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Educação: Teoria e Prática

versão impressa ISSN 1993-2010versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.32 no.65 Rio Claro  2022

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v32.n.65.s15861 

Artigos

Abordagem crítico-superadora: o trato da educação física como prática transformadora da realidade social

Critical-overcoming approach: the treatment of physical education as a transforming practice of social reality

Abordaje crítico-superador: un análisis de la educación física como práctica transformadora de la realidad social

Wanderson Pereira Lima1 
http://orcid.org/0000-0003-0751-1682

1Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás – Brasil. E-mail: wplima9@gmail.com.


Resumo

O objetivo deste trabalho é destacar, com base em uma obra clássica da área da Educação Física, a educação como uma prática social que está explicitamente relacionada com os fatos históricos que nortearam e que ainda influenciam os caminhos das práticas educativas. Essa produção é fruto de uma pesquisa bibliográfica com enfoque qualitativo que enfatiza a abordagem crítico-superadora publicada em 1992 por um coletivo de autores apresentando elementos para a formação humana verdadeiramente de qualidade, democrática, pública e emancipatória. Conclui-se, portanto, que trabalhar com os elementos da cultura corporal apresentados por essa abordagem teórica representa desmistificar a Educação Física e toda a educação como um campo de embates e disputas de classes e, sobretudo, atualmente, elucidar que a Educação está sendo tratada como mercadoria condicionada pela lógica neoliberal, favorecendo e naturalizando a desigualdade social e o fracasso escolar.

Palavras-chave Educação Física; Abordagem Crítico-superadora; Luta de Classes

Abstract

Grounded on a seminal work from the field of Physical Education this article contends that education is a social practice directly related to historical events that still affect the development of educational practices. It follows on from a qualitative bibliographical survey that focuses on the critical-overcoming approach, proposed in 1992 by a Coletivo de Autores and which offers elements for attaining a solid, democratic, public, and emancipatory education. It is concluded that endorsing the elements of body culture introduced by this theoretical framework amounts to demystifying Physical Education and education in general as a field of class struggle and disputes. Moreover, it is concluded that education is being treated as a commodity which operates under a neoliberal logic, hence promoting and naturalising social inequality and school failure.

Keywords Physical Education; Critical-overcoming Approach; Class Struggle

Resumen

Este artículo trata de destacar, basado en una obra clásica del campo de la Educación Física, que la educación es una práctica social directamente asociada con fatos históricos que influenciaron y todavía influencian los caminos de las prácticas educativas. Resulta de una investigación bibliográfica cualitativa que enfatiza el abordaje crítico-superador propuesto, en 1992, por un Coletivo de Autores y que presenta elementos para una formación humana sólida, democrática, pública y emancipadora. Concluyese que adoptar los elementos de la cultura corporal introducidos por ese abordaje teórico representa desmitificar la Educación Física y la Educación en general como un campo de embates y disputas de clases y, sobretodo, actualmente, que la Educación ha sido tratada como mercadoría condicionada por la lógica neoliberal, favoreciendo y naturalizando la desigualdad social y el fracaso escolar.

Palabras clave Educación Física; Abordaje Crítico-superador; Lucha de Clases

1 Introdução

Este texto tem como principal referência a obra Metodologia do Ensino de Educação Física, elaborada por um Coletivo de Autores e publicada em 1992. Nesse livro é enfatizada a abordagem crítico-superadora, que tem como objetivo criticar e superar não somente uma visão de Educação Física escolar hierárquica e excludente, mas, também, propor a formação da consciência de classe nos alunos para que sejam críticos, emancipados e capazes de transformar a sociedade em que estão inseridos.

De acordo com o Coletivo de Autores (1992), a obra expressa a síntese das elaborações de um conjunto de seis intelectuais1: Carmem Lúcia Soares, Celi Nelza Zülke Taffarel, Lino Castellani Filho, Maria Elizabeth Medicis Pinto Varjal, Micheli Ortega Escobar e Valter Bracht. Todos os autores são graduados em Educação Física, exceto Maria Elizabeth, licenciada em Pedagogia. Vale destacar, também, que Micheli Ortega nasceu no Chile, mas suas grandes contribuições acadêmicas foram desenvolvidas em solo brasileiro.

O livro em destaque neste estudo possui quatro capítulos, sendo que o primeiro se trata de uma discussão sobre duas concepções de currículo escolar e sua relação com a Educação Física; o segundo refere-se à construção de uma nova síntese sobre compreensão de Educação Física escolar; o terceiro diz respeito à organização do conhecimento e sua abordagem metodológica; e o quarto capítulo enfatiza a avaliação do processo ensino-aprendizagem. De acordo com Castellani Filho e Souza Júnior (2012, p. 190), a única parte do livro escrita por um só autor foi a introdução, “mesmo tendo passado pelo crivo de todos, foi escrita por um só (eu) e não foi modificada em nada”, ou seja, essa obra clássica foi escrita a “doze mãos, seis pessoas”. Mesmo havendo dissenso entre os autores, foi possível esse feito devido ao “processo de amadurecimento de cada um de nós, de despojamento, do abrir mão de muitas coisas em nome de um projeto coletivo”, afirmou Lino Castellani Filho em seu depoimento presente na segundo edição2.

Para o Grupo de Estudos Etnográficos em Educação Física e Esporte (ETHNOS), responsável pela organização e estruturação das entrevistas presentes na segunda edição, o grande mérito da obra, apesar de alguns conflitos de ideias, foi o “posicionamento político e acadêmico de cada um de seus autores, assim como de todos numa unidade, perante a elucidação da dimensão histórico-social da cultura corporal” (COLETIVO DE AUTORES, 2012, 119). Desse modo, esse é um argumento que notabilizava a necessidade de uma nova concepção de Educação Física para aquele momento histórico, que, por sinal, serviria como fundamento para estudos, pesquisas e “concurso público de redes de educação pública”, bem como para “políticas engendradas pelos entes governamentais responsáveis pela educação escolar em seus municípios e estados” (COLETIVO DE AUTORES, 2012, p. 9).

Com fundamentações3 em Marx, Gramsci, Saviani4, Libâneo e Paulo Freire, a abordagem crítico-superadora apresenta uma diferenciada concepção de sociedade, indivíduo, escola, currículo, metodologia e avaliação, ou seja, é uma abordagem que promoveu uma ruptura epistemológica na área da Educação Física. Constatam-se como objetos de estudo da Educação Física enquanto disciplina do currículo escolar os jogos, as danças, os esportes, as lutas, o atletismo, a saúde, entre outros conteúdos que podem ser trabalhados em aula, portanto, enfatiza-se a necessidade de desmistificar e compreender que esses objetos de estudo e reflexão, bem como o próprio aluno, são constituídos histórica e culturalmente mediante influências políticas e ideológicas.

Desse modo, a proposta aqui não é resumir ou elaborar uma resenha sobre o livro, mas, sim, utilizar uma obra clássica da área da Educação Física para demonstrar que a educação é uma prática social que está explicitamente relacionada com os fatos históricos que nortearam e que ainda influenciam os rumos das práticas educativas e, sobretudo, a própria educação é um campo fértil de embates e disputas que buscam a hegemonia de uma ou outra classe social. Será destacado, portanto, o primeiro capítulo da obra desse Coletivo de Autores, pois percebe-se que nele são estabelecidas duas concepções dessa disciplina do currículo escolar: aquela que contém inerente em si o discurso hegemônico do século XX e aquela que pretende criticar e superar esse discurso hegemônico e apresentar o novo.

2 Educação Física como prática pedagógica e social

Para iniciar uma discussão sobre a Educação Física como prática pedagógica e social, destacando-se os pressupostos da cultura corporal – que nas últimas três décadas tornou-se um dos principais conceitos utilizados na literatura da Educação Física escolar – é necessário enfatizar a premissa de que todo indivíduo é um ser histórica e culturalmente constituído. Com isso, quanto mais o indivíduo entra em contato com a cultura produzida e reproduzida por meio da História, mais ele desenvolve suas capacidades cognoscitivas enquanto ser consciente, ou seja, humaniza-se. Em contato com a natureza, o homem é transformador e, ao mesmo tempo, transformado. De acordo com o processo de mediação na relação homem-mundo e homem-homem, é por intermédio do trabalho que o indivíduo desenvolve seu processo de humanização – torna-se um sujeito ativo e pensante.

Assim sendo, a obra do Coletivo de Autores (1992) 5 é uma das pioneiras na área da Educação Física a abordar esses processos históricos e culturais, juntamente com elementos políticos e sociais na formação humana, expondo duas vertentes antagônicas de Educação Física escolar, uma que trata do desenvolvimento da aptidão física e outra que está situada sobre os pressupostos da reflexão sobre a cultura corporal. A obra, parafraseando Pimenta e Gonçalves, entende a escola pública como democrática, gratuita, universal, obrigatória e laica, sendo resultado de um projeto coletivo (COLETIVO DE AUTORES, 1992). Além disso, o livro aborda questões relacionadas com o projeto político-pedagógico, a concepção de currículo ampliado, os princípios curriculares no trato com o conhecimento, os ciclos de escolarização e o confronto das perspectivas de Educação Física na dinâmica curricular para a construção de uma educação pública de qualidade e emancipadora. Ao levantar esses temas, tem-se a expectativa de que:

O professor sentir-se-á apoiado, no desenvolvimento da sua reflexão, com os elementos teóricos sobre a concepção de currículo escolar vinculada a um projeto político-pedagógico que destaca a função social da educação física no contexto da educação escolar.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 11.)

A respeito do projeto político-pedagógico em sentido amplo, uma sociedade na qual a vigência do sistema econômico é o capitalismo, existe a luta de classes, cada qual defendendo os seus interesses imediatos e históricos. Os interesses imediatos da classe dominante são aqueles reconhecidos como expansão e acumulação dos seus bens materiais e imateriais, ou seja, expandir territorial e socialmente seus bens conquistados mediante o trabalho alienado das classes subalternas, gerando cada vez mais consumo e mercantilização sob o fio condutor do mercado e da propriedade privada. Seus interesses históricos são representados por sua manutenção como classe dominante e exploradora.

Sua luta é pela manutenção do status quo. Não pretende transformar a sociedade brasileira, nem abrir mão de seus privilégios enquanto classe social. Para isso, desenvolve determinadas formas de consciência social (ideologia), que veicula seus interesses, seus valores, sua ética e sua moral como universais, inerentes a qualquer indivíduo, independente da sua origem ou posição de classe social. Ela detém a direção da sociedade: a direção política, intelectual e moral. A essa direção Gramsci denomina de “hegemonia”.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 13-14.)

Nesse contexto de luta de classes, os interesses imediatos da classe trabalhadora são “a sua necessidade de sobrevivência, a luta no cotidiano pelo direito ao emprego, ao salário, à alimentação, ao transporte, à habitação, à saúde, à educação, enfim, às condições dignas de existência” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 13), e seus interesses históricos se expressam por meio da “luta e da vontade política para tomar a direção da sociedade, construindo a hegemonia popular” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 14).

A burguesia tornou-se a hegemônica em estratégias ideológicas colocando obstáculos às investidas de sua classe oposta. É nesse âmbito que a Pedagogia entra em crise, pois “uma pedagogia entra em crise quando suas explicações sobre a prática social já não mais convencem os sujeitos das diferentes classes e não correspondem aos seus interesses” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 14), omitindo um de seus objetivos de transparecer as diferenças evidentes entre as classes sociais.

A pedagogia é a teoria e método que constrói os discursos, as explicações sobre a prática social e sobre a ação dos homens na sociedade, onde se dá a sua educação. Por isso a pedagogia teoriza sobre educação que é uma prática social em dado momento histórico.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 14.)

Mediante esse conceito de pedagogia, ressalta-se que, no processo em que se acirram os conflitos de classe e ocorrem as crises da pedagogia, surgem também as pedagogias emergentes, “aquelas em processo de desenvolvimento, cuja reflexão vincula-se à construção ou manutenção de uma hegemonia” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 14). Constata-se, portanto, uma pedagogia emergente que visa a defender e corresponder aos interesses de uma determinada classe – a classe trabalhadora –, sendo denominada de pedagogia crítico-superadora.

Desse modo, o conteúdo deverá ser: diagnóstico (constatação e leitura dos dados da realidade), judicativo (explicita valores a partir de uma ética voltada para os interesses de uma classe social) e teleológico (cuja finalidade é a transformação da realidade). Um projeto político-pedagógico deve apresentar “uma intenção, ação deliberada, estratégia. É político porque expressa uma intervenção em determinada direção e é pedagógico porque realiza uma reflexão sobre a ação dos homens na realidade, explicando suas determinações” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 15). Todo educador deve ter em mente sua função ideológica, seu caminho a ser percorrido – eticamente, de imediato, isso parece estar agredindo o processo educativo, porém, parando-se para pensar, todo projeto político-pedagógico é orientado por uma ideologia, por finalidades políticas e de classe.

Todo educador deve ter definido o seu projeto político-pedagógico. Essa definição orienta a sua prática no nível da sala de aula: a relação que estabelece com os seus alunos, o conteúdo que seleciona para ensinar e como o trata científica e metodologicamente, bem como os valores e a lógica que desenvolve nos alunos.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 15.)

Ao se tratar de currículo ampliado, “os trabalhos científicos desenvolvidos por autores brasileiros e estrangeiros ainda não apontam para uma teoria amplamente aceita na qual se explicite seu objeto de estudo” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 15). Lembrando-se que devem ser levados em conta o ano e o contexto em que essa obra foi escrita, esse fato reforça, portanto, ainda mais a tese de pioneirismo desse clássico na literatura da Educação Física. O currículo escolar “representaria o percurso do homem no seu processo de apreensão do conhecimento científico selecionado pela escola: seu projeto de escolarização” (COLETIVOS DE AUTORES, 1992, p. 16), e esse projeto tem como função social

ordenar a reflexão pedagógica do aluno de forma a pensar a realidade social desenvolvendo determinada lógica. Para desenvolvê-la, apropria-se do conhecimento científico, confrontando-o com o saber que o aluno traz do seu cotidiano e de outras referências do pensamento humano: a ideologia, as atividades dos alunos, as relações sociais, entre outras.

(COLETIVOS DE AUTORES, 1992, p. 16.)

O currículo é a organização do conhecimento escolar, é a padronização do conhecimento a ser ensinado no ambiente escolar, é a sistematização concreta dos conhecimentos teórico-científicos e culturais que serão mediados pelos docentes e profissionais da Educação na escola. Para a elaboração e a construção de um currículo escolar é muito importante entender-se a realidade social em que a escola está inserida, qual o público que frequenta as unidades escolares, as relações econômicas e culturais do contexto daquela região/estado/país, além de levar-se em consideração aspectos históricos da sociedade, entre outros fatores imprescindíveis para uma prática educativa de qualidade.

Numa outra aproximação pode-se dizer que o objeto do currículo é a reflexão do aluno. A escola não desenvolve o conhecimento científico. Ela se apropria dele, dando-lhe um tratamento metodológico de modo a facilitar a sua apreensão pelo aluno. O que a escola desenvolve é a reflexão do aluno sobre esse conhecimento, sua capacidade intelectual.

A amplitude e a qualidade dessa reflexão são determinadas pela natureza do conhecimento selecionado e apresentado pela escola, bem como pela perspectiva epistemológica, filosófica e ideológica adotada. À ordenação desta amplitude e qualidade denominamos eixo curricular: princípio nomeador e referência básica do currículo que está diretamente vinculado aos seus fundamentos sociológicos, filosóficos, antropológicos, psicológicos, biológicos.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 16.)

Esse eixo curricular é o responsável pela escolha das disciplinas, dos projetos que serão desenvolvidos do decorrer do ano letivo e das atividades extraclasse.

Quando um currículo escolar tem como eixo a constatação, interpretação, compreensão e explicação de determinadas atividades profissionais, a reflexão pedagógica se limita à explicação das técnicas e ao desenvolvimento de habilidades, objetivando o exercício e o domínio por parte dos alunos.

Nessas escolas, geralmente as matérias e disciplinas se vinculam à área tecnológica. Aí dá-se prioridade ao conhecimento de técnicas, ou seja, ao ensino das técnicas.

O ensino é aqui compreendido como a atividade docente que sistematiza as explicações pedagógicas a partir do desenvolvimento simultâneo de uma lógica, de uma pedagogia e da apresentação de um conhecimento científico.

No caso das referidas escolas, as explicações pedagógicas são sistematizadas a partir de uma lógica formal, uma pedagogia não crítica e um conhecimento técnico. Trata-se de um currículo conservador, porque a natureza da reflexão pedagógica não explicita as relações sociais e mascara seus conflitos.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 17.)

A crítica ao ensino prioritário de técnicas é justa e necessária, pois esse tipo de ensino é fruto de um currículo conservador, e esse conservadorismo curricular acaba por formular uma pedagogia não crítica que está a serviço da hierarquização e da exclusão, mascarando os conflitos de classe. É possível, no entanto, elaborar um currículo que tenha como parâmetro outra compreensão de educação. Essa é a lógica dialética, aquela que tem como característica a contradição exposta nas relações sociais.

O currículo capaz de dar conta de uma reflexão pedagógica ampliada e comprometida com os interesses das camadas populares tem como eixo a constatação, a interpretação, a compreensão e a explicação da realidade social complexa e contraditória. Isso vai exigir uma organização curricular em outros moldes, de forma a desenvolver uma outra lógica sobre a realidade, a lógica dialética, com a qual o aluno seja capaz de fazer uma outra leitura. Nesta outra forma de organização curricular se questiona o objeto de cada disciplina ou matéria curricular e coloca-se em destaque a função social de cada uma delas no currículo. Busca situar a sua contribuição particular para explicação da realidade social e natural no nível do pensamento/reflexão do aluno. Isso porque o conhecimento matemático, geográfico, artístico, histórico, lingüístico, biológico ou corporal expressa particularmente uma determinada dimensão da “realidade”, e não a sua totalidade.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 17.)

O aluno precisa saber analisar a realidade e a importância das disciplinas nas suas totalidades, todavia isso somente é possível quando o currículo constrói uma relação intrínseca com as disciplinas, enfatizando sua historicidade e aplicando suas especialidades na realidade atual. Enfim, um currículo visa a formar um aluno pensante e com possibilidade de reflexão para discernir a realidade social complexa e contraditória na qual está inserido6.

A visão de totalidade do aluno se constrói à medida que ele faz uma síntese, no seu pensamento, da contribuição das diferentes ciências para a explicação da realidade. Por esse motivo, nessa perspectiva curricular, nenhuma disciplina se legitima no currículo de forma isolada. É o tratamento articulado do conhecimento sistematizado nas diferentes áreas que permite ao aluno constatar, interpretar, compreender e explicar a realidade social complexa, formulando uma síntese no seu pensamento à medida que vai se apropriando do conhecimento científico universal sistematizado pelas diferentes ciências ou áreas do conhecimento.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 17-18.)

Com isso, quando o aluno perde a reflexão pedagógica sobre o conteúdo, perde também a capacidade de reflexão sobre a totalidade. Na relação entre as matérias enquanto elementos de um todo, que é o currículo, elucida-se a noção de currículo ampliado.

Cada matéria ou disciplina deve ser considerada na escola como um componente curricular que só tem sentido pedagógico à medida que seu objeto se articula aos diferentes objetos dos outros componentes do currículo (Línguas, Geografia, Matemática, História, Educação Física etc.). Pode-se afirmar que uma disciplina é legítima ou relevante para essa perspectiva de currículo quando a presença do seu objeto de estudo é fundamental para a reflexão pedagógica do aluno e a sua ausência compromete a perspectiva de totalidade dessa reflexão.

Há, portanto, uma relação: ação com dois pólos determinantes, na qual um não existe sem o outro. A relação entre as matérias enquanto partes e o currículo enquanto todo é uma das referências do conceito de currículo ampliado que propomos. Esse currículo se materializa na escola através do que se denomina de dinâmica curricular.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 18.)

Ao materializar a discussão político-ideológica da construção do currículo, ocorrerá também, portanto, um diferenciado trabalho em sala de aula. “A base material em que se constrói o projeto de escolarização é formada por três pólos: o trato com o conhecimento, a organização escolar e a normalização escolar” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 18). Ao iniciar sua discussão sobre “alguns princípios curriculares no trato com o conhecimento”, a obra diz que “o trato com o conhecimento reflete a sua direção epistemológica e informa os requisitos para selecionar, organizar e sistematizar os conteúdos de ensino” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 19). Libâneo (2013) enfatiza que os conteúdos devem ter significação com a vida humana, fazer sentido para os alunos e ir ao encontro das necessidades, aptidões, motivos e desejos dos alunos.

Seis princípios básicos curriculares no trato com o conhecimento são apresentados: relevância social do conteúdo; contemporaneidade do conteúdo; adequação às possibilidades sociocognitivas dos alunos; simultaneidade dos conteúdos enquanto dados da realidade; espiralidade da incorporação das referências; provisoriedade do conhecimento. O princípio da relevância social do conteúdo

implica em compreender o sentido e o significado do mesmo para a reflexão pedagógica escolar. Este deverá estar vinculado à explicação da realidade social concreta e oferecer subsídios para a compreensão dos determinantes sócio-históricos do aluno, particularmente a sua condição de classe social.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 19.)

Ao destacar o princípio da contemporaneidade do conteúdo, a obra destaca que “isso significa que a sua seleção deve garantir aos alunos o conhecimento do que de mais moderno existe no mundo contemporâneo, mantendo-os informados dos acontecimentos nacionais e internacionais, bem como do avanço da ciência e da técnica” (Coletivo de Autores, 1992, p. 19-20), porém vai a Saviani para ressaltar que o contemporâneo está mutuamente relacionado com o considerado clássico, ou seja, os conteúdos verdadeiramente clássicos “jamais perdem a sua contemporaneidade” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 20).

O próximo princípio enfatiza a relação entre conhecimento científico e espontâneo, ressaltando as capacidades sociocognitivas dos alunos, e o princípio da adequação às possibilidades sociocognitivas dos alunos, destacando que é necessário “ter, no momento da seleção, competência para adequar o conteúdo à capacidade cognitiva e à prática social do aluno, ao seu próprio conhecimento e às suas possibilidades enquanto sujeito histórico” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p.20), ou seja, o conhecimento científico está mutuamente relacionado com o conhecimento espontâneo, aquele tipo de conhecimento que os alunos adquirem em meio às suas vivências cotidianas. O outro princípio é o da simultaneidade dos conteúdos enquanto dados da realidade. A simultaneidade se contrapõe à ideia conservadora de organização curricular sistematizada pelo sistema de seriação, e, segundo a obra, os conteúdos são distribuídos por ordem de complexidade aparente. Na contramão desse modo de organização dos conteúdos, ressalta-se que

Numa perspectiva dialética, os conteúdos teriam que ser apresentados aos alunos a partir do princípio da simultaneidade, explicitando a relação que mantêm entre si para desenvolver a compreensão de que são dados da realidade que não podem ser pensados nem explicados isoladamente. Nessa perspectiva o que mudaria de uma unidade para outra seria a amplitude das referências sobre cada dado, isso porque “o conhecimento não é pensado por etapas. Ele é construído no pensamento de forma espiralada e vai se ampliando”. (Varjal, 1991, p. 35).

(Coletivo de Autores, 1992, p. 21.)

Isso vai ao encontro do quinto princípio, que é o da espiralidade da incorporação das referências de pensamento, ou seja, sob uma forma espiralada de organização, mediante a perspectiva dialética, o conteúdo e o conhecimento de uma disciplina específica estão sendo relacionados de modo indireto, e até mesmo direto, com as outras disciplinas, fomentando a apropriação do conceito de totalidade pelo aluno no momento de seu aprendizado. Por exemplo, numa aula em que será trabalhada a brincadeira de pular corda, o professor pode instigar os alunos a pular contando os números, cantando uma música, fazendo referência a Matemática e Educação Musical; na brincadeira de pique-fruta, para a criança não ser pega pelo piqueiro, ela deve falar o nome de uma fruta e, nesse momento, o professor pode fazer algumas alterações, ou seja, no primeiro momento os alunos só podem falar frutas que começam com vogais, em um segundo momento, apenas as que começam com consoantes, mobilizando o aprendizado da língua portuguesa.

O último princípio curricular é a provisoriedade do conhecimento, rompendo com a ideia de terminalidade dos conteúdos, ou seja, propicia ao aluno a consciência de historicidade do objeto de estudo que está sendo apropriado desde a sua gênese e seu desenvolvimento histórico até o momento de sua investigação. “Isso quer dizer que se deve explicar ao aluno que a produção humana, seja intelectual, científica, ética, moral, afetiva etc., expressa um determinado estágio da humanidade e que não foi assim em outros momentos históricos” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 21-22). Sendo assim, é mobilizado no aluno o interesse em se apropriar do movimento histórico, do movimento do real, da dinâmica do objeto que está sob investigação em sala de aula e nas práticas reflexivas.

Essa compreensão é básica para a concretude do currículo. A nosso ver, ele se materializa quando penetra no pensamento do aluno dando uma dualidade a esse pensamento. Tal qualidade vai sendo construída através de aproximações sucessivas do sujeito que pensa com o objeto pensado, mediado pelo conhecimento. Por essa razão se afirma o entendimento de que o conhecimento é uma representação do real no pensamento.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 22.)

Ajudar o aluno a pensar sobre o objeto de estudo consiste em trabalhar baseando-se no pensamento teórico, aquele que busca a essência do objeto, que vai além da simples aparência, que supera o reducionismo da externalidade dos objetos. Um currículo organizado sob os parâmetros da lógica formal, portanto, acaba por formalizar “a fragmentação, a estaticidade, a unilateralidade, a terminalidade, a linearidade e o etapismo” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 22), podendo-se afirmar que sobre essa lógica formal a apropriação do conhecimento não se constitui pelo pensamento, mas, sim, pelo condicionamento. “O conhecimento é inculcado e essa inculcação leva à formação do indivíduo isolado” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 22).

Em contraposição a essa lógica formal de currículo, de conteúdo, de conhecimento (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 22), afirma-se que “a dinâmica curricular na perspectiva dialética favorece a formação do sujeito histórico à medida que lhe permite construir, por aproximações sucessivas, novas e diferentes referências sobre o real no seu pensamento”. Assim, destaca-se também a historicidade do conhecimento científico – e do senso comum também, por que não? – que, por sinal, “permite-lhe, portanto, compreender como o conhecimento foi produzido historicamente pela humanidade e o seu papel na história dessa produção”. Com essa organização curricular que visa à formação de um aluno com consciência histórica de classe, que seja capaz de interpretar os conteúdos e relacioná-los com a sua realidade social, a obra em destaque também ressalta a importância dos ciclos de escolarização sobre o modelo de seriação.

Nos ciclos, os conteúdos de ensino são tratados simultaneamente, constituindo-se referências que vão se ampliando no pensamento do aluno de forma espiralada, desde o momento da constatação de um ou vários dados da realidade, até interpretá-los, compreendê-los e explicá-los.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 23.)

A organização escolar deve ser orientada por meio de quatro ciclos de escolarização: *1º ciclo: da pré-escola à 3ª série (da educação infantil ao 4º ano): é o ciclo da organização da identidade dos dados da realidade; *2º ciclo: da 4ª à 6ª série (do 5º ao 7º ano): iniciação da sistematização do conhecimento; *3º ciclo: da 7ª à 8ª série (do 8º ao 9º ano): ampliação da sistematização do conhecimento; *4º ciclo: do 1º ao 3º ano (ensino médio): aprofundamento da sistematização do conhecimento (COLETIVO DE AUTORES, 1992). Nesse contexto, a formação dos alunos pode ser vista e encarada como aquela que valoriza a coletividade e enfatiza o contexto histórico e cultural. O ciclo de escolarização é utilizado como um exemplo para a superação da seriação e de um ensino reducionista, ressaltando a importância do conhecimento científico bem trabalhado na formação do sujeito crítico, emancipado e participante da vida social, interventor dos interesses de classe.

Quando se trata da dinâmica curricular, ressaltam-se duas vertentes de Educação Física escolar, a que está sob as bases da aptidão física e aquela que busca a reflexão sobre a cultura corporal, como foi dito anteriormente. Constata-se que a perspectiva que tem como objeto de estudo da Educação Física o desenvolvimento da aptidão física tem contribuído historicamente para a manutenção da ideologia dominante burguesa no poder e no controle das relações sociais, fomentando a consolidação e a manutenção da ordem capitalista. Essa concepção de Educação Física

Apoia-se nos fundamentos sociológicos, filosóficos, antropológicos, psicológicos e, enfaticamente, nos biológicos para educar o homem forte, ágil, apto, empreendedor, que disputa uma situação social privilegiada na sociedade competitiva de livre concorrência: a capitalista. Procura, através da educação, adaptar o homem à sociedade, alienando-o da sua condição de sujeito histórico, capaz de interferir na transformação da mesma. Recorre à filosofia liberal para a formação do caráter do indivíduo, valorizando a obediência, o respeito às normas e à hierarquia. Apoia-se na pedagogia tradicional influenciada pela tendência biologicista para adestrá-lo. Essas concepções e fundamentos informam um dado tratamento do conhecimento.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 24.)

Assim, afirmar-se que a Educação Física obtinha – e, de certo modo, ainda obtém – uma visão de mundo com a ótica técnico-biologicista, o técnico refere-se ao caráter instrumentalista, tecnicista em seu sentido literal da palavra; ao sentido biologicista; faz-se referência à forte influência médica e higienista. Nessa perspectiva, o esporte torna-se o principal conteúdo a ser trabalhado, pois estimula a necessidade do alto rendimento “e, por isso, as modalidades esportivas selecionadas são geralmente as mais conhecidas e que desfrutam de prestígio social, como, por exemplo, voleibol, basquetebol etc.” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 24). Os conteúdos de ensino enfatizavam a técnica e a tática desses esportes considerados fundamentais e que se despojavam do glamour social, sendo exaltados os passes, dribles, arremessos, lançamentos, entre outros movimentos mecanizados.

A obra (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 25), para justificar e comprovar seu discurso sobre essa perspectiva de Educação Física e seu modo de tratamento diferenciado das outras disciplinas, foi buscar a referência no “Decreto Federal nº 69.450/71, título IV, cap. I”, que pregava:

Art. 5 – Os padrões de referência para orientação das normas regimentais da adequação curricular dos estabelecimentos, bem como para o alcance efetivo dos objetivos da Educação Física, desportiva e recreativa são situados em:

I – Quanto à seqüência e distribuição semanal, três sessões no ensino, primário e no médio e duas sessões no ensino superior, evitando-se concentração de atividades em um só dia ou em dias consecutivos.

II – Quanto ao tempo disponível para cada sessão, 50 min. não incluindo o período destinado à preparação dos alunos para as atividades.

III – Quanto à composição das turmas, 50 alunos do mesmo sexo, preferencialmente selecionados por nível de aptidão física.

A separação das turmas por sexo, a organização das aulas para não serem no mesmo dia ou em dias consecutivos e alunos sendo separados pela aptidão física são exemplos a serem citados para constatar que a Educação Física era sistematizada sobre as bases fisiológicas do treinamento desportivo. O caráter de exclusão entre homens e mulheres, entre aqueles que eram considerados aptos ou não, a hierarquização, a individualização são evidências de classificação que ainda insistem em existir nas aulas de Educação Física e que devem ser criticadas e superadas.

Torna-se imprescindível grifar que a obra não desconsidera o domínio da técnica e da tática, porém visa a tratá-las de modo diferenciado. Esses não devem ser elementos exclusivos, mas, sim, ser trabalhados como aspectos constituintes comuns do esporte que estão sendo ensinados e refletidos na escola, assim como o erro e o acerto, a derrota e a vitória, buscando sempre um salto qualitativo na aprendizagem e no desenvolvimento dos alunos. Esse destaque serve como ponto de partida para enfatizar que a perspectiva que ressalta a reflexão sobre a cultura corporal é totalmente diferente da anterior; nela, os objetos de ensino da Educação Física – esportes, dança, atletismo, brincadeiras, saúde – são compreendidos como elementos histórica e culturalmente constituídos, assim, como é o próprio indivíduo em formação.

Busca desenvolver uma reflexão pedagógica sobre o acervo de formas de representação do mundo que o homem tem produzido no decorrer da história, exteriorizadas pela expressão corporal: jogos, danças, lutas, exercícios ginásticos, esporte, malabarismo, contorcionismo, mímica e outros, que podem ser identificados como formas de representação simbólica de realidades vividas pelo homem, historicamente criadas e culturalmente desenvolvidas.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 26.)

Com o movimento da construção histórica da corporalidade do homem e de sua própria existência enquanto ser consciente, deixando de ser primitivo e quadrúpede para aos poucos ir constituindo sua evolução, as dificuldades e obstáculos que eram encontrados em seu meio de convivência foram sendo superados e desenvolvidas suas capacidades motoras, fisiológicas, psicológicas e sociais.

É fundamental para essa perspectiva da prática pedagógica da Educação Física o desenvolvimento da noção de historicidade da cultura corporal. É preciso que o aluno entenda que o homem não nasceu pulando, saltando, arremessando, balançando, jogando etc. Todas essas atividades corporais foram construídas em determinadas épocas históricas, como respostas a determinados estímulos, desafios ou necessidades humanas.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 27.)

Ainda ressaltando a importância da historicidade no conteúdo da Educação Física, a obra destaca que,

Contemporaneamente pode-se afirmar que a dimensão corpórea do homem se materializa nas três atividades produtivas da história da humanidade: linguagem, trabalho e poder.

É linguagem um piscar de olhos enquanto expressão de namoro e concordância; um beijo enquanto expressão de afetividade; uma dança enquanto expressão de luta, de crenças. Com as mãos os surdos se comunicam pela linguagem gestual.

É trabalho quando desenvolve diferentes movimentos sistematizados, ordenados, articulados e institucionalizados, transformados, portanto numa produção simbólica: um jogo, uma ginástica, um esporte, uma dança, uma luta.

Finalmente, é poder quando expressa uma disputa ou desenvolve a força física para a dominação, por exemplo, numa luta corpo a corpo.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 27, grifo meu.)

Destarte, o conteúdo deve ser trabalhado de forma que ressalte a gênese do objeto de estudo, demonstrando ao aluno a constituição histórica do objeto, da sociedade e de si próprio e, principalmente, proporcionando o entendimento de que ele é um sujeito que pode interferir nos ditames do meio em que está inserido, tendo como objetivo essa visão historicizada, “a compreensão de que a produção humana é histórica, inesgotável e provisória” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 27). Em meio a esse contexto, a perspectiva aqui em destaque tem como objetivo central contribuir

para a afirmação dos interesses de classe das camadas populares, na medida em que desenvolve uma reflexão pedagógica sobre valores como solidariedade substituindo individualismo, cooperação confrontando a disputa, distribuição em confronto com apropriação, sobretudo enfatizando a liberdade de expressão dos movimentos – a emancipação –, negando a dominação e submissão do homem pelo homem.

(COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 27-28.)

Esse objetivo contribui para a constituição da identidade de classe dos alunos, situando valores na prática da sociedade capitalista, na qual são sujeitos com necessidades históricas do “engajamento deliberado na luta organizada pela transformação estrutural da sociedade e pela conquista da hegemonia popular” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 28), evidenciando o caráter político, social e cultural na relação entre escola e sociedade.

Para tanto, cultura corporal é tratada como um processo de internalização e reprodução das práticas sociais constituídas no decorrer da história e da cultura, em um contexto sócio-político-econômico em que o ser humano está inserido. A abordagem crítico-superadora materializa-se, portanto, como uma pedagogia emergente a favor das camadas populares na luta de classes contra a hegemonia da classe dominante que detém os moldes da estruturação da educação formal, sobretudo nos dias atuais, sob a égide do neoliberalismo e da tendência em transformar a educação em mercadoria.

A obra (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 30) cita que a concretização da (re)organização e da (re)elaboração de normas que valorizem o intuito da educação (física) ocorre somente por meio da “luta pela afirmação do projeto político pedagógico disputado no âmbito do movimento histórico pela transformação estrutural da sociedade”. Esses embates e disputas na Educação “são historicamente vividos e dão movimento às lutas pelas transformações educacionais”. Na escola, o movimento orienta e direciona os educadores/trabalhadores comprometidos com a democracia e, na Educação Física, “esse movimento se expressa na vontade política de construção de uma teoria geral da Educação Física que consubstancie uma prática transformadora”.

3 Considerações finais

A perspectiva de transformação social e a defesa de um projeto histórico igualitário e emancipador são grandes desafios, e é justamente esse compromisso social e político da Educação Física no âmbito escolar que instigou a escrita deste texto, pois, em tempos de fortes ameaças neoliberais, consolidando a saúde, a moradia, o transporte, a segurança e, sobretudo, a educação como mercadoria, e não como um direito humano fundamental, destacar uma obra clássica tão importante para a Educação é um modo de demonstrar resistência a esses ataques contra a formação humana da classe trabalhadora7.

A abordagem crítico-superadora enfatizando a reflexão sobre a cultura corporal em momento pós-ditadura militar no Brasil é compreendida como uma resposta pedagógica e política da Educação Física em meio ao efervescente contexto político e social. Com o intuito de criticar e superar o modelo biologicista de Educação Física que resulta no desenvolvimento da aptidão física e, com isso, na exclusão e hierarquização dos alunos, a proposição da obra do Coletivo de Autores representa uma evidente ruptura epistemológica e metodológica nas aulas, bem como a formação da consciência de classe nos alunos com vistas a formar sujeitos críticos, emancipados e participantes na sociedade.

Assim, como há quase trinta anos, os pressupostos de uma abordagem que visa verdadeiramente reconhecer os interesses históricos e imediatos da classe trabalhadora devem ser lembrados e tratados como bandeira na luta explícita ou implícita contra a lógica neoliberal, que, agora sob novas roupagens, reconfigura o sistema capitalista, fomentando e naturalizando a desigualdade social e o fracasso escolar, utilizando-se de palavras como competição, meritocracia, empreendedorismo, hierarquia, livre mercado, livre comércio, mediante pilares como a tecnologia e a inovação.

1Todos vinculados a universidades públicas, seja em estudos ou enquanto professores e, também, alguns já ocuparam cargos governamentais nas áreas de Educação e Educação Física.

2Depoimento de Lino Castellani Filho a Marcílio Souza Júnior (na época era coordenador do Grupo ETHNOS na época das entrevistas) em um projeto que culminou na escrita e publicação de artigo científico e “integrou e revitalizou a obra, permitindo-lhe uma 2ª edição” (COLETIVO DE AUTORES, 2012, p. 9).

3A fundamentação da abordagem crítico-superadora é um assunto muito polêmico, portanto, discutir sobre isso não é aqui o objetivo central; no entanto, é importante destacar que esta é uma abordagem que propõe a transformação social que reconheça e valorize verdadeiramente os interesses da classe trabalhadora.

4Lino Castellani Filho cita, em seu depoimento à segunda edição da obra, que “a junção das reflexões de Paulo Freire com as trazidas por Saviani através da concepção histórico-crítica da educação com os seus seguidores, como as do próprio Libâneo, com a Pedagogia crítico-social dos conteúdos, mostrou-se possível não se configurarem ideias antagônicas, e, sim, complementares” (CASTELLANI FILHO, SOUZA JÚNIOR, 2012, p. 193).

5A utilização correta da referência também é outro assunto muito polêmico, todavia a obra será adotada neste texto como Coletivo de Autores (1992).

6 Beltrão, Taffarel, Teixeira (2020); Garcia, Rodrigues, Tavares (2020); Bernardi, Fazenda Júnior (2018); Libâneo (2013); Sacristán (2004); Ventura (2001); Oliveira (2001); Mascarenhas (1998); Escobar (1995) são exemplos de estudos que corroboram os princípios de um currículo ampliado voltado para a formação humana, cada qual com suas particularidades históricas e políticas.

7O Grupo LEPEL da Universidade Federal da Bahia, o próprio grupo ETHNOS da Universidade de Pernambuco, são exemplos de grupos especializados no desenvolvimento histórico e nas contribuições da abordagem crítico-superadora de Educação Física para a formação humana. Várias são as pesquisas desenvolvidas por esses grupos e por estudiosos que se dedicam a essa temática, inclusive teses e dissertações, disseminando os princípios da cultura corporal em ambientes escolares. Como exemplos, citamos alguns artigos científicos, tais como, Simões et al (2018); Viotto Filho (2018); Godoi, Grando, Xavier (2018); Tenório et al (2017); Lorenzini et al (2015); Iora, Souza (2015); Gonçalves, Lavoura (2011).

Referências

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Recebido: 16 de Abril de 2020; Revisado: 26 de Janeiro de 2022; Aceito: 24 de Março de 2022

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