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Educação: Teoria e Prática

Print version ISSN 1993-2010On-line version ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.33 no.66 Rio Claro  2023  Epub Dec 31, 2023

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v33.n.66.s15633 

Artigos

BNCC e suas concepções político-pedagógicas para a educação e educação física: algumas aproximações

BNCC and its political-pedagogical conceptions for education and physical education: some approaches

BNCC y sus concepciones político-pedagógicas para la educación y la educación física: algunos enfoques

Jorge Henrique de Lima Monteiro1 
http://orcid.org/0000-0002-7493-3191

Carlos Henrique Ferreira Magalhães2 
http://orcid.org/0000-0001-9977-2497

1Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná - Brasil

2Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná - Brasil


Resumo

Este artigo tem como objetivo identificar as possíveis teorias pedagógicas que fundamentam o documento BNCC em sua proposta geral e na especificidade da educação física, além das determinações dessas concepções para a prática escolar. As análises ocorreram por meio da técnica de categorização e interpretação hermenêutica-dialética. A partir disso, cogitamos que a BNCC apresenta fortes aproximações com a concepção construtivista de aprendizagem, ao priorizar a construção de capacidades subjetivas, como a busca pelo “aprender a aprender”, “ser autônomo” e “protagonista”. Para a especificidade da educação física, identificamos a relação com a teoria crítico-emancipatória, ao objetivar o desenvolvimento de competências e com a utilização do termo “cultura corporal de movimento”, ao considerar os elementos constitutivos da educação física. Assim, concluímos que o documento BNCC prioriza o desenvolvimento da sociedade, a partir da construção de sujeitos flexíveis, individualistas e (in)capazes de alterar sua realidade, determinando um processo de esvaziamento de conteúdo a ser apropriado historicamente pelos alunos, sendo isso a materialização atual de um movimento iniciado na década de 1990, com políticas neoliberais, pós-modernas e neoconservadoras.

Palavras-chave: BNCC; Construtivismo; Teoria crítico-emancipatória; Educação Física Escolar

Abstract

This article aims to identify the possible pedagogical theories that underlie the BNCC document, in its general proposal and in the specificity of physical education, and the determinations of these concepts for school practice. The analyzes took place using the hermeneutic-dialectic categorization and interpretation technique ( MINAYO, 1992). From the analyzes, we believe that BNCC presents strong approximations with the constructivist conception of learning, by prioritizing the construction of subjective capacities, such as the search for "learning to learn", "being autonomous" and "protagonist". For the specificity of physical education, we identified the relationship with the critical-emancipatory theory when aiming at the development of skills and with the use of the term “body culture of movement”, when considering the constituent elements of physical education. Thus, we conclude that the BNCC document prioritizes the development of society based on the construction of flexible, individualistic and (in)capable of altering their reality, determining a process of emptying of content to be historically appropriated by students, being this the current materialization of a movement started in the 1990s with neoliberal, postmodern and neoconservative policies.

Keywords:  BNCC; Constructivism; Critical-emancipatory Theory; School Physical Education

Resumen

Este artículo tiene como objetivo identificar las posibles teorías pedagógicas que sustentan el documento BNCC, en su propuesta general y en la especificidad de la educación física, y las determinaciones de estos conceptos para la práctica escolar. Los análisis se realizaron mediante la técnica de categorización e interpretación hermenéutica-dialéctica ( MINAYO, 1992). A partir de los análisis, creemos que BNCC presenta fuertes aproximaciones con la concepción constructivista del aprendizaje al priorizar la construcción de capacidades subjetivas, como la búsqueda de “aprender a aprender”, “ser autónomo” y “protagonista”. Para la especificidad de la educación física, identificamos la relación con la teoría crítico-emancipadora, cuando se apunta al desarrollo de habilidades, y con el uso del término “cultura corporal del movimiento”, al considerar los elementos constitutivos de la educación física. Así, concluimos que el documento BNCC prioriza el desarrollo de la sociedad desde la construcción de formas flexibles, individualistas y (in)capaces de alterar su realidad, determinando un proceso de vaciado de contenidos para ser históricamente recogidos por los estudiantes, siendo esta la materialización actual de un movimiento iniciado en la década de 1990 con políticas neoliberales, posmodernas y neoconservadoras.

Palabras Clave:  BNCC; Constructivismo; Teoría Crítico-emancipadora; Educación Física Escolar

1 Introdução

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento normativo conduzido pelo MEC (Ministério da Educação), cuja finalidade é definir o conjunto de aprendizagens essenciais necessárias para os alunos ao longo das etapas da Educação Básica, assegurando a eles os direitos de aprendizagem e desenvolvimento. O documento visa reformular os currículos e propostas pedagógicas das redes escolares dos estados, Distrito Federal e dos municípios, além de contribuir para o alinhamento de ações e políticas: formação de professores, avaliação, elaboração de conteúdos educacionais e critérios de infraestrutura adequada para o desenvolvimento da educação. ( BRASIL, 2017).

Desde a Constituição da República de 1988 até a publicação da BNCC, diversos documentos e eventos relacionados com a educação influenciaram o processo construção da Base Nacional Comum, sendo eles: (a) a Constituição Federal de 1988; (b) a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Ldben) de 1996; (c) Parâmetros curriculares nacionais (PCN) de 1997; (d) PCN de 1998; (e) PCN de 2000; (f) Programa Currículo em Movimento de 2008; (g) Documento final do CONAE (Conferência Nacional da Educação) em 2010; (h) Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) em 2010; (i) DCN para a educação infantil em 2010; (j) DCN para o ensino fundamental de 9 anos em 2011; (k) DCN para o Ensino Médio em 2012; (l) Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) em 2012; (m) Pacto Nacional de Fortalecimento do Ensino Médio (PNFEM) em 2013; (n) PNE em 2014; (o) 2ª Conferência Nacional pela Educação (CONAE) em 2014; (p) I Seminário Interinstitucional para elaboração da BNC em 2015; (q) 1ª versão da BNCC em 2015; (r) 2ª versão da BNCC em 2016; (s) 27 seminários estaduais para discussão da BNCC em agosto de 2016; e (t) 3ª versão da BNCC em dezembro de 2017.

O processo de elaboração da BNCC contou com professores e leitores convidados em regime de colaboração. Os convidados foram distribuídos e organizados pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e pela União dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), representando todos os estados da Federação e pesquisadores vinculados a 35 Universidades – instituídos pelo MEC por meio da Portaria nº 592, de 17 de junho de 2015, como responsáveis pela primeira versão da BNCC. A equipe final foi constituída por duas coordenadoras, 14 assessores e 108 especialistas. No campo da Educação Física, a equipe foi constituída por um assessor professor do Ensino Superior, com quem ficou o cargo de coordenação, e 12 professores, sendo seis da Educação Básica e seis professores universitários. ( NEIRA; SOUZA JUNIOR, 2016).

A origem para a elaboração do documento foi o Seminário Internacional “Base Nacional Comum: o que podemos aprender com as evidências nacionais e internacionais”, realizado no dia 8 de julho de 2015, em Brasília. Organizado pela UNDIME e CONSED, com apoio do Movimento pela Base Nacional Comum Curricular, o evento teve a participação de especialistas nacionais e internacionais do Reino Unido, Chile, Austrália e Estados Unidos, objetivando o compartilhamento de experiências e construções curriculares.

A partir da breve explanação sobre a temática exposta, este artigo de caráter documental e exploratório tem por objetivo identificar as possíveis teorias pedagógicas que fundamentam o documento BNCC, em sua proposta geral, na especificidade da educação física escolar, e as determinações dessas concepções para a prática escolar. Assim, utilizamos o método de categorização e interpretação hermenêutica-dialética de Minayo (1992), a fim de extrair as categorias políticas empíricas.

2 A BNCC e suas possíveis concepções pedagógicas

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece como prioridade o desenvolvimento de habilidades e competências específicas em cada área, privilegiando dimensões do conhecimento como: experimentação, fruição, construção de valores e protagonismo comunitário. ( BRASIL, 2017).

A partir das análises da BNCC, destacamos três características específicas do documento que nos ajudarão a desvelar aproximações com suas possíveis bases teóricas. A primeira delas diz respeito a constituição das habilidades, objetivada pelo documento como a construção de um conjunto de habilidades básicas necessárias para todos os alunos da educação básica. A segunda está relacionada a entender que a aprendizagem deve ser de acordo com as necessidades, possibilidades e interesses dos estudantes, dando sentido ao que se aprende, e que atenda as demandas da sociedade contemporânea. A terceira concerne em estimular o aluno a desenvolver competências para aprender a aprender, sendo autônomo em um mundo tecnológico cada vez com maiores informações, proativos e respeitando as diferenças e diversidades culturais ( BRASIL, 2017). Acreditamos que essas características e princípios fundamentais estabelecidos na BNCC possuem relações com a teoria construtivista, pois o foco sempre será o aluno, que é responsável por construir seu próprio conhecimento por meio da fruição e da experimentação, bem como por aprender a aprender.

Duarte ( 2005, p. 50) sintetiza como seria para o construtivismo o processo de aprendizagem do aluno:

Para o construtivismo a aprendizagem seria um processo de construção individual do sujeito e este não copia a realidade mas constrói a partir de suas representações internas. A interpretação pessoal rege o processo de conhecer, o qual desenvolve seu significado através da experiência. A aprendizagem é situada e deve dar-se em cenários realistas; o cotidiano do sujeito e ele próprio trazem os conteúdos necessários para que corra a aprendizagem.

Ainda assevera:

O ensino a escola devem levar o aluno a “aprender a aprender”. Sua realidade e seu cotidiano são as referências. Conteúdos devem ser reduzidos aos que puderem ser realmente compreendidos pelo aluno. A educação é uma prática social da mesma forma que a família, o clube, mas é artificial por tentar impor ao aluno “conteúdos” que estão fora do seu mundo, ignorando os conhecimentos que ele possui. Isso deve ser eliminado.

( DUARTE, 2005, p. 51)

Já em relação a imagem e posicionamento do professor para com sua prática escolar, Duarte (2005) destaca o seu papel enquanto facilitador no construtivismo:

Professor não ensina – [...] o professor ajuda o aluno a construir o conhecimento a partir de seus conhecimentos prévios, e diante de algo novo deve, segundo Tolchinski (1997, p. 111), reconhecer que a única possibilidade para que as experiências escolares fiquem em pé de igualdade com as não-escolares reside no conhecimento de que a atribuição de significado está sempre em função do que o aluno já sabe, sendo que estes saberes prévios devem encontrar na escola situações para sua manifestação.

( DUARTE, 2005, p. 51).

Compartilhando do mesmo processo reflexivo, Cazumbá (2018) afirma que o documento da BNCC, no empenho do “aprender a aprender”, apresenta aproximações perceptíveis com a teoria construtivista, sendo uma perspectiva a-histórica, objetivando a adaptação do homem a realidade e afastando-o da realidade concreta, na qual “[...] são mais desejáveis as aprendizagens que o indivíduo realiza por si mesmo, nas quais estão ausentes a transmissão, por outros indivíduos, de conhecimentos e experiências” (DUARTE, 2011, p. 2, apudCazumbá, 2018, p. 74-75).

Mas, quais são as implicações para a prática escolar se uma política educacional como a BNCC apontar aproximações com uma tendência pedagógica construtivista? Para Duarte (2005), além da priorização de habilidades e competências em detrimento da apropriação de conhecimento pelos alunos, o Construtivismo constitui um retrocesso e não um avanço, pois conduz a negação da importância da apropriação do conhecimento também pelo professor em seu processo de formação, contribuindo para sua desqualificação e desprofissionalização. Um exemplo do esvaziamento provocado pela inserção dos aspectos construtivistas na educação retratado por Newton Duarte foi um relato apresentado pela TV Globo, em 1999, apresentando figuras de “professor-modelo” a cada mês, em um dos casos, o modelo foi um professor de História que trabalhava em condições precárias (estrutura física, econômica e social). Segundo Duarte ( 2005, p. 43), esse professor não “enchia” a cabeça dos alunos com coisas “arcaicas”, histórias antigas e ultrapassadas. Suas aulas consistiam em que cada um descobrisse sua própria história e de sua família:

[...] ao mesmo tempo em que descobria que falar e escrever sobre sua história e ouvir a história de seus colegas é mais importante do que amontoados de fatos passados com outras pessoas em outros tempos e em outros locais. Assim a aula se tornava mais “criativa”, “realista”, “dinâmica” e “interessante”.

Essa campanha intensificava o estranhamento sobre a falta de um ambiente equipado e estruturado para o trabalho de um professor qualificado, inserindo a imagem de um professor “missionário”, que trabalhava incansavelmente para educar os pobres, dando-lhes o pouco que possuía com fé e amor para o desenvolvimento do país. Esse movimento guiou para a campanha “Voluntário na educação é amigo da escola”, clamando por pessoas dotadas de conhecimento não científico que poderiam atuar no ambiente escolar (costureira, modelo, padeiro, juiz, pedreiro etc.) e desqualificando ainda mais o professor em seu mercado de trabalho. ( DUARTE, 2005).

No final do ano 2000, a Revista Nova Escola publicou uma reportagem intitulada “É hora de cuidar da sua carreira”, em que a figura central era o professor e as mudanças que este deveria ter em sua formação, devido as novidades tecnológicas levadas pela onda da “nova sociedade”. Com as informações chegando de forma mais rápida via internet, Iara Prado 1 explicou que para o professor conseguir se manter no novo mercado educacional, era preciso que este não continuasse mais como mero transmissor de conhecimentos, mas devendo “[...] procurar desenvolver em seus alunos a criatividade e a autonomia na busca desses conhecimentos”. ( DUARTE, 2005, p. 44). A secretária ainda afirmou que o motivo dos professores continuarem a trabalhar dessa maneira “antiquada” dava-se pela formação excessivamente acadêmica recebida na universidade com características arcaicas, não se relacionando com as atualizações tecnológicas e metodológicas no contexto do momento, nem contribuindo, dessa forma, com as exigências para o profissional que se alicerçaria principalmente na formação do sujeito autônomo.

As políticas neoliberais aliadas à filosofia pós-moderna e às concepções pedagógicas baseadas no construtivismo, segundo Duarte (2005), determinam o âmbito social, incluindo a educação, isso causa consequências drásticas para a manutenção das desigualdades. No que tange a formação de professores, Duarte (2005) descreve as políticas neoliberais como totalizantes e totalitárias, com o ideário baseado na ilusão de que o indivíduo é responsável por tudo – portanto tudo depende dele – e com a naturalização das desigualdades. A própria figura do professor que ministra aulas em locais improvisados e inserido em uma realidade pobre tal qual dos alunos, reforçando a ideia de que a manutenção da sua condição social jamais será alterada, independentemente de seu esforço individual ou coletivo, é visto como algo natural e saudável. Esse processo individualista 2 é ainda mais aparente com o aumento do desemprego, em que cada vez mais os indivíduos precisam renunciar a seus direitos para “ter um lugar ao sol” no mundo competitivo de “cada um por si”, aumentando assim a exploração ( DUARTE, 2005). No trabalho docente, isso se apresenta de maneira clara:

[...] se fôssemos perguntar aos professores quanto eles ganham por mês, verificaríamos que o salário é irrisório e que, para compensá-lo, eles são obrigados a submeter-se a jornadas triplas de trabalho sempre em condições péssimas, o que prejudica seu desempenho profissional.

( DUARTE, 2005, p. 46)

Essas características descritas anteriormente, segundo Duarte (2005), são aceitas por boa parte dos próprios construtivistas. Ao afirmar que o construtivismo não aceita a existência de um conhecimento objetivo e universal, e que a construção dos sentidos e significados deve ser fruto da realidade individual “[...] também nega a capacidade do ser humano de conhecer a realidade de forma objetiva e, consequentemente, também transforma o conhecimento em uma construção individual”. ( DUARTE, 2005, p. 51). Dessa forma, rompe a possibilidade de um conhecimento racional e de uma visão que possibilite envolver a totalidade da produção humana, controlando assim os rumos da sociedade.

Assim, compartilhamos das análises de Duarte ( 2005, p. 52) sobre as políticas neoliberais e tendências pós-modernas na educação, ao considerar que:

A escola empobrece cada vez mais; o conhecimento acumulado pela humanidade torna-se algo para poucos; o senso comum invade a escola disfarçado de “sabedoria popular” (sabedoria esta cheia de crendices mistificadoras e retrógradas), e o professor deixa de ser um intelectual para se tornar um mero “técnico” ou “acompanhante” do processo de construção do indivíduo.

3 BNCC e suas possíveis concepções político-pedagógicas para a Educação Física

O ensino proposto pela Base Nacional Comum Curricular apresenta habilidades e competências específicas para todas as áreas da educação. Para a especificidade da Educação Física, o documento sistematiza dez competências específicas, sendo elas: (1) compreender a origem da cultura corporal de movimento e seus vínculos com a organização da vida coletiva e individual; (2) planejar e empregar estratégias para resolver desafios e aumentar as possibilidades de aprendizagem das práticas corporais, além de se envolver no processo de ampliação do acervo cultural nesse campo; (3) refletir, criticamente, sobre as relações entre a realização das práticas corporais e os processos de saúde/doença, inclusive no contexto das atividades laborais; (4) identificar a multiplicidade de padrões de desempenho, saúde, beleza e estética corporal, analisando, criticamente, os modelos disseminados na mídia e discutir posturas consumistas e preconceituosas; (5) identificar as formas de produção dos preconceitos, compreender seus efeitos e combater posicionamentos discriminatórios em relação às práticas corporais e aos seus participantes; (6) interpretar e recriar os valores, sentidos e significados atribuídos às diferentes práticas corporais, bem como aos sujeitos que delas participam; (7) reconhecer as práticas corporais como elementos constitutivos da identidade cultural dos povos e grupos; (8) usufruir das práticas corporais de forma autônoma para potencializar o envolvimento em contextos de lazer, ampliar as redes de sociabilidade e a promoção da saúde; (9) reconhecer o acesso às práticas corporais como direito do cidadão, propondo e produzindo alternativas para sua realização no contexto comunitário; e (10) experimentar, desfrutar, apreciar e criar diferentes brincadeiras, jogos, danças, ginásticas, esportes, lutas e práticas corporais de aventura, valorizando o trabalho coletivo e o protagonismo. ( BRASIL, 2017)

Ao tratar a especificidade da educação física como cultura corporal de movimento, a BNCC sugere a adoção da abordagem pedagógica crítico-emancipatória de Elenor Kunz. Tal abordagem possui valor inquestionável para a área da Educação Física, qual, em linhas gerais, tem por conceito o ensino dos esportes em uma educação que auxilie na reflexão crítica e emancipatória das crianças e jovens ( DARIDO, 2001). Para Kunz (1994) a abordagem crítico-emancipatória preconiza uma transformação didático-pedagógica a partir de uma didática comunicativa para a compreensão de mundo, em um processo autorreflexivo, sendo uma concepção que: “[...] busca alcançar, objetivos primordiais do ensino, e através das atividades com o movimento humano, o desenvolvimento de competências como a autonomia, a competência social e a competência objetiva”. ( KUNZ, 1994, p. 107, grifo nosso).

[...] o ensino escolar para uma formação crítico-emancipatória deve considerar cada área específica, hoje denominada disciplina, como um campo de pesquisa e estudo, pretende preparar o aluno para uma competência do agir. [...] Mudar a concepção da relação Ensino-aprendizagem significa, também, que os alunos sejam capacitados para atuarem, agirem de forma independente, isto é, que eles possam, nas aulas, reconhecer por si nas possibilidades de atuar; que eles mesmos possam, por exemplo, de acordo com suas condições, estabelecer e definir de forma responsável as situações e o desenrolar dos movimentos no esporte, ou no jogo, bem como participar nas decisões da estruturação e organização das aulas. Para adquirirem uma competência social e um agir independente através do processo de ensino, os alunos deverão adquirir também determinado Saber, determinados conhecimentos que, sem dúvida, não podem ser alcançados somente pelo fazer prático.

( KUNZ, 2001, p. 190).

O uso e adoção pela BNCC por termos como “competências”, “saberes”, “autonomia”, a formação de uma “consciência cidadã” e o privilégio pelo saber-fazer, saber-pensar e o saber-sentir auxiliam a estabelecer as possíveis relações do documento (BNCC) com a base teórica de Kunz (1994). Mas, por que um documento curricular nacional, dentro de um contexto político neoliberal e de busca pela perpetuação da sociedade capitalista, adotaria uma perspectiva crítica-emancipatória? A resposta é simples: tal concepção da Educação Física não visa a transformação das relações sociais para uma possível emancipação humana.

Segundo Taffarel e Morschbacher (2013), Elenor Kunz é reconhecido por ser um autor adepto da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e por ter suas posições teóricas no campo da fenomenologia. As aproximações entre sua base teórica com o documento da BNCC, especificidade da educação física, apresentam-se com maior clareza se pensarmos na compreensão do conceito de emancipação adotado por Kunz (1994) e as condições políticas concretas da presente sociedade regida pelo capital, em um contexto neoliberal e pós-moderno.

Pelos pressupostos marxistas, não devemos confundir emancipação humana com emancipação política. A emancipação política tem por parte integrante a reflexão e construção da cidadania, entretanto, não fornece os elementos necessários para a emancipação humana. A emancipação humana, segundo Tonet (2005) supõe a erradicação do capital e todas suas categorias, não o aperfeiçoamento da cidadania, mas sua completa superação, em um possível trabalho associado 3. Para isso, é preciso homens livres, iguais e proprietários, efetivamente, e não apenas formalmente. Para Tonet (2005) é impossível estabelecer a emancipação humana na sociedade capitalista, pois a produção de desigualdade crescente é necessária para sua manutenção. Não é possível a construção de uma comunidade autêntica sob a égide do capital. Políticas de bem-estar social, direitos e constituição cidadã não eliminam a desigualdade em sua raiz.

Dessa forma, uma educação física fundamentada na abordagem crítico-emancipatória, como apresenta ser a BNCC, não fundamenta os elementos teórico-conceituais necessários para uma compreensão e transformação social pelos pressupostos marxianos, demonstrando contradição: está em uma perspectiva crítica de sociedade, por um lado, e atendendo aos interesses de reprodução do capital, por outro.

4 Breves considerações com as categorias marxianas

Até o momento, pudemos entender como a BNCC apresenta seus objetivos e princípios político-pedagógicos, estabelecendo e identificando relações com as possíveis concepções em que o documento se fundamenta. Cabe-nos agora apresentar as categorias políticas que destacamos com a análise documental e exploratória, sendo elas: “descentralização”, “contradição” e “hegemonia”, e a subcategoria “subjetividade”.

Primeiramente, é importante deixar claro de onde parte nossa análise sobre o documento da BNCC. Partimos das influências dos organismos internacionais, como o Banco Mundial, ONU e Unesco; de institutos como o Instituto Ayrton Senna, Instituto Itaú Unibanco e Fundação Lemann. Procuramos compreender, por meio das contradições de classe e interesses de quem escreveu e influenciou o documento, que é parte resultante de uma série de políticas iniciadas na década de 1990.

Os organismos internacionais liderados pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) pressionaram, desde a década de 1990, para que os países subdesenvolvidos readequassem seus currículos educacionais (políticas educacionais), acompanhando seus interesses, orientadas pelo neoliberalismo e o neoconservadorismo. Podemos destacar, dentre os interesses reformistas de conferências e fóruns mundiais de Educação Para Todos, a Declaração de Jomtien (1990), a Declaração de Nova Delhi (1993), o Relatório Delors (1998) e o Marco de Ação de Dakar (2000). ( RABELO; SEGUNDO; JIMENEZ, 2009).

Um exemplo em que podemos visualizar para qual direção caminharam as políticas educacionais está na ideia de educação do relatório Delors:

[...] parece impor-se, cada vez mais, o conceito de educação ao longo de toda a vida, dadas as vantagens que oferece em matéria de flexibilidade, diversidade e acessibilidade no tempo e no espaço. É a idéia de educação permanente que deve ser repensada e ampliada. É que, além das necessárias adaptações relacionadas com as alterações da vida profissional, ela deve ser encarada como uma construção contínua da pessoa humana, dos seus saberes e aptidões, da sua capacidade de discernir e agir. Deve levar cada um a tomar consciência de si próprio e do meio ambiente que o rodeia, e a desempenhar o papel social que lhe cabe enquanto trabalhador e cidadão.

( DELORS, 1998, p. 18, grifos nossos).

Observa-se o movimento em que as políticas caminharam, desde a década de 1990 até a BNCC, em 2017. Esse projeto de política educacional objetiva uma descentralização 4 da responsabilidade de apropriação do conhecimento. A escola não mais deve ser responsável por ensinar o conhecimento que há de mais elaborado pela cultura humana. A priorização, neste momento, está na aquisição de habilidades e competências, no desenvolvimento de saberes e aptidões para o trabalho, ou seja, na construção das capacidades subjetivas 5 dos seres. A escola precisa desenvolver crianças criativas, participativas, resilientes e proativas. A sociedade requer o desenvolvimento de competências para aprender a aprender. Os sujeitos precisam ser autônomos para tomada de decisões, todos elementos que mostram como deve ser o cidadão no mundo moderno. Se na PCN havia uma preocupação com a empregabilidade, na BNCC há uma preocupação para um sujeito empreendedor, em conseguir habilitar sujeitos para os desafios do mundo social, com foco nas capacidades subjetivas.

Nesse processo de construção das políticas para a educação, grupos neoconservadores buscam espaço nos currículos educacionais. Observemos quais países participaram dos seminários de construção da BNCC: Reino Unido, Chile, Austrália e Estados Unidos. Fundações e Institutos: Instituto Ayrton Senna, Instituto Itaú Unibanco e Fundação Lemann. Influências de Organismos internacionais como Banco mundial, ONU e Unesco. Para cada grupo o documento deve ter uma função. Para os conservadores, a educação deve evitar assuntos como gênero e espaço das mulheres no mundo, visibilidade nos esportes e discriminação. Para os democratas participativos, os aspectos relacionados a cidadania e autonomia devem ser priorizados. Para os epicentros capitalistas, dá-se preferência à formação de cidadãos e força de trabalho qualificada. A busca pela hegemonia 6 da classe burguesa sobre o proletariado é evidente no campo da educação, tendo observado para qual finalidade este documento se direciona.

Por fim, a contradição 7 é evidenciada nas políticas do contexto pós-moderno e neoliberal, dentre elas a BNCC, ao ponto que tais documentos são movidos pelos interesses da sociedade burguesa e para o desenvolvimento do capital por meio da educação, desconsiderando que, para este fim, a pobreza e a miséria devem ser perpetuadas. Não há como desenvolver uma educação de qualidade e emancipadora, de acordo com os princípios marxianos, a partir do momento em que sua única e exclusiva função está atrelada ao desenvolvimento da sociedade capitalista.

5 Considerações finais

Nas análises mediadas pelos estudiosos Newton Duarte, Celi Taffarel e Ivo Tonet, ao discorrer sobre alguns princípios norteadores da BNCC, visualizamos que o documento apresenta características similares às concepções construtivistas para a educação, e crítico-emancipatória para a educação física.

Para a área educativa, em geral, identificamos uma priorização pelo desenvolvimento das capacidades subjetivas. O conhecimento historicamente elaborado é substituído pelo desenvolvimento de competências e habilidades específicas, de saberes superficiais, da autonomia proativa e da capacidade de aprender a aprender, se aproximando dos ideais objetivados pela concepção construtivista.

Já para a especificidade da educação física, a aproximação com a concepção crítico-emancipatória é apenas mais uma das contradições no documento. Ao mesmo tempo em que apresenta uma percepção crítica para com a sociedade, não fornece os elementos necessários para a compreensão de sua totalidade e uma possível transformação das relações sociais, sendo insuficiente para materializar a emancipação humana.

Martineli et al.(2016) sintetizam que concepções que objetivam e indicam ações como “explorar”, “fruir”, “reconhecer” e “criar” não viabilizam a construção de conceitos científicos pelos alunos. Estas concepções, abordadas na BNCC, valorizam apenas os conhecimentos e experiências cotidianas.

Assim, objetivando compreender a BNCC por meio das contradições de classe e interesses de quem a escreveu, concluímos que as concepções político-pedagógicas fundamentadoras do documento colaboram para um esvaziamento histórico e para a manutenção e perpetuação de uma sociedade desigual, dividida em classes, sendo a continuação de um processo iniciado na década de 1990, integrante das políticas neoliberais e pós-modernas.

Referências

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1Secretária do Ensino Fundamental durante o Governo de Fernando Henrique Cardoso.

2Segundo Malagutti et al. 1998, p.8, Apud Duarte (2005) “[...] as políticas neoliberais, além de constituírem a tragédia do nosso tempo no plano das políticas econômicas e no plano das ideias, também produzem consequências no plano da consciência dos indivíduos, gerando”o individualismo e o egoísmo exacerbados”. Segundo o autor, estes são fenômenos perversos que “conquistam” pessoas de todas as idades, reproduzindo-se e difundindo-se por uma espécie de mecanismo automático.”

3“[...] Este ato pode ser definido, de início, como uma forma de relações que os homens estabelecem entre si na produção econômica, onde as forças individuais são postas em comum e permanecem sempre sob o controle comum. Como consequência, os homens detêm o controle consciente da integralidade do processo de trabalho”. ( TONET, 2005, n.p.) Isto tornaria o trabalho uma atividade efetivamente livre, de modo que os homens poderiam dedicar-se às atividades mais propriamente humanas.

4Retira-se do Estado a responsabilidade de promover uma educação de qualidade e emancipadora. A BNCC corrobora para que a escola possibilite as vivências necessárias para uma formação para o mercado de trabalho.

5O conhecimento, na escola, cede espaço para a subjetividade. É necessário que a educação, na BNCC, possibilite o desenvolvimento do protagonismo comunitário, autonomia e leve o aluno a aprender a aprender, ou seja, a construção individual de habilidades e competências como modo de preparação para a vida.

6O Estado burguês direciona as políticas educacionais para a perpetuação hegemônica de uma sociedade dividida em classes.

7Não existe a possibilidade de uma educação emancipadora sem romper com as categorias da sociedade capitalista ( TONET, 2005). Um documento que se propõe a auxiliar na formação de trabalhadores para inserção no mercado de trabalho não auxilia no processo de compreensão crítica da sociedade para sua transformação.

Recebido: 31 de Janeiro de 2021; Aceito: 29 de Junho de 2022

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