SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 número64CORRECCIÓN TEXTUAL-INTERACTIVA COMO ANDAMIO PARA LA AMPLIACIÓN DE LA COMPETENCIA ESCRITORA DE ALUMNOS DE LA EDUCACIÓN BÁSICASOBRE CAMINAR, CONOCER Y APRENDER: EL CAMINANTE Y EL PROCESO EDUCATIVO índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educação: Teoria e Prática

versión impresa ISSN 1993-2010versión On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.31 no.64 Rio Claro ene. 2021

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v31.n.64.s15018 

Artigos

VIVÊNCIAS EM VYGOTSKI: CONTRIBUIÇÕES TEÓRICOMETODOLÓGICAS PARA ANÁLISE DO CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL NOS ESTUDOS COM INDIVÍDUOS

EXPERIENCES IN VYGOTSKI: THEORETICALMETHODOLOGICAL CONTRIBUTIONS TO ANALYZE THE HISTORICAL-CULTURAL CONTEXT IN STUDIES WITH INDIVIDUALS

EXPERIENCIAS EN VYGOTSKI: CONTRIBUCIONES TEÓRICAS/METODOLOGICAS AL ANALISIS DEL CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL EN LOS ESTUDIOS CON INDIVIDUOS

Ivanise Gomes de Souza Bittencourt1 
http://orcid.org/0000-0002-9416-3964

Neiza de Lourdes Frederico Fumes2 
http://orcid.org/0000-0002-1913-4784

1Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Alagoas – Brasil. E-mail: ivanise.gomes@eenf.ufal.br.

2Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Alagoas – Brasil. E-mail: neiza.fumes@iefe.ufal.br.


Resumo

Esse artigo apresenta reflexões teóricas a partir das contribuições de Lev Semionovich Vygotski (psicólogo bielorrusso, 1896-1934) em torno da unidade de análise vivência e sua articulação com a defectologia, situação social de desenvolvimento, afetividade e concepção de mundo, com base em seus escritos, precisamente: A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (1916); El defecto y la compensación (1924); Los problemas fundamentales de la defectología contemporánea (1929); Futuras vías de investigación: desarrollo de la personalidade del niño y de su concepción del mundo (1931); La crisis de los siete años (1933); A questão do meio na pedologia (1934); La defectología y la teoría del desarrollo y la educación del niño anormal (1934). Considerando-se a escassez de artigos que consolidam os apontamentos de Vygotski nesse contexto, teve-se como objetivo direcionar caminhos para as pesquisas e abordar as premissas do método de Vygotski para a análise das vivências em estudos com indivíduos. Acredita-se que a abordagem teórico-metodológica explicitada neste artigo possa abrir novos espaços na produção de conhecimentos no âmbito da análise do contexto histórico-cultural nos estudos com indivíduos e contribuir para fortalecer esse método de análise na pesquisa qualitativa.

Palavras-chave Vivências; Narrativas de vida histórico-cultural; Situação social de desenvolvimento

Abstract

This article presents theoretical reflections from the contributions of Lev Semionovich Vygotski (Belarusian psychologist, 1896-1934) around the analytical unit of experience and its articulation with defectology, social situation of development, affectivity, and world conception. To this end, it will dwell on Vygotski’s writings, precisely: The tragedy of Hamlet, Prince of Denmark (1916); El defecto y la compensación (1924); Los problemas fundamentales de la defectología contemporánea (1929); Futuras vías de investigación: desarrollo de la personalidade del niño y de su concepción del mundo (1931); La crisis de los siete años (1933); The question of the medium in pedology (1934); La defectología y la teoría del desarrollo y la educación del niño anormal (1934). Before the lack of studies that consolidate the author’s notes in this context, this article sought to draw potential paths to future research, as well as to approach the premises of Vygotski’s method to analyze experiences in studies with individuals. The theoretical-methodological approach explained in this article opens new spaces for knowledge production in the context of the analysis of historical-cultural context in studies with individuals, besides strengthening this analytical method in qualitative research.

Keywords Experiences; Life narratives historical-cultural; Social development situation

Resumen

Este artículo presenta reflexiones teóricas de las contribuciones de Lev Semionovich Vygotski (psicólogo bielorruso, 1896-1934), en torno a la unidad de análisis de la experiencia y su articulación con la desertología, Situación Social del Desarrollo, afectividad y concepción del mundo, basada en sus escritos: La tragedia de Hamlet, Príncipe de Dinamarca (1916); El defecto y la compensación (1924); Los problemas fundamentales de la defectología contemporánea (1929); Futuras vías de investigación: desarrollo de la personalidad del niño y de su concepción del mundo (1931); La crisis de los siete años (1933); La cuestión del medio en pedología (1934); La defectología y la teoría del desarrollo y la educación del niño anormal (1934). Teniendo en cuenta la escasez de los artículos que consolidan las notas de Vygotski en este contexto, el objetivo era dirigir caminos hacia la investigación y acercarse a las premisas del método en Vygotski para el análisis de experiencias en estudios con individuos. Se cree que el enfoque teórico/metodológico, explicado en este artículo, abre nuevos espacios en la producción de conocimiento en el campo del análisis del contexto histórico-cultural en estudios con individuos y contribuye a fortalecer este método de análisis en la investigación cualitativa.

Palabras clave Experiencias; Narrativas de la vida histórico-cultural; Situación de desarrollo social

1 Introdução

A abordagem histórico-cultural de Vygotski possibilita compreender o ser humano de modo sistêmico (nas dimensões histórica, inter-relacional e pessoal), nas relações que estabelece em seu contexto cultural e na dinâmica dos diferentes espaços nos quais o indivíduo se constitui como integrante e produtor de sua condição social.

Essa abordagem considera de forma decisiva a vivência do indivíduo no meio social e cultural como fator indispensável para o desenvolvimento do ser humano. O princípio que orienta esta abordagem é de que desde o nascimento, a partir das interações no meio sociocultural, a criança vai se apropriando dos significados socialmente construídos e aprende a ser humana, desenvolvendo a capacidade de ordenar ações, regular a própria conduta de forma ativa e consciente e dar significado ao mundo que a rodeia, o que não acontece naturalmente, pois o ser humano é constituído do meio cultural em que nasce.

O enfoque da abordagem histórico-cultural aponta a atividade e as condições concretas de vida e educação como elementos necessários para a compreensão do desenvolvimento psíquico, que é repleto de movimentos ascendentes e descendentes nas contradições vividas pelo indivíduo em seu universo cultural, justificando-se por algumas razões. Primeiro, pelo que enfatizou Vygotski (1997b) quanto ao desenvolvimento e a aprendizagem do indivíduo, que são processos com raízes sociais, portanto sóciohistóricos, e que se constituem nas interações no espaço social. Segundo, para esta compreensão nos estudos com indivíduos, é necessário analisar os seus fundamentos históricos, e a narração possibilita conhecer os acontecimentos e sentidos para os sujeitos (VYGOTSKI, 1999). Através das narrativas, os indivíduos expressam seus modos de ser/estar/relacionar com o mundo, constituindo sua subjetividade.

Deste modo, Vygotski (2012d) indicou o estudo das vivências, entendido como uma averiguação da relação interna de uma pessoa com a realidade. É a unidade entre ambos e a tradução do que o indivíduo pensa, sente e mantém com o seu meio. Por isso, não se pode reduzir à investigação das condições externas do indivíduo e/ou focalizar de forma linear, porque o desenvolvimento ocorre em etapas integradas, as quais incorporam a anterior e a seguinte. As vivências se reestruturam a partir de demandas do meio e das interações do indivíduo; assim, quando este processo se modifica, as necessidades e motivações do sujeito também se transformam, pois têm relação com a sua situação social de desenvolvimento (SSD).

Conforme Vygotski (2012b), a SSD é a relação que se estabelece entre o indivíduo e o ambiente ao seu redor, especialmente sua realidade social. A SSD é definida pelo espaço do indivíduo no sistema de relações interpessoais e sociais, sua posição objetiva e o sistema de expectativas e exigências impostas pelo ambiente social: a família, a escola, os amigos e demais espaços sociais que são fatores importantes que definem trajetórias individuais de desenvolvimento psicológico (KARABANOVA, 2010). Dessa forma, a SSD é, segundo Vygotski (2012b), o ponto de partida para todas as mudanças dinâmicas que se produzem no desenvolvimento durante o período de cada idade. Configura as potencialidades de construir ou reconstruir aspectos da personalidade, pois a realidade social é o motor do desenvolvimento. É a possibilidade de que o social se transforme em individual. A SSD regula estritamente todo o modo de vida do indivíduo ou sua existência social e demonstra as consequências que o rodeiam por toda a vida. De acordo com Karabanova (2010), a estrutura da SSD inclui os componentes objetivos (o lugar do indivíduo no sistema das relações sociais) e subjetivos (a posição interna do indivíduo).

Nessa direção, Vygotski (1999) conceituou a vivência enquanto expressão de acontecimentos apreendidos pelos indivíduos em sua existência, os quais possuem relação direta com a orientação e o desenrolar das ações, possibilitando o entendimento do homem e do seu desenvolvimento. Destaca-se que, por isso, é necessário compreender cada um dos momentos do indivíduo, não só com relação ao seu passado, mas também ao seu futuro. Sendo um ser social, é imperativo analisar as diversas relações que o envolvem. Portanto, o conceito de vivência foi utilizado por Vygotski como unidade de análise capaz de explicar a relação entre consciência e meio social na formação e desenvolvimento do psiquismo, partindo, de acordo com Marques e Carvalho (2014, p. 43), do “pressuposto de que o processo de tomada de consciência tem início por meio da relação dialética entre indivíduo e meio, tendo como mediador fundamental as vivências”. Assim, a consciência é a expressão do ser social (de sua visão de mundo, de seus valores, de suas concepções) configurado pelo processo histórico de produção da vida social.

A respeito disto, ao narrar as suas vivências, o indivíduo expressa a sua concepção de mundo, que Vygotski (2012c) conceituou enquanto seus posicionamentos diante do mundo em que vive, suas condutas e relações com o meio, permitindo compreender o desenvolvimento da personalidade, visto que não é inata, pois surge como resultado do processo de desenvolvimento cultural do indivíduo, da sua historicidade. A personalidade deriva do social, se forma de acordo com a imagem social, assim como a formação de concepções de mundo, comportamentos ou formas de conduta.

Por isso, o referido autor enfatizou que a concepção de mundo, defendendo-a também como uma via de investigação, caracteriza a relação cultural do indivíduo com o mundo exterior, porque o momento decisivo no desenvolvimento da personalidade do indivíduo é a tomada de consciência de si mesmo que se desenvolve através do conceito sobre os outros. Isso faz surgir as necessidades sociais e culturais movidas por motivos, afetividade (emoções, sentimentos) e atrações humanas semelhantemente a como os outros fazem, caracterizando o desenvolvimento cultural do indivíduo (VYGOTSKI, 2012c).

A propósito do que o autor defendeu, sobre a indissolubilidade da personalidade e concepção de mundo, as vivências devem ser analisadas também com relação a essas concepções, considerando-se os afetos que impulsionam ou imobilizam os indivíduos na SSD. Pois, assim como explica o autor, a afetividade é um organizador da atividade humana (VYGOTSKI, 2012c).

Para evidenciar esse processo, organizou-se a contribuição teórico-metodológica apontada por Vygotski para a investigação da relação indivíduo-meio em torno da unidade de análise de vivência.

2 Vivências em Vygotski

A unidade de análise vivência, no legado de Vygotski, atravessa seus escritos enquanto relação do indivíduo com o mundo desde o nascimento, considerando o papel do meio social no desenvolvimento e os acontecimentos externos ou circunstâncias que o envolveram ao longo dos diferentes períodos e situações de vida. É a internalização das relações sociais articuladas com motivações que impulsionam ou imobilizam o indivíduo na apropriação das práticas e sua imersão no mundo. Assim, na perspectiva histórico-cultural, vivência, em seus textos pedológicos, é uma unidade sistêmica da consciência/personalidade na relação com o meio, é uma fonte de informações sobre a constituição do indivíduo.

Dessa forma, a pedologia investiga o papel, o significado, a participação e a influência do meio no desenvolvimento do indivíduo através do estudo sistemático da sua vida, buscando “encontrar a relação existente entre a criança e o meio, a vivência da criança, isto é, de que forma ela toma consciência e concebe, de como ela se relaciona afetivamente para com certo acontecimento” (VYGOTSKI, 2010, p. 686, grifo do autor). Assim, para Vygotski (2010), esse é o prisma que configura o papel e a influência do meio no desenvolvimento da personalidade do indivíduo.

Com isso, a propósito da unidade de análise vivência, Vygotski abordou sua contribuição teórico-metodológica para a investigação da relação indivíduo-meio no desenvolvimento humano e apontou reflexões e orientações aos estudos com indivíduos, as quais direcionaram esta pesquisa a partir dos escritos citados, permitindo a compreensão do processo de construção dos conceitos pelo autor.

Em A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, Vygotski (1999) empreendeu a unidade de análise vivência através de uma concepção analítica que denominou “crítica de leitor”, indicando elementos que deveriam ser contextualizados no estudo com indivíduos. Segundo ele, para compreender um fenômeno, a exemplo da tragédia de Hamlet de William Shakespeare, é necessário analisar as suas raízes, pois o trágico decorre dos fundamentos da existência humana: o próprio fato do homem existir e sua existência individual, seu nascimento, a vida que lhe foi dada, seu distanciamento de tudo, seu isolamento e sua solidão no universo precisam ser investigados. A circunstância de ter sido lançado de um mundo desconhecido para um conhecido coloca o indivíduo à mercê de dois mundos diferentes; por isso, é preciso analisar as suas vivências, pois essa tragédia tem sua significação (VYGOTSKI, 1999). Tudo o que acontece a um indivíduo tem um sentido, que na maioria das vezes está submerso, não se revela, é um drama que transcorre em silêncio. Esse silêncio, de acordo com o referido autor, é o que não se narra, entretanto também é indispensável para se compreender o fenômeno e sua narração, explicando que o misterioso se atinge pela sensação e pelo seu vivenciar.

Sobre a tragédia de Hamlet, Toassa e Souza (2010) explicam que as vivências do protagonista configuram a evolução dos acontecimentos, suas características pessoais e do seu ser singular, constituindo um filtro para o modo como ele vivencia diversas situações. Portanto, as vivências são condensações de tempos e vidas, nas quais se deve sair da condição de seres particulares para o universalismo que caracteriza a essência do humano (VYGOTSKI, 1999).

Tratando-se de vivência, o termo russo utilizado por ele nessa sua primeira obra é “perejivánie”, um substantivo formado pelo prefixo pere- (através) e o verbo -jit (viver), o que etimologicamente significa “viver através de”, ou seja, da experiência concreta, seja ela real ou imaginária (PINO, 2010).

Vygotski não desenvolveu completamente o conceito, e por isso ele é abordado de diferentes formas e com imensa diversidade de sentidos em sua obra. As traduções também implicam dificuldades e perdas do termo russo. Em português, e mesmo não expressando toda a sua amplitude, segundo Toassa e Souza (2010), seria “perejivánie” – substantivo de gênero neutro, um estado de espírito e expressão da existência de um sentimento vivido, uma impressão experimentada. De acordo com as referidas autoras, como sua etimologia está relacionada a vida, em português “vivência”, e não “experiência”, é a tradução que mais se aproxima, embora envolva uma intensidade emocional que lhe é indissociável. “Perejivánie e emotsia/tchuvstvo/affekt (emoção/sentimento/afeto) são termos próximos do início ao fim da obra vigotskiana” (TOASSA; SOUZA, 2010, p. 760).

Por isso, salienta-se que, na obra de Vygotski, “vivência” e “experiência” não possuem o mesmo sentido. As vivências, enfatizou Toassa (2011, p. 35), “envolvem necessariamente qualidades emocionais, sensações e percepções, acarretando uma imersão do sujeito no mundo”. Dessa forma, o sujeito jamais se mostrará indiferente a uma situação de vivência, pois esta sempre terá uma conotação emocional forte. Em uma situação de experiência, pode-se ou não ocasionar marcas na vida, evocando apenas uma lembrança. Portanto, “o sujeito, ao longo da sua vida, pode constituir inúmeras experiências, mas só algumas delas se constituem em vivência” (MARQUES; CARVALHO, 2014, p. 43). De acordo com Daniels (2011), Vygotski entendia “vivência” como a integração de elementos cognitivos e afetivos, pressupondo a presença de emoções pelo indivíduo.

Assim, neste estudo, optou-se pelo termo “vivência” (tradução de “perejivánie” – terminologia presente nas Obras escogidas, de edição espanhola, relativo ao verbo “jivat”, “viver”), aproximando-se em português do ato de viver, de algo intenso decorrente de fortes emoções. A vivência tem papel decisivo na compreensão da totalidade na constituição do desenvolvimento humano, das causas que tensionam as características dos indivíduos, por isso é a unidade para o estudo da personalidade e do meio. Significa a própria existência do sujeito, de um cérebro ativo desde o seu nascimento, suscitado de impressões e sensações, significativo de relações do sujeito com a realidade social, de caráter interpretativo, existencial e pessoal. A utilização do conceito de vivência leva a um entendimento do homem e do seu desenvolvimento, em que há a mediação das memórias e das concepções de si/do mundo.

Em A questão do meio na pedologia, de 1934, a vivência é explicada por Vygotski enquanto elementos existentes, como uma situação ou um componente do meio que exercem influência no desenvolvimento psicológico e consciente do indivíduo, através das suas interpretações: “a vivência é uma unidade […] [que] sempre se liga àquilo que está localizado fora da pessoa […] e, por outro lado, está representado como eu vivencio isso” (VYGOTSKI, 2010, p. 686).

Segundo Vygotski (2012d), ao estudar o meio social deve-se passar dos índices absolutos (os dados do meio social e doméstico no qual transcorre a vida do indivíduo) aos relativos, ou seja, estudar, antes de tudo, o que significa para ele a sua relação com as diversas especificidades do meio. Isso é possível de se analisar a partir dos sete anos de idade, pois, como defendeu Vygotski (2012d) em La crisis de los siete años a criança de idade precoce não conhece as suas próprias vivências. É invariável nas diversas situações, não sabendo julgar a si mesma nem as relações com as pessoas ao seu redor. Assim, o autor explicou que somente aos sete anos de idade se forma na criança uma estrutura de vivência que lhe permite compreender significados e surge a orientação consciente de suas próprias vivências. A criança descobre seus fatos, e com isso se manifestam certas peculiaridades que caracterizam a crise dos sete anos: uma intensa batalha entre as vivências por diferenciação do interior e do exterior, na formação de vivências com sentido atribuído.

Para Marques e Carvalho (2014), a mediação entre a vivência e a percepção do indivíduo acerca dessa vivência significa a atribuição de sentido àquilo que se vive, e essa capacidade de significar as próprias vivências leva o indivíduo a estabelecer novas relações com a realidade e consigo mesmo. Dessa forma, possuindo a vivência uma orientação biossocial, sua análise deve considerar o modo como o indivíduo vive dada situação, manifestando as peculiaridades do desenvolvimento do próprio eu do indivíduo, na medida em que participam todas as propriedades que se formaram ao longo do seu desenvolvimento em um momento determinado (VYGOTSKI, 2012d).

Por isso, para Pino (2010), não basta analisar os elementos que influenciaram o desenvolvimento do indivíduo, é necessário saber ou interpretar aquilo que constituiu sua vivência, por meio da sua significação atribuída aos elementos do meio que constituíram a experiência, ou seja, a vivência de uma experiência envolve, de alguma forma, ter um significado do que ela acarreta. Assim, o referido autor defendeu a necessidade de relacionar a vivência com a significação que o indivíduo faz das situações criadas pela dinâmica do meio e interpretá-la.

Conforme Vygotski (1999), os acontecimentos da vida de um indivíduo e suas concepções devem ser analisados em seus componentes, motivos, personagens, como também em suas características, situações, falas, destinos e a lógica da necessidade do desenrolar das ações, sendo preciso examinar essa inter-relação. As palavras ditas sobre si mesmo são profundamente importantes e significativas, bem como as demais pessoas que são representadas em suas vivências são indispensáveis de se examinar.

Deste modo, esse autor defendeu que é pela narração que se toma conhecimento sobre os acontecimentos. As narrativas implicam na compreensão dos fundamentos históricos do desenvolvimento do indivíduo. Por isso, ao conhecer os acontecimentos, o crítico deve apontar suas consequências para os indivíduos. Porque mesmo anteriores, já não mais existindo, os acontecimentos produzem todo o futuro, pois estão ligados, entrelaçados ao indivíduo e demonstram sua visão de mundo, seu posicionamento no mundo e seu lugar nele, o abandonar de suas atividades e ocupações que o modificam. Às vezes escravos do seu nascimento, os indivíduos não são donos de si mesmos. Sobre essa análise de Vygotski, Toassa e Souza (2010, p. 760) consideram que “é possível perceber que a vivência pode estender-se ao passado e ao futuro da existência humana, presentificando elementos importantes na orientação das ações”.

De acordo com Vygotski (1999), as vivências guardam uma relação direta com o desenrolar das ações, explicam-nas e permitem estabelecer as semelhanças existentes entre elas. Podem imobilizar o indivíduo, arrancá-lo do círculo da vida, dos assuntos de interesse, romper seus vínculos habituais que lhe são simbólicos. E a inadaptação do indivíduo ao seu ambiente sociocultural também cria poderosos obstáculos no curso do seu desenvolvimento psíquico (VYGOTSKI, 1997c).

Assim, Vygotski apontou para o fato de que o desenvolvimento, enquanto processo de constituição cultural do indivíduo para tornar-se um ser humano, é resultado do que o meio lhe dispõe, de como este sujeito se apropria das práticas sociais e da maneira como ele converte isso em funções humanas.

Nesse direcionamento, a defectologia articula-se com o estudo das vivências pelo potencial que tem para a compreensão das consequências da deficiência para o indivíduo na relação com as condições histórico-culturais, visto que em outras condições, favoráveis para o desenvolvimento, o indivíduo vai perdendo rapidamente os recursos da defectibilidade moral e se constrói um novo caminho, conforme disse Vygotski (1997a). Portanto, a sociedade e a cultura são primordiais para a superação da insuficiência. Os obstáculos que impulsionam o indivíduo ao desenvolvimento residem nas condições do ambiente social.

Para o referido autor, o enriquecimento humano da pessoa com deficiência se dava quanto aos meios e formas que a sociedade lhe disponibilizava, na apropriação da cultura historicamente acumulada pela humanidade. Portanto, seu desenvolvimento diferenciava-se conforme o conjunto de condições em que se realizava.

Deste modo, em seus escritos de 1924 a 1934, presentes no Tomo V das Obras Escogidas Fundamentos de Defectología, Vygotski (1997a, 1997b, 1997c) ressaltou a importância do estudo do desenvolvimento da pessoa com deficiência a partir da análise do seu contexto sócio histórico, pois a deficiência é um fenômeno de ordem social, e não basicamente biológica. A análise das vivências pode evidenciar as consequências da deficiência para o indivíduo, que se refletem, segundo Lima, Araújo e Moraes (2010), na diminuição de sua posição social, uma vez que o estigma se concretiza através das relações que o indivíduo mantém com a sociedade: “Lo que decide el destino de la persona, en última instancia, no es el defecto en sí mismo, sino sus consecuencias sociales, su realización psicosocial1 (VYGOTSKI, 1997c, p. 19).

A deficiência implica, de acordo com Vygotski (1997c), modificações na relação do homem com o mundo, mas, antes de tudo, manifesta-se nas relações com as pessoas. Enfatiza o autor que a carência provocada pelo defeito resulta, antes de tudo, na perda das mais importantes funções sociais. Por isso, é preciso compreender a deficiência como um problema social, porque seu momento social, anteriormente não observado e considerado geralmente como secundário, resulta na realidade como fundamental e prioritário.

De acordo com Vygotski (1997c), o desenvolvimento humano se orienta em direção à internalização das relações sociais, entrelaçando cultura, sociedade e natureza num processo dinâmico, dialético, cultural e complexo, não devendo ser pensado como fenômeno linear. Implica evoluções, crises, revoluções e diversas transformações na forma de se constituir como ser histórico-cultural a partir da superação das dificuldades no domínio da natureza e enraizamento social, sendo a primazia do social e cultural na constituição humana.

Dessa forma, todos os fenômenos do contexto social em que se deu o desenvolvimento devem, segundo Vygotski (1997a), ser estudados como processos em movimento e em mudança, na reconstrução da origem e do curso do desenvolvimento. Por isso, Vygotski (1999) apontou a vivência como um exemplo de unidade de análise ao empregar a lógica dialética de observação do humano em permanente movimento.

Nessa direção, Pino (2010) explicou que vivência enquanto unidade de análise integra, de uma forma dinâmica, o meio interior do indivíduo (subjetivo) e exterior ao indivíduo (físico, social e cultural), construído pelos homens. Deve-se penetrar a análise do indivíduo para além do seu estudo biológico, ou seja, adentrar no contexto da sua vida externa, na sua vida social, nas formas histórico-sociais da sua existência (LIMA; ARAÚJO; MORAES, 2010).

Nesse movimento exterior/interior, o ser humano é formado como ser social, e sua personalidade também é formada e orientada pelas exigências de seu ser social, buscando ocupar determinada posição com respeito à lógica imanente da sociedade, nas exigências da existência social, visto que a sociedade é pouco sensível às diferenças e adaptada para determinados tipos ideais (VYGOTSKI, 1997c), ou seja, segundo Karabanova (2010), um desenvolvimento normativo, um conjunto padrão de forma ideal de desenvolvimento que atenda às expectativas e exigências sociais impostas sobre o indivíduo. De acordo com essa autora, o indivíduo é afetado pela organização da vida escolar, pelos tipos de educação familiar e pela peculiaridade da posição dos pais.

Assim, o desenvolvimento da personalidade, segundo Vygotski (2012c), é resultado do processo de desenvolvimento histórico-cultural. Para compreendê-la, o referido autor enfatizou, como via de investigação, a concepção de mundo do indivíduo ao narrar as suas vivências.

Nessa direção e à luz do seu legado em seu escrito Futuras vías de investigación: desarrollo de la personalidade del niño y de su concepción del mundo, de 1931, Vygotski (2012c, p. 328) ressaltou aspectos do conceito de concepção de mundo: “para nosotros la concepción del mundo es todo aquello que caracteriza la conducta global del hombre, la relación cultural del niño con el mundo exterior2. O autor atribuiu o termo “concepção de mundo” ao posicionamento do indivíduo em relação ao mundo em que vive, e por isso destacou que somente a partir da idade escolar se forma pela primeira vez no indivíduo uma concepção de mundo mais estável e consistente. O autor explicou que, quando nasce, a criança carece de uma concepção de mundo, visto que é mais uma atividade no mundo do que uma concepção deste.

As concepções constroem-se com as situações vivenciadas e são sempre ressignificadas a partir das circunstâncias, evoluindo histórica e culturalmente, pois, na compreensão de Costas e Ferreira (2011, p. 215), “o sujeito se produz como indivíduo na ação social e na interação, internalizando significados a partir do social”.

Assim, Vygotski (2012d, p. 381) defendeu que o meio configurava o desenvolvimento do indivíduo através da sua vivência, e criticou que nos estudos do desenvolvimento social de indivíduos “no estudiamos suficientemente la relación interna del niño con la gente de su entorno, no lo consideramos como un participante activo de la situación social3. Recomendou esse autor que se deveria estudar conjuntamente as características do indivíduo e seu meio, pois os problemas fundamentais devem ser esclarecidos no plano das relações internas do indivíduo com o seu meio, visto que, se é um ser social, é parte do seu entorno social.

Vygotski (2012d) enfatizou que toda vivência está respaldada por uma influência real e dinâmica do meio com relação ao indivíduo. Assim, o indivíduo é uma parte da situação social, e sua relação com o meio se realiza através da vivência e da sua atividade. As forças do meio adquirem significado orientador. Portanto, o estudo do meio se translada em medida significante ao interior do próprio indivíduo, não devendo se reduzir às conexões externas de sua vida. Todo avanço no desenvolvimento, ao se passar de uma idade a outra, modifica a influência do meio sobre ele.

Então, todas as particularidades da personalidade e do meio apresentam-se na vivência. Por isso, Vygotski (2010) orientou analisar de forma sistemática o papel do meio no desenvolvimento dos indivíduos, conduzindo-os do ponto de vista das suas vivências, das particularidades que tensionaram suas condutas em dada situação, as quais são expressas de formas diferentes, dependendo de suas concepções, que também estão relacionadas com as diferentes faixas etárias. O meio modifica-se para o indivíduo a cada faixa etária, ampliando-se aos poucos a partir dos seus elementos, como passeios, novas relações com as pessoas e o ambiente educacional. Do mesmo modo, o desenvolvimento do indivíduo, em cada época cultural, coincide mais ou menos, em certos pontos, com a linha do seu desenvolvimento cultural (VYGOTSKI, 1997b).

Somente é possível elucidar o papel do meio no desenvolvimento do indivíduo quando se analisa a relação entre eles, sua afetividade e SSD, visto que o meio é variável e dinâmico, bem como o indivíduo também se modifica em características e condutas, pois “é membro de um certo grupo social, é uma certa unidade da história, vive numa determinada época histórica e em determinadas condições históricas” (VYGOTSKI, 2010, p. 698). Para Marques e Carvalho (2014), seus exemplos remetem a uma análise profunda da vivência humana e dos sentidos atribuídos a ela. Desse modo, apresentam-se princípios, apontados por Vygotski, para a análise de vivências.

3 A análise das vivências

Os dados produzidos podem ser analisados observando-se as premissas do método de Vygotski, baseado em sua obra Análisis de las funciones psíquicas superiores (1931). Nessa obra, Vygotski (2012a, p. 98) abordou a crise existente na Psicologia de seu tempo, em que os investigadores fracionavam os processos complexos em processos independentes, contrapondo-se à explicação por se reduzir a: “describir y fraccionar exclusivamente las vivencias, siendo incapaz de revelar el nexo dinámico-causal y las relaciones que subyacen e algunos procesos complejos4. Por isso o autor explicou sobre a tendência da psicologia contemporânea de estudar os processos em sua totalidade e a tentativa de conhecer as estruturas subjacentes nos fenômenos psicológicos, passando-se da análise descritiva à explicativa, destacando-se do conjunto do processo determinados recursos e momentos que conservem a primazia do todo, unificando-se o enfoque estrutural e analítico.

Desse modo, Vygotski (2012a) apontou três princípios para a análise do fenômeno, que direcionam o processo de análise das vivências de participantes de pesquisa:

1 Diferenciar análise do objeto e análise do processo: o processo de análise, assim como também orienta Bertaux (2010), deve começar desde as primeiras entrevistas, no escutar atentamente as narrativas, transcrevê-las, lê-las e relê-las. A partir da organização dos percursos individuais, analisa-se o processo desde os momentos iniciais de vida dos sujeitos: do nascimento, do contexto familiar e de todos os seus espaços de vida, a exemplo do espaço escolar. As narrativas contribuem para o entendimento do processo de desenvolvimento dos indivíduos a partir de um movimento analítico interpretativo não apenas restrito à fala dos narradores, mas articulado aos contextos de vida, permitindo a compreensão da SSD.

2 Contrapor as tarefas descritivas e explicativas da análise: a partir dos acontecimentos da história de vida dos participantes, realiza-se a demarcação dos processos de perejivánie presentes em suas narrativas para se compreender e explicar as situações que os levaram a determinadas subjetivações e os momentos que transformaram a direção do desenvolvimento desses indivíduos. Considerando-se a carga emocional e a maneira como a perejivánie afeta o sujeito, é fundamental que seja considerada nessa relação entre o mundo objetivo (meio) e o interno (personalidade) no processo. Dessa forma, as situações e o conjunto de condições devem ser analisados em movimento com o desenvolvimento histórico-cultural em que se constituíram os indivíduos, na unidade de suas relações sociais e nos posicionamentos em torno do ambiente social.

3 Converter o objeto em movimento e o fossilizado/estagnado em processo: nesse aspecto, outros instrumentos podem compor os estudos, ao exemplo de construções de histórias de vida a partir de recursos digitais, permitindo-se ampliar o entendimento da subjetividade dos participantes por trazer elementos que a comunicação verbal por si só não conseguiu trazer. Ao produzir as suas histórias em seus espaços de vida, esses recursos possibilitam conhecer aspectos da subjetividade que sejam importantes para cada participante e desencadear um processo de reflexão acompanhado por uma explicação do que as produções significam para eles. Com isso, as produções a partir de recursos digitais devem ser analisadas buscando identificar e interpretar os elementos, as personagens e as emoções implícitos nas imagens a partir do que os próprios participantes descrevem narrativamente sobre os seus conteúdos e suas inter-relações com o objeto do estudo. Esses componentes dos acontecimentos na vida dos participantes com suas concepções permitem, de acordo com Vygotski (1999), ampliar a compreensão dos seus fundamentos históricos.

A partir das recomendações de Vygotski (2001), consideram-se as histórias produzidas acerca da vida e realidade social dos participantes em sua época, bem como os elementos que representam as suas características, sentimentos, emoções, afetividade e concepções de mundo, nos quais se revelam as suas vivências e as transformações provocadas nos participantes.

Outro aspecto organizador para a análise dos estudos incluiu o desdobramento dos eventos contendo todas as suas propriedades, possibilitando a compreensão do todo, assim como defendeu Vygotski (2012a), contrapondo-se a uma análise que venha decompor a totalidade dos componentes nas partes mais simples, pois desta forma o fenômeno perde as suas propriedades, e também porque as investigações na abordagem histórico-cultural devem analisar o fenômeno descobrindo e explicando as suas partes.

Nessa direção, Bittencourt (2018) desenvolveu um estudo utilizando-se desses princípios de Vygotski com o objetivo de analisar as vivências escolares de pessoas adultas com transtorno do espectro autista (TEA) através de narrativas em primeira pessoa, no intuito de contribuir para um melhor entendimento dos aspectos que potencializaram e/ou fragilizaram o prosseguimento ou a interrupção da escolaridade. Com isso, defendeu que as vivências dos participantes refletiram nas suas escolaridades e concepções de mundo, com impactos no desenvolvimento, na constituição, posição social e nas suas apropriações e atividades no mundo. Das narrativas de vida dos participantes emergiram não apenas a história de si, mas a relação com o grupo social, os aspectos dominantes e as tensões presentes em suas vivências.

Na etapa do princípio 1, “diferenciar análise do objeto e análise do processo”, a referida autora organizou os percursos individuais analisando o processo desde os momentos iniciais de vida dos sujeitos: do nascimento, do contexto familiar, dos primeiros sinais do TEA, do processo de diagnóstico, do percurso escolar, do percurso nos demais espaços de vida, e de como cada um percebia a si, o autismo e o futuro. Com isso, identificou que as narrativas contribuíram no entendimento do processo de desenvolvimento dos participantes com TEA, a partir de um movimento analítico interpretativo com a articulação da fala dos narradores e das produções no Sistema de Comunicação Alternativa para Letramento de Pessoas com Autismo (Scala), uma tecnologia assistiva, suplementar, a partir do seu módulo de narrativas visuais disponibilizado para a construção e o registro de suas histórias de vida com imagens e outros recursos, além dos contextos de vida, permitindo à compreensão da SSD.

Na etapa do princípio 2, “contrapor as tarefas descritivas e explicativas da análise”, Bittencourt (2018) realizou a demarcação dos processos de perejivánie presentes nas narrativas dos participantes, analisando-os com relação ao período histórico-cultural em que se constituíram os indivíduos no que se refere à (in)compreensão sobre o TEA, suas relações sociais à época e seus posicionamentos em torno do ambiente social para descrever e explicar as situações que os levaram a determinadas subjetivações e os momentos que transformaram a direção do desenvolvimento dos participantes.

Na etapa do princípio 3, “converter o objeto em movimento e o fossilizado/estagnado em processo”, as produções no Scala foram analisadas buscando identificar e interpretar os elementos, as personagens e as emoções implícitos nas imagens a partir do que os próprios participantes descreveram narrativamente sobre os seus conteúdos e suas inter-relações com o objeto do estudo (BITTENCOURT, 2018). Esses componentes dos acontecimentos na vida dos participantes com TEA e suas concepções permitiram, de acordo com Vygotski (1999), ampliar a compreensão dos seus fundamentos históricos. Consideraram-se as histórias produzidas através do Scala acerca da vida e realidade social dos participantes com TEA em sua época, bem como os elementos que representaram as suas características, sentimentos, emoções, afetividade e concepções de mundo, nos quais se revelaram as suas vivências e as transformações provocados nos participantes com TEA.

Nessa perspectiva, Bittencourt e Fumes (2017) também destacaram as contribuições da tecnologia assistiva Scala como recurso para a produção de narrativas e o registro de dados nas pesquisas em educação. Segundo Dillon, Underwood e Freemantle (2016), ouvir indivíduos, a exemplo de pessoas diagnosticadas com TEA, fornece aos pesquisadores percepções significativas das suas experiências, inclusive no âmbito das questões educacionais, pois podem existir importantes diferenças entre o que pais e professores relatam. Chiote (2013) considera que conhecer a trajetória escolar e de vida da pessoa com TEA possibilita reflexões sobre como esse ser social se constituiu, o que aprendeu e como se desenvolveu a partir das relações e interações que lhes foram possibilitadas e das práticas em que foi inserido. Concentrar-se nas narrativas desses indivíduos oportuniza o levantamento de diversos problemas de investigação acerca das suas necessidades e dificuldades ao longo da vida (CHAMAK et al., 2008). As narrativas pessoais como fonte de investigação partem do seu reconhecimento enquanto sujeitos de direito, que têm a prerrogativa de expressar suas opiniões e de serem ouvidos sobre assuntos que lhes dizem respeito. Tais estudos proporcionam meios para a expressão de si. Comunicar-se em sua singularidade, em sua forma de percepção do mundo, dos seus desejos e inquietações significa aproximá-los de si e da sua subjetividade e conhecer efetivamente as suas principais necessidades (BITTENCOURT; FUMES, 2021).

Outros estudos no âmbito das narrativas de vida sobre as experiências escolares foram desenvolvidos por Turcotte et al. (2015), Gulec-Aslan, Ozbey e Yassibas (2013), Preece e Jordan (2010) e Bagarollo e Panhoca (2010, 2011), os quais demonstraram que as vivências dos indivíduos refletem como os indivíduos conceituam as suas experiências escolares e de vida.

4 Considerações finais

Este artigo direcionou caminhos para a análise do contexto histórico-cultural nos estudos com indivíduos a partir das premissas do método de Vygotski no uso da unidade vivência para entender os aspectos do seu desenvolvimento. Explicitou o quanto as vivências podem produzir consequências nas concepções dos indivíduos com relação aos seus espaços de vida, identificadas pela maneira como os acolhem e os atendem em suas necessidades e na forma como visualizam ou não as suas potencialidades, expressas nas palavras e nos sentimentos que possam ser representados pelos participantes de uma pesquisa em suas narrativas, inclusive as implicações que tendem a explicar o modo como os indivíduos se percebem, como lidam com as situações do seu cotidiano, suas características pessoais, sua autonomia ou dependência e como projetam o futuro através dos interesses e planos de vida.

Portanto, evidencia-se que, para compreender os fundamentos históricos que envolvem indivíduos em suas vivências e concepções de mundo, é necessário analisar as raízes sociais defendidas por Vygotski, a partir de todas as suas fases de vida, do passado ao futuro, nas diversas relações que direcionaram o desenrolar das ações as quais possibilitam entender os indivíduos em seu desenvolvimento. A partir do conhecimento das vivências familiares, escolares e sociais, é possível entender os aspectos que potencializam e/ou fragilizam seu desenvolvimento e participação social.

O método da narrativa de vida é um meio de acesso ao conhecimento do contexto histórico-cultural enfatizado por Vygotski, visto que possibilita apreender, a partir das palavras ou outras formas de expressão dos participantes, os acontecimentos, representações, concepções, perspectivas e os seus modos de ser/estar/se relacionar com o mundo. As narrativas de vida dos participantes fazem emergir não apenas a história de si, mas a relação com o grupo social, os aspectos dominantes e as tensões presentes em suas vivências.

Sendo os indivíduos parte da SSD e das suas relações com o meio, eles se constituem através do que vivenciam, com concepções de mundo que lhes são orientadoras nas atividades e ações, influenciando o desenvolvimento psicológico e as suas características pessoais. As evoluções, as crises e as transformações implicam na forma como se constituem como seres histórico-culturais.

1O que decide o destino da pessoa, em última instância, não é o defeito em si mesmo, mas suas consequências sociais, sua realização psicossocial. (VYGOTSKI, 1997c, p. 19- tradução nossa).

2Para nós, a concepção do mundo é tudo o que caracteriza o comportamento global do homem, a relação cultural da criança com o mundo exterior (VYGOTSKI, 2012c, p. 328- tradução nossa).

3Não estudamos suficientemente a relação interna da criança com as pessoas do seu meio, não o consideramos como um participante ativo da situação social (VYGOTSKI, 2012d, p. 381- tradução nossa).

4Descrever e fragmentar exclusivamente as vivências, sendo incapaz de revelar o nexo dinâmico-causal e as relações subjacentes a alguns processos complexos (VYGOTSKI, 2012a, p. 98- tradução nossa).

Referências

BAGAROLLO, M.; PANHOCA, I. A constituição da subjetividade de adolescentes autistas: um olhar para as histórias de vida. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 16, n. 2, p. 231-250, 2010. [ Links ]

BAGAROLLO, M.; PANHOCA, I. História de vida de adolescentes autistas: contribuições para a fonoaudiologia e a pediatria. Revista Paulista de Pediatria, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 100-107, 2011. [ Links ]

BERTAUX, D. Narrativas de vida: a pesquisa e seus métodos. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010. [ Links ]

BITTENCOURT, I. G. S. As vivências de pessoas adultas com transtorno do espectro autista na relação com a escolaridade e concepções de mundo. 2018. Tese (Doutorado em Educação) - Centro de Educação, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2018. [ Links ]

BITTENCOURT, I. G. S.; FUMES, N. L. F. A tecnologia assistiva Scala como recurso para produção de narrativas e registro de dados nas pesquisas em educação: uma experiência com pessoas adultas com transtorno do espectro autista. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 12, p. 1481-1495, 2017. Número especial 2. DOI: 10.21723/riaee.v12.n.esp.2.1304. [ Links ]

BITTENCOURT, I. G. S.; FUMES, N. L. F. “Eu não deveria ter saído de lá! Gosto de estudar!”: os desafios de pessoas com transtorno do espectro autista para escolarização. Research, Society and Development, Vargem Grande Paulista, v. 10, n. 5, art. e12610514681, 2021. DOI: 10.33448/rsd-v10i5.14681. [ Links ]

CHAMAK, B. et al. What can we learn about autism from autistic persons? Psychotherapy and Psychosomatics, Basel, v. 77, n. 5, p. 271-279, 2008. [ Links ]

CHIOTE, F. A. Inclusão da criança com autismo na educação infantil: trabalhando a mediação pedagógica. Rio de Janeiro: Wak, 2013. [ Links ]

COSTAS, F. A.; FERREIRA, L. S. Sentido, significado e mediação em Vygotsky: implicações para a constituição do processo de leitura. Revista Iberoamericana de Educación, Madrid, v. 55, p. 205-223, 2011. [ Links ]

DANIELS, H. Vygotsky e a pesquisa. São Paulo: Loyola, 2011. [ Links ]

DILLON, G.; UNDERWOOD, J.; FREEMANTLE, L. Autism and the U.K. secondary school experience. Focus on Autism and Other Developmental Disabilities, Thousand Oaks, v. 31, n. 3, p. 221-230, 2016. [ Links ]

GULEC-ASLAN, Y.; OZBEY, F.; YASSIBAS, U. “I have lived an autism experience. Autism is an interesting disease”: the life story of a young man with autism. International Education Studies, Ontario, v. 6, n. 1, p. 74-84, 2013. [ Links ]

KARABANOVA, O. Social situation of child’s development: the key concept in modern developmental psychology. Psychology in Russia: State of the Art, Moscow, v. 3, p. 130-153, 2010. [ Links ]

LIMA, N. A.; ARAÚJO, A. C.; MORAES, B. Problemas fundamentais da defectologia: aproximações preliminares à luz do legado de Vigotski. Revista Eletrônica Arma da Crítica, Fortaleza, ano 2, p. 48-60, 2010. Número especial. [ Links ]

MARQUES, E. S.; CARVALHO, M. V. Vivência e afetação na sala de aula: um diálogo entre Vigotski e Espinosa. Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 23, n. 41, p. 41-50, 2014. [ Links ]

PINO, A. A criança e seu meio: contribuição de Vigotski ao desenvolvimento da criança e à sua educação. Psicologia USP, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 741-756, 2010. [ Links ]

PREECE, D.; JORDAN, R. Obtaining the views of children and young people with autism spectrum disorders about their experience of daily life and social care support. British Journal of Learning Disabilities, Hoboken, v. 38, n. 1, p. 10-20, 2010. [ Links ]

TOASSA, G. Emoções e vivências em Vigotski. Campinas: Papirus, 2011. [ Links ]

TOASSA, G.; SOUZA, M. P. As vivências: questões de tradução, sentidos e fontes epistemológicas no legado de Vigotski. Psicologia USP, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 757-779, 2010. [ Links ]

TURCOTTE, P. L. et al. Social participation during transition to adult life among young adults with high-functioning autism spectrum disorders: experiences from an exploratory multiple case study. Occupational Therapy in Mental Health, London, v. 31, n. 3, p. 234-252, 2015. [ Links ]

VYGOTSKI, L. S. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Texto original de 1916. [ Links ]

VYGOTSKI, L. S. Análisis de las funciones psíquicas superiores. In: VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Madrid: Machado, 2012a. t. 3, p. 97-120. Texto original de 1931. [ Links ]

VYGOTSKI, L. S. El defecto y la compensación. In: VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Madrid: Visor, 1997a. t. 5, p. 41-58. Texto original de 1924. [ Links ]

VYGOTSKI, L. S. El problema de la edad. In: VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Madrid: Machado, 2012b. t. 4, p. 251-273. Texto original de 1932. [ Links ]

VYGOTSKI, L. S. Futuras vías de investigación: desarrollo de la personalidade del niño y de su concepción del mundo. In: VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Madrid: Machado, 2012c. t. 3, p. 327-340. Texto original de 1931. [ Links ]

VYGOTSKI, L. S. La crisis de los siete años. In: VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Madrid: Machado, 2012d. t. 4, p. 377-386. Texto original de 1933. [ Links ]

VYGOTSKI, L. S. La defectología y la teoría del desarrollo y la educación del niño anormal. In: VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Madrid: Visor, 1997b. t. 5, p. 181-188. Texto original de 1934. [ Links ]

VYGOTSKI, L. S. Los problemas fundamentales de la defectología contemporánea. In: VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Madrid: Visor, 1997c. t. 5, p. 11-40. Texto original de 1929. [ Links ]

VYGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Texto original de 1925. [ Links ]

VYGOTSKI, L. S. Quarta aula: a questão do meio na pedologia. Psicologia USP, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 681-701, 2010. Texto original de 1934. [ Links ]

Recebido: 05 de Maio de 2020; Revisado: 14 de Outubro de 2021; Aceito: 18 de Outubro de 2021; Publicado: 10 de Janeiro de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.