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Educação: Teoria e Prática

versión impresa ISSN 1993-2010versión On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.32 no.65 Rio Claro  2022

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v32.n.65.s15380 

Artigos

A luta pelo não fechamento da escola no campo: reflexões sobre a relação entre identidade territorial e mobilização política a partir da Comunidade São Tomé, Ilha do Marajó

The fight for the permanence of rural schools: reflections on the association between territorial identity and political mobilization based on the São Tomé Community, Marajó Island

La lucha por no cerrar la escuela en el campo: reflexiones sobre la relación entre identidad territorial y movilización política de la Comunidad de Santo Tomé, Isla de Marajó

Rodrigo Moreira Vieira1 
http://orcid.org/0000-0003-2458-3928

Gracinaldo da Silva Soares Filho2 
http://orcid.org/0000-0003-4801-2652

Carla dos Santos Costa3 
http://orcid.org/0000-0003-4482-6018

Marcelo Rangel Corrêa4 
http://orcid.org/0000-0002-8402-9681

1Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará, Breves, Pará – Brasil. E-mail: rodrigo.vieira@ifpa.edu.br.

2Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará, Breves, Pará – Brasil. E-mail: naldosilva08422@gmail.com.

3Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará, Breves, Pará – Brasil. E-mail: carladossantoscosta04@gmail.com.

4Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará, Breves, Pará – Brasil. E-mail: marcelorangel2612@gmail.com.


Resumo

Este trabalho tem como objeto o processo de mobilização social pelo não fechamento da Escola Municipal de Ensino Fundamental e Infantil São Tomé, localizada na comunidade de mesmo nome, em detrimento de processos de nucleação escolar ocorridos na estrutura de ensino no meio rural do Pará. De acordo com pesquisa levantada por alunos da graduação em Educação do Campo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará, campus Breves, como será observado, é possível afirmar que houve uma importância fundamental da identidade territorial no processo de mobilização de resistência pela manutenção da escola mencionada, o que, por seu turno, reforçou ainda mais a identidade territorial dos comunitários.

Palavras-chave Mobilização; Campo; Nucleação; Escola

Abstract

This work aims to analyze the territorial identity of São Tomé community, at Marajó, trough political mobilization and resistance in the fight for the permanence of the Escola Municipal de Ensino Fundamental e Infantil São Tomé to the detriment of the territorial nucleation on rural context. A research developed by undergraduate students on Field Education at Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará indicate the key role of territorial identity in the social mobilization for the permanence of the school – a mobilization that, in turn, contributes to reinforce residents’ territorial identity.

Keywords Mobilization; Field; Nucleation; School

Resumen

Este trabajo tiene como objeto el proceso de movilización social para evitar el cierre de la Escuela Primaria e Infantil Municipal de São Tomé, localizada en esa comunidad, en detrimento de los procesos de nucleación escolar que se desarrolló en la estructura de enseñanza rural. De acuerdo con una investigación realizada por estudiantes de pregrado en Educación de Campo en el campus del IFPA - Breves, como se verá, es posible afirmar que hubo una importancia fundamental de la identidad territorial en el proceso de movilización de resistencias para el mantenimiento de esa escuela y que, a su vez, fortaleció aún más la identidad territorial de los miembros de la comunidad.

Palabras clave Movilización; Campo; Nucleación; Escuela

1 Introdução

Este trabalho é resultado de parte de uma pesquisa realizada por um grupo de alunos do curso de Licenciatura em Educação do Campo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA), Câmpus Breves, localizado no arquipélago do Marajó. Os dados e informações que permitiram as análises que aqui serão mencionadas foram observados durante o “tempo comunidade”, momento em que os alunos vão às comunidades rurais realizar as atividades acadêmicas necessárias para sua formação.

As atividades de pesquisa desempenhadas no tempo comunidade culminam em relatórios apresentados na disciplina Projeto Integrador que descrevem cada uma das comunidades analisadas pelos discentes. A pesquisa específica presente neste trabalho foi orientada por um dos docentes do curso como parte das atividades realizadas para a disciplina mencionada. Além disso, a análise foi realizada à luz de aspectos políticos, identitários e territoriais trabalhados durante a disciplina de Geoantropologia. A comunidade analisada pelo grupo de alunos que participaram de tal atividade é a São Tomé, localizada na região do município de Breves, arquipélago do Marajó, Pará.

Aos discentes coube coletar dados sobre aspectos históricos, econômicos, políticos, sanitários, ambientais, produtivos e culturais e, desse modo, traçar um perfil socioeconômico da comunidade. Os alunos também realizaram observação participante. Foi a partir desse exercício e da coleta de informações sobre aspectos educacionais que os discentes acabaram por analisar um objeto específico: a luta pelo não fechamento da escola presente na comunidade pesquisada. A partir disso, o docente responsável pelo grupo solicitou aos orientandos que analisassem tal objeto com mais precisão, a fim de apresentarem-no como produto na disciplina Projeto Integrador.

Foram analisados quais elementos estiveram por trás da mobilização social e política pelo não fechamento da Escola Municipal de Ensino Fundamental e Infantil (Emefi) São Tomé, no interior da comunidade pesquisada, diante do processo de nucleação escolar, visto que foi a única unidade de ensino não fechada entre as seis escolas encontradas ao longo da estrada PA-159, localização da comunidade.

O desenvolvimento deste artigo está dividido nas seguintes partes, além da introdução: o fechamento de escolas diante do processo de nucleação escolar; posicionamento da comunidade em relação ao não fechamento da escola; apresentação do método de pesquisa, das informações coletadas e observações realizadas pelo grupo de alunos da graduação em Educação do Campo do IFPA, Câmpus Breves, durante o tempo comunidade que levaram à análise e os pressupostos teóricos utilizados; resultados da pesquisa e análise e das particularidades da Comunidade São Tomé; e considerações finais.

2 A nucleação escolar e o fechamento de escolas rurais

O desenvolvimento das escolas do e no campo faz parte de um processo político e histórico que tem como elemento central a construção de instituições de ensino alinhadas à realidade territorial, à dinâmica social e produtiva e aos sujeitos do campo. A estrutura escolar predominante no Brasil antes da implantação das escolas do campo seguia um modelo exclusivamente urbano. O limite desse tipo de escola é que ele não dá conta de atender às demandas específicas do meio rural, visto que nesse âmbito é necessária prática e concepção pedagógicas peculiares. Além disso, as políticas públicas voltadas ao campo, nas quais se inclui o financiamento educacional, acompanham o aspecto “residual” a partir do qual o(s) meio(s) rural(is) foi historicamente tratado pelo Estado brasileiro em detrimento do(s) espaço(s) urbanos (WANDERLEY; FAVARETO, 2013). Diante desse problema e após décadas de mobilização política de entidades e movimentos sociais ligados ao campo, foram criados planos regionais e nacionais para o desenvolvimento escolar no campo e do campo (FREITAS, 2011). O objetivo desse processo foi oferecer às diferentes populações rurais todas as etapas do ensino básico a partir da construção de escolas no interior de tais territórios e adequadas às suas particularidades. Para tanto, as instituições federativas competentes deviam estabelecer planos e condições para sua execução, desde a criação até a permanência (BERBAT; MEDEIROS, 2017).

A oficialização constitucional da educação em meio rural se estabeleceu a partir do artigo 28 da Lei nº 9.394/1996, que registra o seguinte: “Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região” (BRASIL, 1996). É importante mencionar que as ações para o atendimento a certas demandas, tais como estruturas físicas e técnicas para a ampliação da educação no meio rural, foram acompanhadas por outras ações. Dentre elas podem ser mencionados alguns exemplos, como a criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, a Comissão Nacional de Educação do Campo, criada em 2007, e o Decreto nº 8.752/2016, cujo inciso VI do art. 12 determina:

Estímulo ao desenvolvimento de projetos pedagógicos que visem a promover desenhos curriculares próprios à formação de profissionais do magistério para atendimento da Educação Profissional e Tecnológica, Educação de Jovens e Adultos, Educação Especial, Educação do Campo, de povos indígenas e de comunidades remanescentes de quilombos.

(BRASIL, 2016)

Esses são apenas alguns exemplos para ilustrar a criação e institucionalização das escolas do campo. Nesse ínterim, além de recursos humanos e diretrizes técnicas, foram criadas escolas no meio rural.

A criação da Escola São Tomé foi uma conquista efetivada no bojo da luta pela educação no e do campo encabeçada pelos movimentos sociais rurais. As mobilizações políticas e as posteriores incorporações do projeto de Educação do Campo por setores do Estado foram os elementos que permitiram a construção de algumas escolas no contexto em questão. Todavia, diante de problemas como falta de estrutura adequada, dificuldade em estabelecer um projeto de escola tendo a realidade rural e seus sujeitos como alicerce e ausência de diálogo permanente e democrático entre entidades políticas e as comunidades do campo, algumas escolas rurais passaram a ser fechadas e seus alunos concentrados em uma única escola localizada numa comunidade ou localidade nuclear.

No Pará, a nucleação teve como prática a desativação de algumas escolas durante um quinquênio e, em seguida, seu fechamento. No ensino fundamental, houve deslocamento de alunos das redes municipais e estaduais de ensino das escolas rurais que estavam localizadas em comunidades com baixo índice de matrículas ou de difícil acesso para as comunidades vizinhas. O processo é similar na segunda parte do ensino fundamental. Em alguns casos, alunos do campo foram para escolas localizadas em centros urbanos e, desse modo, foi gerada a “nucleação escolar que centralizaria as escolas em áreas urbanas, criando uma concentração educacional urbana” (RODRIGUES et al., 2017, p. 709).

Segundo o Parecer CNE/CEB nº 23/2007 (BRASIL, 2007, p. 6), foram apresentados os seguintes argumentos para justificar o fechamento de escolas: “baixa densidade populacional determinando a sala multisseriada e a unidocência; facilitação da coordenação pedagógica; racionalização da gestão e dos serviços escolares; e melhoria da qualidade da aprendizagem”.

3 Críticas ao fechamento de escolas e ao processo de nucleação

Se por um lado são apresentados os argumentos referidos acerca da defesa do fechamento de escolas do campo, por outro existem críticas a tal ação, dentre as quais: “o deslocamento das crianças e jovens das suas comunidades desvincula-os da sua vivência e cultura local, atribuindo novos valores, negando sua identidade, passando-se a não considerar a comunidade como possibilidade de vida” (RODRIGUES et al., 2017, p. 709-710). Nessa mesma linha, Arroyo (2006, p. 114) afirma que o deslocamento dos sujeitos do campo para outro território em busca de ensino institucional prejudica um dos princípios fundamentais das escolas do campo, uma vez que

a escola do campo, o sistema educativo do campo se afirmará na medida em que se entrelaçarem com a própria organização dos povos do campo, com as relações de proximidade inerentes à produção camponesa – vizinhança, as famílias, os grupos, enraizar-se e aproximar as formas de vida centrada no grupo, na articulação entre as formas de produzir a vida.

De forma complementar, Caldart (2005, p. 116) faz a seguinte crítica ao deslocamento dos jovens de seu território de origem:

toda vez que uma escola desconhece e ou desrespeita a história de seus educandos, toda vez que se desvincula da realidade dos que deveriam ser seus sujeitos, não os reconhecendo como tais, ela escolhe ajudar a desenraizar e a fixar seus educandos num presente sem laços.

Gonçalves (2010) critica a política de nucleação por contribuir para a perda de identidade territorial e promover um modelo educacional divergente da realidade que os estudantes vivenciavam: “Indica-se também que a política de nucleação contribui ao desenraizamento cultural dos alunos do campo, tanto por deslocá-los para longe da comunidade de origem, como por oferecer um modelo de educação urbano, alheio ao seu cotidiano”. Para Molina e Antunes-Rocha (2014), o fechamento de escolas no campo de menor porte torna mais difícil o acesso dos estudantes à educação por conta da distância, e ainda contribui para a expansão da nucleação escolar nas comunidades.

De forma complementar, a nucleação escolar contribui para o processo de desterritorialização dos educandos das comunidades e de suas famílias, uma vez que têm que se deslocar para outras localidades e, desse modo, viver todo o conjunto de relações que envolvem o universo escolar num outro território exterior ao seu. Tal condição cria percalços no fortalecimento de uma relação de identidade entre os sujeitos e seu respectivo território de origem.

Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, de 2000 a 2018 mais de 100 mil escolas foram fechadas no Brasil (DIAS, 2019). Deste total, 7.513 foram no Pará, sendo a maioria estabelecimentos rurais (6.158). Além disso, a pesquisa identificou Breves como o terceiro município do Pará que mais fechou escolas nos anos analisados (DIAS, 2019).

Diante desse fenômeno, os discentes que enfrentaram o fechamento de escolas em sua comunidade tiveram que se reterritorializar em outra localidade, interferindo na relação da sua identidade com seu território de origem.

Poucos estabelecimentos educacionais dentro das comunidades tradicionais resistiram à nucleação escolar no contexto rural marajoara. Contudo, mesmo com todos esses entraves, algumas comunidades resistiram a tal processo.

A seguir serão apresentados alguns elementos que puderam contribuir para a compreensão do não fechamento da Escola São Tomé e dos processos políticos e territoriais que estiveram por trás da resistência dos comunitários. Ainda que se trate de um caso particular, ela deve ser compreendida no contexto desse processo político realizado pelo Estado.

4 Pressupostos teóricos e metodológicos

Uma das poucas escolas que resistiram ao processo de nucleação foi a Emefi São Tomé, localizada numa comunidade homônima na região do município de Breves, arquipélago do Marajó, Pará. No sentido de compreender alguns dos elementos que contribuíram para o não fechamento da escola em questão, foi realizada uma análise de informações coletadas por discentes graduandos do curso de Licenciatura em Educação do Campo do IFPA, Câmpus Breves. Boa parte dessas informações foi coletada em diálogo com os comunitários e com o líder da comunidade através de observação participante e de desdobramentos das respostas dos questionários. Sete alunos foram responsáveis por analisar a Comunidade São Tomé. Formaram-se dois grupos de dois alunos e um terceiro de três que se dividiram com a tarefa de entrevistar o maior número possível de famílias. Não foi possível entrevistar todas, diante da dificuldade de locomoção entre as residências, já que algumas são bem afastadas do centro comunitário. As observações foram realizadas durante o tempo comunidade e analisadas posteriormente junto ao orientador do grupo no tempo acadêmico.

Para chegar à comunidade, saindo da cidade de Breves, o trajeto de 21 km leva, em média, duas horas utilizando-se motocicleta, dadas as condições da estrada que liga tais localidades.

Fonte: Essia de Paula Romão (2019).

Figura 1 Comunidade São Tomé. 

A Comunidade São Tomé abrange aproximadamente 50 famílias. Desse total, os graduandos envolvidos entrevistaram 31. A amostragem da pesquisa foi dividida de duas formas: seletiva e aleatória. Além da observação participante e da aplicação de questionários, foram feitas fotografias, gravações de áudio e registros escritos. Os dados obtidos não foram utilizados exclusivamente para este trabalho, mas sim para um levantamento de dados gerais sobre a comunidade, tais como aspectos históricos, econômicos, políticos, sanitários, ambientais, produtivos e culturais. A finalidade central era fazer um diagnóstico geral. Portanto, o objeto deste trabalho foi analisado, também, através de parte deste diagnóstico.

Para essa atividade foi formulado questionário com perguntas abertas e fechadas. Dentre as informações gerais, foi possível identificar as relações de território, territorialidade e identidade na comunidade que tiveram peso na luta pela permanência da Escola São Tomé, que serão mencionadas adiante.

Sobre o fechamento de escolas na região e o consequente processo de nucleação, foi observado que, ao longo da estrada PA-159 e suas vicinais, existiam um total de seis escolas de ensino básico. Diante desse dado, foram questionadas as razões particulares para a Emefi São Tomé ter sido a única não fechada. Para responder a tais indagações, além das informações coletadas, foram utilizados referenciais teóricos acerca da identidade territorial e mobilização social no sentido de compreender a resistência dos comunitários de São Tomé diante da tentativa de fechamento da escola na localidade em questão.

A tentativa de fechamento ocorreu de forma problemática, pois não houve, segundo os entrevistados, um diálogo que explicasse os motivos plausíveis para tanto. Desse modo, foram violados fundamentos legais que amparam as diretrizes sobre o fechamento de escolas. De acordo com a Lei nº 12.960/2014, para fechar qualquer escola do campo em nome da nucleação é preciso haver uma justificativa, manifestação da comunidade local e um diagnóstico dos impactos do fechamento na localidade (BRASIL, 2014).

Segundo os entrevistados, a comunidade buscou entender o contexto do fechamento das escolas e, diante disso, manifestou-se contra tal processo, já que a maneira como estava sendo conduzido feria os princípios de diagnóstico e diálogo mencionados. Os moradores afirmaram que a união da comunidade para lutar contra o processo de nucleação se estabeleceu sobretudo pela noção e prática de pertencimento dos alunos ao seu local de origem, além da questão de que as escolas urbanas do município de Breves não atenderiam às necessidades da dinâmica territorial da comunidade. Portanto, percebeu-se a importância da relação identitária dos membros da comunidade com seu território, levando em consideração a sua peculiaridade. Tal identidade territorial, deste modo, foi elemento fundamental no processo de mobilização social de resistência, como será visto adiante.

O território é produto de diversos elementos. Não é permanente. Embora se assente sobre permanências relativas, nas quais se estabelece o cotidiano através de relações econômicas, políticas, religiosas, simbólicas, segurança física e afetiva, dentre outras, sua constituição e manifestações passam por mudanças. O processo de territorialização está em contínuo processo de transformação, marcado pelas relações de caráter social. Contudo, a constituição do território só é possível mediante uma relação entre mudança e permanência. O que muda é a correlação de forças e elementos envolvidos nessa aparente dicotomia entre o tradicional e o novo. Segundo Raffestin (1993), o território é composto das diversas camadas de sociedade, além de ser transformado pela vivência cotidiana, por relações políticas e laços afetivos das pessoas que o possuem. Se esses elementos que compõem o território forem sendo enfraquecidos, os laços sociais e culturais podem, portanto, enfraquecer a dinâmica do NÓS enquanto unidade identitária.

Nesse contexto, é importante associar as informações mencionadas com o conceito de identidade na construção da territorialidade, pois a identidade territorial se constitui através do abstrato (símbolos, rituais, memórias e afetividades) e do concreto (apropriação do espaço, práticas ativas e manejo do território). Conforme Haesbaert (1999, p. 172), “a identidade territorial é uma identidade social definida fundamentalmente através do território, ou seja, dentro de uma relação de apropriação que se dá tanto no campo das ideias quanto no da realidade concreta”.

Logo, nas comunidades tradicionais é preciso observar as manifestações identitárias na particularidade do seu território através dos seus moradores e dos locais onde realizam seu conjunto de relações sociais. Para Borges e Cavalcante Junior (2010), a identidade é resultado de um processo de construção que se vale do reconhecimento de uma dimensão originária comum, ou de elementos que são partilhados entre pessoas e/ou grupos. Também se constitui baseada num mesmo ideal ou ideais que vão sendo constituídos no interior das relações existentes entre seus membros e seu respectivo território.

Quanto ao conjunto de elementos que compõem o processo identitário que se realiza no interior de uma comunidade, a mobilização política é um dos componentes que estabelecem uma relação dialética com o princípio de identidade. Ao mesmo tempo em que tal mobilização é fruto de uma identidade, contribui para a sua consolidação, na medida em que fortalece laços de caráter político e ajuda a construir a história do grupo. A mobilização se constitui por meio de um processo de politização das relações sociais. Com isso, pode-se afirmar que “o político deve ser tomado como o espaço do antagonismo e, como tal, constituinte da diferenciação identitária dos sujeitos coletivos” (PRADO, 2002, p. 65). Essa coletividade só pode existir a partir de um vínculo social e do reconhecimento de um NÓS. É preciso que haja uma ação tácita de incorporação do princípio de unidade. No caso da pesquisa aqui tratada, trata-se do NÓS da Comunidade São Tomé. Desse modo, a identidade territorial que se realiza através dessa noção de unidade também permite reforçar os elos sociais entre seus pares e, dessa forma, cria efeitos políticos, já que o vínculo criado por tal processo pode se desdobrar na coletivização das demandas e das lutas sociais dos envolvidos.

Este trabalho parte do pressuposto de que “a mobilização social é um processo de desenvolvimento de condições materiais, psicossociais e políticas que são necessárias para a constituição de ações coletivas” (PRADO, 2002, p. 60). Sobre a relação identidade-sujeito(s), a noção de pertencimento e de unidade tem uma dinâmica de caráter social-psíquico. Não é possível haver identidade sem que haja símbolos, valores, elementos compartilhados socialmente ao mesmo tempo em que cada indivíduo incorpora esses elementos em sua individualidade, e o seu “eu”1 acaba por se constituir a partir desses referenciais e, desse modo, parte significativa da sua individualidade se estabelece na relação com seus pares. Além disso, a prática e a sensação de pertencimento cooperam para o estabelecimento de relações afetivas que podem contribuir para o fortalecimento de laços fundamentais para ações coletivas organizadas em torno de objetivos comuns, uma vez que contribui para a dinâmica da unidade.

Ainda quanto aos aspectos psicossociais que fazem parte do processo de mobilização social, podem ser mencionados os seguintes: a identidade coletiva (MELUCCI, 1996), o estabelecimento do contorno de fronteiras políticas (HOWARTH; STAVRAKAKIS, 2000) e a passagem das relações de subordinação em relações de opressão (LACLAU; MOUFFE, 1985).

A constituição da identidade coletiva se dá a partir do desenvolvimento da noção de pertencimento e passa a ter potência política quando o grupo detecta demandas e necessidades comuns, fazendo com que essa percepção de unidade passe a ser um elemento catalisador para a ação política. Como a identidade tem como componente fundante da sua dinâmica o princípio de alteridade, a existência de um NÓS depende, concomitantemente, da existência de um OUTRO.2 Aliado a isso, são necessários uma narrativa e ideários políticos que permeiem e orientem as ações dos sujeitos políticos.

Contudo, o tipo de relação estabelecida entre o NÓS e o(s) OUTRO(s) depende do tipo de correlação estabelecida entre tais. A partir dessa demarcação política que condiciona a noção de unidade do grupo diante daquilo que é externo, os OUTROS, estes podem ou não ser reconhecidos como obstáculo ou possíveis parceiros diante do NÓS. Exemplo: potencialmente, quando várias comunidades apresentam demandas em comum, pode ser que esses OUTROS sejam encarados como prováveis aliados a partir de um possível alargamento mobilizador intergrupal, envolvendo um maior número de integrantes numa ação política ampla. Nesse caso, trata-se de uma correlação por aquiescência. Por outro lado, os defensores do fechamento de escolas e da consequente nucleação política, por exemplo, podem ser vistos como OUTROS numa correlação de antagonismo diante dos interesses de comunidades rurais que se articulam para o não fechamento de suas respectivas escolas. Os críticos, então, se tornam figuras que personificam uma espécie de opressão. Nesse caso, como boa parte de tais figuras está presente no interior das instituições políticas, os comunitários podem enxergar nesses representantes uma espécie de fração do Estado à qual estão subordinados no sentido de correlação de forças. Essa dinâmica caracterizou o posicionamento da Comunidade São Tomé no processo de demarcação das fronteiras políticas em relação à nucleação.

Por fim, essa correlação antagônica pode levar à passagem do estado de subordinação para o de percepção de opressão e, desse modo, desencadear uma luta contra tal estado, caso existam condições e cenário político social para tanto. Entretanto, não é correto afirmar que essa passagem entre a formação da identidade coletiva, o estabelecimento do contorno de fronteiras políticas, a transformação das relações de subordinação em relações de opressão e, por fim, uma possível mobilização política ocorre a partir de um processo teleológico. Pelo contrário, cada uma das ações coletivas tem suas peculiaridades, percalços e contradições. Depende de uma série de fatores que podem ser detectados a partir da pesquisa mais aprofundada de cada caso.

Outro ponto que merece atenção é o fato de que é necessário contextualizar as ações políticas no interior de uma continuidade histórica, em que existe a expansão de valores democráticos por meio do avanço da noção de igualdade e liberdade. Quando se nega um suposto teleologismo em processos de mobilização política, entende-se que esses precisam ser encarados como fenômenos que se desdobram a partir de uma série de articulações e contradições que não podem ser apontadas antecipadamente (LACLAU; MOUFFE, 1985). Segundo Prado (2002, p. 65), “enquanto tais, [esses processos] não podem ser tidos como modelos de interpretação de atores únicos ou portadores de processos emancipatórios previamente estabelecidos”.

Além dos pressupostos mencionados, pode-se, de forma complementar, demarcar dois momentos da mobilização política. O primeiro, que já foi indicado, consiste na luta pela conquista de determinadas demandas e na passagem da opressão para a mobilização propriamente dita. Exemplo disso foi a luta dos movimentos sociais rurais por um projeto de educação no campo e voltado para o campo e seus respectivos sujeitos e demandas sociais, culturais, econômicas e políticas específicas (CALDART, 2009). Outro momento da mobilização política é a luta pela permanência de uma determinada conquista quando esta se torna ameaçada. Numa situação em que surgem riscos para a permanência de algo entendido como uma conquista, pode haver ações de resistência. O que muda entre as duas é o momento da ação política: o momento da luta e conquista de uma demanda e o momento da permanência e resistência.

5 Resultados e discussões: a resistência da Emefi São Tomé

Os pressupostos teóricos e analíticos modelos mencionados anteriormente tratam de uma dimensão mais geral como pano de fundo teórico para pensar o caso da Comunidade São Tomé diante da possibilidade de fechamento da escola homônima. O que segue são resultados da análise particular da relação entre a mobilização social contra o fechamento da escola e a identidade territorial.

A luta da comunidade tem como pressuposto que existem agentes externos que são obstáculos aos interesses da unidade. Portanto, a questão da identidade, demarcação das fronteiras políticas e passagem da subordinação para a opressão e dessa para a mobilização é observável no objeto analisado por este trabalho, mas carrega sua particularidade.

Ao analisar a peculiaridade da mobilização ocorrida na Comunidade São Tomé, percebeu-se que a identidade territorial teve um peso importante na particularidade da passagem do problema à ação política de oposição e resistência ao fechamento da nucleação. Os comunitários resistiram ao fechamento permanecendo firmes pela sua escola. Um dos pontos indicados pelos comunitários foi que não houve um amplo processo de diálogo com as instituições públicas responsáveis pelo estudo e realização da nucleação. Diante disso, interferências externas passaram a ser entendidas como ações dos OUTROS em detrimento do NÓS no processo que permeia os pressupostos da identidade comunitária numa correlação, a princípio, de subordinação, já que as políticas educacionais são planejadas e executadas pelo Estado.

Ao detectar que as ações e decisões vindas “de cima” correspondiam a uma prática que prejudicava o interesse da comunidade, os sujeitos da subordinação passaram, então, para a condição de sujeitos da opressão. Esse é momento da demarcação da fronteira política. Desse modo, os desígnios externos não foram encarados como legítimos pelos moradores, que passaram a se reconhecer como unidade no processo de mobilização social para o não fechamento da escola. Contudo, é importante sublinhar a importância dos atores políticos internos da comunidade. A postura dos dirigentes, aliada à dinâmica mobilizadora interna, pode se tornar um elemento potencializador e aglutinador para a unidade da ação política da comunidade. No caso de São Tomé, a luta pela não nucleação recebeu atenção especial do dirigente, que, partindo da noção de identidade territorial, afirmou o seguinte em relação à resistência dos comunitários:

Já perdemos a primeira escola que era pra ser construída na comunidade, que foi levada para a Aprocotane.3 Não fizemos nada para impedir isso. Quando vieram fechar a nossa escola, não aceitamos, pois a gente já tinha perdido a escola que ia ser construída na comunidade. Como a distância da escola-polo para a comunidade é grande, não aceitamos que nossas crianças andassem toda essa distância para estudar. (Dirigente, em entrevista)

Ao se tornar objeto de luta, a permanência da escola tornou-se elemento que acabou reforçando os laços entre os moradores, visto que as lutas coletivas e políticas em torno de um objetivo comum contribuem para o elo entre os sujeitos envolvidos e que compõem o mesmo lado dessa ação. Este elo acabou ajudando a compor aproximações entre sujeitos-identitários e seu respectivo território da Comunidade São Tomé, como é possível notar na fala do dirigente da comunidade no momento da pesquisa.

Quando se trata das comunidades rurais do arquipélago do Marajó, o aspecto “território” tem um peso peculiar na constituição da sua identidade. O cotidiano dos seus membros é organizado em torno da lógica natural desdobrada pela relação homem-campo. Como as relações econômicas e de produção dependem em grande medida dos recursos naturais presentes no interior da própria comunidade, o elo que estes estabelecem com o território tem uma especificidade. Embora a comunidade tenha gerador elétrico a combustão, a lógica de organização do tempo é determinada pelo nascer e pôr do sol com muito mais intensidade do que num meio urbano. As relações econômicas e produtivas estão atreladas às variações climáticas, o que, consequentemente, tem impacto direto na vida dos sujeitos do campo e também num modelo de escola e ensino adequados a tal contexto. As dificuldades que as comunidades do campo enfrentam estão ligadas à periferização dos territórios em relação ao território urbanocêntrico. Essa característica faz com que suas preocupações e demandas políticas estejam atreladas às peculiaridades do território camponês.

Nessa perspectiva, nota-se que a postura da Comunidade São Tomé foi balizada pela identidade e territorialidade como elementos que contribuíram para suas lutas político-sociais, como foi o caso da luta contra o fechamento da escola. A identidade desses sujeitos que vivem no/do campo é permeada pelas relações que estabelecem entre si e com o território (MESQUITA; ALMEIDA, 2017).

Outro ponto a ser destacado é a fala de duas pessoas que estavam próximas ao líder da comunidade, salientando a importância de as crianças serem educadas e ambientadas no território da comunidade em questão para que elas sejam capazes de dar continuidade ao que a comunidade havia conquistado. É possível notar que a noção de permanência de uma identidade depende, em grande medida, da relação geracional, como no caso da comunidade rural objeto deste artigo. Essa relação não se realiza somente a partir da ligação parental, mas do contexto de desenvolvimento dos seres-sujeitos que permitem a herança territorial, bem como sua manutenção e todo o universo físico, simbólico, objetivo e subjetivo. Sendo o processo educacional um elemento importante no desenvolvimento de identidade desses seres-sujeitos, é possível afirmar que a existência de uma instituição de ensino no e para o contexto territorial em questão, como é o caso da Emefi São Tomé, tem peso significativo no fortalecimento da identidade territorial no campo das relações geracionais daqueles que frequentam tais instituições. Esse caráter de fortalecimento geracional é reforçado quando o Projeto Político-Pedagógico da escola é construído a partir da história da comunidade e da preocupação em alinhar as ações educacionais com o lugar de origem dos discentes; afinal, o território é objeto de herança objetiva e subjetiva entre os comunitários. O fechamento da escola prejudicaria tal dinâmica.

Pode-se perguntar: de que outras formas a escola São Tomé, assim como outras, contribui para o fortalecimento da identidade territorial dos sujeitos nela presentes? Quanto a isso, além da questão geracional mencionada, podem ser feitas algumas contribuições. A escola é uma instituição que envolve uma quantidade significativa de relações. Além da principal, que é compartilhar conhecimentos de caráter científico, artístico e cultural, nela se estabelecem relações afetivas, simbólicas, de confronto, desdobramentos de relações e ações coletivas, visto que os alunos continuam a se relacionar a partir do ato de frequentar a escola mesmo depois de saírem do seu interior.

Percorrer o caminho entre a moradia e a escola é uma forma de se apropriar do lugar, portanto, da dinâmica territorial. Os discentes responsáveis pela pesquisa em questão notaram durante a observação participante que o trânsito de pessoas no interior da comunidade envolve a familiarização cotidiana da relação homem-meio, entre si e entre os sujeitos que os alunos e profissionais do ensino estabelecem no percurso. Afinal, os trajetos e as relações envolvidas são partes constituintes do “caminho para a escola” que se realiza no interior de um território.

As aglomerações de alunos ao redor da escola no período anterior à aula ou após o término do horário letivo, assim como as festas e eventos comumente organizados no interior da Comunidade São Tomé que são realizados no espaço da escola se desdobram numa relação recreativa, cultural, e que, consequentemente, contribuiu e contribui para a apropriação afetiva dos indivíduos em relação ao “seu lugar”, parte significativa da constituição do território. Esportes, festas típicas, reuniões de pais, entre outras atividades, formam um conjunto de relações que fortalece o elo entre alunos, pais, profissionais da educação e população diante da territorialidade. Outro ponto a ser destacado é o conjunto de atividades econômicas envolvidas nesse movimento e na permanência de alunos com a venda de produtos alimentícios e materiais escolares, entre outros. Ou seja, os caminhos dos sujeitos envolvidos nos percursos e na permanência escolar no interior da localidade são elementos que compõem a identidade territorial da Comunidade São Tomé.

Ainda a partir da observação dos pesquisadores, foi possível conceber que a relação de pertencimento dos comunitários com seu território e seus pares se estabelece a partir de uma série de elementos. Como exemplo, podem ser mencionadas as relações econômicas (local de trabalho, lugar de compra e venda), simbólicas (religiosas, crenças, valores), afetivas (familiares, relacionamentos afetivos e passionais), a dinâmica da configuração geográfica dos lugares (casa, igreja, mercado, bar, escola, cooperativa e os caminhos que conectam tais localidades) e componentes intelectuais (aprendizado pela herança, familiar, cultural e ensino de forma institucionalizada em escolas). Nesse último caso, percebe-se que a instituição de ensino, por estar localizada no interior da comunidade, permite que o aluno e profissionais envolvidos fortaleçam o vínculo com a escola do “meu lugar, nosso lugar”. Se uma das ações mencionadas (econômicas, simbólicas, afetivas, geográficas e intelectuais) deixar de ser realizada no interior da comunidade onde residem os envolvidos, há a redução de um conjunto de relações que se desdobram no interior de um território, o que, desse modo, pode contribuir para o enfraquecimento da identidade territorial no âmbito de sua comunidade. Isso foi identificado pelos moradores da Comunidade São Tomé a partir de uma dimensão objetiva.

Outro elemento percebido foi que a prática de encontros no principal centro religioso teve um aspecto importante na articulação política dos moradores da Comunidade São Tomé quanto à luta contra o fechamento da escola. Isso se deu pelo fato de tal dinâmica possibilitar a reunião dos comunitários num mesmo espaço físico que permitisse o diálogo de elementos extrarreligiosos nos períodos anteriores e posteriores ao culto religioso. Assim, a relação religiosa e a forma como sua dinâmica territorial aglutinadora é conduzida contribuiu de forma indireta para essa resistência por possuir grande influência na localidade e se estabelecer como um dos elementos essenciais na construção da identidade territorial. A dinâmica de irmandade e a proximidade permitida na comunidade possibilita que a concentração dos comunitários num espaço comum-religioso exerça um papel dinâmico para a mobilização social, dada a sua capacidade de concentração e, potencialmente, mobilização política. Afinal, a “expressão da condição humana ou das relações humanas no cotidiano” (TONACO, [20--], p. 3) passa pelas organizações religiosas e, “Nesse sentido, as práticas religiosas e os símbolos delineiam o território religioso e suas territorialidades. Cada comunidade religiosa possui um modo de construir representações, bem como um modo de eleger e apropriar-se de símbolos” (TONACO, [20--], p. 20). Tonaco ([20--], p. 3) afirma que,

desse modo, reconhecemos que o território religioso se desenvolve a partir de experiências expressivas, pois a experiência territorial das religiosidades é uma projeção de vivências, isto é, é uma expressão da condição humana ou das relações humanas no cotidiano.

Diante disso, observou-se que a concentração comunitária em decorrência da prática religiosa no interior da Comunidade São Tomé, além de ser uma das protagonistas na formação da localidade, contribui para o fortalecimento da relação de identidade entre os moradores da comunidade e, consequentemente, reverberou na luta pela permanência da Escola São Tomé. O relato dos moradores de que a mobilização de resistência para o não fechamento da escola ocorreu após os cultos religiosos permite revelar que a religiosidade tem um desdobramento extrarreligioso, por ser um dos epicentros da presença dos comunitários. Aliás, os centros religiosos em comunidades do interior do Marajó têm um papel fundamental na criação da unidade comunitária, no estabelecimento da noção do NÓS. Não é sem motivo que boa parte delas tenha nomes de figuras religiosas e que, tradicionalmente, parcela considerável da população se encontre e estabeleça contato a partir das relações permitidas e desencadeadas pela dinâmica social-religiosa. Outro aspecto que demonstra isso é que boa parte das reuniões que tratam de mobilização política ou econômica é organizada em salões da principal sede religiosa da comunidade. Isso pôde ser observado na Comunidade São Tomé quanto à resistência contra o fechamento da escola em questão.

6 Considerações finais

A mobilização da comunidade só foi possível através do reconhecimento de sua particularidade territorial, assim como a dinâmica das relações nela desencadeadas. A condição de subordinação transformada em opressão a ser combatida só foi possível porque a proximidade do território comunitário possibilitou a articulação dos seus membros. Como a totalidade dos moradores e a própria dinâmica social da comunidade sofreriam as consequências do fechamento da escola, o problema gerou uma espécie de força unificadora. O sofrimento compartilhado se tornou um estímulo para a ação política. A prática de encontros nos cultos religiosos contribuiu, por seu turno, para a congregação extrarreligiosa dos moradores. Isso revela que a dinâmica religiosa na comunidade, comum em territórios como o da Comunidade São Tomé, foi importante para o projeto mobilizador. Também é preciso destacar a importância do líder da comunidade nesse processo, visto seu esforço em organizar e articular a comunidade em torno do não fechamento da escola.

A luta dos comunitários para a permanência da escola não se concretizaria sem os alicerces que constituíram a sua resistência, e esses mesmos elementos ainda contribuem para as novas lutas da comunidade. Se por um lado o processo de identidade territorial contribuiu para a mobilização pelo não fechamento, ao conquistar a permanência da escola os elos identitários se fortalecem diante de dois aspectos. No primeiro, a noção de unidade política para e pela mobilização é fortalecida, afinal, tal processo é um elemento de vínculo político entre seus envolvidos e, desse modo, fortalece os laços sociais. O segundo aspecto é que a permanência da escola permite que as novas gerações, sujeitos da comunidade, constituam parte de seu desenvolvimento intelectual e político no interior de sua própria comunidade e, assim, passam a construir sua identidade atrelada ao seu território de origem, fortalecendo as relações comunitárias. Esse fortalecimento faz com que o processo de identidade se volte aos comunitários já num novo patamar. Daí a afirmação feita no início deste trabalho acerca da relação dialética entre identidade > mobilização social de resistência > identidade.

Portanto, é possível observar que a Comunidade São Tomé reafirmou a ligação com seu lugar impondo a sua territorialidade através da mobilização tratada neste trabalho. Seus membros, ao resistirem ao processo de fechamento da Emefi São Tomé, fortaleceram a presença da escola enquanto símbolo de territorialidade.

1O “eu” aqui é pensando na unidade psíquica inconsciente/consciente.

2Os termos “OUTROS” e “NÓS”, quando grafados dessa maneira, correspondem aos sujeitos do processo de alteridade que compõem o processo de identidade.

3Aprocotane é uma comunidade localizada na região de abrangência da São Tomé.

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Recebido: 31 de Agosto de 2020; Revisado: 23 de Outubro de 2021; Aceito: 26 de Outubro de 2021

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