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Educação: Teoria e Prática

versión impresa ISSN 1993-2010versión On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.31 no.64 Rio Claro ene. 2021  Epub 03-Dic-2021

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v31.n.64.s13654 

Dossiê

EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA DA LIBERDADE

EDUCATION AS A PRACTICE OF FREEDOM

LA EDUCACIÓN COMO PRÁCTICA DE LA LIBERTAD

Cristina Bárbara Martins Teixeira1 
http://orcid.org/0000-0002-0200-2275

1Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro, Uberaba - MG, Brasil cristina.bm.fp@gmail.com,

FREIRE, P.. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.


Educação como prática da liberdade foi escrito em 1967 durante o exílio de Paulo Freire no Chile, contém 150 páginas e foi publicado pela editora Paz e Terra. Essa obra tem indiscutível importância histórica, tanto política, quanto pedagogicamente, tendo em vista sua repercussão em tantas edições. Nesse livro o autor expõe o seu método de alfabetização de adultos de maneira minuciosa, contextualizando historicamente a proposta e expondo seus pressupostos filosóficos e políticos, dizendo sobre uma educação que liberta seres humanos da condição de oprimidos e inserindo-os na sociedade como forças transformadoras, críticas, politizadas e responsáveis por todas as pessoas que a integram.

Além da apresentação de Francisco C. Weffort - Educação e Política - e do prefácio-poema de Thiago de Mello - Canção Para os Fonemas de Alegria -, essa edição reúne apêndice com exemplos de situações existenciais que possibilitam, no Método, a apreensão do conceito de cultura, sendo acompanhadas de desenhos de Vicente de Abreu feitos a partir das pinturas originais de Francisco Brennand.

A obra é dividida em quatro capítulos: “A Sociedade Brasileira em Transição” - o autor apresenta sua interpretação a respeito das forças políticas que disputavam o poder no início da década de 1960; “Sociedade Fechada e Inexperiência Democrática” - Paulo Freire resgata momentos da história do Brasil; “Educação Versus Massificação” - o autor explica sua concepção pedagógica; “Educação e Conscientização” - Freire mostra as experiências pedagógicas do Método de Alfabetização de Adultos ocorridas no Brasil no período pré-64.

Para melhor compreensão do leitor, esta resenha pretendeu expor o que considera essencial em cada capítulo, conservando cuidadosamente os fundamentos filosóficos e políticos do autor.

1. A Sociedade Brasileira em Transição - Paulo Freire apresenta sua interpretação a respeito das forças políticas do início da década de 1960, pontuando que tal época era um momento de transição e que é nesses momentos que o homem tem a possibilidade de fazer mudança em seu papel, podendo deixar de ser objeto para ser sujeito. Para Freire, as relações que o homem trava no mundo e com o mundo possuem diversas características que as diferenciam das relações dos demais animais. Entre elas, as conotações de pluralidade, de criticidade, de transcendência, de consequência e de temporalidade.

De acordo com Freire, o homem em suas relações, criando e recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo, lança-se num domínio que lhe é exclusivo, o da História e o da Cultura. A integração do homem ao seu contexto o enraíza e o torna um ser situado e datado.

Para Freire, a grande luta dos homens seria a de superar os fatores que o faziam acomodado ou ajustado, era a luta por sua humanização, ameaçada constantemente pela opressão que o esmagava.

Freire demonstra que a humanização ou desumanização do homem e sua afirmação como sujeito ou sua minimização como objeto dependeriam da captação ou não de sua realidade histórica, já que, somente se preparando para essa captação, é que poderia interferir, em vez de ser simples espectador.

O Brasil vivia a passagem de uma época para outra. O ponto de partida do trânsito seria de uma sociedade “fechada”, que era alienada, objeto, e não sujeito de si mesma. Essa sociedade rachou-se, a rachadura decorreu da ruptura nas forças que mantinham a sociedade fechada em equilíbrio. Para Freire, se ainda não era uma sociedade aberta, já não era, contudo, uma sociedade totalmente fechada; parecia ser uma sociedade abrindo-se, com preponderância de abertura nos centros urbanos e de fechamento nos rurais, correndo o risco, pelos possíveis recuos no trânsito, como o Golpe de Estado, de um retorno catastrófico ao fechamento. Para Freire, a salvação democrática estaria em fazer uma sociedade homogeneamente aberta.

Para o autor, o novo clima cultural começava a se formar, a sociedade ganhava, pouco a pouco, a consciência de suas possibilidades como resultado imediato de sua inserção no seu mundo e da captação das tarefas de seu tempo ou da visão nova dos velhos temas. Começavam a fazer-se críticos e, por isso, renunciavam tanto ao otimismo ingênuo e aos idealismos utópicos quanto ao pessimismo e à desesperança e se tornavam criticamente otimistas.

À medida que iam se integrando com seu tempo e seu espaço, a posição anterior de inferioridade, característica da alienação, começava a ser substituída por uma outra, de alta confiança. A sociedade passava, assim, a se conhecer, renunciando à velha postura de objeto e assumindo a de sujeito. Isso implicava uma crescente participação do povo no seu processo histórico. E essa participação, que implicava uma tomada de consciência, e não ainda uma conscientização, ameaçava as elites detentoras de privilégios, levando-as a reagirem, criando instituições assistenciais.

Segundo Freire, o perigo do assistencialismo estava na violência do seu antidiálogo, que, impondo ao homem mutismo e passividade, não lhe oferecia condições especiais para o desenvolvimento ou a abertura de sua consciência, que, nas democracias autênticas, haveria de ser cada vez mais crítica.

Para o autor, não seria com soluções dessa ordem assistencialista que se ofereceria ao país uma destinação democrática, mas, sim, a partir de uma educação corajosa, propondo ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no novo clima cultural da época de transição. Na fase de transição brasileira, entretanto, à medida que o clima emocional se intensificava e o racionalismo sectário, sobretudo de direita, se fortalecia, fazia-se cada vez mais difícil uma educação capaz de corresponder a esse fundamental desafio. Consolidavam-se as barreiras contra essa educação.

2. Sociedade Fechada e Inexperiência Democrática - Paulo Freire resgata momentos da história do Brasil, pontuando que a sociedade “fechada” brasileira era consequência da colonização e existia uma inexperiência democrática, que era uma das marcas mais fortes do país. Para Freire, isso ocorreu pelo fato de a colonização brasileira ter sido uma empreitada comercial, na qual os colonizadores não tinham a intenção de criar uma civilização. Sendo assim, essa colonização demonstrava distância social e não permitia dialogação.

Para Freire, a dialogação implicava a responsabilidade social e política do homem, implicava o mínimo de consciência transitiva, que não se desenvolvia nas condições oferecidas pelo grande domínio. Freire demonstra que a característica da formação da sociedade brasileira foi o poder exacerbado a que foi se associando sempre a submissão, originando ajustamento e acomodação.

No ajustamento, o homem não dialoga, não participa, acomoda-se a determinações que se superpõem a ele. Com essa política de colonização, não era possível ter experiências democráticas e, em todo o período de vida colonial, os brasileiros foram proibidos de falar. Freire destaca a ocorrência de rachaduras na sociedade brasileira, como, por exemplo, quando a Corte se instalou no Rio de Janeiro; mas segundo ele, os brasileiros continuaram a alimentar a inexperiência democrática como uma experiência caracterizada por uma mentalidade feudal.

De acordo com Freire, não havia onde buscar condições de que tivesse emergido uma consciência popular democrática, permeável e crítica sobre a qual se podia fundar autenticamente o mecanismo do estado democrático devido ao tipo de colonização. Uma ação democrática em geral teria que ser feita não só com o consentimento do povo, mas com suas próprias mãos. Freire alude que o povo assistiu à proclamação da República bestificado, porém, no caso do Golpe Militar, já não tanto bestificado. A população estava começando a entender que era sua crescente participação nos acontecimentos políticos brasileiros que assustava as forças, quebrando o equilíbrio que mantinha a sociedade fechada, provocando uma rachadura na sociedade, que entra então na fase de transição.

3. Educação Versus Massificação - O autor explica sua concepção pedagógica elucidando que, a partir de suas análises, preocupava-se em encontrar uma resposta no campo da pedagogia às condições da fase de transição brasileira, que deveria ser pautada em uma educação crítica e criticizadora. Ao retratar as condições da fase de transição brasileira e as características presentes na educação daquela época, Freire demonstra que as minorias estavam excluídas da órbita das decisões, comandadas pelos meios de publicidade a tal ponto, que em nada confiavam ou acreditavam se não tivessem ouvido no rádio ou na televisão.

Para Freire, a educação estava cada vez mais em posições ingênuas, deixando a população na periferia de tudo o que era tratado, quase sempre levando-a à passividade, ao conhecimento memorizado apenas, não exigindo dela elaboração ou reelaboração, deixando-a em posição de inautêntica sabedoria. Essa cultura fixada na palavra, segundo Freire, correspondia à inexperiência do diálogo, o qual estava intimamente ligado à criticidade, nota fundamental da mentalidade democrática. Então, não seria possível, com uma educação assim, formar homens que se integrassem a esse impulso de democratização, já que essa educação contradizia esse impulso e enfatizava a inexperiência democrática.

De acordo com o autor, a democracia estava em aprendizagem, fortemente marcada por descompassos nascidos da inexperiência do autogoverno, ameaçada pelo risco de não ultrapassar a transitividade ingênua. Freire, no entanto, pontua que o Brasil estava vivendo uma fase de influências “renovadoras” por intermédio do rádio, do cinema e da televisão, fase em que a transitividade da consciência se associava ao fenômeno da rebelião popular, e essa rebelião era um sintoma de ascensão, como uma introdução à plenitude, mas que não poderia ficar só nas suas manifestações preponderantemente passionais. Era necessário um senso de responsabilidade, de criticidade.

Para isso, o homem brasileiro teria de ganhar a sua responsabilidade social e política. Para essa responsabilidade existir, era necessária a participação, para a qual havia a necessidade de uma educação que tentasse a passagem da transitividade ingênua à transitividade crítica, ampliando e alargando a capacidade de captar os desafios do tempo, colocar o homem brasileiro em condições de resistir aos poderes da emocionalidade da própria transição.

Para Freire, o grande desafio nas novas condições da vida brasileira não era só o alarmante índice de analfabetismo e a sua superação - o problema prosseguia e transcendia a superação do analfabetismo e se situava na necessidade de superar, também, a inexperiência democrática.

4. Educação e Conscientização - Paulo Freire mostra o seu projeto de educação para os adultos, confirmando a necessidade de olhar para os déficits quantitativos e qualitativos da educação. Esse projeto se dava mediante os Círculos de Cultura, nos quais eram instituídos debates em grupos que estavam em busca do esclarecimento de situações. A programação desses debates era oferecida pelos próprios grupos por meio de entrevistas que eram mantidas com eles e de que resultava a enumeração de problemas que gostariam de debater.

Paulo Freire relata que a educação que ele propunha era totalmente afastada da alfabetização puramente mecânica. Pelo contrário, seria uma alfabetização de tomada de consciência, direta e ligada à democratização da cultura, que fosse, em si, um ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores. Mas como realizar essa educação? Para Freire, a resposta estava em um método ativo, dialogal, crítico e criticizador, na modificação do conteúdo programático da educação, no uso de técnicas como a da redução e codificação.

Para Freire, o diálogo era indispensável no caminho dessa nova formação e começaria pelo conceito antropológico de cultura; a cultura como resultado de seu trabalho, do seu esforço criador e recriador, o sentido transcendental de suas relações, a dimensão humanista da cultura, a democratização da cultura, o aprendizado da escrita e da leitura como uma chave com que o analfabeto iniciaria a sua introdução no mundo da comunicação escrita. A partir daí, o analfabeto começaria a operação de mudança de suas atitudes anteriores, descobrindo-se como fazedor desse mundo da cultura.

A conclusão dos debates girava em torno da dimensão da cultura como aquisição sistemática da experiência humana. Daí passava-se ao debate da democratização da cultura, com que se abriam as perspectivas para o início da alfabetização. Todo esse debate era criticizador e motivador. O analfabeto apreendia criticamente a necessidade de aprender a ler e a escrever.

O método de Freire era dividido em algumas fases de elaboração e de execução prática. No momento da elaboração havia cinco fases. Primeira: levantamento do universo vocabular dos grupos com quem se trabalharia; segunda: escolha das palavras selecionadas do universo vocabular pesquisado; terceira: criação de situações existenciais típicas do grupo com quem se iria trabalhar; quarta: elaboração de fichas-roteiro que auxiliavam os coordenadores de debate no seu trabalho; quinta: elaboração de fichas com a decomposição das famílias fonéticas correspondentes aos vocábulos geradores.

Depois de confeccionado esse material, eram preparadas e treinadas as equipes de coordenadores e supervisores, que recebiam suas fichas-roteiro para, assim, iniciarem o trabalho. No momento da execução começava-se com a projeção da situação com a primeira palavra geradora, a representação gráfica da expressão oral da percepção do objeto e, depois, iniciava-se o debate em torno de suas implicações. Somente quando o grupo esgotava a análise da situação dada, voltava-se o educador para a visualização da palavra geradora (para a visualização, e não para sua memorização). Visualizada a palavra, estabelecido o vínculo semântico entre ela e o objeto a que se referia, representado na situação, apresentava-se ao educando, de outra forma, a palavra sem o objeto que a nomeava.

Logo após, apresentava-se a mesma palavra separada em sílabas, que o analfabeto, de modo geral, identificava como “pedaços”. Reconhecidos os “pedaços”, na etapa da análise, passava-se à visualização das famílias fonêmicas que compunham a palavra em estudo. Essas famílias, que eram estudadas isoladamente, passavam depois a ser apresentadas em conjunto, chegando-se à última análise, que levava ao reconhecimento das vogais.

A ficha que apresentava as famílias em conjunto foi chamada de ficha da descoberta. Por meio dela, fazendo a síntese, o aluno descobria o mecanismo de formação vocabular numa língua silábica, que se fazia por meio de combinações fonêmicas. Apropriando-se criticamente, e não memorizadamente, o que não seria uma apropriação, desse mecanismo, começava a produzir por si mesmo seu sistema de sinais gráficos. Começava, então, com maior facilidade, a criar palavras com as combinações fonêmicas à sua disposição que a decomposição de um vocábulo trissilábico lhe oferecia.

Terminados os exercícios orais, em que não houve apenas conhecimento, mas reconhecimento, sem o que não há verdadeira aprendizagem, o aluno passava, na mesma noite, a escrever. De acordo com Freire, na alfabetização de adultos, para que não seja puramente mecânica e memorizada, o que se devia fazer era proporcionar-lhes conscientização para que se alfabetizassem. Daí, à medida que o método ativo ajudava a pessoa a se conscientizar em torno de sua problemática, em torno de sua condição de pessoa, por isso de sujeito, ela se instrumentalizaria para as suas opções. Aí, então, ela mesma se politizaria.

Freire destaca que, se tivesse sido cumprido o programa elaborado no governo Goulart, em 1964, poderiam ter funcionado mais de 20.000 Círculos de Cultura em todo o país e haveria o levantamento da temática do homem brasileiro. Esses temas, submetidos à análise de especialistas, seriam reduzidos a unidades de aprendizado, à maneira como foi feito com o conceito de cultura e com as situações em torno das palavras geradoras. Esse levantamento teria possibilitado uma séria programação que se seguiria à etapa da alfabetização, mas, ainda, com a criação de um catálogo de temas reduzidos e referências bibliográficas que teria sido colocado a disposição dos colégios e universidades, ampliando o raio de ação da experiência e contribuindo para a indispensável identificação da escola com a realidade.

É indiscutível a importância de Paulo Freire para a educação no Brasil e em diversas partes do mundo. Sua obra é, ainda hoje, referência, o que justifica tantas edições. Com a leitura desse livro é possível entrar em contato com a filosofia e a pedagogia de Freire, além de conhecer o que o autor defendia: o papel do professor deveria ser o de possibilitar a criação e a produção de conhecimento; o papel da escola seria de ensinar os estudantes a ler o mundo; a educação é o meio para despertar a criticidade do aluno para que ele atinja sua autonomia; e a educação possibilitaria o desenvolvimento de uma percepção crítica quanto à desigualdade entres as classes sociais, que tem como consequência a opressão das classes populares.

Entre as contribuições do autor está a percepção de que cada estudante leva consigo a sua cultura para a sala de aula, e essa não deve ser considerada melhor nem pior que a do professor. Nesse sentido, o respeito à cultura do aluno se revelou como uma das maneiras de tornar a educação mais afetiva e democrática, considerando que todos são fontes de conhecimento. Na pedagogia freiriana, todos têm direito a se manifestar criticamente.

Referências

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. [ Links ]

FREIRE, P. (1921). Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Moraes, 1980. [ Links ]

Recebido: 16 de Outubro de 2018; Revisado: 08 de Setembro de 2021; Aceito: 07 de Outubro de 2021

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