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Educação: Teoria e Prática

versão impressa ISSN 1993-2010versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.32 no.65 Rio Claro  2022

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v32.n.65.s15729 

Artigos

Compreensão e perspectivas de pesquisadores acerca do ensino de filosofia no ensino médio

Understanding and perspectives of researchers about teaching philosophy in high school

Comprensión y perspectivas de investigadores sobre la enseñanza de la filosofía en la educación secundaria

Fábio Antonio Gabriel1 
http://orcid.org/0000-0002-4990-4102

Ana Lúcia Pereira2 
http://orcid.org/0000-0003-0970-260X

Ademir Aparecido Pinhelli Mendes3 
http://orcid.org/0000-0003-4929-9544

1Secretaria de Educação do Estado do Paraná: Colégio Estadual Rio Branco, Santo Antonio da Platina, Paraná – Brasil. E-mail: fabioantoniogabriel@gmail.com.

2Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, Paraná – Brasil. E-mail: ana.lucia.pereira.173@gmail.com.

3Secretaria de Educação do Estado do Paraná, Curitiba, Paraná – Brasil. E-mail: pinhellimendes@gmail.com


Resumo

Neste artigo, o objetivo foi investigar o entendimento e as perspectivas de pesquisadores acerca do ensino de filosofia. A pesquisa, de natureza qualitativa, bem como os dados analisados, origina-se de entrevistas realizadas com sete professores pesquisadores e publicadas na revista Filosofia: Ciência & Vida, da Editora Escala. Para analisar as falas desses professores pesquisadores, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo de Bardin, da qual emergiram três categorias: trajetória da disciplina de filosofia; metodologia do ensino de filosofia; e contribuições do ensino de filosofia no ensino médio. Os resultados apontam que a filosofia, como disciplina integrante do currículo das escolas de ensino médio, oscila, ao longo do tempo, entre permanências e ausências, e que a sua presença em 2020, diante da reforma decretada pela Lei nº 13.415/2017, vê-se condenada à exclusão. Assim sendo, é fundamental pensar em formas de resistência para a permanência da disciplina de filosofia no contexto educacional.

Palavras-chave Metodologia do ensino de filosofia; Entrevistas com professores de filosofia; Reforma do Ensino Médio

Abstract

This paper sought to investigate the understanding and perspectives of researchers about teaching Philosophy. It consists of a qualitative research conducted with data collected by means of interviews with seven research professors published in the journal Filosofia: Ciência & Vida, by Editora Escala. Data were interpreted in the light of Bardin’s (2016) content analysis, resulting in three categories: Philosophy trajectory; Philosophy teaching methodology; and contributions of Philosophy in high school. As an integral part of the high school curriculum, Philosophy fluctuates between permanence and absence. Moreover, the reform instituted by Law no. 13,415/2017 has condemned the subject to exclusion. These findings indicate the need for about forms of resistance for the permanence of Philosophy in the educational context.

Keywords Philosophy teaching methodology; Interviews with philosophy professors; High school reform

Resumen

En este artículo se propone investigar el entendimiento y las perspectivas de los investigadores sobre la enseñanza de la filosofía. La investigación cualitativa tuvo los datos para análisis provenientes de entrevistas sobre la enseñanza de la filosofía, las cuales se realizaron con siete profesores investigadores y se publicaron en la revista Filosofía: Ciência & Vida, de la editorial Escala. Para analizar los discursos de estos profesores investigadores se utilizó la técnica de análisis de contenido de Bardin, del cual surgieron tres categorías: trayectoria de la materia de la filosofía; metodología de la enseñanza de la filosofía; y contribuciones de la filosofía en la educación secundaria. Los resultados apuntan a que la filosofía, como parte integral del currículo de las escuelas de educación secundaria, ha oscilado a lo largo del tiempo entre permanencias y ausencias, y que su presencia, en el año 2020, ante la reforma que dispone la Ley 13.415/2017, se ve condenada a la exclusión. Así, resulta fundamental pensar en formas de resistencia para la permanencia de esta materia en el contexto educativo.

Palabras clave Metodología de la enseñanza de filosofía; Entrevistas con profesores de filosofía; Reforma de la educación secundaria

1 Introdução

A presente pesquisa justifica-se pela importância que se impõe tributar ao ensino de filosofia no ensino médio e sua relevante contribuição na compreensão das demais disciplinas, a fim de formar cidadãos críticos, pensantes, aptos para o exercício da cidadania. Desse modo, devemos avaliar o currículo como um todo e não apenas analisar as disciplinas isoladamente.

Como um pêndulo que oscila ora com sua presença, ora com sua ausência ao longo do tempo, prevalece a intermitência da disciplina em referência ao currículo. Tal oscilação se constata em decorrência de políticas públicas implantadas por governos que defendem tendências neoliberais ou de extrema direita (BALL, 2014). Assim, a presença e a ausência da filosofia no currículo demarcam um histórico da disciplina que envolve relações de poder, no sentido de que, desde a época dos jesuítas, existe, no Brasil, uma instrumentalização do ensino de filosofia. Além disso, na reforma do ensino médio, regulamentada pela Lei nº 13.415/2017 (BRASIL, 2017), percebe-se o contexto de uma desvalorização da referida disciplina que certamente impactará na formação das futuras gerações (GABRIEL, 2017).

Mesmo não sendo objeto da presente investigação, a reforma, segundo a Lei nº 13.415/2017 (BRASIL, 2017), motivada por perspectivas neoliberais, pode extinguir a disciplina de filosofia do currículo, tendo em vista que, embora, teoricamente, os alunos optem por determinados itinerários formativos, por questões estruturais as instituições escolares não dispõem de condições para tal prática, e os alunos serão obrigados a frequentar itinerários formativos não condizentes com a escolha para sua trajetória profissional.1 Assim sendo, neste artigo são analisadas as percepções de sete pesquisadores, vinculados a sete diferentes instituições brasileiras de ensino, especialistas na área de ensino de filosofia. Os referidos professores apresentam olhares diversos sobre o ensino de filosofia e o atual estágio de metodologias nessa área, principalmente para o ensino médio.

O objetivo consiste em investigar o entendimento e as perspectivas de pesquisadores acerca do ensino de filosofia, em busca de perceber as nuances de concepções concernentes à prática pedagógica nessa disciplina. Justifica-se a pesquisa pelo fato de que a filosofia, no contexto da reforma do ensino médio de 2017, sofreu uma restrição de seu âmbito de ensino.

O presente artigo está organizado da seguinte forma: inicialmente, discorremos sobre os aspectos teóricos do ensino de filosofia; na sequência, trazemos dados empíricos das entrevistas realizadas com discussões teóricas; por fim, apresentamos as considerações finais, imbuídos do desejo de que esta investigação possa contribuir com o campo do ensino de filosofia do ensino médio e para a defesa da permanência da disciplina nos currículos.

2 Aspectos teóricos do ensino de filosofia

Nesta seção, procuramos refletir sobre aspectos teóricos do ensino de filosofia que legitimam sua presença no currículo. Para Alves (2002), há ambiguidades e contradições na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996) –, que implica um contexto de formação transversal de conteúdos filosóficos para a formação para a cidadania. De acordo com Alves (2002), desde os jesuítas a disciplina esteve instrumentalizada para transmitir conhecimentos enciclopédicos, e até catequéticos, em vez de propiciar uma reflexão crítica do cotidiano. Nesse sentido, o autor afirma:

Incluir a filosofia como um componente curricular do ensino médio possibilitaria aos educandos que exercessem uma crítica radical e sistemática da própria concepção de mundo, do seu pensar, do seu modo de agir no mundo, de seus valores e sentimentos mais profundos. A leitura de textos clássicos de filosofia, a discussão dos temas abordados pelos filósofos, em especial a forma como trataram tais temas, tendem a “demolir” antigos preconceitos há muitos arraigados na consciência, depois de “absorvidos” mecânica e passivamente no ambiente social em que se vive. A crítica de si e do próprio pensamento junta-se à crítica dos problemas que a realidade apresenta, que, em última instância, é a crítica da própria sociedade, seu funcionamento, sua estrutura econômica, política, social e ideológica.

(ALVES, 2002, p. 121)

O desafio é a consolidação de tal permanência, ameaçada diante da implantação da reforma do ensino médio.2 Mendes (2017) entende que a defesa da filosofia no ensino médio depende da própria compreensão daquilo que tal conhecimento representa e do entendimento constatado diante da oferta da disciplina em referência. Contrariamente àqueles que defendem a importância da disciplina de filosofia no ensino médio, há aqueles que a entendem como um conhecimento particularmente específico, que não deveria ser ofertado nessa etapa da formação (GABRIEL, 2017; MENDES, 2017).

Contribui para uma incerteza no campo da defesa da disciplina no ensino médio a questão de que nem sempre existiram parâmetros sobre o que e como ensinar filosofia nessa modalidade de ensino (MENDES, 2017). Mendes (2017, p. 79) apresenta a crítica de que “a educação de nível médio nada mais é do que um reprodutivismo cultural do que se espera de uma elite que terá acesso ao curso superior”. Nessa perspectiva, em vez de o ensino médio trabalhar para uma emancipação intelectual, preocupa-se apenas que o estudante seja aprovado no vestibular.

Com relação à inserção da disciplina de filosofia no currículo do ensino médio, Mendes (2017) acredita que seu ensino ganhará legitimidade na medida em que os próprios professores aprofundarem reflexões sobre como ensiná-la. Existem diversas formas de compreender tal ensino. Em nossa reflexão, neste momento, apresentamos apenas duas: a visão enciclopédica de ensino de filosofia e a visão do seu ensino como experiência filosófica.

Em visão enciclopédica, a exposição linear da história da filosofia com um fim em si mesma se evidencia como um conhecimento quase vazio de contribuição para a vida atual. Não podemos prescindir da história da filosofia, mas o exagero em tal valorização conduz a um aprendizado que pode ser propedêutico no processo de filosofar, tendo em vista que se faz necessário conhecer a história da filosofia para relacionar conceitos e promover embates teóricos, mas impõe-se ir além do enciclopedismo e caminhar para uma experiência filosófica, entendida como um ensino de filosofia norteado pela própria experiência do cotidiano. O ensino de filosofia como experiência filosófica ocorre quando o estudante consegue relacionar tal ensino com a própria história de vida e procura entender como os conceitos filosóficos foram instaurados. A visão enciclopédica e esse mesmo ensino como experiência filosófica não são excludentes, mas, sim, complementares, no sentido de que o conhecimento enciclopédico contribui para uma experiência do filosofar (GABRIEL, 2017).

Gabriel, Pereira e Alves (2020) defendem a relevância de entender a aula de filosofia como laboratório conceitual – a partir do referencial teórico de Manuel Carrilho (1987) – e criação conceitual – partindo de Deleuze e Guattari (2010). Os pesquisadores discorrem a respeito da relevância da proposta de Deleuze e Guattari (2010) para um ensino de filosofia como experiência conceitual para a criação de conceitos pelos estudantes do ensino médio. Não se trata de criar conceitos de modo profissional, como filósofos stricto sensu, mas uma experiência do filosofar. Carrilho (1987), por sua vez, destaca a relevância de um entendimento da filosofia como um laboratório conceitual. O autor afirma que não existe a filosofia, mas um conjunto de filosofias, e que o ambiente da sala de aula se constitui como espaço oportuno para a vivência de experimentos conceituais, com o objetivo de que o aluno do ensino médio vivencie uma experiência do filosofar (CARRILHO, 1987).

Jardim e Oliveira (2020) evidenciam a relevância de um entendimento da filosofia como resistência à obviedade. Os autores discorrem sobre o quanto o próprio Nietzsche já denunciava, em suas obras, um ensino de filosofia estatal, cujos interesses serviam para cumprir a burocracia, distante de um ensino problematizador da existência. Nietzsche, segundo os autores, denunciou um ensino enciclopedista, determinado apenas por uma falsa erudição, mas que não levava os estudantes a filosofar realmente; pelo contrário, colocava-se em rejeição à filosofia (JARDIM; OLIVEIRA 2020).

Nessa perspectiva, sobretudo neste momento em que vivemos, entre políticas educacionais que pretendem aniquilar a filosofia, motiva-nos um movimento de resistência, com o objetivo de defender a presença da disciplina dos ataques que tem sofrido ao longo da história. Ball (2014) denuncia o quanto o neoliberalismo avança no contexto mundial, imprimindo políticas públicas neoliberais que reduzem a intervenção do Estado no processo de investimentos em educação pública, consolidando o “Estado mínimo”. Em alguns países, defende-se o pagamento de voucher e o fim da educação pública. A filosofia é, então, entendida como um conhecimento que não contribui para a formação profissional, objeto imediato do entendimento de uma educação para o mercado de trabalho. Assim, apenas os estudantes que dispõem de melhores condições sociais e que pretendem seguir carreira universitária devem estudar filosofia (GABRIEL, 2017).

Urge, conforme Mendes (2017), que aprofundemos questões sobre o que é e como ensinar filosofia, no intuito de contribuirmos para a efetivação de um espaço para a filosofia na escola. Conforme nos apontam Jardim e Oliveira (2020), somos convidados a defender um ensino de filosofia desatrelado de projetos de governo, mas amparado no exercício da emancipação humana, para que prevaleça a pluralidade de ideias e de pensamentos, a reflexão crítica e a vivência do livre pensar como forma de resistência a determinações ideológicas.

3 Metodologia, resultados e discussões

A coleta de dados resultou da análise de entrevistas publicadas na revista Filosofia: Ciência & Vida, da Editora Escala, com sete professores pesquisadores. Vergara (2012, p. 20), referindo-se à entrevista, nos ensina que:

Pode-se dizer que entrevista é uma interação verbal, uma conversa, um diálogo, uma troca de significados, um recurso para se produzir conhecimento sobre algo. Em geral, entrevistador e entrevistados não se conhecem, logo é no tempo da entrevista que estabelecem o relacionamento. Mas isso não é uma regra geral.

Segundo Brooks, Te Riele e Maguire (2017), é de capital importância a questão da observação dos aspectos éticos na pesquisa, em busca de minimizar possíveis riscos aos participantes. De acordo com as autoras, a conduta ética do pesquisador deve acompanhar todos os momentos da pesquisa, procurando respeitar a dignidade da pessoa humana. Neste caso, apesar de as entrevistas tornarem-se públicas, por não termos acesso direto aos entrevistados, optamos por identificá-los como P1, P2, P3, P4, P5, P6 e P7, cujas características são apresentadas no Quadro 1. As entrevistas ocorreram entre 2012 e 2016.

Quadro 1 Relação das entrevistas analisadas. 

Entrevistado Nome do entrevistado Atuação Título da entrevista
P1 Maria Eliane Rosa de Souza Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás “Educação como ato político”
P2 Elisete Tomazetti Universidade Federal de Santa Maria “Caminho da autonomia”
P3 José Carlos da Silva Universidade Estadual do Norte do Paraná “Como tudo começou”
P4 Pedro Gontijo Universidade de Brasília “Deleuze e a educação”
P5 Silvio Gallo Universidade Estadual de Campinas “Filosofia anarquista”
P6 Antonio Joaquim Severino Universidade Nove de Julho “Filosofia para a vida”
P7 Angela Medeiros Sandi Universidade Federal do Rio de Janeiro “Impacto profundo”

Fonte: Elaborado pelos autores, dados da pesquisa.

Quanto à metodologia, esta pesquisa é de enfoque qualitativo. Bogdan e Biklen (1994, p. 49) apresentam-nos facetas da pesquisa qualitativa, e dentre elas destacamos o “fato de que os pesquisadores qualitativos interessam-se mais pelo processo do que simplesmente pelos resultados ou produtos”.

O processamento dos dados ocorreu mediante a análise de conteúdo proposta por Bardin (2016). Para isso, efetuamos uma pré-análise dos dados, uma análise seguida da codificação das informações e finalizamos com as inferências advindas dos mesmos dados. Bardin (2016, p. 37) destaca:

A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações. Não se trata de um instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com maior rigor será um único instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações.

Para analisarmos os conteúdos das sete entrevistas realizadas com especialistas sobre o ensino de filosofia e publicadas na revista Filosofia: Ciência & Vida, realizamos as etapas da análise de conteúdo propostas por Bardin (2016), em que foi possível identificar três categorias emergentes: trajetória da disciplina de filosofia; metodologia do ensino de filosofia; contribuições do ensino de filosofia no ensino médio.

3.1 Categoria 1: trajetória da disciplina de filosofia

A filosofia nem sempre apresentou uma existência independente, mostrando-se atrelada a um projeto de liberdade de pensamento. Corremos o risco de o ensino de filosofia sujeitar-se a uma proposta de instrução para doutrinar, e não despertar o pensamento reflexivo e crítico. Nesse sentido, urge ressaltarmos a contribuição dos jesuítas para o ensino dessa disciplina que, na época, tratava-se de um ensino mais catequético do que um ensino provocador para a reflexão e o questionamento (CARRILHO, 1987; GABRIEL; PEREIRA; ALVES, 2020).

A presença da filosofia no currículo, por si só, não se coloca como uma criação conceitual e um reavaliar o valor dos valores, uma vez que pode ser instrumentalizada de modo contrário para manipular ou domesticar consciências. Gabriel, Pereira e Alves (2020) apontam que, embora a filosofia, em diversos períodos históricos, tenha se colocado a serviço de uma instrumentalização do pensamento, ela deveria, na realidade, auxiliar a formação do pensamento crítico. Carrilho (1987) disserta sobre a relevância de que a filosofia, como disciplina escolar, não tenha como objetivo apresentar doutrinas filosóficas, mas, sim, colaborar para o exercício de um laboratório conceitual por parte dos estudantes. Nesse sentido, defendemos um ensino de filosofia que, conforme os ideais do Iluminismo, contribua para que as pessoas possam exercitar a autonomia do pensamento.

Os dizeres de P3 confirmam nossa hipótese de que o ensino de filosofia pode ser utilizado de forma instrumentalizada para atingir outros objetivos e não o desenvolvimento do pensamento reflexivo:

Desde a origem, a ocupação portuguesa procurou se efetivar na terra colonial, e os Jesuítas, imbuídos da tarefa de catequizar, colaboram como meio oportuno para manter os ideais colonizantes. Ou seja, a catequese foi um meio de justificar a colonização, mesmo sendo consequência do objetivo base de expansão do cristianismo, bem como o desejo da instituição de manter os seus fiéis longe dos “perigos” do protestantismo. Embora tenha sido implantado no Brasil antes da promulgação do ratio, o primeiro curso de filosofia deu mais vitalidade ao objetivo geral da ordem de manter e ampliar o seu projeto missionário e catequético.

(P5 apudGALLO, 2013, p. 7)

Com a aprovação da LDB (BRASIL, 1996), consolidou-se uma legislação que entendia a filosofia como um meio capaz de educar para a cidadania e, posteriormente, a inserção da filosofia no currículo do ensino médio, em 2008 por força da Lei No 11.684, de 2 de junho de 2008 (BRASIL, 2008), juntamente à sociologia. No entanto, conforme P1 indicou em sua entrevista, esse respaldo legal não é irrevogável, e mudanças na legislação podem ocorrer novamente e retirar a filosofia do currículo. Vejamos o que afirma P1:

Apesar de relembrada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, que pregava a necessidade de os conhecimentos acerca da filosofia e da sociologia atuarem como base para a aquisição do conhecimento humano de qualquer área, como condição para o exercício da cidadania, apenas no final da primeira década dos anos 2000 as disciplinas em referência foram reinseridas de fato no currículo do ensino médio. Em junho de 2008, a Lei nº 11.684 torna a filosofia e a sociologia disciplinas obrigatórias nas três séries do ensino médio. Em muitos casos, no entanto, o amparo legal não tem sido suficiente para ratificar a importância dessa área do saber, sobretudo quando confrontada com áreas técnicas e de teor científico. Nesse sentido, a filosofia, como disciplina, ainda encontra barreiras para sua legitimação em instituições de ensino de nível médio.

(P1 apudSOUZA, 2014, p. 8)

O processo de implantação da reforma do ensino médio, conforme a Lei nº 13.415/2017, no Brasil (2017), parece-nos um regresso, na medida em que relativiza a importância de diversas disciplinas do currículo, mantendo apenas a língua portuguesa e a matemática como centrais. Ambas as disciplinas são essenciais, mas é necessário atentarmos para o fato de que todas as demais contribuem decisivamente para a formação do estudante, tanto quanto a língua portuguesa e a matemática.

A reforma preconizada pela Lei nº 13.415/2017 (BRASIL, 2017) traz, em seu bojo, o ideário de que o aluno dispõe de condições para escolher o próprio itinerário formativo, embora uma mesma instituição escolar se distancie, e muito, da possibilidade de oferecer tantos itinerários formativos quantas opções divergentes forem solicitadas. De fato, em cada instituição escolar um determinado itinerário formativo será oferecido ignorando-se as opções que um estudante possa requerer. Mendes (2017) contribui para reflexões, diante de afirmações acerca da importância de manifestações de resistência diante dos embates que a disciplina de filosofia vem sofrendo no currículo:

Destacamos também que a análise que situa o surgimento da filosofia no contexto grego dos mitos ajuda-nos a compreender o ensino de filosofia no contexto da educação em movimento dinâmico no território do currículo do ensino médio, etapa final da educação básica. Vimos que o currículo, por sua vez, é território no qual a filosofia precisa conquistar seu lugar, e isso envolve luta por posição epistemológica, cultural e política. Percebemos que a filosofia, como disciplina curricular, sempre enfrentou grandes dificuldades para legitimar-se como disciplina escolar, e pudemos constatar, ao longo da história da educação no Brasil, a fragilidade da legislação educacional, que tornou quase sempre inviável sua inserção no currículo por não oferecer plenas condições de ensino.

(MENDES, 2017, p. 91, grifo do autor)

Nesse sentido, a filosofia sofreu intermitências no currículo e, com a implantação do novo ensino médio, novamente se instala um esvaziamento de sua presença na formação dos alunos. Vivenciar um entendimento do ensino de filosofia como experiência filosófica, relacionada à existência, contribui, de certa maneira, para uma legitimação da disciplina, tendo em vista que aponta para um aspecto prático do cotidiano em que a compreensão filosófica pode ser utilizada.

3.2 Categoria 2: metodologia do ensino de filosofia

Mesmo diante da hipótese de que o ensino de filosofia perdure no ensino médio, somos convidados a refletir sobre metodologias que ajudem a consolidar sua presença no currículo. Nesse sentido, atribui-se a relevância da história da filosofia no ensino, sem exageros nem desvalorização, mas como meio que permita a aquisição de conhecimentos mais plena. Por um lado, quando valorizamos demais a história da filosofia, corremos o risco de tornar esse ensino apenas descritivista, sem um exercício do filosofar; por outro, se desvalorizamos a história da filosofia, corremos o risco de que o ensino se limite ao senso comum e não se problematize a existência. Nesse sentido, observamos os dizeres de P1 na entrevista:

Após o retorno formal da disciplina de filosofia ao ensino médio, estamos transitando por um momento que nos obriga ver concepções didáticas, metodologias, conteúdos, recursos pedagógicos, formas de avaliação, entre outras questões que envolvem o ensino e a aprendizagem. Talvez a diretriz mais importante neste momento seja aquela que discute o lugar da história da filosofia no ensino. Compreendo que o ensino da filosofia não pode resumir-se às extensas interpretações e exegeses a que, costumeiramente, tem se reduzido. Impõe-se, é claro, entender o lugar da história da filosofia na construção do pensamento, mas é preciso entender também que a filosofia é um exercício de questionamentos, de indagação de dúvidas acerca da realidade. Criar filosoficamente pode supor a história da filosofia como critério, mas devemos caminhar um passo além desse entendimento, por meio do embate que desconstrói o já naturalizado e que anuncia novos territórios e novas hospedagens.

(P1 apudSOUZA, 2014, p. 14)

Assim, a prática filosófica convida ao exercício do questionamento, do admirar-se o mundo e não aceitar o que o senso comum tenta impor como verdade inquestionável. É importante a fala de P1, que demonstra justamente a necessidade de que a filosofia seja problematizadora da existência. Assim, o ensino de filosofia proposto é um exercício da experiência filosófica, vista como a possibilidade de relacionar conceitos abstratos que a filosofia possibilita com o cotidiano de alunos e professores dessa disciplina.

Não existem respostas prontas para a prática filosófica e para as aulas de filosofia, conforme nos aponta P2. A própria noção de transmissibilidade da filosofia pode ser questionada, porque aquele que a ensina é convidado a filosofar inicialmente, antes de fazer que outros filosofem. O professor que se aprofunda na experiência do filosofar dispõe de mais adequadas condições de contribuir para que seus alunos também exercitem o pensar filosófico.

Indicações práticas? Não chamaria de indicações práticas, mas apenas de ideias para estarmos atentos: talvez a principal, para mim, é que o professor tem que pensar que o fato de ser professor não retira a condição de ele mesmo fazer filosofia. Não pode considerar a docência apenas como transmissão, mas também como a possibilidade de pensar filosoficamente junto com seus alunos. Segundo, considerar seus alunos aptos a aprender filosofia, a se interessarem pela filosofia, a lerem e a escreverem em perspectiva filosófica.

(P2 apudTOMAZETTI, 2014, p. 10)

Nesse contexto, parece-nos de grande importância um entendimento da filosofia como problematizadora da existência e não como um ensino meramente enciclopédico. Se voltarmos nosso olhar para a história da filosofia, percebemos que os grandes filósofos jamais repetiram o que seus mestres ensinaram; pelo contrário, é comum que os filósofos discordem de seus mestres, defendendo as próprias convicções.

Gabriel (2017) apresenta a relevância de um ensino de filosofia como experiência filosófica, no sentido de propiciar aos estudantes do ensino médio uma experiência conceitual e uma experiência de pensar sobre o valor dos próprios valores. Tal entendimento pressupõe uma problematização filosófica a respeito do próprio ensino de filosofia. O autor demonstra, em sua pesquisa, que os licenciandos que não vivenciam uma experiência filosófica tendem a ser também enciclopédicos quando passam a atuar como professores.

O exercício do filosofar não consiste em um discordar apenas por discordar, é um pensar por conceitos, na procura de relacionar a aprendizagem filosófica com a própria existência. Em última instância, não existe processo do filosofar sem um problema filosófico, pois a filosofia é vivenciada por meio de problematizações. Não podemos filosofar se não problematizarmos a existência. Os dizeres de P5 corroboram o que acabamos de afirmar:

Penso que se a filosofia é uma atividade, ela não pode ser apresentada aos estudantes como algo pronto, finalizado, acabado. Precisamos provocar o pensamento, “empurrar” os alunos para a filosofia. E podemos fazer isso os trazendo para os problemas, tornando-os sensíveis aos problemas ou tornando-nos, nós, professores, sensíveis aos problemas que eles trazem. E apresentar a filosofia como um conjunto de ferramentas conceituais que são instrumentos não para resolver esses problemas, mas para enfrentá-los, trabalhá-los, investigá-los.

(P5 apudGALLO, 2013, p. 11, grifo do autor)

Nessa perspectiva, o entrevistado propõe a integração da filosofia às demais disciplinas do currículo, não a considerar de forma isolada. Quando pensamos na importância da formação integral de estudantes, entendemos a relevância da harmonia entre as diversas disciplinas. Nesse diapasão, reiteramos que, ao desvalorizar disciplinas, a reforma do ensino médio (BRASIL, 2017) consagra um regresso, retomando, por exemplo, os ideais da educação tecnicista da Lei nº 5.692/1971 (BRASIL, 1971), que defendia unicamente um ensino voltado ao mercado de trabalho, desconsiderando que o cidadão merece uma formação integral, não ceifada de direitos, supondo, ainda, que esse estudante pode prescindir da valiosa contribuição que a filosofia oferece. Por trás dessa concepção, encontramos um ensino dualista: os mais pobres são preparados de forma aligeirada para o mercado de trabalho (mão de obra barata), e aqueles que dispõem de melhores condições financeiras são preparados para seguir carreira universitária.3 Nesse sentido, observemos os dizeres de P6:

Entendo que o ensino da filosofia no curso médio pode e deve realizar-se mediante uma atividade didático-pedagógica integrada com as demais disciplinas do currículo. Não por pura estratégia didática, mas em decorrência do próprio objetivo da formação integral dos alunos. Se o objetivo da formação filosófica é despertar os adolescentes para as dimensões fundamentais de sua existência real, quaisquer que sejam elas, a facticidade, a historicidade, a sociabilidade, a politicidade, a eticidade e a esteticidade, o ensino de filosofia precisa envolver atividades com as disciplinas que abordam essas dimensões.

(P6 apudSEVERINO, 2014, p. 9)

Obiols (2002) destaca que aprender filosofia representa um desafio, na medida em que se trata de uma disciplina conceitual. Aprendê-la consiste, sobretudo, em exercitar o pensamento de forma independente, despertando a capacidade de emitir um juízo próprio e a “desenvolver atitudes de tolerância e de discussão racional de ideias filosóficas” (OBIOLS, 2002, p. 106). A atitude crítica é fundamental para aquele que filosofa e, nesse sentido, o professor de filosofia é convidado a promover uma autocrítica dos próprios métodos de ensino, a fim de verificar as melhores metodologias a que poderia recorrer para que seus alunos exercitem a experiência do filosofar. Dito isso, passamos à terceira categoria, que aponta para as contribuições da filosofia no ensino médio, segundo os dizeres dos entrevistados.

3.3 Categoria 3: contribuições do ensino de filosofia no ensino médio

Para filosofar com a juventude, seria importante que, conforme veremos nos dizeres de P2, o estudante dispusesse, em fase inicial, de uma formação com professores habilitados a trabalhar com a juventude. Importa, assim como existem estudos na licenciatura sobre a psicologia do desenvolvimento das crianças, que houvesse também uma formação específica para se compreender a psicologia da juventude. Gabriel (2017) discute a questão da importância de que os licenciandos em filosofia já vivenciem, em sua formação, uma experiência filosófica, para que disponham de condições de mediar tal experiência no futuro exercício de sua profissão.

Estudar a juventude me ajuda a conhecer um pouco mais o aluno do curso de filosofia, prioritariamente, o aluno do ensino médio. Acredito que não dá para pensarmos o ensino da filosofia na escola atual sem termos noção das transformações que ocorrem com a juventude contemporânea. Os estudos da sociologia da juventude deveriam estar presentes na formação de qualquer futuro professor. Em relação à criança, temos essa tradição já instalada nos cursos, mas quando se trata do jovem/adolescente há ainda um completo silêncio. Em relação à contribuição da filosofia para a formação do jovem, não vou dizer nada de novo – sim, é importante, e, mais que isso, a filosofia é um direito dos jovens; eles têm o direito de entrar em contato com a tradição filosófica e com essa maneira de pensar, com a experiência de pensamento filosófica. A questão é como oferecer esse encontro, como fazer esse convite ao jovem para que ele queira conhecer a filosofia, queira filosofar.

(P2 apudTOMAZETTI, 2014, p. 10)

Por vezes, conforme nos indica P4, o próprio fracasso em algumas disciplinas é atribuído à presença da filosofia no currículo:

Na política não há conquista definitiva e, com isso, a presença da filosofia não é consolidada em todo o país. Vivemos uma época de forte pragmatismo na educação. Já vi absurdos de governos estaduais planejarem a diminuição de aulas de filosofia para aumentar as aulas de matemática ou de língua portuguesa para melhorar a posição das escolas no Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] e em outros sistemas de avaliação da educação básica. Quando vejo isso me pergunto: seria a filosofia culpada por essas notas baixas? Que imagem de filosofia está presente em gestores públicos que menosprezam a sua contribuição na formação geral e específica dos estudantes?

(P4 apudGONTIJO, 2014, p. 6)

A filosofia é uma disciplina humanizadora que muito contribui para a formação integral do ser humano. Em uma época de superespecializações, como na medicina, em que cada vez mais os profissionais se especializam, ou mesmo, na docência, em que especialistas se debruçam sobre determinados campos da ciência, a grande contribuição que a filosofia pode nos oferecer consiste em não permitir que se perca a visão de conjunto das ciências. A filosofia, como a entendemos, não é exclusividade de um grupo apenas; ela faz parte da humanidade como um todo, como afirma P6:

Assim, discutir o ensino da filosofia, no meu entender, pressupõe que tenhamos sempre presente este modo intrínseco de ser do pensar filosófico. A tarefa pedagógica relacionada com o filosofar me parece abrangente. O refletir filosófico, como o concebo, precisa atingir toda a comunidade humana, ou seja, por hipótese todos os homens deveriam estar pensando com vistas à intencionalização de suas existências. É claro que a efetiva realização desta necessidade é algo historicamente precário, dada a carência das mediações humanas disponíveis. Mas tem-se isso por horizonte quando insistimos, ainda que molecularmente, em levar de maneira pedagógica a filosofia às crianças do ensino fundamental, aos adolescentes do ensino médio e aos jovens do ensino superior, quaisquer que sejam suas opções vocacionais ou profissionais. A filosofia se dirige, então, ao todo da população e sua finalidade é formativa do humano. Não se pode ser plenamente humanizado sem a prática do pensar reflexivo, sem o seu efetivo exercício.

(P6 apudSEVERINO, 2014, p. 8)

A disciplina de filosofia é tida, muitas vezes, como uma adversária do poder, porque questiona os poderes constituídos, não no sentido de subversão, mas pressupondo questionamentos que perturbam os que desejam manter o status quo. O questionador desperta rejeições por parte daqueles que não querem ser questionados, provocados a refletir sobre o sentido mais profundo da existência. Os dizeres de P7 nos desafiam a entender essas relações de poder na sociedade:

A filosofia historicamente põe em xeque o poder, porque ela se constitui na palavra que questiona e desestabiliza o poder estabelecido. O discurso que sustenta a prática da filosofia é um discurso que desconstrói dogmas, implode-os, enquanto boa parte do poder se constitui na cristalização de certezas e na anulação do pensamento. A palavra potente, que questiona e institui a realidade social, é aquela que funda e legitima não só a filosofia, mas também a democracia. Por que a filosofia é tão vulnerável ao poder estabelecido no Brasil? Porque a democracia também o é. Uma e outra são facilmente retiradas de cena quando os governos se afirmam sobre uma legitimidade questionável. Há, no Brasil, um franco investimento na desqualificação do pensamento crítico e analítico, esvaziando-o de sua capacidade de evidenciar contradições. A filosofia oficialmente perder sua obrigatoriedade e depender de sua presença na Base Nacional Comum nos currículos é um sintoma de que a democracia declina.

(P7 apudSANTI, 2016, p. 9)

Teixeira e Horn (2017) oferecem, com base em Kant, um entendimento da filosofia como disciplina que contribui para um pensar autônomo dos sujeitos em processo de aprendizagem filosófica. Defendem um ensino de filosofia cujos pressupostos sejam um pensar por si mesmo, que conduzam a uma saída da menoridade e alcance da maioridade. Nos dizeres dos autores: “O filosofar, por sua vez, exige que se use a razão para criar, produzindo novos conhecimentos, fazendo uma análise crítica dos que já existem” (TEIXEIRA; HORN, 2017, p. 56).

4 Considerações finais

Norteados pela investigação, entendemos que historicamente a filosofia vem sofrendo ataques de movimentos que buscam a sua retirada do currículo escolar brasileiro. Não foi nossa pretensão retomar historicamente o movimento pendular da filosofia no currículo, mas apontar alguns momentos históricos em que percebemos que a filosofia foi instrumentalizada para manipular consciências.4

Conforme vimos nos dizeres dos entrevistados, a filosofia incomoda a muitos que não querem ver seu status de poder questionado. A reforma do ensino médio (BRASIL, 2017), em fase de implantação no país, demonstra, em alguns aspectos, um retorno ao viés tecnicista de se condenar os pobres a uma formação aligeirada e sem cultura clássica, justamente para que ingressem, sem questionar, no setor de mão de obra, enquanto aos mais favorecidos se permite uma formação diferenciada de seguir carreira acadêmica.

Além disso, vivemos no Brasil, por assim dizer, uma inversão de valores, tendo em vista que as instituições de ensino públicas também são continuamente atacadas, questionadas e criticadas, conforme pudemos observar nos dizeres dos entrevistados P1 e P6 – justamente a escola que se preocupa em aprimorar os conhecimentos dos alunos, daqueles que não disporiam de condições para progredir socialmente, senão via instituição pública, pois, para muitos, no Brasil, ela ainda é a maior fonte de acesso ao conhecimento. Outrossim, nesse contexto, falsos argumentos dos dirigentes políticos neste ano de 2021 são utilizados para desmerecer as instituições públicas. Entretanto, não podemos nos esquecer que, atreladas a esses movimentos, existe uma intenção perversa de acabar com o acesso ao ensino público e de qualidade, e de se promover ainda mais o aumento das desigualdades sociais em um país que já é tão desigual.5 Ball (2014) apresenta-nos que o cenário mundial caminha no sentido de um aniquilamento da educação pública, que passa a atender aos interesses das grandes corporações capitalistas que dominam o cenário internacional com propostas de políticas educacionais por meio de instituições privadas.

Muito embora a filosofia e seus filósofos tenham sido historicamente perseguidos, eles sobrevivem a tais ataques, mantendo-se a filosofia como uma disciplina questionadora e provocadora do pensamento. Pela fala dos entrevistados, foi possível constatar que a própria filosofia pode ser utilizada para uma instrumentalização ideológica daqueles que vivem no poder. Assim sendo, é fundamental pensarmos formas de resistência para a disciplina de filosofia no contexto educacional, sempre acreditando em uma sociedade que luta por menor desigualdade social e mais oportunidades para todos.

1O currículo proposto pela reforma de 2017 estabelece os seguintes itinerários: linguagem e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e formação profissional (BRASIL, 2017). Teoricamente, cada estabelecimento ofertará todos os itinerários, mas, na prática, tal oferta não ocorrerá, e a proposta defendida com o slogan de que o aluno escolherá o itinerário, na realidade, não se concretizará, uma vez que há limitações de recursos humanos e orçamentários.

2Os efeitos devastadores da reforma do ensino médio já começam a ser sentidos por todo o país com a reestruturação das matrizes curriculares e a criação de itinerários de aprendizagem que reduzem ou até extinguem a oferta de filosofia e sociologia, arte e educação física. Evidência disso é o ato da Secretaria da Educação e do Esporte do estado do Paraná, que, por meio da Instrução Normativa Conjunta nº 11/2020 – DEDUC/DPGE/SEED, reduziu, de forma arbitrária e antidemocrática, as ofertas das disciplinas de artes, filosofia e sociologia de duas para uma aula semanal em cada série do ensino médio e impôs a disciplina de educação financeira (PARANÁ, 2020).

3A esse respeito, consultar o artigo “Filosofia da práxis na constituição da hegemonia da classe trabalhadora segundo Gramsci” (GABRIEL; PEREIRA; MONTEIRO, 2020). Por analogia, a escola dual, no entendimento de Gramsci, concretiza-se em um sistema de ensino elitista que separa ricos de um lado e pobres do outro.

4Para um maior aprofundamento teórico sobre o movimento histórico de permanência e ausência da filosofia no currículo, recomendamos a leitura da obra A filosofia no ensino médio: ambiguidades e contradições na LDB (ALVES, 2002).

5Um exemplo do descaso com a questão pública educacional é a promulgação da Proposta de Emenda à Constituição nº 55 de 2016 que foi promulgada em 2017 que congelou os recursos para a educação por 20 anos BRASIL (SENADO FEDERAL, 2016).

Referências

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Recebido: 11 de Março de 2021; Revisado: 16 de Julho de 2021; Aceito: 23 de Agosto de 2021

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