A formação de professores já pode ser considerada como um campo consolidado no interior do debate educacional. Em que pesem as inúmeras possibilidades de definição de seu objeto de estudo (ANDRÉ, 2010), nota-se que a produção do conhecimento em diferentes eventos e periódicos vem contribuindo para consolidação e ampliação dos contornos da área.
É nesse escopo que o tema do início da docência vem, outrossim, ganhando seus contornos. Longe de ser uma temática exclusiva da área de formação de professores, pode-se afirmar que é no interior desta que vêm crescendo, quantitativa e qualitativamente, as pesquisas sobre esse momento de inserção profissional.
Esse crescimento quantitativo já foi alvo de alguns estudos de levantamento bibliográfico (MARIANO, 2006; PAPI; MARTINS, 2010; CIRIACO; SILVA, 2020; ALMEIDA et al., 2020). Os trabalhos citados abarcaram diferentes escopos analíticos e diferentes períodos cronológicos e forneceram importantes sínteses e balanços sobre a produção de pesquisa acerca do início da docência. No que se refere a isso, este artigo trata de adensar esse debate, buscando fornecer, também, uma nova síntese, ainda não empreendida por trabalhos anteriores, a fim de colaborar para a construção dos principais traços das pesquisas na área. Para tanto, tentou responder a seguinte questão: ao analisar as dissertações e teses defendidas, considerando os primeiros trabalhos e se amparando nos estudos de levantamento já publicados, seria possível apontar os primeiros contornos teóricos e metodológicos dos estudos sobre a iniciação à docência?
Para colaborar com esse debate, num primeiro momento, o texto busca apresentar o percurso metodológico empreendido para a construção e análise dos dados; num segundo momento, traz à tona as principais características e tendências do corpus analítico selecionado; encerra, num terceiro momento, empreendendo um balanço relativo aos temas, procurando apontar os temas emergentes e algumas lacunas que ainda podem ser preenchidas para que se consiga ampliar o olhar sobre esse importante e decisivo período da carreira docente.
1 O início da docência: esboçando o tema, buscando pesquisas
O início da docência, em autores como, por exemplo, Veenman, 1984; Huberman, 1995; Marcelo García, 1999; Tardif, 2002, vem sendo considerado como aquele extensivo ao quinto ano de exercício profissional, ainda que esse período cronológico não seja consensual, pois há estudos que indicam que ele se estenderia até o terceiro ano de prática. Nesse sentido, vê-se que a transição da formação inicial para o momento de efetiva inserção profissional parece ainda ter como principal elemento a dimensão cronológica. Em outras palavras, amiúde, quando se fala em estudos sobre o início da docência, parece existir como característica fundante dessas pesquisas o fato de seus sujeitos participantes serem aqueles/as profissionais que estariam sob a égide de seus primeiros passos em sala de aula.
É bem sabido que as primeiras dissertações e teses (LEQUERICA, 1983; CASTRO, 1992; INFORSATO, 1995; GUARNIERI, 1996; ANGOTTI, 1998) empreendem esse tipo de análise a partir do critério cronológico. Entretanto, parece já haver indícios de algo tensionado, mas não aprofundado, por Marcelo Garcia (1999), qual seja: todo novo início profissional, toda troca de contexto profissional pode gerar sentimentos de iniciação profissional (DERISSO, 2020).
Como corolário dessa mudança conceptual, é importante registrar a dispersão dos descritores que foram aplicados no banco de dissertações e teses para empreender as buscas das pesquisas. Para a composição da amostra de dissertações e teses do corpus analítico, foi feito um levantamento no site da Biblioteca Brasileira Digital de Dissertações e Teses. Nessa busca, inicialmente, foi utilizado o descritor “professor iniciante”, com suas possíveis variações na terminologia, tais como “professor principiante”, “professor novato”, “professor debutante”. Considerando essa mudança apontada anteriormente, lançou-se mão de descritores como “inserção profissional”, “iniciação à docência”, “indução profissional”, “socialização profissional”.
Sem o objetivo de erigir uma pesquisa de estado da arte1, é feito, neste artigo, um balanço de dissertações e teses que estavam disponíveis nesse banco digital e, também, que foram obtidas após o envio de mensagens eletrônicas aos/às autores/as dos trabalhos mais antigos que ainda não se encontravam digitalizados. O foco estava em levantar as dissertações e teses que tivessem a discussão do início da docência como tema central da pesquisa e fossem provenientes de programas stricto sensu das áreas de educação e ensino, não importando se fossem programas acadêmicos ou programas profissionais. Tal recorte se mostrou necessário, entre outros aspectos, por ter sido encontrado um número expressivo de trabalhos desenvolvidos em outras áreas de conhecimento, apresentando como eixo central do estudo a dimensão do tornar-se professor para profissionais liberais, como, por exemplo, estudos que analisam o bacharel em administração de empresas e seu processo de tornar-se professor no ensino superior.
Nesse cenário, um primeiro aspecto chama a atenção: a precariedade dos bancos de dados. Isso foi constatado a partir do momento em que, no levantamento, se percebe a duplicidade de trabalhos num mesmo descritor, ou seja, fica inviável, a julgar pela forma como os bancos de dados vão cruzando as buscas, avaliar o quantitativo total de estudos e a proporcionalidade daqueles voltados ao tema do início da docência. Inúmeras foram as vezes em que se constatou que uma dissertação aparecia repetida até três vezes na mesma busca de um descritor.
Além disso, outro aspecto que chama a atenção é a ainda precária autorização para o acesso aos trabalhos. Algumas bibliotecas digitais exigem cadastro prévio de usuário, outras informam que o trabalho está disponível unicamente para acesso interno dos usuários. Ainda acerca dessa precariedade, inúmeros foram os links de trabalhos que estavam fora do ar e, portanto, inviabilizavam o acesso às pesquisas.
Considerando esse cenário, foi enviada mensagem aos/às autores/as, obtendo baixa devolutiva. Ao final, considerando o período de 1983 (ano em que se registra o primeiro estudo específico sobre o início da docência) a 2019 (ano final do levantamento dos trabalhos, que foi feito em 2020), chegou-se a um número aproximado de 240 pesquisas. Entretanto, 205 foram acessadas, sendo 148 dissertações de mestrado e 57 teses de doutorado.
É preciso reconhecer que, além da dificuldade de acesso a alguns trabalhos, seja por serem mais antigos e não estarem, por sua vez, digitalizados, ou por não ter havido retorno dos autores, este artigo não se configura como pesquisa de estado da arte porque não se preocupou em analisar todos os trabalhos sobre a temática (algo que seria inviável para um pesquisador sozinho). O recorte aqui empreendido colocou como imperioso empreender a busca no ano de 2020, mas a pandemia prejudicou até mesmo a alimentação de bancos digitais de dissertações e teses.
Conforme foi mostrado no início, trata-se de mais um levantamento bibliográfico que procura fornecer um balanço da produção sobre a temática e, no que se refere a isso, abarca escopo analítico diferente dos quatro trabalhos mencionados e, portanto, procura contribuir para ampliar as possibilidades analíticas e explicativas sobre as características do início da docência em nosso país.
A dissertação de mestrado de Mariano (2006) analisou os trabalhos publicados nos anais do ENDIPE (Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino) e da ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) entre os anos de 1995 e 2004. Nela, o autor apresentou as principais tendências desses trabalhos, procurando apontar as lacunas que estavam sendo encontradas naquele momento. Nesse cenário, por exemplo, o autor apontava que havia uma lacuna sobre o trabalho do professor iniciante com a diversidade cultural, algo que, na próxima seção, será mostrado que ainda não começou a ser preenchido.
O artigo de Papi e Martins (2010) empreendeu suas considerações a partir dos trabalhos apresentados na ANPEd entre os anos de 2005 e 2007 e de dissertações e teses defendidas entre os anos de 2000 e 2007. As autoras concluem o artigo afirmando que a maioria das pesquisas analisadas focaliza a prática pedagógica dos professores iniciantes, a construção de sua identidade profissional, a socialização profissional e as dificuldades encontradas nesse momento da carreira. Este texto procura mostrar como esses temas ainda se fazem bastante presentes nas pesquisas analisadas.
O trabalho de Ciríaco e Silva (2020) constrói uma análise de dissertações e teses no período de 2006 a 2016. Os autores apontam que os sentimentos de choque de realidade, sobrevivência e descoberta são vivenciados em diferentes contextos e parecem ser a grande marca que ressalta dos estudos analisados.
O artigo de Almeida et al. (2020) traz uma síntese integrativa, ampliando o escopo analítico apresentado pelos três estudos anteriores. As autoras analisam dissertações, teses, artigos publicados na Scielo e trabalhos apresentados na ANPEd entre os anos de 2000 e 2019. Em grande medida, nota-se uma confirmação dos dados dos estudos anteriores e destaca a emergência de análises, por exemplo, de programas de inserção profissional, sobretudo a partir do ano de 2014, fato que causa um incremento significativo das produções.
É a este debate que o presente artigo vem agregar, buscando adensar as análises ao incluir as primeiras dissertações (LEQUERICA, 1983; CASTRO, 1992) e teses sobre a temática (INFORSATO, 1995; GUARNIERI, 1996; ANGOTTI, 1998). Aqui foram citadas as primeiras pesquisas sobre o tema do início da docência das quais há registros em banco de dados. A partir da próxima seção, serão apresentadas as principais tendências desse tema do início da docência, procurando advogar que ele já pode ser considerado um tema consolidado no campo da formação de professores, embora não seja restrito a essa área.
2 O início da docência em dissertações e teses brasileiras: o que se sabe?
Entre os dados que convém destacar, chama a atenção o aumento significativo de estudos sobre o início da docência. Se, no final dos anos 1990, era possível tratar como um tema emergente, hoje se reconhece como tema em plena consolidação e que vem despertando interesses cada vez mais crescentes, apresentando produção relativamente estável a partir do ano de 2013, conforme tabela abaixo (o decréscimo no ano de 2019 pode ser corolário da pandemia que, embora surgida de maneira aguda em 2020, afetou a alimentação dos bancos digitais de dissertações e teses).
Quadro 1 Organização dos trabalhos por ano de defesa.
Ano | Nº |
1983 | 01 |
1992 | 01 |
1995 | 01 |
1996 | 01 |
1998 | 01 |
2002 | 03 |
2003 | 01 |
2004 | 05 |
2005 | 05 |
2006 | 05 |
2007 | 04 |
2008 | 05 |
2009 | 07 |
2010 | 06 |
2011 | 07 |
2012 | 07 |
2013 | 23 |
2014 | 27 |
2015 | 22 |
2016 | 25 |
2017 | 21 |
2018 | 19 |
2019 | 09 |
Fonte: Produzido pelo autor.
O que a tabela acima revela é que o tema aparece, de maneira tópica, nos anos de 1980, pode ser considerado emergente na década seguinte, passa por certa estabilização na primeira década deste século XXI e entra em consolidação a partir da última década.
Vale ressaltar, outrossim, que a esmagadora maioria dos trabalhos é produzida no interior de linhas de pesquisas mais afeitas ao campo da Formação de Professores. Isso não quer dizer que o tema do início da docência seja compreendido, exclusivamente, no interior desse campo da formação e de seus referenciais. Mas, parece, ainda, haver uma compreensão de que, ao se falar em formação docente, o foco reside na análise e compreensão de fenômenos como a aprendizagem profissional, o desenvolvimento profissional, o processo de construção das identidades profissionais. Óbvio que tais temas não se circunscrevem ao período relativo ao início da docência, mas se tornam aqueles mais evidenciados no interior das discussões, até mesmo explicáveis pelos contornos epistemológicos das discussões.
Ademais, isso também indica que as pesquisas sobre o início da docência ainda se assentam numa preocupação exclusiva com a educação escolar, não havendo estudos acerca da inserção profissional fora desse espaço tradicionalmente estabelecido.
Um segundo aspecto a ser destacado no corpus analisado refere-se às instituições de origem dos estudos selecionados. Dentre as inúmeras instituições que possuem programas se pós-graduação em educação, quatro instituições se destacam na produção de pesquisas sobre o início da docência.
Quadro 2 Organização dos trabalhos por instituição de origem.
Instituição | Nº |
---|---|
UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) | 36 |
PUCSP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) | 30 |
UnB (Universidade de Brasília) | 12 |
UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso) | 10 |
Fonte: Produzido pelo autor.
A partir do quadro acima, dois dados merecem relevo: o papel estável que a UFSCar vem desempenhando na produção sobre a temática. Além de responder por duas das primeiras teses de doutorado sobre o tema (GUARNIERI, 1996; ANGOTTI, 1998), a instituição vem se mostrando um núcleo consolidado ao manter, amiúde, ao menos dois trabalhos por ano sobre o tema. Na esteira de núcleos consolidados, é possível apontar que as instituições que seguem na tabela (PUCSP, UnB, UFMT), a julgar pelo critério cronológico das dissertações e teses, vem se configurando como núcleos emergentes nos quais a temática começa a ganhar solidez. No caso da PUCSP, apesar de a instituição ter seis programas na área de educação (quatro acadêmicos e dois profissionais), merece destaque o número expressivo de trabalhos provenientes ou do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação ou do Programa Profissional de Pós-Graduação em Educação: Formação de Formadores2.
Um terceiro aspecto a ser trazido à baila é relativo ao tempo de carreira dos sujeitos participantes das dissertações e teses. A totalidade dos trabalhos refere-se ao elemento cronológico como critério balizador para as discussões sobre o início da docência. Quando o fazem, geralmente, se reportam a autores como Marcelo García (1999), Tardif (2002) e Huberman (1995). Nota-se que a ideia do ciclo de vida profissional de Huberman ainda é o grande vetor explicativo para a configuração do início da docência. E, no que tange a isso, a esmagadora maioria dos estudos considera que o início da docência se estenderia até o quinto ano de exercício profissional.
Considerando os elementos acima apontados, é possível afirmar que houve somente um estudo que considerou os profissionais em início de carreira como aqueles que possuem até seis anos de profissão. Nesse bojo, há ao menos duas lacunas importantes a serem preenchidas, quais sejam: são exíguas as produções acerca dos profissionais em seu primeiro ano de efetivo exercício profissional; e são quase inexistentes as produções que problematizam o elemento, trazido por Marcelo García (1999), de que a cada nova situação de iniciação profissional o contexto do início da docência pode ser revivido. No que se refere a isso, há o trabalho de Derisso (2020), que analisou esses recomeços profissionais, mas, por questões de critério cronológico, não entrou no corpus analítico aqui selecionado.
Assim sendo, este artigo, para além da terminologia de professor iniciante (mesmo reconhecendo a precariedade e limitação de definições rígidas), procura apontar e defender a ideia de que o corpus analisado permite, já, identificar três terminologias conceituais a partir dos temas focalizados nos estudos. Assim sendo, nota-se que a expressão “iniciação à docência” é utilizada quando o foco está menos na pessoa do professor em si e mais na compreensão das situações profissionais que vão envolvendo o sujeito em seu cotidiano ao desenvolver sua prática pedagógica e construir seu processo de aprendizagem profissional. Ademais, essa terminologia também tem sido utilizada pelas pesquisas que adotaram o critério cronológico como elemento definidor. Quando o estudo tomou o sujeito em si como foco de análise, por exemplo, investigando os processos de construção de suas identidades profissionais a partir das percepções desse próprio sujeito, nota-se, amiúde, a manutenção de termos como “professor iniciante”, “professor novato”, “professor debutante”. Por fim, para situações de novos recomeços profissionais, nota-se a utilização da expressão “situações de iniciação profissional”, pois isso implica, entre outras coisas, a compreensão de que os sentimentos de choque de realidade, sobrevivência e descoberta possam, ou não, ser revividos a cada novo contexto profissional, seja ele decorrente de mudanças de nível de ensino, de instituição escolar, de série ou até mesmo de turno no interior de uma mesma instituição.
Para além de um mero rol de terminologias, seria possível apontar que essa produção analisada parece já apresentar suas proposições conceituais a fim de permitir incremento analítico dos debates. A partir desse panorama, começam-se a burilar as orientações conceptuais de um tema que vem consolidando sua produção e seu debate no interior do campo da formação de professores. Longe está, este texto, de querer definir as terminologias únicas a serem aceitas, até mesmo por reconhecer o caráter dinâmico da própria língua portuguesa e, também, da ciência. Entretanto, reconhece-se que parece começar a surgir alguma variação de pesquisas que incrementam os vieses analíticos do tema e isso pode ser mais bem construído a partir de algumas definições de concepção. Em hipótese alguma, este texto defende uma fronteira rígida na qual, por exemplo, um estudo sobre identidade profissional não possa ser analisado, também, pelo viés da aprendizagem profissional da docência ou pelo viés de novos recomeços. As fronteiras científicas, quanto mais rígidas forem, menos contribuem para que o debate avance. Trata-se, sim, de uma tentativa de, a partir da análise dos próprios estudos selecionados, colaborar para que a área comece a trabalhar em suas definições de categorias analíticas. Por todo o escopo acumulado e que só vem se avolumando, já é possível enveredar nessa direção.
Ainda na perspectiva de apresentar as características dos estudos selecionados, dois aspectos serão aqui trazidos à tona: o nível de ensino pesquisa e o componente curricular mais enfatizado. No que se refere ao primeiro, tem-se o seguinte quadro:
Quadro 3 Organização dos estudos quanto ao nível de ensino pesquisa.
Nível de ensino | Nº |
---|---|
Anos iniciais do ensino fundamental | 29 |
Educação superior | 24 |
Educação infantil | 12 |
Anos finais do ensino fundamental | 08 |
Ensino médio | 04 |
Fonte: Produzido pelo autor.
O quadro acima mostra, por exemplo, que pouco se sabe sobre a iniciação à docência no ensino médio; os anos iniciais do ensino fundamental ainda são a etapa que mais atrai a atenção das dissertações e teses e a educação superior vem se mostrando como um nível de ensino que atrai acentuado interesse nos trabalhos selecionados. Faz-se mister salientar que o número é inferior ao total analisado porque nem todas as dissertações e teses mencionam o nível de ensino em que trabalhavam os sujeitos participantes ou, em outra direção, lidam com histórias de vidas profissionais sem exigir dos participantes que explicitem, em suas memórias, com quais turmas trabalhavam. Há, ainda, aquelas dissertações e teses que analisam mais de um nível de ensino conjuntamente.
Na esteira dos trabalhos que se debruçam sobre os anos finais do ensino fundamental e ensino médio, nota-se que alguns componentes curriculares parecem gozar de maior predileção. Há, por exemplo, 17 estudos que focalizam as situações de iniciação à docência no ensino de matemática, fato que pode ser explicado, também, porque, além das linhas de pesquisa sobre formação de professores, há programas de Educação Matemática, e muitos programas possuem linhas de pesquisa em educação em ciências e matemática e produzem estudos sobre a iniciação à docência em seu bojo.
As linhas teóricas adotadas pelas dissertações e teses analisadas configuram-se como outro fator de bastante relevância. Sem, necessariamente, especificar o número de citações em cada trabalho, este artigo procurou analisar os autores mais utilizados. Para os autores internacionais, os mais citados, em ordem decrescente, foram Carlos Marcelo García, Maurice Tardif, Michael Huberman, Antonio Nóvoa e Francisco Imbernón. Para as autoras nacionais, os nomes mais citados foram os das professoras Marli André, Bernardete Gatti, Selma Garrido Pimenta e Maria da Graça Mizukami.
Mais do que meramente arrolar a lista de autores/as mais citados/as, como se fosse criado um ranqueamento, esse cenário acima apontado nos revela contornos epistemológicos importantes para a discussão do tema do início da docência. No tocante a isso, percebe-se, não obstante algumas diferenças conceptuais, uma hegemonia de pensadores e pensadoras ancorados na epistemologia da prática ou naquilo que Contreras (2002) denomina de racionalidade prática.
Essa hegemonia traz à baila aspectos que dão o contorno para o início da docência, como, por exemplo, o reconhecimento de que as instituições de formação inicial, tal qual já defendera Zeichner (1993), na melhor das hipóteses, ensinam seus estudantes a entrarem na sala de aula. Ou seja, que o processo de aprender a ser professor se dá no exercício cotidiano da profissão. Tal prerrogativa não enseja a desqualificação dos saberes disciplinares ensinados pelas instituições formadoras; ao contrário, colaboram para que se faça uma delimitação nevrálgica acerca das potencialidades e limites dos cursos de formação inicial de professores/as. Não se trata, com isso, de defender que os cursos sejam essencialmente teóricos ou o seu contrário, mas sim de reconhecer que diferentes saberes cumprem diferentes finalidades. Portanto, o saber da experiência, tão defendido pela epistemologia da prática, tem poucas condições de ser adquirido nos bancos das instituições formadoras.
A epistemologia da prática também traz acento à ideia de que o foco de análise não se processa, exclusivamente, nas questões técnicas (embora, a julgar pelos resultados dos trabalhos, o grande afã dos professores iniciantes ainda seja a pergunta “como eu ensino isso?”), mas procura enveredar, também, por uma análise que leve em conta os fatores subjetivos que configuram as práticas docentes.
O que salta aos olhos na relação de autores citados é uma tímida discussão acerca de uma epistemologia crítica na compreensão do início da docência, em que pese a sempre fragilidade das classificações teóricas rígidas. Como caso ilustrativo, cabe mencionar que Paulo Freire, por exemplo, é um autor frequentemente citado em epígrafes ou de maneira muito pontual no interior das pesquisas, sem que isso implique uma adesão aos seus referenciais teóricos. Em outras palavras, há lacunas na produção de conhecimento acerca de como se pode compreender o período de início da docência a partir de outros referenciais que não sejam somente aqueles ancorados na epistemologia da prática. Um imenso mar de possibilidades analíticas a ser explorado.
Na perspectiva de intentar esboçar essa lacuna ora indicada, cabe mencionar que são quase inexistentes estudos, por exemplo, que analisem a dimensão dos marcadores sociais no início da docência. Ou seja, quase nada se sabe sobre as possíveis análises que podem ser empreendidas levando-se em conta as dimensões de classe social, raça/etnia, gênero/sexualidade e religião dos sujeitos participantes dos estudos e, até mesmo, as maneiras por meio dos quais esses profissionais lidam com esse aspecto da diversidade cultural em suas práticas. Portanto, cabe o questionamento: esses marcadores não teriam influência nas situações de iniciação à docência? Ou esse silêncio acerca dessas discussões é corolário da hegemonia dos referenciais da epistemologia da prática, que colocam em destaque outros elementos analíticos? Se a resposta para a segunda pergunta for afirmativa, reitera-se a importância e urgência de se ampliar as possibilidades teóricas para que novas análises possam ser construídas.
Um importante aspecto a ser destacado no escopo selecionado é alusivo aos temas que foram investigados. Não se mostra tarefa fácil empreender esse tipo de sistematização, uma vez que, algo muito comum nas ciências humanas, há estudos que, amiúde, tratam de temáticas semelhantes a partir de categorias conceituais ou terminológicas distintas. Em vez de se produzir uma longa lista com o rol de todos os temas investigados, são apresentados os temas mais incidentes dentre todas as dissertações e teses.
Assim sendo, constata-se que as pesquisas sobre o início da docência têm dedicado suas atenções aos seguintes temas: a) as relações e contribuições de programas de mentoria ou acompanhamentos em modalidades online, grupos colaborativos; b) a socialização profissional; c) a constituição dos processos de identidade e/ou de profissionalidade docente; d) as relações entre os saberes docentes (nas considerações de suas múltiplas fontes de origem) e a prática pedagógica; e) as formas de aprendizagem e/ou de desenvolvimento profissional docente; f) as necessidades formativas; g) relações entre o início de carreira e a formação inicial; h) a constituição da docência na educação superior; i) dificuldades e dilemas; e j) relações e contribuições dos programas de indução à docência como o PIBID, por exemplo.
Começam a emergir, ainda que timidamente, temas como o trabalho docente voltado à questão étnico/racial, a iniciação à docência fora das etapas regulares de educação básica, como a educação de jovens e adultos, por exemplo, e análise de condições de trabalho de professores iniciantes.
Um último elemento a ser destacado refere-se aos resultados das dissertações e teses. Em que pesem as diferenças epistemológicas, de foco de pesquisa, de condições contextuais de trabalho, de níveis de ensino, há vários dados que vão se mostrando convergentes nos resultados trazidos pelos estudos.
Destacam-se as constatações de que: a) os professores iniciantes desenvolvem suas práticas em contextos extremamente adversos; b) as aprendizagens iniciais são fortemente marcadas por tentativas e erros; c) os sentimentos de choque de realidade e de sobrevivência tornam esse período da carreira bastante delicado e é o sentimento de descoberta que enseja a permanência na profissão; d) os professores iniciantes precisam desenvolver seu trabalho com as “turmas consideradas piores” e são submetidos a um processo solitário de aprendizagem profissional; e) dentre os inúmeros aspectos intraescolares que assolam o professor iniciante, os três que mais se destacam são a manutenção de disciplina, a relação com os pares mais experientes e a organização pedagógica do conteúdo curricular; f) nem sempre os professores iniciantes conseguem identificar a contribuição dos saberes adquiridos na formação inicial, reclamando de uma aparente distância entre teoria e prática; g) o clima organizacional e o apoio da equipe gestora das unidades escolares têm sido outro elemento decisivo para a permanência na carreira; h) os professores iniciantes na educação superior reclamam de uma ausência de formação pedagógica ou de programas de acolhimento nas instituições de ensino superior, uma vez que muitos deles possuem trajetória formativa em áreas completamente alheias às discussões educacionais e, repentinamente, tornam-se professores.
3 Finalizando o texto, mas iniciando o debate: o que se sabe? O que se começa a descobrir? E o que ainda falta perceber?
Como fora dito no início deste texto, não se trata de uma pesquisa de estado da arte, mas de um levantamento que buscou sistematizar uma determinada produção que ainda não havia sido sistematizada e, dela, reconhecer que já se faz possível extrair alguns contornos conceituais para o tema. Os quatro levantamentos citados organizam seus recortes cronológicos, em grande medida, a partir dos anos 2000 e, aqui, empreendeu-se a análise desde a primeira dissertação defendida (mesmo reconhecendo a dificuldade de acesso a todas as dissertações e teses).
Procurando colaborar para o debate avançar, além de propor o refinamento de terminologias que podem ajudar a dar contornos mais precisos aos temas de pesquisa trabalhados, é possível apontar ainda alguns aspectos. No que se refere a isso, pode-se destacar, a partir da pergunta “o que se sabe?”, quais foram os temas mais enfatizados (o que não significa dizer que estejam esgotados, mas reconhecer que há estudos que vêm reiterando os diferentes resultados), a saber: a) o sentimento de choque de realidade, sobrevivência e descoberta; b) os saberes docentes e suas relações com as diversas fontes de aquisição deles; c) as relações entre a formação inicial de professores e o início da docência; d) o início da docência na educação infantil, nos anos iniciais do ensino fundamental e na educação superior; e) socialização profissional que marca, por exemplo, uma lógica inversa a de outras profissões, as turmas mais complexas são delegadas àqueles que não possuem experiência.
O que se nota, como aspectos convergentes desses estudos, é uma preocupação em caracterizar esse período inicial na carreira. Nesse sentido, percebe-se um relevo às dificuldades, a mostrar como esse período é, tal qual já defendera Marcelo García (1999), de intensas aprendizagens, marcadas por tentativas e erros e desenvolvidas em contextos adversos. Cabe, aqui, uma reflexão: será que já haveria um consenso e um reconhecimento de que esse período de iniciação é algo intenso, adverso, solitário, uma verdadeira prova de fogo? Será que é possível que pesquisas futuras tenham condições de avançar em novas direções, trazendo à baila outros elementos que avancem da mera tentativa de caracterizar esse período? Não se defende que esteja esgotado, pois novos aspectos sempre podem emergir, mas aponta-se, sim, que há inúmeros estudos que, amiúde, corroboram os elementos trazidos pela literatura e, assim, o tema precisa se ver desafiado, no interior da área de formação de professores, a produzir avanços, ampliar os olhares. Em síntese, parecer ser possível apontar que muito já se sabe sobre as características do início da docência.
Para a segunda pergunta lançada “o que se começa a descobrir?”, é preciso destacar que surgem dois temas com bastante força: a) a contribuição de programas de mentoria e grupos colaborativos para o processo de desenvolvimento profissional dos iniciantes; e b) as relações entre programas de indução à docência, como o PIBID, por exemplo. Nesse sentido, é importante mencionar que esses dois flancos aparecem de maneira bastante profícua para trazer elementos que possam, inclusive, colaborar com possíveis construções de políticas públicas de inserção na carreira. Em outras palavras, além de caracterizar ou denunciar que professores iniciantes são abandonados à própria sorte, esses temas têm colaborado para que se potencializem análises que mostrem a importância de diferentes apoios para a construção do desenvolvimento profissional docente.
A terceira pergunta “o que ainda falta perceber?” é bastante capciosa. Não se busca, aqui, criar um rol de todos os temas que ainda faltam ser investigados, pois isso, além de altamente pretensioso, seria impossível (novos temas e novos referenciais sempre estão a surgir). O propósito é, a julgar pelos cenários de temas conhecidos, tentar apontar caminhos ainda pouco explorados ou silenciados nos estudos selecionados. Ademais, em relação ao questionamento anterior, o critério adotado reporta-se ao quantitativo de trabalhos, ou seja, há temas que, embora comecem a aparecer na produção, já o fazem com número razoável de trabalhos (o PIBID, por exemplo, aparece como tema central de mais de 10 pesquisas).
Nesse sentido, permanecem pouco explorados (por vezes, aparecendo em apenas uma ou duas pesquisas) temas como: a) a iniciação à docência em contextos alheios à educação regular formal (por exemplo, a Educação de Jovens e Adultos); b) a iniciação à docência no Ensino Médio; c) os novos recomeços profissionais, provenientes de trocas de níveis de ensino, contexto escolar, entre outros, que aqui está sendo denominado de “situações de iniciação profissional”; d) programas de acompanhamento para professores da educação superior; e) condições de trabalho de professores iniciantes; f) trabalho pedagógico com a diversidade étnico/racial (uma dissertação aborda o trabalho de professores iniciantes com a Lei 10639/03); g) são exíguas as pesquisas que tomam o professor em seu primeiro ano de efetivo exercício profissional; h) análise de políticas municipais de inserção de professores iniciantes (ações de extrema urgência, mas ainda muito pontuais); i) o trabalho do professor iniciante com a diversidade cultural.
Permanecem, todavia, silenciados temas como, por exemplo: a) as relações de gênero no início da docência (haveria alguma diferença na iniciação profissional de homens e mulheres? Seriam eles menos assolados pelo choque de realidade que elas?); b) a iniciação à docência e os marcadores sociais da diferença (aqui, em duplo sentido: seja porque permanece silenciado o processo de iniciação profissional que tome as temáticas étnico/racial e de gênero/sexualidade como elemento identitário do próprio professor, seja porque uma análise do trabalho pedagógico com essas temáticas também está por ser empreendida); c) como consequência do item anterior, permanece silenciada a ideia de professor iniciante como intelectual crítico e transformador; d) os aspectos que levam professores iniciantes a abandonarem a profissão; e) o absenteísmo e o mal-estar docente já no início de carreira; f) estudos longitudinais que acompanhem o desenvolvimento profissional (obviamente que, dadas as características da pós-graduação no Brasil, tal tipo de pesquisa poderia ser viável somente em teses de doutorado. Entretanto, essa indicação reporta-se também à possibilidade de que projetos de pesquisas que ultrapassam a lógica da pós-graduação possam ser empreendidos).
O início da docência mostra-se como tema instigante, com muitas frentes ainda a serem desvendadas, e apresenta condições de colaborar para a formulação de políticas públicas que não deixem o sujeito profissional largado à própria sorte. O tema, em plena consolidação no campo da formação de professores, começa, ainda que timidamente, a diversificar seus objetos de estudos, carecendo, no entanto, de ampliar o viés epistemológico para além da epistemologia da prática.