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Educação: Teoria e Prática

versión impresa ISSN 1993-2010versión On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.32 no.65 Rio Claro  2022

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v32.n.65.s14928 

Artigos

A redefinição da gestão escolar a partir da concessão de bonificações docentes

Redefinition of school management based on the granting of teaching bonuses

Redefinición de la gestión escolar desde ei otorgamiento de bonificaciones docentes

Renata Cecilia Estormovski1 
http://orcid.org/0000-0001-5714-8928

Carmem Lucia Albrecht da Silveira2 
http://orcid.org/0000-0002-9411-8709

1Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul – Brasil. E-mail: renataestormovski@gmail.com.

2Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, Rio Grande do Sul – Brasil. E-mail: carme.albrecht@hotmail.com.


Resumo

Desde a década de 1990, multiplicaram-se no país instrumentos avaliativos aplicados por âmbitos externos à escola sob o argumento de mensurar sua qualidade. Estabelecendo comparações e rankings, tais ferramentas passaram a ser utilizadas para premiar ou punir professores e escolas, que tiveram o trabalho pedagógico vinculado ao sucesso ou ao fracasso nos testes aplicados. O objetivo deste estudo, nesse sentido, é analisar as alterações realizadas no plano de carreira do magistério de uma rede municipal de ensino para inserir, como ferramentas de bonificação docente, os resultados de uma avaliação discente. A partir disso, fazendo uso de uma análise documental, reflete-se sobre como a gestão da escola desvincula-se de objetivos singulares e sociais para se adaptar a demandas macrodefinidas e se tornar instrumento de reprodução de interesses economicistas. Utilizam-se como referenciais autores como Dale (2010), Thoenig (2006), Esquinsani e Dametto (2018) e Freitas (2012), que são discutidos em relação aos artefatos legais selecionados por meio da hermenêutica-dialética. Com a análise, identifica-se que, no caso em questão, o anseio do poder público em solucionar a problemática da qualidade da educação resultou em um processo avaliativo que responsabiliza os docentes, direcionando a gestão escolar para o estímulo à obtenção de recompensas profissionais individuais, contrariando preceitos democráticos.

Palavras-chave Gestão Escolar; Avaliação Externa; Bonificação Docente

Abstract

Since the 1990s, evaluation instruments applied by areas outside the school have multiplied in the country under the argument of measuring their quality. Establishing comparisons and rankings, such tools began to be used to reward or punish teachers and schools, whose pedagogical work was linked to success or failure in the tests applied. The aim of this study, in this sense, is to analyze the changes made in the career plan of the teaching profession of a municipal school system to insert the results of a student evaluation as a teaching bonus tool. Based on this, using a documental analysis, we reflect on how school management detaches itself from singular and social objectives in order to adapt to defined macro demands and become an instrument for the reproduction of economistic interests. Authors such as Dale (2010), Thenig (2006), Esquinsani and Dametto (2018) and Freitas (2012) are used as references, which are discussed in relation to the legal artifacts selected through hermeneutics-dialectic. With the analysis, it is identified that, in the case in question, the public power's desire to solve the problem of the quality of education resulted in an evaluation process that holds teachers accountable, directing school management to encourage the achievement of individual professional reward, contrary to democratic precepts.

Keywords School Management; External Assessment; Teachers’ Bonus

Resumen

Desde la década de 1990, los instrumentos de evaluación aplicados por áreas externas a la escuela se han multiplicado en el país bajo el argumento de medir su calidad. Estableciendo comparaciones y rankings, dichas herramientas fueron utilizadas para premiar o castigar a docentes y escuelas, cuya labor pedagógica estaba conectada al éxito o fracaso en las pruebas aplicadas. El objetivo de este estudio, en este sentido, es analizar los cambios realizados en el plan de carrera de la profesión docente de un sistema escolar municipal para insertar los resultados de una evaluación de estudiantes como herramienta de bonificación docente. A partir de ello, mediante un análisis documental, reflexionamos sobre cómo la gestión escolar se desliga de objetivos singulares y sociales para adaptarse a macrodemandas definidas y convertirse en un instrumento de reproducción de intereses economicistas. Se utilizan como referentes autores como Dale (2010), Thenig (2006), Esquinsani y Dametto (2018) y Freitas (2012), los cuales se discuten en relación a los artefactos jurídicos seleccionados a través de la hermenéutica-dialéctica. Con el análisis, se identifica que, en el caso en cuestión, la voluntad del poder público de resolver el problema de la calidad de la educación resultó en un proceso de evaluación que responsabiliza a los docentes, orientando la gestión escolar para incentivar el logro de recompensas profesionales individuales, contrario a los preceptos democráticos.

Palabras clave Gestión Escolar; Evaluación Externa; Bonificación Docente

1 Considerações iniciais

As pesquisas realizadas acerca da gestão democrática da educação têm construído argumentos e dados que tratam da imprescindibilidade do fortalecimento de concepções que valorizem as peculiaridades dos contextos escolares, com a participação e o reconhecimento da diversidade local sendo considerados basilares às atividades desenvolvidas nesses espaços. Na realidade da educação básica brasileira, percebem-se, contudo, embates entre intenções colaborativas e inclusivas relatadas em parte dos artefatos legais e da documentação pedagógica com práticas autoritárias e normas centralizadoras – ilustradas em textos e tomadas de decisão unilaterais e arbitrárias. Tais contradições estão em relação com os movimentos historicamente autoritários e excludentes da política educacional do país, que perduram em sua estrutura e se intensificam com a inserção de instrumentos gerenciais, principalmente a partir da década de 1990.

Movida pelo argumento de necessidade de modernização do Estado, a reforma estabelecida pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, em 1995, redirecionou a execução das políticas sociais, com a deliberação a respeito da não exclusividade do Estado na oferta de serviços públicos e com a abertura para privatizações, terceirizações e publicizações. A partir dessa definição e de prescrições posteriores, as ações governamentais envolveram-se mais especificamente com a promoção e a avaliação das políticas, com as setoriais – como as da educação – promovendo a inserção de mecanismos para mensurar e promover a qualidade (conceituada segundo concepções próprias). Dessa maneira, para solucionar os problemas encontrados na escola pública, instituiu-se uma cultura avaliativa pautada em soluções típicas do ambiente empresarial, redefinindo os processos formativos com base nesses preceitos. Implementaram-se, então, estratégias de controle do professor e da escola e sua responsabilização caso os estudantes não obtivessem resultados satisfatórios em testes padronizados de desempenho.

Considerando-se a centralidade dessas relações para a compreensão do cenário educativo, objetiva-se, neste estudo, analisar as alterações realizadas no plano de carreira do magistério de uma rede municipal de ensino para inserir, como ferramentas de bonificação docente, os resultados de avaliação discente. A partir disso, pretende-se refletir sobre como a gestão da escola desvincula-se de objetivos singulares e sociais para se adaptar a demandas macrodefinidas e tornar-se instrumento de reprodução de interesses economicistas. Para a construção dessa exposição, são discutidos conceitos como os de política, gestão e avaliação por meio de autores como Dale (2010), Thoenig (2006), Esquinsani e Dametto (2018) e Freitas (2012) seguidos da análise documental do artefato legal que instituiu a situação elencada e de uma reflexão a respeito de suas implicações. A análise introduzida aqui é efetuada por meio da hermenêutica-dialética, que pode ser definida como o movimento de, ao ir em direção à compreensão dos sentidos de um objeto (neste caso, os documentos singulares que orientam o plano de carreira de uma rede de ensino específica), entender as contradições que o fundamentam de forma a produzir a crítica (MINAYO, 2014), como será explicitado nas seções seguintes.

2 Política e gestão da educação: conceitos estruturantes da análise

Termos como política e gestão da educação, utilizados de maneira recorrente em documentos e discursos que analisam o cenário educacional, parecem remeter a compreensões unívocas acerca de seu significado. Dale (2010) aponta, contudo, que, apesar de tais expressões se manterem as mesmas, com o passar do tempo seu sentido tende a se modificar, o que soa como um alerta para a necessidade de que se esclareçam as acepções a que remetem palavras-chave utilizadas nas pesquisas em política educacional. Ao se buscar o delineamento da semântica desses vocábulos, entretanto, diferentes compreensões são encontradas, o que denota distintas perspectivas e abordagens que ratificam a relevância de seu esclarecimento para a coerência da construção pretendida.

Ao se buscar conceituar política pública, recorre-se a Thoenig (2006), que a define como a intervenção realizada por um agente – com legitimidade governamental e poder público – sobre determinado setor ou território, sendo que, a partir disso, veiculam-se conteúdos, operacionalizam-se serviços e produzem-se efeitos. Antes de acontecer a concretização da política na produção e na implementação de programas político-administrativos vinculados a objetivos específicos (MÜLLER e SURREL, 2002), todavia, essa atuação parte da compreensão de que dado fenômeno social necessita ser tratado de maneira particular, tornando-se uma preocupação pública. Assim, buscam-se as causas de determinado problema e criam-se discursos sobre ele, fazendo que, como Müller e Surrel (2002) explicam, haja a transferência desse empecilho de uma agenda sistêmica (na qual situam-se todas as preocupações que podem ser tidas como de responsabilidade de atores públicos) para uma agenda institucional (em que há um tratamento formal de dado fenômeno em busca de alternativas para sua resolução). Esses encaminhamentos estão vinculados a interesses e ao poder de sujeitos motivados para sua resolução, o que faz que Ozslak e O’Donnell (1995) mencionem uma política pública não somente como um conjunto de ações, mas também como um aglomerado de omissões quanto a problemas públicos.

As políticas públicas são divididas conforme seu interesse setorial e, quando constituídas como parte do campo educativo, são chamadas políticas educacionais. Farenzena (2014), ao mencionar a dimensão de participação implicada nas políticas, define as educacionais como “expressões de percepções, visões de mundo concernentes ao lugar e ao papel da educação na sociedade – seja do papel que tem como do que deveria ou poderia ter” (p. 54). É nesse escopo, assim, que são discutidas e buscadas soluções para problemas educacionais, deliberando sobre questões como o acesso à escola, seus critérios de qualidade, os saberes a serem desenvolvidos durante o percurso formativo discente, como devem ser formados os professores, qual o perfil e o formato de escolha dos gestores escolares e como precisam ser conduzidos os processos avaliativos.

Para que, no entanto, as políticas educacionais saiam do plano decisional e sejam concretizadas na realidade, recorre-se à gestão. Responsável por dar materialidade às políticas, a gestão da educação “constitui uma dimensão e um enfoque de atuação na estruturação organizada e orientação da ação educacional que objetiva promover a organização, a mobilização e a articulação de todas as condições estruturais, funcionais, materiais e humanas” (LÜCK, 2006, p. 26) para a efetivação das aspirações definidas. Caracterizada como educacional quando delibera acerca de redes e sistemas de ensino, chamada de escolar quando enfoca o âmbito da escola e mencionada como de classe quando se dirige às relações estabelecidas em sala de aula, “a gestão transforma metas e objetivos educacionais em ações, dando concretude às direções traçadas pelas políticas” (BORDIGNON; GRACINDO, 2001, p. 147). Assim, a política e a gestão não podem ser analisadas de maneira dissociada, já que se estabelecem em relação uma com a outra e só têm sentido se assim forem concebidas.

Dessa construção, alcança-se o conceito de gestão democrática. Figurando nos documentos normativos brasileiros a partir da Constituição Federal de 1988 e perpassando a legislação educacional desde então (sendo mencionada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e no Plano Nacional de Educação 2014-2024, além de ser temática constante nas pesquisas do campo), essa concepção de gestão trouxe a dimensão da participação para o âmbito das decisões e da consolidação da ação estatal. Como discute Vieira (1998), a democracia não é um estágio, mas um processo, um constante movimento em busca da coletivização das decisões em um nível cada vez mais amplo e aprofundado. Esquinsani e Dametto ratificam que a utilização desse termo não se restringe a uma opção semântica, pois a gestão democrática “é, em sua gênese, uma categoria política, epistêmica e metodológica, irredutível a nenhuma dessas dimensões. Assim, ela é constituída pela multidimensionalidade e historicidade, não sendo possível compreendê-la de forma unilateral ou estanque” (2018, p. 4). Essa construção implica, assim, a atuação coletiva, pensada e pautada institucionalmente, que traz implícita a aprendizagem prática da cidadania por meio de vivências que, na escola, nutrem-se pela busca de qualidade social para a educação pública.

A gestão democrática, contudo, por mais que defendida em muitos documentos legais que deveriam amparar tomadas de decisão nas redes de ensino (como no caso a ser apresentado posteriormente), necessita de mais do que normativas para sua efetivação. Como Lima (2018) cita, a própria organização da escola moderna pautou-se na organização produtiva do capitalismo, e países como o Brasil foram marcados por ditaduras (ainda recentes), o que ilustra apenas dois dos empecilhos que frustram a incorporação de práticas partilhadas e colaborativas de gestão. Associada a isso, a busca pela constituição de uma escola eficaz no neoliberalismo, com metas e resultados reconhecíveis, estimula a transformação de diretores em líderes e isola os professores, estabelecendo hierarquias e competição.

Uma visão clara, objetivos estabelecidos rigorosamente e com ambição, lideranças educacionais mais fortes, professores mais profissionais, famílias com capacidade de exercer a escolha da escola, estariam na base de escolas mais eficazes e com melhores resultados. Descentralização, competição e escolha seriam os segredos da escola eficaz, incompatíveis com lógicas de gestão e de controlo democráticos; “mercados”, não “democracias”, seriam os referenciais mais compatíveis com escolas em busca da excelência académica.

(LIMA, 2018, p. 23.)

De tal modo, a gestão democrática acaba restrita a documentos oficiais e a discursos vagos, sendo secundarizada pela dinâmica mercantil assimilada pelas instituições de ensino e que prioriza o cumprimento de bases curriculares, o aumento de índices em avaliações de desempenho e o contentamento da família – que vislumbra, na escola, a empregabilidade e a lucratividade futuras de seus filhos. Por mais que existam movimentos de resistência a essa perspectiva, que se materializam nos espaços educativos singulares e que se dedicam a instituir a gestão democrática, ainda são muitas as contradições a serem superadas, como a abordada neste estudo.

O processo formativo em um contexto de gestão democrática deve se dedicar a promover aprendizagens que superem o acúmulo e a reprodução de dados históricos e de informações relevantes para as áreas hierarquizadas em ambientes hostis e autoritários, comprometendo-se com o desenvolvimento integral do discente com vistas à sua atuação cidadã na sociedade. A formação pautada pela autonomia, pela criticidade, pela diversidade, pela participação e pela colaboração se torna, dessa forma, elemento indispensável para que a escola possa vivenciar a democracia em seu cotidiano, possibilitando a ampliação dessas práticas para além do espaço educacional formal. E a avaliação desse processo se salienta como uma construção coletiva, que visa a compreender os avanços obtidos pelo grupo e a pensar em seus desafios, em uma dinâmica que favoreça a qualificação constante da educação ofertada. O modelo avaliativo utilizado como referência para as políticas educacionais se contrapõe, no entanto, aos princípios que se tornam intrínsecos às experiências de gestão marcadas pela participação, como se pretende elucidar nas próximas seções.

3 O Estado-avaliador e a institucionalização das avaliações de desempenho na educação pública

O Estado se constitui historicamente como a esfera em que as decisões públicas são concebidas e por meio da qual as políticas são materializadas. O conceito de governança, contudo, tem sido usado na modernidade para se referir à tríade formada pelo Estado, pelo mercado e pela comunidade (DALE, 2010), em um formato de regulação em que esses diferentes entes possuem espaço para deliberações, o que tem sido fortalecido pela Nova Gestão Pública. Como Dale (2010) explica, essa é a forma política do neoliberalismo1 (atual período do capitalismo) que, em vez de construir oposições entre o mercado e o Estado, cria estratégias para que o primeiro aja por meio do segundo, favorecendo interesses econômicos e a ocultação de responsabilidades democráticas. Ainda conforme o mesmo autor, por mais que exista essa articulação, em momentos de crise é o Estado a instância responsabilizada por apaziguar conflitos e evitar o acirramento de problemas sociais, denotando a centralidade dessa instituição mesmo em meio a diferentes alterações nas formas de governabilidade.

A Nova Gestão Pública, adotada nos países capitalistas principalmente a partir da década de 1980, foi institucionalizada no Brasil com a publicação do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, em 1995. O documento defendia que o Estado deveria priorizar suas funções de promotor e de avaliador das políticas, sendo que a execução destas seria uma dimensão a ser compartilhada tanto com o mercado quanto com a sociedade civil. Assim, haveria a qualificação do serviço público, dando a ele eficiência, eficácia e efetividade. Fortaleceu-se, nesse contexto, a concepção de Estado-avaliador, em que são estimuladas políticas públicas que instituem um modelo de gestão no qual as reformas no âmbito público arquitetam-se sob a lógica da gestão privada (SCHNEIDER; ROSTIROLA, 2015), valorizando os resultados alcançados. Com isso, no âmbito da educação pública, os testes padronizados foram estabelecidos como delineadores das expectativas de aprendizagem e, consequentemente, como a referência para a definição da qualidade a ser buscada.

Utilizando-se do que Freitas (2012) conceitua como uma “teoria da responsabilização”, as avaliações em larga escala tornaram-se parte constitutiva dos sistemas educativos, estabelecendo uma racionalidade neotecnicista que se ampara em três categorias: responsabilização, meritocracia e privatização. Citando Kane e Staiger (2002), o autor menciona os testes com os discentes, a divulgação dos resultados das escolas publicamente e a instauração de recompensas ou sanções a partir do desempenho alcançado como os elementos que sustentam a responsabilização, bem como instituem a meritocracia a partir das gratificações, mas também da exposição, em si, à qual as escolas são submetidas. A partir desses elementos, cria-se ambiência (FREITAS, 2012) para a privatização da educação, que, indo muito além do antagonismo público versus privado, materializa-se na atualidade mediante distintos formatos, principalmente aqueles em que o financiamento continua estatal, mas o serviço é ofertado por intermédio da gestão ou da matrícula privadas.

No contexto internacional, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA)2 figura como a avaliação de referência quanto a parâmetros de qualidade que seriam desejáveis a todos os estudantes da Educação Básica de seus respectivos países. Realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o teste acontece a cada três anos, avalia estudantes de 15 anos e é composto por questões das áreas de matemática, leitura e ciências. No cenário brasileiro, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB)3 é o indicador de desempenho com maior reconhecimento, tanto que houve até a formulação de projetos de lei, como o PLS 341/20114, que objetivavam divulgar em placas em frente às escolas o resultado alcançado por cada instituição. Unindo dados do Censo Escolar (que contabiliza informações sobre o fluxo – evasão e repetência, por exemplo) e do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), o IDEB aponta as notas e indica as metas de escolas, municípios, estados e país. O SAEB5 passou por várias reformulações, sendo que, a partir de 2019, inseriu a Educação Infantil (com um questionário a ser respondido pelos docentes) no processo avaliativo e, na edição de 2021, passou a incluir o 2º ano do Ensino Fundamental, além de manter a aferição de 5º e 9º dessa etapa e também do 3º ano do Ensino Médio. Realizada a cada dois anos, a prova tradicionalmente verificou saberes das disciplinas de Matemática e Língua Portuguesa, mas, com as inovações, incluirá questões de Ciências da Natureza e Ciências Humanas, que, a princípio, não serão consideradas na construção da média numérica.

Redes estaduais e municipais de ensino, além de participarem das avaliações mencionadas, também podem criar seus próprios testes padronizados como forma de tornar a verificação da aprendizagem mais palpável conforme seus critérios específicos. Esteio, município localizado no Rio Grande do Sul, criou seu próprio sistema de avaliação e, a partir de seus resultados, concede bonificações aos docentes, premiando aqueles que conseguem alcançar índices considerados de qualidade pela rede de ensino. Esse caso será analisado na seção seguinte, trazendo materialidade ao estudo em desenvolvimento.

4 A concessão de bonificação docente a partir de processos avaliativos discentes na rede municipal de Esteio

Para o desenvolvimento deste estudo, utiliza-se a dialética-hermenêutica como instrumento de análise dos documentos elencados para a discussão. Essa técnica acresce à compreensão dos sentidos pronunciados na comunicação entre os sujeitos (hermenêutica) as contradições que constituem a realidade (dialética) em direção à construção da crítica, em que se objetivam mais do que descrições de enunciados, mas o desvelamento da subjetividade dos textos (MINAYO, 2014) – legislações atinentes ao município de Esteio, neste caso. O processo metodológico, dessa maneira, dá-se a partir da investigação acerca do que os documentos selecionados articulam (priorizada nesta seção), seguida do desvelamento de seus significados e contradições (contemplado na próxima subdivisão deste artigo).

Cabe-se frisar que as legislações analisadas são a expressão de relações históricas, fundadas em antagonistas, dentro de um sistema sociometabólico excludente, com o trabalho sendo estabelecido em hierarquias e com a subordinação de todas as esferas da vida humana ao capital (MÉSZÁROS, 2011). Esses aparatos legais, bem como outros documentos que orientam, sistematizam e organizam os diferentes momentos da política educacional, “expressam não apenas diretrizes para a educação, mas articulam interesses, projetam políticas, produzem intervenções sociais” (EVANGELISTA, 2012, p. 53). Manifestam projetos históricos constituídos em relações sociais concretas que, pela tríade pesquisadores, teorias e documentos, são evidenciados (EVANGELISTA, 2012). Com seu exame pelo viés qualitativo, favorecem-se problematizações que desvelem suposições superficiais, aprofundem compreensões e descortinem conflitos e contradições. É nesse sentido que se realiza a investigação pretendida acerca do caso do município de Esteio, no Rio Grande do Sul.

Tal município, localizado na região metropolitana de Porto Alegre, estabeleceu um formato de avaliação particular em 2018 por meio de alterações no Plano de Carreira do Magistério (Lei nº 7.013, de 9 de novembro de 20186), já que sua função, além de aferir a qualidade da educação oferecida (como exposto no referido documento), contempla a utilização dos resultados dos discentes como forma de atribuir bonificações aos docentes e aos profissionais de apoio pedagógico. Para a parcela profissional com melhor pontuação, prevê-se a concessão de um mês de licença remunerada (com todos os direitos garantidos, como se o professor estivesse em exercício) ou a substituição, a critério da Administração Municipal, do afastamento pelo pagamento em dinheiro equivalente ao período, como descreve o Decreto nº 6.446, de 7 de novembro de 20197, que regulamentou essa iniciativa.

O plano de carreira da rede esclarece que existem sete níveis, os quais dizem respeito à formação do docente e incluem desde a formação em Curso Normal de nível médio até pós-doutoramento, com diferentes ganhos salariais a partir da apresentação de documentos comprobatórios de titulação. O documento prevê, também, a elevação em classes a cada três anos (com 5% de aumento a cada triênio), mencionada como uma promoção por merecimento, conforme o desempenho dos docentes (que estejam em efetivo exercício ou em atividades de suporte pedagógico). Essas classes (que são divididas em letras seguindo a ordem alfabética de A até I) preveem a realização de cursos e bons resultados na avaliação do docente. Além dessas vantagens constantes na Lei 7.013/2018, foi incluída, a partir de 2019, a licença por desempenho, a ser concedida como uma bonificação mediante resultados satisfatórios da turma vinculada a cada professor na avaliação discente promovida anualmente pela Secretaria de Educação do município.

A avaliação em questão, de acordo com o Decreto nº 6.446/2019, já mencionado, estabelece, em médias numéricas, a contribuição dos professores para a melhoria da qualidade da educação e concede a licença prevista aos 10% dos docentes de cada um dos grupos elencados no documento, desde que tenham obtido média superior a 6 na avaliação geral da aprendizagem e que tenha havido mais de 75% de frequência de seus alunos no dia de aplicação do teste. As categorias elencadas, as atribuições avaliadas e a porcentagem contabilizada para a soma da nota conferida em cada um dos grupos são:

  • professores da Educação Infantil lotados em Escolas Municipais de Educação Infantil: análise de portfólio da turma (50%), observação da aula do professor (30%) e frequência da turma durante o ano letivo (20%);

  • professores da Educação Infantil lotados em Escolas Municipais de Educação Básica: análise de portfólio da turma (50%), observação da aula do professor (30%) e frequência da turma durante o ano letivo (20%);

  • professores de Ensino Fundamental, avaliados separadamente de acordo com o ano: no 1º e no 2º ano – avaliação globalizada realizada com os discentes (80%) e frequência da turma durante o ano letivo (20%); do 3º ano ao 5º ano – avaliação globalizada (80%), frequência da turma (10%) e índice de aprovação (10%); e do 6º ao 9º ano – avaliação por área ou componente curricular (80%), frequência discente (10%) e índice de aprovação (10%);

  • professores que atuam em Sala de Recursos Multifuncional, Serviço de Apoio Pedagógico, Sala de Inovação/Labin e Projetos: análise de portfólio da turma (50%), observação da aula do professor (30%) e frequência da turma durante o ano letivo (20%).

Diretores, vice-diretores, supervisores, orientadores e gestores pedagógicos lotados em Escolas Municipais de Educação Infantil e em Escolas Municipais de Educação Básica e professores que atuam na Secretaria Municipal de Educação e não fazem parte da equipe de avaliação também poderão ser beneficiados com a licença. No primeiro grupo, serão contemplados 10% dos profissionais, considerando-se a nota superior a 6 e a frequência discente no dia da prova superior a 75%, e, em caso de empate entre escolas, será considerado primeiramente o maior número de alunos e, em seguida, o maior número de professores. Do segundo grupo, todos serão promovidos, desde que a rede obtenha média superior a 6 e que a frequência dos alunos seja superior a 75% no dia da prova.

O documento também orienta casos em que a licença não poderá ser usufruída (como quando o docente tiver registradas faltas injustificadas ou mais de dez faltas justificadas durante o ano, ter usufruído de auxílio-doença superior a 30 dias ou de licença para tratar de interesse particular, ou ter sofrido advertência ou punição disciplinar). Esclarece ainda que a comissão responsável pela avaliação deve ser formada por cinco profissionais indicados pela Secretaria de Educação, os quais, entre outras incumbências, devem orientar, controlar e coordenar o processo, avaliar os portfólios, providenciar profissionais para que a observação de aulas seja realizada e para que os testes sejam elaborados e corrigidos, organizando sua aplicação e verificando a frequência dos alunos. Além disso, indicam requisitos para o portfólio, como a consideração do desenvolvimento de todas as crianças e a menção a vivências que possibilitem o acesso a seus direitos de aprendizagem. Para a observação das aulas, prevê-se que seja considerada a relação entre docente e estudantes, analisando se as práticas garantem os direitos de aprendizagem e desenvolvimento discente e se o planejamento realizado está sendo cumprido. Ademais, atenta-se para o fato de que os testes sejam construídos a partir da Base Municipal Comum Curricular de Esteio e assegura-se que, caso a licença seja concedia a algum docente e não seja usufruída ou paga a ele, possa ser indenizada, tendo-se em vista sua exoneração, aposentaria ou falecimento.

Nessa construção, tanto o plano de carreira quanto o decreto examinados apontam para o desempenho discente no processo avaliativo organizado pela rede como a forma de mensurar a qualidade da educação oferecida nas escolas participantes da avaliação. A partir disso, o resultado obtido torna-se o fator utilizado para direcionar bonificações aos profissionais, em uma concepção meritocrática e de responsabilização unilateral da instituição e de seus profissionais, em um modelo de análise não do processo educacional, mas de seu resultado – descontextualizado e considerado isoladamente. Essas questões suscitam questionamentos a respeito das implicações dessa compreensão da realidade escolar para sua gestão, como será discutido na próxima seção, por meio de reflexões acerca dos documentos que buscam, além de compreender de forma aprofundada seus sentidos, expressar a contradição contida nessa iniciativa.

5 Os processos de bonificação docente como redefinidores da gestão escolar

Como tem sido discutido neste estudo, especialmente a partir da década de 1990, em que as expectativas pela universalização do ensino fundamental pareciam prestes a serem alcançadas, as discussões geradas no âmbito da política e da gestão da educação no país passaram a enfatizar a qualidade dessa oferta. Considerada um problema público, a qualidade tornou-se parte da agenda setorial com o estímulo de organismos internacionais que faziam diagnósticos e cobravam medidas de países em desenvolvimento, como o Brasil. Com o fortalecimento da concepção neoliberal de Estado-avaliador (SCHNEIDER; ROSTIROLA, 2015), testes padronizados se tornaram a principal ferramenta de verificação de desempenho, que também definiam metas a serem atingidas nos moldes da sistemática empresarial. A análise em curso, que trata da iniciativa implementada por uma rede municipal singular, salienta-se como uma materialização particular dessa percepção, que se efetiva em muitas outras realidades apesar da passagem das décadas movida pela intensificação dos preceitos capitalistas.

Em uma compreensão de que a concorrência entre as instituições e os docentes, somada a bonificações, promove maiores eficiência (já que estimula a diminuição de afastamentos de docentes ao longo do ano, por exemplo, que implicariam custos com substituições), eficácia (pois compele os docentes a cumprirem a Base Municipal, que representa aquilo que se almeja quanto a objetivos de aprendizagem) e efetividade (visto que espera que os professores demonstrem o impacto de seu trabalho na avaliação discente), o formato em análise denota as lógicas de competitividade e de produtividade como modeladoras do trabalho pedagógico. Afinal, mesmo que haja diferenças sutis entre os resultados alcançados, apenas uma parcela da rede será beneficiada com a licença utilizada como gratificação, reforçando-se a disputa e a concepção de esforço e mérito como qualidades de poucos (como é típico na sociedade neoliberal). Ainda, ao inserir nesse processo crianças, até mesmo as bem pequenas, e adolescentes, o modelo avaliativo não parece considerar a pressão sofrida ao se colocar sobre eles a responsabilidade de reconhecimento (ou não) de sua escola e de seus professores, tendo-se em vista que o resultado de sua avaliação é elencado como o determinante de sucesso e de qualidade na rede.

Entende, assim, qualidade como o resultado isolado de uma avaliação elaborada a partir de uma percepção unilateral dos saberes a serem dominados por todos os alunos de certa faixa etária e série, de forma homogeneizante, somada a índices que valorizam a aprovação e a presença discente em classe. Aliás, responsabiliza professores pela vigilância constante quanto a essas questões, o que poderia ser considerado positivo desde que não estivesse inserido em um contexto de culpabilização. Uma multiplicidade de fatores pode acarretar empecilhos à trajetória escolar, resultando em reprovação ou evasão, que se impõem como temas prioritários das equipes diretiva, pedagógica e docente da escola. O impacto desses elementos na pontuação do professor e da instituição delimita, no entanto, o enfrentamento de problemas sociais estruturais – que geralmente motivam o abandono e o fracasso discente – apenas para o âmbito da gestão escolar e de classe.

Evidencia-se como relevante esclarecer que não se ignora a relação entre o trabalho do professor e a aprendizagem do aluno; pelo contrário, toda a organização da escola e sua relevância no contexto social pautam-se nessa certeza. É preciso, contudo, considerar que os alunos se desenvolvem em ritmos distintos e possuem maneiras diferentes de demonstrar sua evolução, o que nem sempre é perceptível em testes padronizados que, por sua essência, entendem que todos os avaliados devem ter a mesma percepção dos saberes. A evolução de uma criança ou de um adolescente precisa ser pensada, principalmente, de acordo com os percursos individuais e, em uma prova padronizada, aquilo que foi construído nem sempre pode ser suficiente para a métrica utilizada no exame. Ainda, em um país fundado historicamente sobre desigualdades entre estratos da população, que são entendidas como naturais, o capital cultural8 dos alunos precisa ser discutido pela escola, e não ignorado – problemática em que as avaliações de desempenho exercem um papel central.

Tais questões, por mais que estejam sendo debatidas em diferentes pesquisas do campo, não poderiam ser ignoradas nessa construção, tendo-se em vista suas implicações diante da iniciativa examinada. O ponto central desta análise intenciona, entretanto, discutir como esse formato de bonificação redefine os processos de gestão escolar, o que está em relação com as questões elencadas. Com a política pública vigente no âmbito municipal inserindo-se em uma concepção que entende a função do poder público como a de, essencialmente, avaliar, a gestão tende a voltar-se para a materialização dessa dimensão, direcionando seus objetivos e suas ações para dar concretude a esse entendimento. Adotando a concepção de qualidade determinada por exames, a prioridade da equipe de gestão tende a se direcionar ao cumprimento de exigências de tais instrumentos. Afinal, deles dependem a bonificação que seus docentes almejam e, principalmente, o prestígio de sua instituição. Como Kane e Staiger (2002) apudFreitas (2012) afirmam, mesmo que não existam ferramentas de sanção, o fato de a escola não ser citada como uma das bonificadas denota uma punição, uma maneira de desconsiderá-la e de desvalorizá-la enquanto instituição diante de sua comunidade.

A avaliação da rede municipal citada ao mesmo tempo colabora para o cenário exposto no início do texto, em que são apontadas contradições entre normativas que destacam a gestão democrática da educação com iniciativas que, como a relatada, concretizam normas centralizadoras e modelos unilaterais de condução dos processos escolares. Essa avaliação, ao implantar uma ferramenta avaliativa unívoca e vincular a ela uma premiação, unifica e homogeneiza não somente os percursos formativos, mas também a maneira como irá se constituir a relação da escola com sua comunidade. A participação e as tomadas de decisão coletivas, em uma construção epistêmica e, essencialmente, política (como Esquinsani e Dametto [2018] frisam), tornam-se secundárias, já que, mais do que um exercício de cidadania e de coletivização de decisões, a gestão construída na escola precisa consolidar-se como eficiente, competitiva e qualificada.

Como uma proposta regulamentada e instituída em relação a preceitos mercantis que impõem seu modelo de formação (nem sempre de forma explícita, mas sempre de forma organizada) às escolas públicas, a inserção da avaliação de desempenho do estudante como forma de aferir a qualidade do trabalho docente denota uma manobra de responsabilização desse profissional, em uma primeira instância, mas também da escola. Afinal, os formatos avaliativos como o exposto colaboram com um movimento de unificação de discursos de desqualificação de instituições públicas e daqueles que são incumbidos de sua gestão, produzindo dados que podem ser interpretados como uma comprovação de sua falta de eficácia, eficiência e efetividade – conceitos considerados basilares às políticas desde a publicação do Plano Diretor, em 1995, como já citado. Esse movimento pode levar, até mesmo, à privatização de dado serviço público (como Freitas [2012] aponta), por mais que essa dimensão não seja perceptível no caso em análise.

A iniciativa, ademais, precisa ser entendida como inserida em uma conjuntura social em que políticas de educação, assistência social, saúde, cultura e lazer estão desarticuladas, são fragilizadas ou se constituem até mesmo como inexistentes em certos contextos. Isso faz que a elaboração de uma política pública que visa a avaliar setorialmente, punindo (mesmo que indiretamente, retomando novamente a proposição de Kane e Staiger [2002] apudFreitas [2012]) aqueles que não alcancem patamares privilegiados, torne-se falha e arbitrária. Falha na medida em que não oferece equidade àqueles que demonstrem tal necessidade; e arbitrária porque estimula a condenação de todos os atores implicados na ação, impondo divisões de classe aos professores ao passo que separa e premia aqueles tidos como melhores, enquanto dá aos outros apenas o bom exemplo, com boas práticas para serem seguidas. Nesse sentido, mais do que um projeto formativo humano, plural, inclusivo e de qualidade social (como quer uma gestão democrática da educação), efetivam-se práticas excludentes e competitivas que contrariam a gênese e a função social da escola pública, reproduzindo preconceitos e desigualdades.

6 Considerações finais

As avaliações externas, como a analisada, passaram a ser consideradas a estratégia do Poder Público para sanar a problemática da qualidade em um movimento implicado nos processos de modernização do aparelho estatal de acordo com prescrições de mercado. Crendo no aumento da eficiência, da eficácia e da efetividade por meio da competitividade e da responsabilização, instauraram um padrão e disseminaram a crença de que, de forma uniforme e quase mecânica, basta um professor competente e motivado para que um aluno aprenda, em uma visão que anula as singularidades, ignora a diversidade dos contextos e não considera as subjetividades e as necessidades formativas individuais. Valorizando o produto e não o processo, estimularam a reprodução de saberes padronizados e desconsideraram os contextos sociais, reduzindo a formação humana ao alcance de metas.

Na gestão, essa construção resultou na concessão de premiações a profissionais de escolas com melhores resultados. Com isso, a competitividade acaba por tomar o lugar (em muitos espaços ainda não preenchido) da construção de um projeto participativo e dialógico pautado pela comunidade (como a gestão democrática almeja e, contraditoriamente, expressam documentos orientadores dos processos educativos). Os resultados dessas avaliações passaram a dar reconhecimento aos docentes e gestores e, em relação a eles, à escola, relacionando-a com um padrão de qualidade. Homogeneizando as realidades, a bonificação e a sanção, mesmo que a última não esteja abordada de maneira explícita nos documentos examinados, promovem a naturalização da desigualdade entre instituições da rede, visto que seus profissionais são rotulados como bons ou nem tão bons assim, de acordo com o desempenho dos estudantes, favorecendo, a partir disso, a estigmatização (se não a condenação) pública de instituições de ensino. Anulam a discussão, a crítica e o convencimento, necessários à participação coletiva não só na escola, mas na sociedade, enfraquecendo, ou até mesmo apagando, vestígios de democracia.

1 Dardot e Laval conceituam o neoliberalismo como “o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência” (2016, p. 17). Como uma racionalidade, o neoliberalismo ultrapassa a orientação de questões econômicas e se torna intrínseco ao cotidiano, modelando comportamentos, conceitos e valores que se materializam também no âmbito educativo, como abordado neste estudo.

2Disponível em: http://portal.inep.gov.br/pisa. Acesso em: 16 fev. 2020.

3Disponível em: http://inep.gov.br/ideb. Acesso em: 16 fev. 2020.

4Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/100744. Acesso em: 16 fev. 2020.

5Disponível em: https://www.somospar.com.br/saeb/. Acesso em: 16 fev. 2020.

8Conceito formulado por Pierre Bourdieu na década de 1960. Discute como os resultados educacionais de um sujeito não dependem apenas de seus esforços individuais, mas estão em relação com a cultura e suas condições sociais de existência em um contexto que privilegia a reprodução de desigualdades. Ver mais em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/1820.

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Recebido: 07 de Abril de 2020; Revisado: 19 de Fevereiro de 2022; Aceito: 24 de Fevereiro de 2022

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