1 Introdução
A inserção profissional docente é considerada uma etapa do desenvolvimento profissional, comumente definida como o período de transição entre a formação inicial e o ingresso na profissão. Vaillant e Marcelo (2012) afirmam que essa etapa pode durar vários anos e destacam sua importância, pois se refere ao período em que o professor se apropria das normas, valores e procedimentos que regem a cultura da organização escolar em que está se inserindo.
Os conceitos de inserção e iniciação à docência têm sido usados, muitas vezes, como sinônimos. Akkari e Tardif (2011) afirmam que a inserção é um conceito complexo, multidimensional, destacando a necessidade de considerar dois níveis: o indivíduo (sujeito) e a sociedade (sistema). Nesse processo, entram em confronto os recursos e estratégias do sujeito e as lógicas sociais e organizacionais do contexto profissional. Já Oliveira e Cruz (2017) referem-se à inserção profissional como o período que envolve os primeiros anos do professor em um novo contexto de atuação, processo marcado por tensões decorrentes da necessidade de atuar em um ambiente desconhecido, buscando se afirmar nesse contexto. Nesse estudo, o conceito de inserção profissional se aproxima dessa perspectiva. Assim, usa-se – ao longo do texto – denominação diferenciada: iniciantes, para os que não tinham experiência no magistério antes do ingresso na rede de ensino; e ingressantes experientes, para os que detêm experiência docente anterior, mas são iniciantes nesta rede de ensino.
Em relação à organização do trabalho pedagógico (OTP), considera-se a concepção de Freitas (2012), que a sistematiza em dois níveis: a organização global do trabalho da escola e o trabalho docente em sala de aula. Para o autor, “a organização global da escola serve de elemento mediador entre as relações sociais e a própria sala de aula” (FREITAS, 2012, p. 12), destacando a importância de se refletir sobre as implicações dessa organização para a prática docente. Nesse estudo, o nível da organização do trabalho docente foi analisado considerando as questões: interação entre currículo, planejamento e avaliação, a relação professor-aluno na organização global do trabalho escolar, seguidas de implicações das ações de apoio aos ingressantes no interior das escolas, considerando as formas como se organizam pedagogicamente. Essas três dimensões de análise advêm das categorias estabelecidas a partir do exame dos dados coletados, com base na análise de conteúdo (BARDIN, 2010). Nessa análise foi feita a leitura flutuante seguida da codificação. Essa etapa foi estabelecida considerando como medida de intensidade (Bardin, 2010) indicações de unidades de referência nas respostas dos participantes da pesquisa. As unidades de referência indicaram, como mais relevantes em relação à OTP, o currículo, planejamento e avaliação, a relação entre professor e alunos e as formas de organização pedagógica. Ainda, para o estabelecimento das três dimensões, foram ponderados os objetivos da pesquisa e as indicações da literatura a respeito de OTP.
Como procedimento metodológico1, foi utilizado um questionário, respondido por 86 professores ingressantes e 15 entrevistas semiestruturadas realizadas em 6 escolas de diferentes regiões do município de Curitiba, envolvendo professores ingressantes e gestores dessas escolas. Para a elaboração das questões foram consideradas as indicações dos referenciais teóricos consultados. Em seguida, os roteiros passaram por validação com consulta a uma especialista do assunto e as questões foram ajustadas de acordo com as sugestões feitas. Os instrumentos incluíam dados sobre as participantes: formação, ingresso na rede de ensino, experiência anterior; questões sobre avaliação do período de iniciação e as dificuldades enfrentadas; formas de apoio recebidas na escola e pela mantenedora e indicações de ações sugeridas para melhoria do processo de organização do trabalho pedagógico. No caso dos gestores, foi questionado sobre as ações desenvolvidas junto às professoras iniciantes.
As escolas escolhidas foram as com maior número de professores em estágio probatório. O estágio probatório envolve professores com até três anos de atuação na rede de ensino, portanto, atendendo ao critério de etapas da carreira docente estabelecido por Huberman (1992). Considera-se que o relato de cada sujeito é determinado pelo contexto histórico-cultural, e pode revelar os sentidos e valores que atribui às experiências vividas, em que a entrevista constitui um instrumento privilegiado de acesso a essas experiências, possibilitando apreender tais significados (POUPART, 2012).
2 Interação entre currículo, planejamento e avaliação
O planejamento escolar, o currículo e a avaliação são considerados componentes da organização do trabalho pedagógico. Como tal, se relacionam ao cumprimento da função social da escola, evidenciando a intencionalidade educativa. Essa intencionalidade é dependente do contexto histórico-social, marcada pelas distintas visões de mundo dos sujeitos, perpassando as ações realizadas no interior da escola (FREITAS, 2012). Os depoimentos dos professores ingressantes contêm preocupação com questões relacionadas à OTP, evidenciando a importância de se situar em relação às concepções que norteiam o trabalho educativo. Essa preocupação está presente tanto nos relatos de iniciantes na docência quanto nos que possuem experiência anterior:
O programa poderia visar às dificuldades mais frequentes dos novos profissionais: adequação metodológica no trabalho com os conteúdos, sugestões de sequências didáticas, de projetos [...].
(PROF. 13, iniciante na docência – QUESTIONÁRIO)
E depois eu acho que é a parte pedagógica mesmo. O que a Prefeitura pensa de educação, porque cada um aprende de um jeito [...] daí, fora essa dificuldade, é mais dificuldade pedagógica mesmo, porque, como eu vim da rede particular, é outra realidade, é outra maneira de se avaliar.
(PROF. ISABEL, com experiência docente anterior – ESCOLA D – ENTREVISTA)
Observa-se que os iniciantes relatam as interações e preocupações relacionadas à OTP e a realização do trabalho em sala de aula, desde organizar o planejamento à avaliação. Essas questões são apontadas por Vaillant e Marcelo (2012), referindo-se à importância que os iniciantes atribuem à dimensão procedimental, relacionada à preocupação com a eficiência de suas ações. Os docentes com experiência anterior, ao se inserirem num novo contexto profissional, consideram importante conhecer o projeto educativo da Rede, para melhor direcionar seu trabalho, e procuram compreender as concepções educacionais e a organização pedagógica (ensino em ciclos de aprendizagem, proposta pedagógica da escola de tempo integral, concepção de alfabetização e de avaliação), que interferem no planejamento e no trabalho pedagógico. As equipes gestoras das escolas confirmam essa preocupação, defendendo a necessidade de um acompanhamento próximo aos ingressantes, para melhor organização do trabalho docente. Vaillant e Marcelo (2012, p. 92) destacam que o processo de aprendizagem da docência ocorre quando o professor toma consciência das finalidades dos atos educativos: “quando damos razões e refletimos sobre as origens e consequências de nossas condutas e dos demais”. Esse processo se relaciona com uma aprendizagem experiencial e ativa, mais do que com a imitação de modelos e aplicação de destrezas.
Destaca-se que docentes ingressantes com experiência anterior parecem ter se apropriado de referenciais que podem contribuir para essa nova inserção no contexto de trabalho. Os relatos remetem à compreensão do ato de ensinar como uma prática social, com intencionalidade, uma tarefa complexa e exigente que se situa para além da sala de aula e que requer formação, compromisso e responsabilidade (VEIGA, 2012). Compreendem o ensino como atividade teórico-prática, além da dimensão procedimental: o que exige entender os determinantes que fazem parte desse processo numa dimensão de totalidade (ROMANOWSKI; WACHOWICZ; MARTINS, 2005). Essa é uma questão relacionada à aprendizagem da docência que é construída pelos iniciantes, quando demonstram que já conseguem “olhar para trás” e analisar suas ações:
[...] eu acredito que os primeiros anos foram muito complicados [...] E, assim, naquela época, para mim, estava bom. Só que hoje, olhando para trás, eu vejo como faltaram muitos elementos [...], por conta de não ter uma orientação, e por conta de eu não saber o que tinha que ser feito.
(PROF. PAULA, iniciante na docência – ESCOLA F – ENTREVISTA)
Este relato indica os impactos das situações que envolvem os iniciantes em relação às questões de planejamento, gestão do currículo, objetivos de aprendizagem, entre outras. Os encontros para processos de colaboração entre os professores iniciantes e experientes são fundamentais. A avaliação do trabalho docente relaciona-se aos resultados obtidos pela turma, quando da avaliação da aprendizagem. Por outro lado, o depoimento evidencia a dificuldade vivenciada pelo iniciante para ter parâmetros que o auxiliem na avaliação de seu trabalho.
Os iniciantes referem-se à forma de conceber e lidar com o planejamento, pois envolve – dialeticamente – a previsão de ações, sua efetivação e a reflexão sobre o processo. A análise fundamenta-se na compreensão do ensino como prática social concreta, complexa e laboriosa, sendo o planejamento didático uma de suas exigências (VEIGA, 2012). Essa compreensão perpassa os depoimentos, que apontam aspectos da imprevisibilidade e da complexidade da docência e seus impactos no planejamento:
[...] a docência é principalmente uma função em que as coisas acontecem a todo momento. Elas não se repetem, são novidades e você precisa lidar com tudo isso o tempo todo. Não é necessariamente que você vai fazer o planejamento, vai chegar na sala de aula vai aplicar passo a passo como ele está escrito. Os acontecimentos que vão surgindo dentro da sala de aula... não é uma coisa que você leva pronta no planejamento.
(PROF. HELENA, iniciante na docência – ESCOLA C – ENTREVISTA)
Os relatos apontam a necessidade de compreender o planejamento como um processo aberto. Os docentes não entendem essas situações como problemas ou dificuldades, mas como questões inerentes à docência, o que é relevante. Veiga (2012) destaca que o ato de ensinar implica exigências diversas para o professor, além do domínio dos conteúdos, como o conhecimento dos alunos e de seus processos de aprendizagem, abordagens metodológicas de ensino, seleção de recursos e estratégias didáticas, entre outras. São exigências que estão implícitas no planejamento de ensino, tomado em sua dimensão mais ampla, e que requer maior atenção aos iniciantes.
O apoio da equipe pedagógica da escola em relação às questões do planejamento é destacado tanto por professores iniciantes quanto pelos ingressantes experientes:
Na minha opinião, o setor pedagógico deveria ter tempo para sentar-se com as professoras iniciantes, mostrar planejamentos bons, ouvir dúvidas e tentar respondê-las, acompanhar o planejamento não depois de aplicado, mas sim planejar junto, com ideias e apoio nas adaptações necessárias. A SME deveria ajudar com equipe para essa montagem de planejamento antes de ele ser aplicado, diminuir o trabalho das pedagogas para que elas pudessem nos dar esse apoio.
(PROF. VÂNIA, iniciante na docência – ESCOLA F – QUESTIONÁRIO)
Os professores reconhecem que o ato de ensinar não pode ser feito de improviso e evidenciam a necessidade de que a equipe pedagógica esteja preparada para auxiliar efetivamente no processo de planejamento. Entretanto, alguns relatos revelam fragilidade do setor pedagógico para que esse apoio ocorra adequadamente.
Outro aspecto analisado refere-se à avaliação da aprendizagem. A avaliação constitui uma dimensão central que impregna a organização do trabalho pedagógico na escola. De forma ampla, remete-se à organização global da escola e, de forma específica, reporta-se ao nível de sala de aula, nas suas relações com o processo de ensino-aprendizagem (FREITAS, 2012). Em relação a esse aspecto, os depoimentos evidenciaram diferenças. Para os iniciantes, a preocupação com a avaliação relaciona-se ao desempenho dos estudantes:
Muita cobrança, por um lado, e pouco apoio. Sabe, porque a demanda de serviço é muito grande. Então, muita cobrança: você tem que apresentar um resultado! A turma tem que apresentar resultados, tem que ir bem em tais provas, tem que ir bem..., mas pouco retorno na questão pedagógica, tipo “Vamos sentar aqui, vamos fazer junto [...]”.
(PROF. PAULA, iniciante na docência – ESCOLA F – ENTREVISTA)
Essa docente destaca as situações de controle para resultados, denunciando essa questão vivenciada por muitos professores na atualidade: de um lado, a cobrança por resultados; de outro, a necessidade de melhores condições de trabalho para realizar o processo de ensino-aprendizagem coerente com uma concepção de avaliação processual e formativa. Os relatos dos mais experientes explicitam situações relacionadas ao desconhecimento sobre o sistema de avaliação, elaboração de avaliações e registros em pareceres descritivos, característica do ensino organizado em ciclos. Para os professores que ingressam em redes que possuem essa organização – diferentemente do regime seriado –, são questões que precisam ser apropriadas, demandando ações de formação por parte das Secretarias de Educação e escolas, diretamente relacionadas à organização do trabalho docente. A elaboração de avaliações mais descritivas, com instrumentos de registro de resultados, evidencia novas exigências profissionais a que os professores precisam responder.
3 Relação professor-aluno
Neste item, a análise enfatiza os principais desafios enfrentados pelos ingressantes no que se refere à relação professor-aluno. As formas e práticas de interação entre professores e alunos não podem ser explicadas apenas pelo seu contexto interno, pois expressam as dimensões sociais do tempo histórico em que se realizam (MARTINS, 2012). No contexto atual, mudanças como a implantação dos ciclos de aprendizagem, a inclusão de estudantes com necessidades especiais no ensino regular e a progressão continuada trouxeram novas exigências, como a necessidade de adequar o planejamento para atender aos níveis diferenciados de aprendizagem dos alunos. Essas questões representam novas demandas aos professores, em especial aos iniciantes, tendo aumentado o sentimento de pressão sobre os docentes (FULLAN; HARGREAVES, 2000, ROMANOWSKI, et al.).
Ochoa (2012) aponta a interação com a diversidade de alunos como uma preocupação na inserção à docência, pois ainda não existe uma “expertise” em relação ao manejo do grupo de estudantes. Muitas vezes, essa situação pode levar ao desestímulo e ao sentimento de incapacidade, avaliada numa perspectiva de responsabilização individual. Porém, os relatos mostram que essas questões não constituem dificuldades apenas para os iniciantes:
Os professores não sabem trabalhar com crianças com necessidades específicas de aprendizagem: crianças com síndromes, autismo, Asperger, Down etc. E quando sabem, não existem recursos para uma prática efetiva. A exigência de aplicar atividades diferenciadas transforma-se em dificuldade para o professor, que precisa preencher burocracias, planejar, realizar conselho de classe, cursos, arrumar portfólios [...].
(PROF. 4, com experiência docente anterior – QUESTIONÁRIO)
Os iniciantes se referem mais a questões envolvendo o trabalho com diferentes níveis de aprendizagem dos alunos; os demais ingressantes apontam questões de indisciplina e inclusão escolar, de modo mais recorrente. As equipes gestoras também ratificaram essas questões, destacando que são desafios que atingem todos os professores, mas de forma especial os iniciantes na carreira: a adequação do planejamento, a elaboração e efetivação de um plano de apoio individual para os alunos que apresentam dificuldade de aprendizagem, o trabalho diferenciado conforme as necessidades de aprendizagem, a inclusão escolar. Para uma das diretoras, a causa dessas dificuldades, em especial em relação à inclusão, encontra-se na fragilidade da formação inicial. Também afirma que, se a equipe gestora percebe que o professor não está “dando conta”, é preciso que a escola se organize no sentido de pensar quais meios utilizar para ajudar esse profissional. Porém, outra diretora revela que percebe nos iniciantes uma “disponibilidade maior no sentido de acolher o aluno que é de inclusão, de aceitar que a inclusão está posta e que ele [o professor] precisa se preparar para essa realidade [...]” (DIR. MARINA – ESCOLA D – ENTREVISTA).
Os conhecimentos da docência são (re)construídos por meio de um processo longo, dinâmico e, muitas vezes, contraditório, considerando as experiências vivenciadas como estudante, a formação inicial e continuada e a própria prática profissional (VAILLANT e MARCELO, 2012). Cabe refletir sobre o papel da formação inicial no preparo dos futuros profissionais em relação à inclusão. A formação inicial dificilmente conseguiria abarcar todas as situações de inclusão, por exemplo: se as orientações precisam considerar as especificidades de cada caso, o apoio aos iniciantes também implica essa questão, constituindo uma formação em serviço. Em relação à indisciplina, as ações envolvem a reflexão sobre conhecer quem é o aluno atualmente, suas características, modos de aprender/ensinar, entre outras. As situações relatadas revelam que a gestão de turma pode ser difícil no processo de inserção profissional e se relaciona a diversos fatores que advêm da diversidade: vulnerabilidade social, diversidade cultural, estudantes cujos pais têm pouca escolarização, instabilidade social e familiar, dificuldades na organização da rotina em sala e dificuldades metodológicas.
Foram destacadas algumas ações realizadas no processo de formação continuada, as quais propiciaram reflexões aos professores na direção do aprendizado relativo às questões da heterogeneidade. Porém, além das formações oferecidas, destaca-se a importância de um apoio mais efetivo aos iniciantes em torno da docência num contexto de diversidade.
4 Iniciativas de apoio aos ingressantes
Neste item, são analisadas iniciativas realizadas no interior das escolas pelas equipes gestoras e, em alguns casos, o apoio efetivado entre grupos de professores. Considera-se que a escola desempenha papel fundamental no processo de inserção à docência. Em relação aos iniciantes, Marcelo (2009) reporta-se à necessidade de um serviço de apoio no interior das escolas, em colaboração com as universidades. Na mesma direção, André (2012) destaca a importância de uma política de acompanhamento aos iniciantes, envolvendo Secretarias de Educação e equipes gestoras. Os dados de pesquisa apontam que as principais ações realizadas envolvem questões como: a possibilidade de o professor ingressante (em especial o iniciante) atuar como corregente no período de inserção na Rede; as formas de acompanhamento e apoio efetivadas pelas equipes gestoras e as iniciativas que se referem às trocas e auxílio entre professores, contribuindo para o processo de inserção profissional dos professores ingressantes.
4.1 Uma iniciativa da rede de ensino: docência compartilhada
A docência compartilhada2 constituiu-se, na rede de ensino pesquisada, como uma das alternativas em relação à inserção dos ingressantes nas escolas, com avaliação positiva pelos sujeitos da pesquisa. Essa possibilidade de atuação permitiu aos ingressantes compreender como era organizado o trabalho pedagógico, as rotinas diárias, a metodologia de ensino, propiciando-lhes mais segurança e autonomia para, posteriormente, assumirem a regência de turma. Vários relatos destacaram essa questão:
A partir do segundo semestre, eu passei a ser corregente de 1.º ano. Então, aí sim eu me senti mais segura. Porque eu estava com uma professora que já tinha oito anos de experiência na Rede, já trabalhou como pedagoga, então eu acho que aí eu comecei a me sentir mais segura dentro da escola.
(PROF. HELENA, iniciante na docência – ESCOLA C – ENTREVISTA)
Para os iniciantes, a docência compartilhada foi considerada significativa por conta dos seguintes aspectos: propiciar mais segurança em relação ao trabalho em sala de aula; contribuir para a análise da prática, em especial sobre a gestão de turma, o trabalho com os conteúdos e estratégias didáticas mais adequadas. Para os demais ingressantes, a contribuição também foi positiva, possibilitando apropriação gradativa do trabalho a ser realizado, a partir da observação e análise da prática docente das demais colegas. As equipes pedagógicas das escolas também avaliaram positivamente essa possibilidade, destacando que auxiliou no processo de inserção profissional e, no caso dos iniciantes, no aprendizado da docência. Os principiantes indicam conhecer pouco sobre seu trabalho e representam os problemas de forma mais concreta; nesse sentido, o professor mais experiente já adquiriu competências que lhe permite saber quando, por que e como utilizar os conhecimentos que possui em cada situação (VAILLANT; MARCELO, 2012).
Outro dado relevante é que cada trio docente tem um período de quatro horas semanais para estudos, planejamento e avaliação, denominado permanência ou hora-atividade. Esse tempo em comum permite que os ingressantes possam esclarecer suas dúvidas em relação ao trabalho em sala de aula junto aos mais experientes, recebam auxílio no planejamento, troquem ideias e sugestões sobre a efetivação do trabalho pedagógico, constituindo-se numa prática formativa.
Destaca-se, também, a necessidade de mudanças na cultura profissional e institucional, visando a valorização de ações de cuidado e apoio ao iniciante. Porém, é importante lembrar que há situações em que as escolas recebem muitos professores ingressantes simultaneamente, dificultando essa organização. Nesse caso, uma alternativa seria priorizar, entre os ingressantes, os iniciantes na docência para assumir como corregentes, considerando a opção pessoal do professor. É frequente, também, a troca constante de escolas no período de inserção profissional, o que precisa ser considerado, pois em cada escola pela qual o iniciante passa isso precisaria ser objeto de atenção.
4.2 As iniciativas das escolas: o apoio da equipe gestora
Tendo como premissa a importância do apoio e envolvimento das equipes gestoras das escolas no processo de inserção docente, neste item são analisadas as formas como o apoio e acompanhamento dessas equipes aos docentes ingressantes foram efetivadas. Romanowski e Soczek (2014) revelam que o apoio e acompanhamento aos iniciantes na prática docente é quase inexistente.
Na Rede pesquisada, a equipe gestora de cada escola é formada pelo diretor, vice-diretor e pedagogo(s). Normalmente, o diretor e o pedagogo têm, entre suas funções, o acompanhamento dos professores ingressantes ao longo do estágio probatório, auxiliando-os nesse período de inserção. Depoimentos de algumas professoras revelam que houve um trabalho de acolhimento, orientação e apoio, para além da avaliação do período probatório. Os relatos evidenciam que esse apoio ocorre no dia a dia, em orientações mais informais, e/ou de forma sistemática, nas permanências e reuniões, envolvendo a organização do planejamento, estudos, esclarecimento de dúvidas, trocas de experiências. Em alguns casos, o apoio foi da direção da escola; em outros, da pedagoga ou de ambos os profissionais. A partir das entrevistas com as equipes gestoras, foram sistematizadas as principais ações desenvolvidas visando orientação e apoio aos ingressantes: reunião inicial com os professores ingressantes; atendimentos individuais ou em pequenos grupos para orientação, escuta e esclarecimento de dúvidas; auxílio na resolução de problemas; acompanhamento da equipe pedagógica nos momentos de planejamento; (re)organização interna da escola para apoio aos ingressantes; auxílio direto em sala de aula; feedback do planejamento docente; busca de auxílio técnico-pedagógico com outros profissionais externos à escola.
Desses dados, depreende-se a importância de considerar os sujeitos que fazem parte desse contexto institucional – professores ingressantes, demais docentes e equipe gestora – e quais relações estabelecem nesses contextos, entendendo-se que é nesse movimento, permeado pelas condições e situações da docência, que vão construindo e vivenciando a profissão (AMBROSETTI; ALMEIDA; CALIL, 2012). É possível inferir que as distintas experiências vivenciadas nas relações com as equipes gestoras de cada escola configuram modos distintos de inserção no contexto profissional.
Outros relatos, porém, evidenciam dificuldades em relação a um apoio mais efetivo da equipe gestora. Alguns professores destacam que o apoio da pedagoga ficou restrito a horários de planejamento, voltado a apontamentos a partir dos materiais produzidos pelos estudantes. Outros ressaltam que esse apoio deveria ser mais sistemático, que os pedagogos precisariam estar mais atentos às necessidades dos docentes, “porque às vezes você não tem tempo [de ir atrás do pedagogo], está em sala...” (PROF. KÁTIA, com experiência docente anterior – ESCOLA E – ENTREVISTA). Uma das professoras revela, inclusive, que considera importante que o pedagogo esteja mais presente em sala e acompanhe as aulas dos “novatos”. Algumas vezes, esse apoio parece se efetivar mais por iniciativa do professor do que da equipe gestora, coadunando-se com os resultados apontados por Romanowski e Soczek (2014).
Os iniciantes na docência foram os que mais evidenciaram a necessidade do apoio da equipe gestora, destacando a importância do acolhimento dessa equipe para auxiliá-los no direcionamento do trabalho pedagógico. Foram apontadas fragilidades, como a rotatividade de pedagogos nas escolas, a falta de tempo desses profissionais para acompanhamento e apoio; a inexperiência ou fragilidade da formação desses pedagogos etc.
Há depoimentos sobre os desafios que os iniciantes enfrentam quando se deparam com equipes pedagógicas que não conseguem oferecer o apoio necessário à inserção docente. Muitas vezes, o próprio coordenador é um profissional iniciante na rede de ensino, assim, o professor iniciante vai buscar o apoio em outros colegas. De acordo com Avalos (2008), uma das características de bons programas de indução profissional é justamente a ênfase no trabalho colaborativo, em atividades de compartilhamento de experiências e práticas entre colegas.
4.3 Trabalho colaborativo entre professores: do apoio informal às ações sistemáticas
Um dos aspectos mais destacados em estudos sobre o desenvolvimento profissional docente refere-se à importância do trabalho colaborativo entre professores (MARCELO, 2009). As pesquisas evidenciam que
[...] as possibilidades de melhorar o ensino e a aprendizagem aumentam quando os professores questionam de forma coletiva rotinas de ensino não eficazes, examinam novas concepções de ensino e aprendizagem, encontram formas de responder às divergências e conflitos, implicando-se ativamente em seu desenvolvimento profissional.
(MARCELO, 2009, p. 24, tradução livre dos autores)
O trabalho e planejamento em conjunto com colegas, compartilhando e desenvolvendo experiências e conhecimentos, pode auxiliar os professores a enfrentar os desafios crescentes do seu trabalho. As relações de apoio e colaboração nem sempre são fáceis de implementar, pois exigem o rompimento do isolamento entre os docentes, que tem raízes diversas: na arquitetura escolar, na pouca flexibilidade dos horários de aula, na sobrecarga de trabalho e na própria história da escola, que sempre privilegiou o individualismo, como destacam Fullan e Hargreaves (2000).
No caso dos ingressantes experientes, ter tempo/espaço para refletir conjuntamente, trocar ideias e experiências com colegas, estabelecendo relações colaborativas, constitui premissa importante nos processos de inserção profissional. Considerando o exposto, constata-se que, apesar das dificuldades, muitos iniciantes apontaram a importância de ter tido apoio de outra colega mais experiente, revelando as parcerias estabelecidas:
No segundo ano troquei de escola e fui regente em uma turma de 2.° ano. Uma amiga que já havia trabalhado com 2° ano antes me ajudou bastante, me ensinou a verificar os níveis de aquisição da escrita, adaptar atividades de acordo com o nível de cada um, fazíamos planejamento juntas, a pedagoga dessa escola também ajudava quando era procurada, conseguia baixar meu nível de ansiedade. [...]
(PROF. VÂNIA, iniciante na docência – ESCOLA F – QUESTIONÁRIO)
Os relatos explicitam uma relação de auxílio e orientação entre a professora iniciante e outra mais experiente na função3, aproximando-se do conceito de professor mentor (MARCELO, 2009), embora, nesse caso, se efetive numa perspectiva mais informal. Marcelo (2009) cita pesquisas sobre o papel do mentor, destacando como tarefa principal a assessoria didática e pessoal ao professor iniciante, orientando em relação ao currículo, gestão de turma, podendo assistir aulas e fornecer retroalimentação. Os principais aspectos citados pelos iniciantes que demandavam apoio se referiam às questões didáticas e às necessidades da prática docente. Uma das diretoras sugere ações nessa direção, porém aponta alguns dilemas em relação aos critérios de escolha desse profissional:
[...] eu acredito que muitos desses profissionais, eles precisam de outros profissionais com uma bagagem maior de experiência, mas que sejam profissionais que tenham um bom desempenho... e daí é difícil, porque você começa a partir para a meritocracia: quem é o profissional que tem bom desempenho? É o que a turma foi bem? É difícil, é preciso pensar como fazer isso. Mas a gente vê estudos, a gente vê coisas em outros países acontecendo, que mostram que é um caminho possível, sim, na troca de experiências entre um profissional mais velho e um que está chegando. [...]
(DIR. MARINA – ESCOLA D – ENTREVISTA)
Essas considerações relacionam-se às questões como a formação do profissional (mentor), às habilidades e conhecimentos necessários para proporcionar apoio pedagógico e às formas como se estabelecem a relação entre mentor e iniciante. Os depoimentos revelam, porém, que mesmo os ingressantes com experiência docente se beneficiaram desse apoio em sua inserção na Rede.
Há relatos sobre ações mais consolidadas, como a prática do planejamento em conjunto, com apoio da equipe gestora. Essas ações envolvem grupos de docentes experientes e iniciantes, trabalhando juntos na perspectiva de trabalhos colaborativos. O desenvolvimento de uma cultura de cooperação e apoio entre professores constitui um desafio, mas pode trazer contribuições significativas, possibilitando que os professores tenham maior poder de escolha nas decisões. Nessa perspectiva, ocorre maior comprometimento com o seu desenvolvimento profissional e o aperfeiçoamento da própria instituição escolar. Porém, Fullan e Hargreaves (2000, p. 82) afirmam que “o profissionalismo interativo envolve a redefinição do papel dos professores e de suas condições de trabalho”.
5 Considerações finais
Os resultados da análise sobre as relações entre o processo de inserção profissional docente, a organização do trabalho pedagógico e as iniciativas de apoio aos iniciantes nas escolas permitem inferir indicadores relacionados à formação docente. Essas pistas expressam as distintas experiências vivenciadas pelos sujeitos, tendo em vista as dimensões da OTP enfatizadas. As demandas são:
- Necessidade de conhecer e se situar em relação às concepções que norteiam a OTP nas escolas, como as diretrizes curriculares, a organização em ciclos, as modalidades de planejamento, avaliação escolar, entre outras, o que implica em ações formativas que possibilitem aos iniciantes se apropriarem dos conhecimentos necessários à OTP e ao ensino, auxiliando-os a compreender os determinantes de sua prática, para além das questões técnicas;
- Quanto à relação professor-aluno, todos os ingressantes se referem à organização da classe e à inclusão, em que as especificidades de cada situação de inclusão sugerem formação e orientação in loco aos profissionais que atendem cada criança, devido à diversidade das situações;
- A diversidade cultural, a vulnerabilidade social e experiências familiares com a escolarização são formas de relação tecidas nas situações sociais, as quais nem sempre os professores conseguem compreender, e entender o modo de expressão da diversidade cultural e das dificuldades de relacionamento dos estudantes com a escola;
Os iniciantes sem experiência anterior solicitam maior apoio na organização da aula, têm dúvidas tanto em relação aos procedimentos didáticos como em torno da seleção dos conteúdos a serem abordados em cada ano escolar, diferentemente dos experientes, que já apresentam saberes elaborados mais sólidos em relação ao processo de ensino. Assim, os apoios se direcionam mais para a organização das aulas e pouco para a organização do trabalho pedagógico.
Os iniciantes avaliam seu trabalho considerando os resultados obtidos pela turma, na avaliação da aprendizagem. Esse é um indicador pertinente, mas não é o único, há outros elementos como aulas constituídas com a participação dos discentes, ampliação do repertório de atividades educativas para a diversidade, avaliação reguladora, a troca entre pares, o relacionamento com a família, o atendimento aos registros, participação nas decisões colegiadas, colaboração no projeto pedagógico, enfim, as diferentes dimensões da organização do trabalho pedagógico.
Em relação às iniciativas de apoio aos iniciantes sem experiência, à docência compartilhada, o apoio da equipe gestora e o trabalho colaborativo são fundamentais para a inserção profissional. Atuar inicialmente como corregente (docência compartilhada) constitui um fator que trouxe contribuições positivas aos iniciantes, mas requer o estabelecimento de critérios para essa parceria entre experiente e iniciante(s). Essa iniciativa, porém, não exclui a necessidade de que as equipes gestoras desenvolvam outras ações formativas junto aos ingressantes. Todas essas ações evidenciam possibilidades de avançar na direção do rompimento de uma cultura de competitividade e individualismo.
O apoio da equipe gestora é fundamental para todos os professores iniciantes e experientes, o acolhimento, o sentimento de pertença, a colaboração e compartilhamento favorecem o desenvolvimento de confiança e de segurança no início da carreira docente para ser e estar na profissão. Nesse processo, as ações formativas podem trazer contribuições tanto para o aprendizado da docência dos iniciantes quanto para o processo de inserção de todos os ingressantes. Em síntese, os resultados revelam a necessidade de proposições diferenciadas para os programas de apoio aos professores devido às experiências prévias dos ingressantes, das quais emergem as demandas para a formação docente diante da organização do trabalho pedagógico escolar, evidenciando que as condições de trabalho são imprescindíveis na atuação dos professores.