialmente, o maior eixo aglutinador de discursos, que por certo tempo torna-se privilegiado no campo da significação.

Neste sentido, para os autores, hegemonia e antagonismo supõem a presença de elementos contingentes, ou seja, flutuantes, que tornam possíveis tanto um quanto o outro; do contrário, não existiriam, e dariam lugar à cristalização de todo sistema social e de identidades. Estas identidades são constituídas/significadas, ainda que parcialmente, na relação com uma variedade de demandas de outras aspirações de diferenças que se pretendem hegemonizar. Necessariamente, pontos nodais se constituem entre estas identidades, articulando o maior número de diferenças possíveis, desde que estabeleçam entre si relações de equivalência.

É assim que, num sistema de significação em torno de discursos políticos, os trabalhadores rurais articulam suas demandas classistas não resolvidas a outras, relacionadas à sua identidade política-cidadã.

Isso foi bastante elucidado nas falas dos sujeitos, os quais exibiram em seus enunciados discursos hegemônicos da limitação da significação dos seus direitos em função do antagonismo patronal: “O sindicato luta e o patrão não quer dar o direito do trabalhador. É muito forte esse embate entre o sindicalista e o patrão” (LF); “a gente conquista uma convenção e quando chega no outro dia o trabalhador já liga dizendo que o patrão não está cumprindo a convenção coletiva, então é o principal embate” (MO).

Contudo, os embates são essenciais no processo de constituição das identidades, e a ótica dos entrevistados torna-se eixo central para a potencialização/afirmação de suas constituições políticas:

Me sinto uma pessoa mais desenvolvida, que conhece coisas que antes não conhecia, sobre meus próprios direitos. Tão tal, que incentivei meus filhos a se engajarem na luta também, porque é fundamental não só para o sindicato, mas principalmente para eles, mesmo. Tenho muito orgulho de ser trabalhador rural, isso está dentro de mim.

(LM)

Me deixou uma mulher mais forte que sabe o que quer. Hoje eu seio que eu quero. É aquilo que eu falei, às vezes as pessoas não sabem, aí no momento que você não sabe, você não sabe o que quer. Hoje posso lutar, eu tenho direito a isso, isso, isso e isso.

(LF)

Observa-se, nestas falas, que os antagonismos políticos, sobretudo o patronal, sinalizam a precariedade do fechamento das conquistas dos direitos destes trabalhadores.

Além do antagonismo patronal, verificamos a presença do agonismo no interior da estrutura organizacional do sindicato, sobretudo no que diz respeito à ação das mulheres. Por “agonismo”, Mendonça (2003, p. 139), a partir de Mouffe, entende regras que “apesar da disputa entre diferentes formações discursivas, existe uma medida comum entre elas, um universal mínimo, que é o reconhecimento da legitimidade da existência do discurso concorrente”. O agonismo então possibilita que forças opostas sobrevivam no mesmo espaço político, entendendo o outro como adversário, não como inimigo (o que implicaria a tentativa deum eliminar o outro).

Esta relação adversária, tentando impedir a plena ação do outro, porém sem pretensão de eliminá-lo, ficou evidenciada na relação entre homens e mulheres do sindicato estudado, aqueles limitando a ação destas, como no acesso ao Estatuto que rege a entidade, por exemplo. Sobre isso, seus discursos elucidam ideologias dominantes do papel masculino no exercício burocrático e político da instituição. Nem mesmo a líder entrevistada conseguiu ter acesso ao referido documento: “Fala. Agora, eu vou pular essa, porque nunca tive acesso a isso, entendeu? Não é aquela coisa que todo mundo pode ter acesso a ele […] quando a gente pedia, ele dizia não, não é para ninguém estar mexendo no Estatuto” (LF).

Esta relação no referido sindicato não é uma particularidade apenas deste, mas do sindicalismo rural histórico:

O sindicalismo rural que se estruturou a partir dos anos sessenta também apresentou esse tipo de contradição. Ou seja, apesar de fazer um discurso que falava em direitos, via a classe como um todo, não percebendo ou valorizando as especificidades do trabalho feminino, nem se posicionando em relação às descriminações vividas pelas mulheres.

(LIMA, 2005, p. 193)

Assim, retomando a fala da entrevistada LF, verificamos o poder do discurso histórico do masculino em relação ao feminino nesta organização. Neste aspecto, quando ela menciona a frase “ele dizia”, exibe a relação de força de seu discurso que é inferiorizado diante da fala “dele”, pois, segundo Orlandi (2013, p. 39) “o lugar de onde fala o sujeito é constitutivo do que ele diz”. Nesta perspectiva, o que “ele diz” apresenta nesta relação de força um discurso autoritário, machista, regulador etc., limitando a ação política dela: “não é para ninguém estar mexendo no Estatuto”. O indivíduo que proíbe está acionando pela memória um conjunto de ideologias dominantes, visando assegurar sua posição de sujeito mediante a relação de lugar e sentido historicamente atribuído ao homem neste movimento.

Apesar disso, esta relação de disputa entre o lugar do homem e o da mulher no movimento estudado não significa uma fronteira antagônica, e sim uma relação agônica; senão, haveria uma tentativa de um eliminar o outro, e isso os discursos analisados no sindicato em tela não apontaram. O que há são diversas posições discursivas que, apesar das diferenças, reconhecem o outro como legítimo.

Contudo, apesar da presença deste agonismo entre os gêneros (masculino, feminino) e das fronteiras antagônicas identificadas perturbando as relações de equivalências entre os diferentes discursos políticos – disputando o significante vazio, identidade –, o sindicato estudado contribui para a constituição de identidade política-cidadã dos trabalhadores rurais sindicalistas. Estes, à medida que se engajam na luta, “adquirem” respeitabilidade política. Isso ficou evidente quando perguntamos se as aprendizagens adquiridas naquele espaço ajudavam na formação das identidades:

Me ajuda muito. […] quando eu chego em um lugar, eu digo: trabalhei tanto tempo no sindicato dos trabalhadores rurais. Traz até um respeito para nós. Traz um respeito quando a gente chega que se identifica como do sindicato, traz um respeito, muitas vezes um atendimento melhor. E eu também pude ajudar muitas pessoas, porque daqui do sindicato eu passei a fazer parte do conselho do idoso, representando o sindicato, e ajudei muitas pessoas. Isso me deixou muito feliz.

(LF)

Aqui, neste recorte, verifica-se o deslocamento no sentido da respeitabilidade destes sujeitos enquanto identidade política articulada e empoderada; por outro, em outro recorte, observa-se o deslocamento de posições que o sujeito ocupa no social via aprendizagens sindicais: “fez com que eu trabalhasse na Secretaria de Agricultura, desenvolvesse o trabalho de assistência na Secretaria de Agricultura. Fez com que eu trabalhasse nas centrais sindicais, como na [CTT]. Essa formação eu aprendi aqui no sindicato” (MO).

Este processo de deslocamento de sujeito refere-se à pluralidade de posição que o indivíduo ocupa simultaneamente. Neste sentido, constata-se a ótica de deslocamento, com os trabalhadores rurais assumindo identidades diferentes em momentos distintos, a partir de aprendizagens políticas-cidadãs ocorridas via sindicato.

Referências

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Recebido: 01 de Abril de 2020; Aceito: 21 de Maio de 2021; Publicado: 10 de Janeiro de 2022

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