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Educação: Teoria e Prática

versión impresa ISSN 1993-2010versión On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.32 no.65 Rio Claro  2022

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v32.n.65.s15694 

Resenhas

Educação matemática crítica direcionando currículos

Critical mathematics education directing curriculums

Educación matemática crítica dirigiendo currículos

Douglas Ribeiro Guimarães1 
http://orcid.org/0000-0001-6247-3506

1Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, São Paulo – Brasil. E-mail: douglas.guimaraes@unesp.br


A tese de doutorado intitulada “Educação Matemática Crítica Direcionando Currículos: constituição de sujeitos e de uma tecnologia de governo” é de autoria de Júlio César Gomes de Oliveira, que a defendeu em 2020 sob a orientação do Prof. Dr. Marcio Antonio da Silva no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em Campo Grande. Júlio Oliveira é professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano, campus Avançado de Ipameri1.

O objetivo geral da pesquisa é “problematizar enunciados de um currículo construído pelo discurso o (sic) da EMC [Educação Matemática Crítica] que circulam no campo da Educação Matemática” (OLIVEIRA, 2020, p. 20). Para atender a tal proposta, o autor fez uma análise dos textos de revistas relevantes na área da Educação Matemática, bem como de três edições do Encontro Nacional de Educação Matemática (ENEM). A análise do discurso, inspirada em Michel Foucault, foi a opção que Oliveira (2020) assumiu para analisar esse conjunto de textos.

Cabe destacar que essa pesquisa de doutorado decorre de inquietações de Oliveira (2020) desde a sua dissertação de mestrado (OLIVEIRA, 2015), defendida no mesmo programa. À época, o autor assumia referenciais de cunho crítico, a Educação Matemática Crítica (EMC) no caso, e, a partir de estranhamentos em relação a esse referencial teórico e, também, por mudanças em seu grupo de pesquisa2, utiliza teorizações de cunho contemporâneo na tese aqui resenhada.

Vale ressaltar, ainda, que a divisão da tese é feita em três partes. Na primeira, que conta com dois capítulos, há a trajetória do autor, contendo objetivos, justificativa e uma breve revisão de literatura, buscando estabelecer uma delimitação com a pesquisa; no segundo, são apresentadas as ferramentas teórico-metodológicas de inspiração foucaultiana. A parte dois é composta por quatro artigos escritos em coautoria com o orientador da pesquisa. Esses artigos enfatizam os discursos relacionados com a constituição de sujeitos (professor e alunos) e uma tecnologia de governo com foco no ensino de matemática e no conteúdo. Por fim, na terceira parte, o autor apresenta algumas conclusões em relação aos artigos e explica o processo de subjetivação do próprio pesquisador, que decorreu no desenvolvimento do trabalho.

O foco da pesquisa de Oliveira (2020) não está em dizer ou caracterizar o que é a EMC a partir de seus principais pesquisadores, como, por exemplo, Ole Skovsmose, mas, sim, mostrar como ela se constitui discursivamente. Sendo assim, um ponto importante assumido pelo pesquisador foi analisar os discursos, em artigos científicos (em sua maioria), que versam sobre a EMC.

Oliveira (2020) compreende os estudos em Educação Matemática como textos curriculares, ou seja, eles indicam como deveriam ocorrer as coisas em relação aos assuntos educacionais; além disso, assume um posicionamento de investigar as investigações, em que “a atividade de pesquisar em educação matemática não é neutra, na medida em que pode gerar contribuições que objetivam organizar e realizar um processo de subjetivação dos indivíduos” (OLIVEIRA, 2020, p. 24).

É justamente esse um ponto central da pesquisa, e, em decorrência desse fato, são analisadas as produções ligadas à EMC nas revistas Bolema, Zetetiké e Revista Paranaense de Educação Matemática (RPEM), além das edições de 2010, 2013 e 2016 do ENEM. A justificativa pela escolha dessas revistas e do evento foi bem construída, levando em consideração a relevância e o impacto das publicações nesses espaços. O ENEM, por exemplo, configura-se como o maior congresso brasileiro na área de Educação Matemática, contando com participações de professores da Educação Básica, professores e estudantes das licenciaturas em Matemática e em Pedagogia, estudantes da pós-graduação e pesquisadores.

As buscas pelas publicações ocorreram por meio do site de cada revista e das edições do ENEM, sendo que o critério de inclusão dos textos era que deveriam conter a expressão “Educação Matemática Crítica” em seus títulos, resumos e/ou palavras-chave. Além disso, buscaram-se menções a “Skovsmose” durante o desenvolvimento de cada texto, de modo a contribuir com a escolha das publicações. Especificamente quanto à RPEM, ela foi escolhida por publicar, em 2017, uma edição temática sobre a EMC. Já Bolema e Zetetiké são revistas tradicionais e importantes para a Educação Matemática tanto no Brasil como no exterior.

Os textos selecionados são artigos científicos, relatos de experiência, minicursos, pôster e mesa-redonda (os três últimos exclusivos das edições do ENEM). Entre os períodos das publicações, observa-se que os textos da RPEM pertencem à edição temática de 2017, enquanto os do Bolema e da Zetetiké iniciam-se em 2000 e 2001, respectivamente. Como apontado por Oliveira (2020), entretanto, não houve restrição quanto ao período de busca, ou seja, não há publicações anteriores ao ano 2000, mesmo com o Bolema tendo sido criado em 1985 e a Zetetiké, em 1993.

No que tange à pesquisa em si, uma breve revisão da literatura foi empregada, em teses e dissertações, que relaciona três temas: educação matemática, discurso e Michel Foucault. O autor revisou os trabalhos a partir do banco de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)3 e encontrou um total de 40 (23 dissertações e 17 teses) trabalhos, trazendo para a tese oito deles. Vale dizer que, nas expressões da busca, os termos “Foucault”, ”foucaultiana” e/ou ”foucaultianas” foram utilizados em combinação com “educação matemática” e “discurso”. Para as pesquisas selecionadas, Oliveira (2020) faz um resumo explicativo e as coloca em comparação com a sua investigação, evidenciando semelhanças e diferenças. Essa revisão mostrou que trabalhos que associam os três temas citados anteriormente não apresentam estudos com foco na EMC, o que faz que a pesquisa de Oliveira (2020) ganhe relevância e tenha importância para a área.

As ferramentas teórico-metodológicas da tese têm inspiração nos estudos de Michel Foucault, principalmente com relação à análise do discurso. Termos como verdade, discurso, enunciado, enunciação, sujeito, poder-saber, dispositivo, governamento, assujeitamento e relações de poder são explicados, abordando tanto os textos de Foucault quanto de outros interlocutores no campo da Educação e da Educação Matemática.

Ainda nessa primeira parte, uma característica que será fundamental para o restante da tese é entender o termo “currículo-EMC”, enfatizado pelo autor ao conceber “que o discurso da EMC constrói um currículo crítico” (OLIVEIRA, 2020, p. 34), ou seja, “mergulhado em relações de poder, por meio das quais é possível a produção de identidades de uma forma bem específica no campo social” (OLIVEIRA, 2020, p. 37). Tal termo relaciona-se com o discurso, ou os enunciados, que as pesquisas analisadas apresentam. Em outras palavras, o currículo-EMC, a partir de pesquisas entendidas como textos curriculares, produz uma identidade de professor e estudantes.

Antes de abarcar os objetivos dos artigos na segunda parte da tese, vale fazer algumas considerações, as quais estarão presentes em todos esses artigos: 94 textos são o corpus de análise (oriundos das revistas e do ENEM) que contou com a leitura integral por parte do autor e que recorreu ao software Atlas.ti para organizar os dados. Em cada um desses textos, Oliveira (2020) buscou por enunciações que ajudaram a compor enunciados relacionados com cada um dos artigos. Os enunciados foram sendo produzidos ao longo do estudo dos textos e não tinham classificação a priori. Além disso, idas e vindas nesses textos foram necessárias para descrever os enunciados.

Outro ponto importante levantado pelo autor é em relação aos cuidados metodológicos que foram necessários para o desenvolvimento da pesquisa. Entre eles destacam-se: a composição do olhar do pesquisador e do orientador para analisar e construir os enunciados, não com objetivo de explicar, na totalidade, uma realidade, pois não queriam desvelar uma verdade, e, sim, buscar o que foi dito; não ver a continuidade ou constância dos objetos, não ver a recorrência de enunciações; e os enunciados analisados foram tratados como conjunto de acontecimentos discursivos descontínuos.

Como dito anteriormente, a parte dois é composta por quatro artigos. De modo geral, os dois primeiros têm preocupações com os dois sujeitos, professor e estudantes, que um currículo-EMC constitui por meio do discurso. A questão norteadora dos dois artigos é: quais são os desejáveis, professor de matemática e estudante, constituídos pelo discurso da EMC?

A responsabilização do professor de matemática por alicerçar a consciência do educando e torná-lo crítico4 foi o enunciado formado para o desejável professor; além disso, outros dois enunciados estão associados ao primeiro, a saber: o professor de matemática repensa sua prática pedagógica e o professor de matemática repensa os conteúdos. Oliveira (2020) apresenta consistência ao detalhar a formação desses enunciados, compondo-os com enunciações (trechos) do corpus em análise. A maior crítica é que, se esse currículo-EMC pode colocar em funcionamento regras sobre como deveria ser um professor de matemática, “podemos dizer que um currículo-EMC procura estabelecer o governamento dos indivíduos que queiram vir a ser um professor” (OLIVEIRA, 2020, p. 100).

O enunciado referente ao desejável estudante ficou: Matemática para formar um cidadão-crítico-consciente-ativo que é responsável, agente de transformação social, engajado politicamente, que interpreta e age em situações estruturadas pela matemática e que é questionador dos usos de modelos matemáticos presentes na sociedade. Como anteriormente, esse enunciado foi descrito com firmeza em seus elementos constituintes, corroborando uma explicação notável e interessante por parte de Oliveira (2020). O autor elucida que, ao formar um aluno desejável, ao mesmo tempo forma-se um aluno não desejável, ou seja, um oposto ao outro. “Dessa forma, o enunciado apresenta traços de um poder totalizante – ressonância do pensamento moderno – que busca realizar um processo de individualização ao querer forjar uma única subjetividade para todas as pessoas no contexto da educação matemática” (OLIVEIRA, 2020, p. 120).

Para os outros dois artigos, a ideia de que “um currículo-EMC, a fim de produzir possíveis subjetividades desejáveis (um professor desejável e um aluno desejável), dentro da educação matemática, cria sua própria tecnologia que opera para reforçar seu próprio discurso” (OLIVEIRA, 2020, p. 143) será importante para discutir os enunciados referentes ao ensino de matemática (terceiro artigo) e ao conteúdo (quarto artigo).

O enunciado no ensino de matemática há proposição de realização de investigação (cenários para investigação), o aluno participa ativamente e o diálogo é uma prática que se faz indispensável cria regras específicas para que o currículo-EMC opere. Um ponto crítico desse enunciado é que há uma condução das condutas, como afirmado por Oliveira (2020), no sentido de que os sujeitos são os responsáveis pelas ações desenvolvidas, tendo a sensação de liberdade; assim, as relações de poder estabelecidas são mais sutis e menos evidentes.

Em relação ao conteúdo, ele enfatiza um trabalho com foco na realidade dos estudantes, destacando problemas relevantes e interessantes que abordam questões sociais. De forma semelhante ao enunciado sobre o ensino, há uma proposta de governar sem governar. Oliveira (2020) ainda discute a questão da realidade, afirmando que o que é visto no ambiente escolar, como as situações de uso do cartão de crédito para trabalhar taxas e juros, não será a mesma quando o aluno “sai[r] para comprar um videogame, por exemplo. Nessa compra, há somente semelhanças de famílias com o tema visto na escola” (OLIVEIRA, 2020, p. 172).

Finalizadas as discussões dos artigos, o rumo para a parte final da tese é tanto uma retomada de tudo o que foi escrito, com considerações do autor, como também a sua subjetivação no decorrer da pesquisa. Oliveira (2020, p. 179) afirma que “procuramos adotar uma ética da pesquisa pelo viés político, isto é, como as pesquisas dentro de um dispositivo da educação matemática estão, inextricavelmente, colaborando para a produção de determinadas maneiras de ser na e pela educação matemática”. Isso fica claro com o próprio processo de mudança de sua dissertação para tese, que fez um movimento de referenciais críticos para teorizações contemporâneas.

A junção dos artigos da segunda parte é explicitada quando Oliveira (2020, p. 181) fala que “os enunciados [...], ainda que tenham sido apresentados em artigos diferentes, acolhem uns aos outros se articulando e reforçando mutuamente em uma rede discursiva”. O autor conclui, então, que se fazem necessários outros movimentos, dentro da Educação Matemática, para ir em outras direções do que está proposto pelo currículo-EMC ao criar “uma forma específica e desejável de professor e aluno por intermédio de uma tecnologia de governo” (OLIVEIRA, 2020, p. 188).

Em busca de uma crítica geral ao texto, pode-se dizer que o autor não esclarece a opção por apresentar a segunda parte em formato de artigos; uma primeira impressão, e isso parece ocorrer naturalmente, é que há a repetição de alguns termos, como os procedimentos metodológicos, as teorizações de Foucault e a constituição do material de análise, o que faz que a leitura não flua.

Até que ponto escrever os artigos em coautoria mostra as contribuições do pesquisador e quais os julgamentos da banca examinadora ao se deparar com artigos (no caso, dois já publicados antes de a tese ser defendida) que já foram aprovados pela comunidade científica são pontos relevantes trazidos por Costa (2014) para se pensar neste formato de trabalho. O autor poderia ter discutido com profundidade essa opção de modo a contribuir com as reflexões sobre formatos tradicionais e Multipaper (MUTTI; KLÜBER, 2018) nos trabalhos acadêmicos.

Outros questionamentos estão relacionados com a revisão de literatura e a constituição do corpus de análise: o autor discute os trabalhos que têm mais aproximação com a pesquisa proposta, mas por que as outras pesquisas são excluídas (32 de 40)? Ao definir um foco em analisar as três revistas citadas, em relação ao Bolema e à Zetetiké, o autor não expressou os limites máximos da busca (no texto observa-se que não passam de 2016 e 2014, respectivamente), ou seja, até que ano se procurou por trabalhos que versavam sobre a Educação Matemática Crítica?

Além desses outros cuidados metodológicos, um questionamento final pode ser feito: quando Oliveira (2020) apresenta um olhar que vai em uma direção diferente do construído pelo currículo-EMC, a constituição desse “novo olhar” também provocaria outras formas de produção de sujeitos e de tecnologias de governo? Quais seriam suas diferenças?

Em suma, a tese de Oliveira (2020) se faz necessária para a Educação Matemática, uma vez que aborda a EMC de modo a problematizá-la, não conferindo uma conclusão a favor ou contra essa perspectiva, mas, sim, propondo uma reflexão a partir de diversos textos acadêmicos. O processo de mudança do mestrado para o doutorado mostra-se como um exemplo para os educadores matemáticos em formação, uma vez que apresenta a desconstrução do próprio pesquisador frente ao seu trabalho de investigação.

1Informações disponíveis no Currículo Lattes de Júlio César Gomes de Oliveira, disponível em: http://lattes.cnpq.br/1244147756598692. Acesso em: 31 jan. 2021.

2Grupo de Pesquisa Currículo e Educação Matemática (GPCEM) coordenado pelo Prof. Dr. Marcio Antonio da Silva.

4A opção de trazer em itálico os enunciados segue uma abordagem semelhante à de Oliveira (2020) ao fazer uso de trechos das pesquisas que compõem a explicação dos enunciados elaborados pelo autor.

Referências

COSTA, W. N. G. Dissertações e teses Multipaper: uma breve revisão bibliográfica. In: SEMINÁRIO SUL-MATO-GROSSENSE DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 8., 2014, Campo Grande. Anais [...] Campo Grande: SESEMAT, 2014. p. 1-10. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/sesemat/article/view/3086. Acesso em: 13 fev. 2021. [ Links ]

MUTTI, G. S. L.; KLÜBER, T. E. Formato multipaper nos programas de pós-graduação stricto sensu brasileiros das áreas de educação e ensino: um panorama. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA E ESTUDOS QUALITATIVOS, 5., 2018, Foz do Iguaçu. Anais [...] Foz do Iguaçu: UNIOESTE, 2018. p. 1-14. Disponível em: https://sepq.org.br/eventos/vsipeq/documentos/02858929912/11. Acesso em: 13 fev. 2021. [ Links ]

OLIVEIRA, J. C. G. Currículos de matemática no ensino médio: significados que professores atribuem a uma Trajetória Hipotética de Aprendizagem desenvolvida à luz da Educação Matemática Crítica. 2015. 214 f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática) – Instituto de Matemática, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2015. [ Links ]

OLIVEIRA, J. C. G. Educação matemática crítica direcionando currículos: constituição de sujeitos e de uma tecnologia de governo. 2020. 222 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Instituto de Matemática, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2020. [ Links ]

Recebido: 25 de Fevereiro de 2021; Revisado: 14 de Março de 2022; Aceito: 15 de Março de 2022

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